RUÍDO
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
FACTO NEGATIVO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I - A mera observância do Regulamento do Ruído ou mesmo a obtenção de licença especial de ruído, visa apenas e só o cumprimento de normativos de natureza administrativa, o que não invalida que esse ruído possa consubstanciar um acto ilícito se apesar da emissão da licença forem violados direitos absolutos de terceiros, como o direito ao repouso.
II - No âmbito de execução de sentença, caso tenha ocorrido violação de uma obrigação de facto negativo- de abstenção (non facere)-, se a mesma redundar numa situação não repristinável, pode nela o exequente formular pedido de indemnização pelo prejuízo sofrido cumulativamente com o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória na qual a executada havia sido condenada, nos termos do art. 876º do CPC.

Texto Integral

Processo n.º 12485/22.0T8PRT-A.P2

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO
1. AA e BB instauraram Execução de Sentença contra Infraestruturas de Portugal, SA formulando os seguintes pedidos no requerimento executivo:
A) Pagamento da quantia de 33.000,00 € devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que a executada já foi condenada;
B) Indemnização de cada um dos exequentes pelo prejuízo sofrido, a fixar em montante não inferior a 7.500,00 € para cada um;
C) Pagamento de juros de mora, à taxa supletiva legal, presentemente 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto invocaram em síntese que por sentença de 10.02.2016, proferida nos autos de ação com processo comum que correu seus termos sob o nº 1643/14.0TBVNG da 3ª Secção Cível da Instância Central de Vila Nova de Gaia, a executada foi condenada a não executar cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído na superfície descoberta com uma área não inferior a 3000 m2 que existe entre a linha e a Rua ..., junto ao edifício da ... da estação ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, ou na Rua ... em frente dele, entre as 20h00 e as 8h00.
Pela mesma sentença, a executada foi também condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor de 1.000,00 €, por cada infração à obrigação negativa acima enunciada, sentença que nessa parte foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2017 transitado em julgado.
Apesar da condenação, a executada nos anos de 2018 e 2019 executou repetidamente operações que produzem ruído nos locais e no horário vedados pela sentença, ao que os exequentes reagiram de forma amigável, conseguindo fazer cessar, a espaços, tais comportamentos, porém, desde janeiro de 2020 que a executada, que tem em curso obras noutros pontos da linha do Norte, se encontra a executar, por si ou por terceiro a seu mando, quase diariamente e de noite, manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas, e outro tipo de tarefas que produzem grande ruído, tendo os exequentes concretizado cada um dos dias em que a executada realizou as referidas operações entre as 22h00 e as 08h00, tanto no espaço descrito na sentença, como na Rua ..., prolongando-se sempre pelo menos por uma hora e na maior parte dos casos por mais tempo, juntando fotografias e ainda reproduções cinematográficas e registos fonográficos, exigindo nesta execução que seja sancionada cada uma das 29 infrações ocorridas em 2021 e 2022 para as quais recolheram registos de som e imagem.
Por outro lado, desde janeiro de 2020 que o sono dos exequentes é, de novo, reiteradamente perturbado pelas operações da executada, que, aliás, não se iniciam sempre à mesma hora e, por isso mesmo, os fazem acordar sobressaltados, obrigando-os a tomar medicamentos tranquilizantes e soporíferos, mas nem assim evitando 2 ou 3 horas de vigília a meio da noite, sofrendo alterações do humor, sentindo-se ora revoltados, ora contristados, reagindo com inusitada veemência a pequenas contrariedades, irritação, ansiedade, cansaço, incapacidade de concentração, confusão no tratamento de assuntos simples, dores de cabeça e de estômago, agravando-se os problemas de saúde de que padecem, por causa dos atos ruidosos diariamente provocados a mando da executada, sendo o comportamento da executada ilícito, porque violador de direitos absolutos, e culposo, tanto mais que ocorreu em violação de uma obrigação negativa reconhecida por sentença, reclamando compensação de danos morais mediante a atribuição de uma indemnização a cada um deles.

2. Pela executada foi apresentado requerimento de oposição à execução mediante Embargos de Executado, no qual peticionou que fosse ordenada a extinção da execução, tendo alegado em síntese que, já pagou aos aqui exequentes a indemnização de €7500,00 em que foi condenada na acção declarativa e, quanto ao pedido de pagamento a título de sanção pecuniária (A), ao contrário do que os exequentes referem no seu requerimento, a IP cumpriu a decisão judicial, não tendo nos anos 2018, 2019 e parte de 2020 executado operações que produzissem ruído nos locais e horários vedados pela sentença.
Posteriormente, em 13 de julho de 2020 foi consignada a Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, sendo a IP Dono da Obra e o consórcio A..., S.A /B..., S.A. Entidade Adjudicante (Doc. n.º 3), que se desenvolve no concelho de Vila Nova de Gaia e entre a renovação da via ferroviária inclui obras de melhoramento dos cais de passageiros das estações das ..., ..., ..., e nos apeadeiros de ..., ..., ..., ..., ..., incluindo tal obra ainda a supressão dos atravessamentos ferroviários existentes onde serão construídos uma série de infraestruturas rodoviárias e pedonais, nomeadamente, entre outras, a PSP ao Pk 320+434, Estação da ... (Duração de Construção de 12 meses)
No âmbito da referida empreitada, a IP solicitou ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... a atribuição da isenção de cumprimento com os valores limites legais estipulados, uma vez que o valor limite noturno de 55 d(B) é impossível de cumprir, dado que a simples movimentação de máquinas ferroviárias como, por exemplo, Dresine, ultrapassa o valor limite exigido, apesar das medidas minimizadoras, concluindo que, como foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos no âmbito da mencionada empreitada entre as 23h00 e as 06h00, o seu comportamento é lícito e ocorre dentro do estrito cumprimento da legislação em vigor.
Não obstante aquela defesa, a embargante também impugnou na totalidade o alegado pelos exequentes no seu requerimento executivo, assim como impugnou a totalidade dos documentos apresentados pelos exequentes que, em seu entender, não conseguem fazer prova das datas, horas, locais e factos, sem prejuízo de reiterar que para as datas e horas indicadas no requerimento dos exequentes foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos da referida empreitada.

3. Os embargados deduziram contestação, impugnando o alegado pela embargante e, concluindo como no requerimento executivo.

4. Após realização de audiência prévia, na qual as partes foram advertidas de que o tribunal tinha intenção de conhecer de mérito nessa fase, veio a ser proferido em 29.11.2022, Ref. Citius 438961197, despacho Saneador/Sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado parcialmente procedentes por parcialmente provados determinando, em consequência:
A) A extinção da execução, por falta de titulo executivo, quanto à indemnização a fixar em montante não inferior a 7.500,00 € para cada um dos exequentes – cfr. art.º 726.º n.º 1 al b) e 734.º do CPC;
B) O prosseguimento dos autos de execução a que estes estão apensos, quanto ao demais peticionado – quantia de € 33.000,00 a titulo de sanção pecuniária compulsória.
Custas a cargo da embargante/executada, e dos exequentes embargados em função do decaimento.
Registe e notifique, incluindo ao Sr. Agente de Execução.”

5. Inconformadas com a referida decisão ambas as partes interpuseram recurso, no âmbito do qual veio a ser proferido Acórdão por este Tribunal com o seguinte dispositivo:
“Em razão do antes exposto, decide-se anular o Saneador/Sentença recorrido, nos termos do art. 662º nº 2 al. c) e d) do CPC, para que seja proferido novo despacho saneador, com ampliação da decisão da matéria de facto e devida fundamentação, nos moldes acima determinados.
Custas devidas em cada um dos recursos, a cargo dos respectivos Apelados.
Notifique.”

6. Após elaboração de despacho saneador e realização de audiência de julgamento veio a ser proferida sentença em 22.02.2024, Ref Citius 456019846, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto julgo os embargos improcedentes por não provados e, em consequência:
6.1. Determino o prosseguimento da execução para cobrança da sanção pecuniária peticionada pelos exequentes;
6.2. Fixo em € 5000 (cinco mil euros) a indenização a pagar pela embargante a cada um dos embargados, acrescida de juros de mora desde o trânsito da presente sentença e até integral e efectivo pagamento.
Custas pela embargante.
R.N.”

7. Inconformada com a referida sentença, a Embargante interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes
CONCLUSÕES
1. Nos termos da alínea g) do artigo 729.º do CPC, fundando-se a execução em sentença, a oposição pode ter como fundamento qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento.
2. Por sentença de 10 de fevereiro de 2016, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de fevereiro de 2017, a IP foi condenada a não executar cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído numa superfície descoberta com uma área não inferior a 3.000 m2 existente junto ao edifício da ..., entre a linha e a Rua ... ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, explorada pela IP, ou na rua da mencionada estação, em frente a ela, entre as 20h00 e as 8h00.
3. A IP foi ainda condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, do valor de 1.000,00 €, por cada infração à obrigação negativa objeto de condenação prevista na alínea anterior.
4. Ao contrário do que os exequentes referem no seu requerimento, a IP cumpriu a decisão judicial, não tendo nos anos 2018, 2019 e parte de 2020 executado operações que produzissem ruído nos locais e horários vedados pela sentença.
5. Posteriormente, em 13 de julho de 2020 foi consignada a Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, sendo a IP Dono da Obra e o consórcio A..., S.A. / B..., S.A. Entidade Adjudicante (cfr. Doc. n.º 3 da petição inicial).
6. Esta empreitada desenvolve-se no concelho de Vila Nova de Gaia e entre a renovação da via ferroviária inclui obras de melhoramento dos cais de passageiros das estações das ..., ..., ..., e nos apeadeiros de ..., ..., ..., ..., ....
7. A obra inclui ainda a supressão dos atravessamentos ferroviários existentes onde serão construídos uma série de infraestruturas rodoviárias e pedonais, nomeadamente, entre outras, a PSP ao Pk 320+434, Estação da ... (Duração de Construção de 12 meses) (cfr. Doc. n.º 4 da petição inicial).
8. No âmbito da referida empreitada, a IP solicitou ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... a atribuição da isenção de cumprimento com os valores limites legais estipulados, uma vez que o valor limite noturno de 55 d(B) é impossível de cumprir, dado que a simples movimentação de máquinas ferroviárias como, por exemplo, Dresine, ultrapassa o valor limite exigido (cfr. Doc n.º 4 da petição inicial).
9. De salientar que entre as medidas minimizadoras, para o descritor ambiental ruído, encontram-se a utilização de equipamentos com marcação CE, o cumprimento de que efetuam a manutenção obrigatória de acordo com o fabricante, a informação da população do início de trabalhos em período noturno através das Juntas de Freguesia e da afixação de panfletos nas estações e apeadeiros (cfr. Doc n.º 4 da petição inicial).
10. Por ofício ref.ª ..., de 02.03.2022, a Câmara Municipal ... comunicou que foi aprovada a dispensa da exigência do cumprimento dos limites de emissão sonora (cfr. Doc. n.º 5 da petição inicial).
11. Foram realizados relatórios de monitorização do ambiente sonoro com o objetivo de determinar os níveis de ruído verificados na envolvente da empreitada, nos períodos diurno, entardecer e noturno, com o intuito de caracterizar a interferência das atividades decorrentes da empreitada no ambiente sonoro dos locais monitorizados (cfr. Doc. n.os 6, 7 e 8 da petição inicial).
12. Foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos no âmbito da mencionada empreitada entre as 23h00 e as 06h00 (cfr. Doc. n.os 9 a 34 da petição inicial).
13. Deste modo, o comportamento da IP é lícito e ocorre dentro do estrito cumprimento da legislação em vigor.
14. A IP impugnou na sua petição inicial de oposição à execução, na totalidade, os documentos apresentados pelos exequentes que, ao contrário do que estes pretendem fazer crer, não conseguem fazer prova das datas, horas, locais e factos.
15. No entanto, como também referiu na sua petição inicial, é importante esclarecer que para as datas e horas indicadas no requerimento dos exequentes foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos da referida empreitada (cfr. Doc. n.os 9 a 34 da petição inicial).
16. A sentença “a quo” de 22 de fevereiro de 2024 julgou, erradamente, “os embargos improcedentes por não provados” e, em consequência, determinou “o prosseguimento da execução para cobrança da sanção pecuniária peticionada pelos exequentes” e fixou “em € 5000 (cinco mil euros) a indenização a pagar pela embargante a cada um dos embargados, acrescida de juros de mora desde o trânsito da presente sentença e até integral e efectivo pagamento”.
7. A sentença “a quo” fundamenta a sua decisão referindo que nos “autos de acção declarativa no âmbito da qual foi proferida a sentença exequenda radicava-se Ocorrência de cargas e descargas levadas a cabo nas instalações das R. na estação ferroviária da ..., tendo aí um depósito de materiais, em horário compreendido entre as 20:00 horas e as 08:00 horas, o que produz ruído que impede o normal descanso dos AA. na sua casa, sita em frente à dita estação ferroviária.” (Pág.13).
8. A sentença “a quo” admite, e bem, que “da condenação não consta a condenação expressa a abster-se de realizar obras de manutenção na linha” (Pág.14).
19. Ora, é claro que a sentença exequenda não se refere a uma empreitada, pois esta foi consignada muito mais tarde, em 13 de julho de 2020 e apenas incide nas “cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído no espaço identificado em (d) dos factos provados, ou na Rua ..., em frente a ele, entre as 20h00 e as 8h00 horas”, excluindo, naturalmente, outro tipo de trabalhos e outros locais dentro da ....
20. De acordo com a douta sentença, com interesse para a decisão, resultam provados os seguintes factos:
“3.1.12. Em 13 de julho de 2020 foi consignada a Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, sendo a IP Dono da Obra e o consórcio A..., S.A. / B..., S.A. Entidade Adjudicante.”
“3.1.13. Esta empreitada desenvolve-se no concelho de Vila Nova de Gaia e entre a renovação da via ferroviária inclui obras de melhoramento dos cais de passageiros das estações das ..., ..., ..., e nos apeadeiros de ..., ..., ..., ..., ....”
“3.1.14. A obra inclui ainda a supressão dos atravessamentos ferroviários existentes onde serão construídos uma série de infraestruturas rodoviárias e pedonais, nomeadamente, entre outras, a PSP ao Pk 320+434, Estação da ... (Duração de Construção de 12 meses).”
“3.1.15. No âmbito da referida empreitada, a IP solicitou ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... a atribuição da isenção de cumprimento com os valores limites legais estipulados, uma vez que o valor limite noturno de 55 d(B) é impossível de cumprir, dado que a simples movimentação de máquinas ferroviárias como, por exemplo, Dresine, ultrapassa o valor limite exigido.”
“3.1.16. Entre as medidas minimizadoras, para o descritor ambiental ruído, encontram-se a utilização de equipamentos com marcação CE, o cumprimento de que efetuam a manutenção obrigatória de acordo com o fabricante, a informação da população do início de trabalhos em período noturno através das Juntas de Freguesia e da afixação de panfletos nas estações e apeadeiros.”
“3.1.17. Por ofício ref.ª ..., de 02.03.2022, a Câmara Municipal ... comunicou que foi aprovada a dispensa da exigência do cumprimento dos limites de emissão sonora”
“3.1.18. Foram realizados relatórios de monitorização do ambiente sonoro com o objetivo de determinar os níveis de ruído verificados na envolvente da empreitada, nos períodos diurno, entardecer e noturno, com o intuito de caracterizar a interferência das atividades decorrentes da empreitada no ambiente sonoro dos locais monitorizados.”
“3.1.19. Foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos no âmbito da mencionada empreitada entre as 23h00 e as 06h00.”
21. A douta sentença “a quo” deu erradamente como provados os seguintes factos:
“3.1.4. desde janeiro de 2020 que a executada, que tem em curso obras noutros pontos da linha do Norte, se encontra a executar, por si ou por terceiro a seu mando, quase diariamente e de noite, manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas, e outro tipo de tarefas que produzem grande ruído.”
22. Não é certo que a IP tivesse desde janeiro de 2020 e apenas “noutros pontos da linha do Norte”, em curso a empreitada que, como já foi referido, apenas teve início em 13 de julho de 2020, que a mesma decorresse na superfície descoberta com uma área não inferior a de 3.000 m2 da sentença dada à execução e que a IP procedesse “a manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas, e outro tipo de tarefas que produzem grande ruído” (cfr. Doc. n.º 3 da petição inicial).
23. Ora, este é um juízo subjetivo, totalmente errado, que não se encontra suportado em qualquer prova, seja documental seja testemunhal, dos autos, sendo, aliás, uma afirmação contrária às provas existentes no processo.
24. Conforme referem as testemunhas ouvidas na audiência de julgamento:
• CC, engenheiro da IP, coordenador da empreitada de Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, no depoimento prestado em 15 de janeiro de 2024, das 9h38 às 9h58, questionado sobre o início do trabalhos que ocorreu depois de 13 de julho de 2020 referiu (aos 3:42 da gravação) que antes da empreitada não podiam começar o trabalhos, que só podiam começar com o “auto de consignação”, depois do visto do Tribunal de Contas.
A testemunha esclareceu (aos 4:53 da gravação) sobre os trabalhos executados na linha do Norte que este troço é o “troço mais congestionado de toda a linha do Norte”.
A testemunha mencionou (aos 5:28 da gravação) que esta empreitada tem um conjunto de grandes intervenções, que existem intervenções (aos 5:44 da gravação) que só podem ser executadas durante o período noturno, para não prejudicar as condições normais de via.
A testemunha esclareceu (aos 6:37 da gravação) que há intervenções que não podem ser feitas durante o dia porque obrigam à supressão de comboios. E nesse contexto, têm que ser feitas no período noturno (aos 6:57 da gravação) como (aos 7:22 da gravação) algumas intervenções feitas na renovação da via férrea.
Como explicou a testemunha (aos 8:07 da gravação), para a IP seria muito mais económico se fossem realizados todos os trabalhos durante o dia pois no período noturno, como se sabe, os trabalhos são mais onerosos e encarecem a obra. Todavia, como explicou a testemunha (aos 8:51 da gravação), se fizessem esses trabalhos durante o dia, não havia serviço de passageiros e de mercadorias – não havia qualquer circulação na linha do Norte – durante meses.
A testemunha referiu (aos 9:50 da gravação) que na substituição da via férrea foram substituídos carris, procedeu-se à substituição das travessas (aos 10:25 da gravação), substituição do balastro (brita que está por baixo das travessas) (aos 10:30 da gravação). Estas atividades obrigam que exista equipamento na via (aos 10:47 da gravação) e durante o tempo em que decorrem esses trabalhos não há circulação (aos 10:50 da gravação).
A testemunha explicou que todos os meses é emitida licença pela Câmara Municipal (aos 11:13 da gravação).
A testemunha acrescentou que o projeto foi concertado com a Câmara Municipal ... (aos 11:58 da gravação), sobretudo a supressão das passagens de nível, porque no final essas obras vão passar para a tutela da Câmara Municipal.
A testemunha acrescentou que antes do início da obra, a Câmara Municipal ... e todas a entidades envolvidas, previamente, estão cientes da necessidade de trabalhar no período noturno e que há ruído durante esse período (aos 12:55 da gravação),
• DD, engenheiro do ambiente da IP, no depoimento prestado em 15 de janeiro de 2024, das 9h59 às 10h05, declarou que a licença especial de ruído é emitida pelo Município (aos 2:05 da gravação), que nesta empreitada existem trabalhos que são executados no período noturno (aos 2:55 da gravação), que a empreitada decorre na linha do Norte, que entre ... e ... é o troço mais congestionado a nível nacional (aos 3:11 da gravação).
A testemunha salientou que seria impossível realizar nesta empreitada trabalhos apenas durante o dia, sem recorrer ao período noturno (aos 3:20 da gravação) pois, de outra forma, teria de ser cortada a circulação da linha do Norte no período diurno, o que causaria prejuízos difíceis de determinar (aos 3:40 da gravação).
Por isso, conforme acrescenta a testemunha, foram sempre pedidas e emitidas licenças especiais de ruído (aos 4:40 da gravação).
• EE, residente na ..., no depoimento prestado em 16 de janeiro de 2024, das 9h38 às 9h54, confirmou que sabe que existem obras na linha do Norte (aos 10:05 da gravação), tendo demonstrado conhecer a realização de trabalhos em plena via na linha do Norte, na zona da ....
• FF, vizinho dos Autores, no depoimento prestado em 17 de janeiro de 2024, das 9h33 às 9h50, referiu equipamentos de grande dimensão (aos 13:00 da gravação) durante a noite (aos 13:37 da gravação). A testemunha não conseguiu identificar que tipos de trabalhos estavam a ser executados durante a noite (aos 14:39 da gravação), mas demonstrou conhecer a realização de trabalhos em plena via na linha do Norte, na zona da ....
• GG, vizinho dos Autores, no depoimento prestado em 17 de janeiro de 2024, das 9h51 às 10h05, não consegue especificar os ruídos (aos 7:32 da gravação), mas sabe que é ruído de obras (aos 9:58 da gravação) e sabe que elas existem (aos 10:00 da gravação) pois já fez queixa – apresentou participação à polícia (aos 10:12 da gravação), tendo demonstrado conhecer a realização de trabalhos em plena via na linha do Norte, na zona da ....
• HH, proprietário de uma pizaria perto da casa dos Autores, no depoimento prestado em 17 de janeiro de 2024, das 10h06 às 10h28, referiu “cortes de materiais” (aos 11:43 da gravação) e um ““carrinho” na linha, a carregar e a descarregar material” (aos 12:24 da gravação), demonstrando conhecer a realização de trabalhos em plena via na linha do Norte, na zona da ....
25. Na verdade, nos seus depoimentos, todas as testemunhas indicadas referiram a realização de trabalhos na linha do Norte, na zona da ....
26. A douta sentença “a quo” também deu erradamente como provados os seguintes factos:
3.1.5. Em cada um dos dias a seguir indicados, a executada realizou as referidas operações entre as 22h00 e as 08h00, quer na linha de comboio, quer no espaço descrito em 3.1.3.” – “A parcela id. em d), situada junto à Estação da ... junto ao edifício da ..., entre a linha e a Rua ..., corresponde a uma superfície descoberta com uma área não inferior a de 3.000 m2. que ao longo de uma extensão de 40 metros se situa em frente à casa dos AA” – “como na Rua ..., prolongando-se sempre pelo menos por uma hora e na maior parte dos casos por mais tempo, conforme resulta de fotografias que juntam e aqui dão por reproduzidas e ainda de reproduções cinematográficas e registos fonográficos,
- No dia 05.03.2021, com registos de som e imagem com início às 23h42 e às 23h43;
- No dia 19.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h34; - No dia 24.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h33; - No dia 27.03.2021, com registo de som e imagem com início às 03h34; - No dia 07.04.2021, com registo de som e imagem com início às 22h38; - No dia 19.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h56; - No dia 21.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h32; - No dia 30.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h30; - No dia 08.05.2021, com fotografia extraída às 00h05 (doc. 1);
- No dia 12.05.2021, com fotografia extraída às 00h17 (doc. 2); - No dia 13.05.2021, com fotografia extraída às 04h25 (doc. 3); - No dia 17.05.2021, com fotografia extraída às 23h06 (doc. 4); - No dia 24.05.2021, com fotografia extraída às 23h49 (doc. 5);
- No dia 02.06.2021, com registo de som e imagem com início às 01h42; - No dia 16.06.2021, com fotografia extraída às 23h09 (doc. 6);
- No dia 18.06.2021, com registo de som e imagem com início às 23h28; - No dia 21.06.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 7);
- No dia 22.06.2021, com fotografia extraída às 23h37 (doc. 8); - No dia 28.06.2021, com fotografia extraída às 23h31 (doc. 9);
- No dia 29.06.2021, com registo de som e imagem com início às 00h14; - No dia 03.07.2021, com registo de som e imagem com início às 02h30; - No dia 17.07.2021, com registo de som e imagem com início às 04h46; - No dia 28.08.2021, com registo de som e imagem com início às 02h29; - No dia 15.09.2021, com registo de som e imagem com início às 22h53; - No dia 19.10.2021, com registo de som e imagem com início às 00h37; - No dia 28.10.2021, com fotografia extraída às 23h26;
- No dia 30.10.2021, com fotografia extraída às 21h29 (doc. 11);
- No dia 11.11.2021, com fotografias extraídas às 22h54 e às 23h28 (docs. 12 e 13);
- No dia 16.11.2021, com registo de som e imagem com início às 23h47; - No dia 17.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h05; - No dia 25.11.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 14);
- No dia 26.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h47; - No dia 29.11.2021, com fotografia extraída às 23h03 (doc. 15);
- No dia 08.12.2021, com fotografia extraída às 22h44 (doc. 16);
- No dia 12.01.2022, com registo de som e imagem com início às 23h16; - No dia 07.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h07; - No dia 23.02.2022, com registo de som e imagem com início às 23h47;
- No dia 24.02.2022, com registos de som e imagem com início às 00h13, 00h32, 01h19 e 02h23
- No dia 25.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h02; - No dia 10.03.2022, com registo de som e imagem com início às 22h47; - No dia 15.03.2022, com registo de som e imagem com início às 01h02; - No dia 13.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h15; - No dia 27.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h44.”
27. A sentença “a quo” não teve em conta que a IP impugnou expressamente os documentos indicados pelos exequentes, referindo claramente no artigo 18.º da sua petição inicial de oposição à execução que a “IP também impugna na totalidade os documentos apresentados pelos exequentes que, ao contrário do que estes pretendem fazer crer, não conseguem fazer prova das datas, horas, locais e factos”.
28. No presente caso, além de não ter sido feita prova da produção do ruído, dado que os documentos apresentados pelos exequentes foram totalmente impugnados, na empreitada consignada em 13 de julho de 2020 não é aplicável a localização e as atividades invocadas.
29. A sentença “a quo” não se pronuncia sobre o facto de se tratar de uma empreitada posterior ao trânsito em julgado da decisão que os exequentes apresentam como título executivo, nem sobre a localização e atividades executadas e as licenças especiais de ruído emitidas.
30. A sentença “a quo” também não se pronuncia sobre o facto de se tratar de uma empreitada que decorre no troço mais congestionado da linha do Norte, que inclui trabalhos em plena via, nomeadamente substituição de carris, de travessas e de balastro, que exigem a suspensão da circulação ferroviária e que, por isso, decorre em período noturno, que embora seja muito mais oneroso, causa muto menos incómodos para os passageiros do transporte ferroviário que todos dias utilizam o comboio como meio de transporte para se deslocaram para os seus locais de trabalho, para os estabelecimentos de ensino que frequentam e para as unidades de saúde onde recebem cuidados médicos.
31. A sentença “a quo” também não se pronuncia sobre as licenças especiais de ruído, que produzem efeitos legais quando são emitidas, que não existiam quando a sentença e o acórdão foram proferidos porque a empreitada só começou posteriormente, pelo que não poderiam ser invocadas em tais decisões, mas que, como se prova pelos documentos que se encontram junto aos autos e pelos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e DD, existem para a execução dos trabalhos da referida empreitada no período noturno..
32. Nos termos da alínea g) do artigo 729.º do CPC, fundando-se a execução em sentença, a oposição pode ter como fundamento qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento.
33. Ora, por sentença de 10 de fevereiro de 2016, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de fevereiro de 2017, a IP foi condenada a não executar cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído numa superfície descoberta com uma área não inferior a 3.000 m2 existente junto ao edifício da ..., entre a linha e a Rua ... ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, explorada pela IP, ou na rua da mencionada estação, em frente a ela, entre as 20h00 e as 8h00.
34. No entanto, apesar da justificação para a apresentação do requerimento executivo ser, no geral, “operações que produzam ruído”, não existe título executivo que fundamente a presente execução.
35. De facto, os exequentes apresentam como título executivo uma decisão de 7 de fevereiro de 2017 para fundamentarem o seu pedido decorrente da empreitada que teve início em 13 de julho de 2020.
36. Na verdade, as operações que poderiam produzir ruído decorreram na Linha do Norte – e não na superfície descoberta com uma área não inferior a 3.000 m2 existente junto ao edifício da ..., entre a linha e a Rua ... ferroviária da ... - na sequência da consignação em 13 de julho de 2020 – após o trânsito em julgado da decisão acima referida - da Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, em que se encontra incluída a ....
37. Por se tratar de uma empreitada na Linha mais importante e movimentada de Portugal, em que a execução de trabalhos na via férrea em horário diurno, com a necessária e consequente suspensão de circulação, prejudicaria milhões de passageiros que diariamente se deslocam de comboio para os seus locais de trabalho, de ensino ou, mesmo, a centros hospitalares, foi necessário efetuar trabalhos noturnos.
38. “III) No caso de colisão entre o direito ao repouso e ao sossego, por um lado, e o direito ao exercício de actividade económica, por outro lado, este último deve ser restringido nos termos e extensão necessários à preservação do núcleo essencial do primeiro.
IV) A restrição referida em III) deve operar-se com respeito pelo princípio da proporcionalidade, a significar que as providências restritivas devem ser: i) adequadas ao fim em vista; ii) indispensáveis em relação a esse fim e as que menos prejudicam os cidadãos envolvidos ou a colectividade; iii) racionais, medindo-se essa racionalidade em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26-10-2021, no Proc. n.º 773/19.7T8CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
39. Na verdade, a decisão de executar trabalhos em horário noturno na Linha do Norte, em particular na ..., foi tomada com o total respeito pelo princípio da proporcionalidade, tendo sido adequada ao fim em vista e a que menos prejudicou os cidadãos envolvidos e a coletividade.
40. Assim, foram implementadas medidas minimizadoras, de forma a criar o menor impacto possível para os moradores das zonas limítrofes à Linha do Norte em renovação, nomeadamente a utilização de equipamentos com marcação CE e a população foi informada do início de trabalhos em período noturno através das Juntas de Freguesia e da afixação de panfletos nas estações e apeadeiros.
41. Nos termos do disposto no artigo 15.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro, foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos no âmbito da mencionada empreitada entre as 23h00 e as 06h00 e foram realizados relatórios de monitorização do ambiente sonoro com o objetivo de determinar os níveis de ruído verificados na envolvente da empreitada.
42. Todavia, estes factos essenciais, com relevância jurídica para a decisão da causa, não foram tidos em consideração para a boa decisão da causa pelo Tribunal “a quo”.
43. VI - O juiz deve garantir a recolha de todos os factos essenciais (cfr. art. 5.º, do CPC) que se mostrem com relevância jurídica, acautelando anulações de decisões.
VII – A omissão, na decisão, de factos essenciais, provados e não provados e fundamentação de facto, implica a anulação, mesmo oficiosamente, da decisão proferida pelo tribunal a quo, para que a 1.ª instância supra a omissão, sendo de anular a decisão, ao abrigo da al. c), do n.º 2, do artigo 662.º, do referido diploma legal, para produção de prova adicional, quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários à reapreciação pelo Tribunal da Relação (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.04.2021, no Proc. n.º 12225/07.5TBVNG-A.P1, disponível em www.dgsi.pt).
44. Além disso, erradamente, a sentença entende, o que não se admite, que “em causa está uma condenação implícita: a de não realização de quaisquer operações na estação ferroviário e depósito a ele anexo, porque só assim se garantia a inexistência de ruído que privava os embargados do direito ao descanso” (Pág.14).
45. Na verdade, ao contrário do que pretende fazer crer a sentença “a quo”, o objeto da segunda ação não é idêntico e não coincide com o objeto da decisão proferida na primeira ação,
46. A sentença “a quo” considera, erradamente, que “aquela condenação configura caso material que pode ser oposto pelos embargados à embargante, não sendo necessário intentar uma nova acção, nem têm as licenças especiais de ruido emanadas pelos serviços competentes do Município ... efeito de derrogar a condenação em apreço” (Pág.13).
47. Esta posição é inadmissíveis pois, além de impedir a execução de trabalhos na via, que obrigam a que seja desligada a catenária e suspensa a circulação ferroviária durante o período noturno, para causar o menor prejuízo possível aos passageiros da linha do Norte, trataria os embargados com um privilégio que não possuem os restantes habitantes da zona onde decorrem os trabalhos na ..., que estão sujeitos aos incómodos das obras, que decorrem à noite, suportadas pelas licenças especiais de ruido emanadas pelos serviços competentes do Município ....
48. Apesar de mencionar a figura de “autoridade do caso julgado” (Pág.12), a sentença “a quo” admite que isto “não significa, porém, que a autoridade do caso julgado possa valer fora dos limites definidos pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, sendo certo que, conforme resulta do disposto no artº 619º do C.P.C, é apenas dentro desses limites que a decisão adquire a força de caso julgado” (Pág.12).
49. Pois, continua a sentença “a quo”, aquilo “que se impõe por força da autoridade do caso julgado é a definição – feita por decisão transitada em julgado – da concreta relação jurídica que aí foi delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir” (Pág.12).
50. “I - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no art.º 581º do CPC.
II - Por força da autoridade de caso julgado, impõe-se aceitar a decisão proferida no primeiro processo, na medida em que o núcleo fulcral das questões de direito e de facto ali apreciadas e decididas são exactamente as mesmas que as autoras aqui pretendem ver apreciadas e discutidas. Há, pois a necessária relação de prejudicialidade. De outro modo, a decisão proferida no primeiro processo -abrangendo os fundamentos de facto e de direito - que lhe dão sustento, seria posta em causa, de novo apreciada e decidida de modo diverso neste processo” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.10.2018, no Proc. n.º 23201/17.8T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt).
51. Ora, como facilmente se constata pelos motivos expostos ao longo destas alegações de recurso, no presente caso não se verifica a exceção de autoridade de caso julgado pois a decisão proferida no primeiro processo, abrangendo os fundamentos de facto e de direito, que a sustentam, teria novamente de ser apreciada e decidida de modo diverso neste processo.
52. Além disso, o valor fixado no ponto 6.2. da sentença, de € 5000 (cinco mil euros), como indemnização a pagar pela embargante a cada um dos embargados, não é devido pois também não existe título executivo que suporte a sua aplicação.
53. Face ao exposto, deverá ser extinta a execução, por falta de título executivo quanto às quantias estabelecidas a título de sanção pecuniária compulsória e de indemnização a pagar pela embargante a cada um dos embargados
Concluiu pedindo que seja dado provimento à presente apelação, revogando-se totalmente a sentença recorrida e substituindo-se por outra que julgue a oposição à execução mediante embargos de executado totalmente procedente e, em consequência, ordene a total extinção da execução.

8. Os Embargados apresentaram contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

9. Foram observados os Vistos.
*
II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
- se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada;
- se a empreitada consignada em Julho de 2020 e a obtenção de licenças especiais de ruído posteriores ao encerramento da discussão do processo de declaração são fundamentos de oposição à sentença dada à execução;
-se inexiste título executivo quanto à indemnização que a Apelante foi condenada a pagar aos Apelados.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
3.1.1. O exequente deu à execução como titulo executivo, sentença proferida no âmbito do processo nº Proc.Nº 1643/14.0TBVNG, da Instância Central, 3ª Secção Civel de Vila Nova de Gaia, no âmbito da qual a embargante foi condenada:
“….a não executar cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído no espaço identificado em (d) dos factos provados, ou na Rua ..., em frente a ele, entre as 20h00 e as 8h00 horas;
b) Condeno a R. no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, de valor de 1.000,00 €, por cada infracção à obrigação negativa objecto da condenação prevista na alínea anterior; E
c) Condeno a R. a pagar a cada um dos AA. Uma indemnização por danos não patrimoniais, de montante de 10.000,00 €, acrescida dos juros de mora que se vencerem desde a data da sentença até integral pagamento.”
3.1.2. Daquela sentença foi interposto recurso para o Venerando Tribunal da Relação, no qual se decidiu:
3.1.3. A parcela id. em d), situada junto à Estação da ... junto ao edifício da ..., entre a linha e a Rua ..., corresponde a uma superfície descoberta com uma área não inferior a de 3.000 m2. que ao longo de uma extensão de 40 metros se situa em frente à casa dos AA.
3.1.4. desde janeiro de 2020 que a executada, que tem em curso obras noutros pontos da linha do Norte, se encontra a executar, por si ou por terceiro a seu mando, quase diariamente e de noite, manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas, e outro tipo de tarefas que produzem grande ruído.
3.1.5. Em cada um dos dias a seguir indicados, a executada realizou as referidas operações entre as 22h00 e as 08h00, quer na linha de comboio, quer no espaço descrito em 3.1.3. como na Rua ..., prolongando-se sempre pelo menos por uma hora e na maior parte dos casos por mais tempo, conforme resulta de fotografias que juntam e aqui dão por reproduzidas e ainda de reproduções cinematográficas e registos fonográficos,
- No dia 05.03.2021, com registos de som e imagem com início às 23h42 e às 23h43;
- No dia 19.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h34;
- No dia 24.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h33;
- No dia 27.03.2021, com registo de som e imagem com início às 03h34;
- No dia 07.04.2021, com registo de som e imagem com início às 22h38;
- No dia 19.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h56;
- No dia 21.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h32;
- No dia 30.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h30;
- No dia 08.05.2021, com fotografia extraída às 00h05 (doc. 1);
- No dia 12.05.2021, com fotografia extraída às 00h17 (doc. 2);
- No dia 13.05.2021, com fotografia extraída às 04h25 (doc. 3);
- No dia 17.05.2021, com fotografia extraída às 23h06 (doc. 4);
- No dia 24.05.2021, com fotografia extraída às 23h49 (doc. 5);
- No dia 02.06.2021, com registo de som e imagem com início às 01h42;
- No dia 16.06.2021, com fotografia extraída às 23h09 (doc. 6);
- No dia 18.06.2021, com registo de som e imagem com início às 23h28;
- No dia 21.06.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 7);
- No dia 22.06.2021, com fotografia extraída às 23h37 (doc. 8);
- No dia 28.06.2021, com fotografia extraída às 23h31 (doc. 9);
- No dia 29.06.2021, com registo de som e imagem com início às 00h14;
- No dia 03.07.2021, com registo de som e imagem com início às 02h30;
- No dia 17.07.2021, com registo de som e imagem com início às 04h46;
- No dia 28.08.2021, com registo de som e imagem com início às 02h29;
- No dia 15.09.2021, com registo de som e imagem com início às 22h53;
- No dia 19.10.2021, com registo de som e imagem com início às 00h37;
- No dia 28.10.2021, com fotografia extraída às 23h26 (doc. 10);
- No dia 30.10.2021, com fotografia extraída às 21h29 (doc. 11);
- No dia 11.11.2021, com fotografias extraídas às 22h54 e às 23h28 (docs. 12 e 13);
- No dia 16.11.2021, com registo de som e imagem com início às 23h47;
- No dia 17.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h05;
- No dia 25.11.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 14);
- No dia 26.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h47;
- No dia 29.11.2021, com fotografia extraída às 23h03 (doc. 15);
- No dia 08.12.2021, com fotografia extraída às 22h44 (doc. 16);
- No dia 12.01.2022, com registo de som e imagem com início às 23h16;
- No dia 07.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h07;
- No dia 23.02.2022, com registo de som e imagem com início às 23h47;
- No dia 24.02.2022, com registos de som e imagem com início às 00h13, 00h32, 01h19 e 02h23
- No dia 25.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h02;
- No dia 10.03.2022, com registo de som e imagem com início às 22h47;
- No dia 15.03.2022, com registo de som e imagem com início às 01h02;
- No dia 13.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h15;
- No dia 27.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h44.
3.1.6. Os referidos atos implicaram, além do mais, circulação e funcionamento de camiões e máquinas, somando-se o ruído dos motores ao som das pás das máquinas raspando no chão para recolher pedra, gravilha ou entulho e ao desses materiais deslocando-se nas pás e caindo e rebolando sobre as caixas metálicas dos camiões.
3.1.7. Essas operações, acompanhadas de vozearia e, por vezes, de gritos dos trabalhadores, decorrem a cerca de 6 metros das janelas da casa dos exequentes, afetando, o seu sono e o seu descanso.
3.1.8. Por outro lado, desde janeiro de 2020 que o sono dos exequentes é reiteradamente perturbado pelas operações da executada, que não se iniciam sempre à mesma hora e, em consequência, os fazem acordar sobressaltados.
3.1.9. Por causa da falta de sono ocasionada pelos factos descritos, que os privaram de 3 a 5 horas de sono por noite, os exequentes experienciaram sono a meio do dia, quando, normalmente, estariam despertos, e sofreram alterações do humor, sentindo-se ora revoltados, ora contristados, reagindo com inusitada veemência a pequenas contrariedades.
3.1.10.Sentiram irritação, ansiedade, cansaço, incapacidade de concentração, confusão no tratamento de assuntos simples, dores de cabeça e de estômago.
3.1.11. Resulta como provado na sentença exequenda que o exequente tem 71 anos de idade, é cardíaco e sofreu um enfarte do miocárdio, em 19.03.2012, cujo risco de repetição é potenciado pela falta de sono, enquanto a exequente tem 67 anos de idade e é hipertensa, provocando-lhe a falta de sono um aumento da tensão arterial.
3.1.12. Em 13 de julho de 2020 foi consignada a Empreitada de Renovação Integral de Via e Desnivelamentos no Trecho entre os km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte, sendo a IP Dono da Obra e o consórcio A..., S.A. / B..., S.A. Entidade Adjudicante.
3.1.13. Esta empreitada desenvolve-se no concelho de Vila Nova de Gaia e entre a renovação da via ferroviária inclui obras de melhoramento dos cais de passageiros das estações das ..., ..., ..., e nos apeadeiros de ..., ..., ..., ..., ....
3.1.14. A obra inclui ainda a supressão dos atravessamentos ferroviários existentes onde serão construídos uma série de infraestruturas rodoviárias e pedonais, nomeadamente, entre outras, a PSP ao Pk 320+434, Estação da ... (Duração de Construção de 12 meses).
3.1.15. No âmbito da referida empreitada, a IP solicitou ao Senhor Presidente da Câmara Municipal ... a atribuição da isenção de cumprimento com os valores limites legais estipulados, uma vez que o valor limite noturno de 55 d(B) é impossível de cumprir, dado que a simples movimentação de máquinas ferroviárias como, por exemplo, Dresine, ultrapassa o valor limite exigido.
3.1.16.Entre as medidas minimizadoras, para o descritor ambiental ruído, encontram-se a utilização de equipamentos com marcação CE, o cumprimento de que efetuam a manutenção obrigatória de acordo com o fabricante, a informação da população do início de trabalhos em período noturno através das Juntas de Freguesia e da afixação de panfletos nas estações e apeadeiros.
3.1.17. Por ofício ref.ª ..., de 02.03.2022, a Câmara Municipal ... comunicou que foi aprovada a dispensa da exigência do cumprimento dos limites de emissão sonora (Doc. n.º 5).
3.1.18. Foram realizados relatórios de monitorização do ambiente sonoro com o objetivo de determinar os níveis de ruído verificados na envolvente da empreitada, nos períodos diurno, entardecer e noturno, com o intuito de caracterizar a interferência das atividades decorrentes da empreitada no ambiente sonoro dos locais monitorizados.
3.1.19. Foram emitidas licenças especiais de ruído para a execução dos trabalhos no âmbito da mencionada empreitada entre as 23h00 e as 06h00. 16.º
3.1.20 Na acção declarativa as partes eram as mesmas, do ponto de vista da sua qualidade substantiva e ali era pedido:
CONDENAR-SE A R. A NÃO EXECUTAR CARGAS E DESCARGAS OU OUTRAS OPERAÇÕES QUE PRODUZAM RUÍDO NO ESPAÇO IDENTIFICADO NO ARTIGO 4º DESTE REQUERIMENTO, OU NA Rua ..., EM FRENTE A ELE, ENTRE AS 20H00 E AS 8H00 HORAS;
B) CONDENAR-SE A R. NO PAGAMENTO DE UMA SANCÃO PECUNIÁRIA COMULSÓRIA, DE VALOR NÃO INFERIOR A 5.000,00 €, POR CADA INFRACÇÃO À OBRIGAÇÃO NEGATIVA OBJECTO DA CONDENAÇÃO PREVISTA NA ALÍNEA ANTERIOR; E
C) CONDENAR-SE A R. A PAGAR A CADA UM DOS AA. UMA INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS, DE MONTANTE NÃO
INFERIOR A 20.000,00 €, ACRESCIDA DOS JUROS DE MORA QUE SE VENCEREM DESDE A DATA DA SENTENÇA ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO.
3.1.21. A causa de pedir: Ocorrência de cargas e descargas levadas a cabo nas instalações das R. na estação ferroviária da ..., tendo aí um depósito de materiais, em horário compreendido entre as 20:00 horas e as 08:00 horas, o que produz ruído que impede o normal descanso dos AA. na sua casa, sita em frente à dita estação ferroviária.
A conduta da R. viola a legislação do ruído.
A conduta da R. provoca nos AA. danos.

2. O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
3.2.1. Os atos da exequente obrigaram os executados a tomar medicamentos tranquilizantes e soporíferos, mas nem assim evitando 2 ou 3 horas de vigília a meio da noite.
**
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[2]
São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que, na impugnação da matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados, enquanto que a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados (AUJ nº 12/2023 de 14.11), bem como a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios pode constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as concretas passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorra.
Analisadas as conclusões deste recurso concluímos que tais ónus de impugnação da decisão da matéria de facto foram minimamente cumpridos pela Apelante, uma vez que constam das respectivas conclusões de recurso os concretos pontos de facto impugnados, e a decisão alternativa pretendida, bem como a menção aos meios de prova que no entender dos Apelantes impunham decisão diversa da proferida estão vertidos no corpo das alegações.
Sob as Conclusões 21 e 26 a Apelante requereu que fossem considerados não provados os factos 3.1.4 e 3.1.5 dos factos provados.
Analisaremos os referidos pontos de facto impugnados em conjunto uma vez que a prova de que a Apelante se socorreu e aquela mencionada pelo tribunal a quo abordaram dessa forma tal matéria de facto e os dois pontos de facto impugnados acabam por estar interligados entre si, sem prejuízo de algumas especificidades próprias de cada um dos pontos de facto que serão oportunamente referenciados.
3.1.4. desde janeiro de 2020 que a executada, que tem em curso obras noutros pontos da linha do Norte, se encontra a executar, por si ou por terceiro a seu mando, quase diariamente e de noite, manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas, e outro tipo de tarefas que produzem grande ruído.
Insurgiu-se a Apelante contra o facto de o tribunal a quo ter considerado aquele facto como provado sustentando que é um juízo subjectivo, totalmente errado, que não se encontra suportado em qualquer prova, seja documental seja testemunhal, sendo uma afirmação contrária às provas existentes no processo.
Convocou para o efeito o depoimento das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento CC, DD, EE, FF, GG e HH que no seu entender provaram, a propósito daquele ponto de facto impugnado, que a empreitada em curso apenas teve início em 13 de julho de 2020 (não sendo certo que tivesse executado quaisquer trabalhos desde janeiro de 2020), que se cingiram a trabalhos em plena via na linha do Norte, na zona da ... (não sendo certo que a mesma decorresse na superfície descoberta mencionada na sentença dada à execução), que seria impossível realizar nesta empreitada trabalhos apenas durante o dia sem recorrer ao período nocturno e que por isso mesmo foram pedidas e emitidas licenças especiais de ruído.
Não deixa de ser curioso que o tribunal a quo tenha fundamentado a sua convicção quanto à prova do ponto de facto ora impugnado precisamente nos referidos depoimentos testemunhais, e que tenha também dado como provado, com base em prova documental junta com o requerimento de embargos, os aspectos referenciados pela Apelante neste recurso- que a empreitada de renovação integral de via e desnivelamentos no trecho entre os Km 318,600 e 332,780 da Linha do Norte foi consignada em 13 de julho de 2020 (ponto 3.1.12), e que para essa empreitada a Apelante solicitou e obteve licenças especiais de ruído entre as 23h00 e as 06h00, ficando dispensada pela CM de ... do cumprimento dos limites de emissão sonora (pontos 3.1.15, 3.1.17 e 3.1.19).
Resulta, assim, de forma evidente da motivação da decisão da matéria de facto que, contrariamente ao afirmado pela Apelante, o ponto ora sob reapreciação foi fundamentado em prova testemunhal, maioritariamente nos depoimentos das testemunhas também convocadas pela Apelante.
Também não foram descurados pelo tribunal a quo os factos mencionados pelas referidas testemunhas que foram transcritos pela Apelante, assim como os documentos por ela juntos aos autos, os quais serviram de prova designadamente para os factos acima mencionados, o que acontece é que desses depoimentos testemunhais resultou a convicção do tribunal a quo de que as tarefas que a Apelante vem desenvolvendo e o ruído por ela causado naquela área envolvente à casa dos Apelados não decorrem exclusivamente da referida empreitada na via férrea consignada apenas em julho de 2020 mas essencialmente de operações que levou a cabo na zona descrita na sentença dada à execução e que foram estas que produziram o ruído que afectou os aqui Apelados desde janeiro de 2020.
A questão da data de início das operações levadas a cabo pela Apelante produtoras de ruído, mencionada no ponto 3.1.4, que a Apelante sustenta ser impossível ser janeiro de 2020 porque a empreitada apenas foi consignada em julho de 2020 afigura-se-nos totalmente desprovida de interesse prático para a decisão da causa porquanto os Apelados apenas concretizaram o incumprimento pela Apelante da obrigação de abstenção de ruído determinada na sentença exequenda a partir de Março de 2021 (ver ponto 3.1.5)- em datas todas elas posteriores à referida empreitada- e a condenação na sanção pecuniária compulsória ateve-se apenas e só àqueles momentos temporais e não a outros anteriores, sendo que para a indemnização atribuída aos Apelados também é irrelevante a impugnação da data porquanto a data reportada a janeiro de 2020 já consta do ponto provado 3.1.8, ponto esse não impugnado pela Apelante.
3.1.5. Em cada um dos dias a seguir indicados, a executada realizou as referidas operações entre as 22h00 e as 08h00, quer na linha de comboio, quer no espaço descrito em 3.1.3. como na Rua ..., prolongando-se sempre pelo menos por uma hora e na maior parte dos casos por mais tempo, conforme resulta de fotografias que juntam e aqui dão por reproduzidas e ainda de reproduções cinematográficas e registos fonográficos,
- No dia 05.03.2021, com registos de som e imagem com início às 23h42 e às 23h43;
- No dia 19.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h34;
- No dia 24.03.2021, com registo de som e imagem com início às 23h33;
- No dia 27.03.2021, com registo de som e imagem com início às 03h34;
- No dia 07.04.2021, com registo de som e imagem com início às 22h38;
- No dia 19.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h56;
- No dia 21.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h32;
- No dia 30.04.2021, com registo de som e imagem com início às 23h30;
- No dia 08.05.2021, com fotografia extraída às 00h05 (doc. 1);
- No dia 12.05.2021, com fotografia extraída às 00h17 (doc. 2);
- No dia 13.05.2021, com fotografia extraída às 04h25 (doc. 3);
- No dia 17.05.2021, com fotografia extraída às 23h06 (doc. 4);
- No dia 24.05.2021, com fotografia extraída às 23h49 (doc. 5);
- No dia 02.06.2021, com registo de som e imagem com início às 01h42;
- No dia 16.06.2021, com fotografia extraída às 23h09 (doc. 6);
- No dia 18.06.2021, com registo de som e imagem com início às 23h28;
- No dia 21.06.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 7);
- No dia 22.06.2021, com fotografia extraída às 23h37 (doc. 8);
- No dia 28.06.2021, com fotografia extraída às 23h31 (doc. 9);
- No dia 29.06.2021, com registo de som e imagem com início às 00h14;
- No dia 03.07.2021, com registo de som e imagem com início às 02h30;
- No dia 17.07.2021, com registo de som e imagem com início às 04h46;
- No dia 28.08.2021, com registo de som e imagem com início às 02h29;
- No dia 15.09.2021, com registo de som e imagem com início às 22h53;
- No dia 19.10.2021, com registo de som e imagem com início às 00h37;
- No dia 28.10.2021, com fotografia extraída às 23h26 (doc. 10);
- No dia 30.10.2021, com fotografia extraída às 21h29 (doc. 11);
- No dia 11.11.2021, com fotografias extraídas às 22h54 e às 23h28 (docs. 12 e 13);
- No dia 16.11.2021, com registo de som e imagem com início às 23h47;
- No dia 17.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h05;
- No dia 25.11.2021, com fotografia extraída às 23h07 (doc. 14);
- No dia 26.11.2021, com registo de som e imagem com início às 00h47;
- No dia 29.11.2021, com fotografia extraída às 23h03 (doc. 15);
- No dia 08.12.2021, com fotografia extraída às 22h44 (doc. 16);
- No dia 12.01.2022, com registo de som e imagem com início às 23h16;
- No dia 07.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h07;
- No dia 23.02.2022, com registo de som e imagem com início às 23h47;
- No dia 24.02.2022, com registos de som e imagem com início às 00h13, 00h32, 01h19 e 02h23
- No dia 25.02.2022, com registo de som e imagem com início às 02h02;
- No dia 10.03.2022, com registo de som e imagem com início às 22h47;
- No dia 15.03.2022, com registo de som e imagem com início às 01h02;
- No dia 13.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h15;
- No dia 27.04.2022, com registo de som e imagem com início às 23h44.
Quanto a este ponto impugnado a Apelante reiterou, tal como já havia feito no recurso anteriormente apresentado, que a sentença não teve em conta que havia impugnado expressamente os documentos indicados pelos exequentes, tendo então referido no art. 18º da oposição à execução que “ a IP também impugna na totalidade os documentos apresentados pelos exequentes que, ao contrário do que estes pretendem fazer crer, não conseguem fazer prova das datas, horas, locais e factos”.
A propósito em específico deste ponto de facto impugnado não podemos deixar de salientar que os documentos apesar de impugnados não deixam de ser um meio de prova relevante e válido que pode e deve ser atendido pelo tribunal, para mais quando o tribunal formou a sua convicção não apenas neles mas na articulação com a demais prova, designadamente a prova testemunhal e por declarações de parte, que corroboraram essa prova documental, meios probatórios que a Apelante nem sequer invalidou.
Mas vejamos o que ficou escrito na motivação da decisão sobre a matéria de facto sob recurso:
“Relativamente aos dias em que foi produzido ruido, o Tribunal alicerçou a convicção nas fotografias anexas ao requerimento executivo e nos registos videográficos, constando dos ficheiros a data da sua captação, confirmados em audiência pela embargada.
Neste aspecto cumpre realçar que embora a embargada impugne esses documentos e registos, acaba por admitir que as obras na linha foram realizadas em horário nocturno e dos registos resulta que a faixa anexa em frente a casa dos embargados a embargante- por intermédio da empresa a que a obra foi adjudicada- foi utilizada durante esse mesmo período, nela circulando funcionários, sendo audível a sua voz, ai estando colocados camiões, evidenciando de forma notória que essa faixa servia de apoio à execução das obras- veja-se, a titulo de exemplo CD 1 com as seguintes datas ; ficheiro de 05-03-2021 com a duração de 01 minuto e 11 segundos, ficheiro de 05-03-2021 com a duração de 02 minutos e 24 segundos, ficheiro de 07-04-2021 com a duração de 05 minutos e 21 segundos. CD 2 1º, 2º e 6º ficheiros, a titulo de exemplo onde é visível que na faixa de terreno indicada na sentença exequenda moviam-se máquinas para execução de obras na linha e onde se vêm alguns materiais depositados (tem até uma cabine tipo WC de obras).
Essa utilização e circulação de camiões na Estrada Nacional junto à casa dos embargados foram confirmadas por todas as testemunhas apresentadas pelos embargados.
Acresce que sendo factos do conhecimento pessoal da embargante a sua mera impugnação equivale a confissão – artº 574º, nº3, do C.P.C
CC, Engº, funcionário da embargante, confirmou a data da adjudicação da empreitada (o que não significa que antes não fossem executados trabalhos ou removidos bens da faixa de terreno em causa nos autos).
Esclareceu que o troço em causa é o mais congestionado da linha do Norte e que as obras apenas podem ser realizadas no período noturno em ordem a não suprimirem comboios.
Acabaria por admitir, embora negasse que a faixa era utilizada como estaleiro, que os camiões com materiais destinados à obra circulavam na E.N. entre as 00h e 08h.
DD, Engº do ambiente de forma simples, espontânea confirmou terem sido pedidas e emitidas licenças especiais de ruido. Admitiu que durante o dia também eram realizados trabalhos
II, filho dos embargados depôs de forma serena, coerente, desapaixonada e, assim, credível.
Embora não viva com os pais visita-os semanalmente, pernoitando em casa destes. Foi-lhe, assim possível percepcionar a utilização da faixa de terreno id. nos autos como estaleiro, onde circulavam trabalhadores e onde eram utilizadas máquinas, tendo o quarto da frente deixado de ser utilizado por ser aquele onde era mais audível o barulho, embora nos restantes três fosse perceptível, era-o em menor escala.
Confirmou que na decorrência dos barulhos- produzidos na faixa e na linha do comboio, os pais se sentiam agitados, nervosos. Os pais falavam consigo sobre o assunto.
(…)EE, que residia a 300m dos embargados, de forma simples, espontânea, coerente, credível, esclareceu que a parcela em causa nos autos funcionava como deposito de materiais, máquinas e dela saiam e entravam camiões a qualquer hora. Deita-se cerca da 1h 30 e conseguia ouvir o barulho, que perturbava o sono.
Embora resultasse barulho da execução das obras, é inequívoco que a entrada e saída de camiões daquela faixa, o carregar e descarregar material de grande porte (como seja a parte metálica da linha férrea que foi substituída) o manejamento de máquinas “estacionadas” na mesma, no período nocturno de execução das obras, como resulta das regras da experiencia comum provocam barulhos cuja propagação à noite é superior.
No mesmo sentido depôs FF, vizinho dos embargados, que de forma espontânea confirmou o deposito de matérias na parcela e cuja movimentação causava barulho audível na sua casa. Os filhos passaram a dormir no seu quarto para poderem conciliar o sono, porque este se encontra mais afastado da linha.
Também GG, vizinho dos embargados confirmou que a casa destes situa-se em frente ao estaleiro, “colada à 109” e que embora o estaleiro esteja vedado com chapas é visível da rua oposta à 109 o que está depositado no estaleiro (lixo, blocos de betão) e era audível o ruido da movimentação dos materiais ali depositados.
Por diversas vezes chamou a policia em razão do barulho produzido.
HH vizinho dos embargados, depôs no mesmo sentido das testemunhas antecedentes, Confirmou a passagem de um cem numero de camiões na 109 no período das 00h às 8h (tem uma pizaria junto da estação e saída de lá por volta das 2h).”
A embargada BB, em sede de declarações de parte, depôs de forma coerente e credível, confirmando ter-se reunido diversas vezes com o Engº CC em razão das obras.
Confirmou de forma perentória que as imagens e sons foram por si captados nos dias e horários que constam dos registos.”
Relativamente aos demais argumentos da Apelante convoca-se o que a esse propósito ficou vertido na decisão recorrida, porquanto o tribunal a quo socorreu-se inclusivamente do depoimento das testemunhas convocadas pela própria Apelante, prova essa gravada que depois de ouvida na sua totalidade nos permite confirmar que a convicção do tribunal a quo mostra-se devidamente fundamentada e alicerçada nos meios probatórios nela referenciados, não nos merecendo qualquer censura a avaliação crítica que foi feita, á luz das regras da experiência comum.
Ficou demonstrado de forma cabal pela prova testemunhal arrolada pelos Apelados que independentemente da localização e data de início da empreitada em causa certo é que a Apelante utilizou o espaço descrito na sentença dada à execução, para parqueamento e operações que causaram ruído que afectou os aqui Apelados nas datas e horários apurados, contrariando as determinações impostas na sentença dada à execução.
Reforçando a motivação acima transcrita e que acompanhamos, permitimo-nos acrescentar que inclusivamente a testemunha arrolada pela Apelante CC admitiu que na zona referenciada na sentença dada à execução estão parqueados equipamentos, maquinaria pesada (cerca de 800 m) e que a utilização daquele espaço com esse equipamento produz necessariamente ruído.
Também não podemos deixar de salientar que estão inclusivamente dados como provados factos que contrariam frontalmente a posição agora assumida pela Apelante e que esta não impugnou em sede deste recurso, como é o caso dos pontos 3.1.6, 3.1.7 e 3.1.8.
Deles consta a seguinte factualidade que, por não ter sido especificamente impugnada pela Apelante, demonstra o contrário do por si defendido neste recurso:
“3.1.6. Os referidos atos implicaram, além do mais, circulação e funcionamento de camiões e máquinas, somando-se o ruído dos motores ao som das pás das máquinas raspando no chão para recolher pedra, gravilha ou entulho e ao desses materiais deslocando-se nas pás e caindo e rebolando sobre as caixas metálicas dos camiões.
3.1.7. Essas operações, acompanhadas de vozearia e, por vezes, de gritos dos trabalhadores, decorrem a cerca de 6 metros das janelas da casa dos exequentes, afetando, o seu sono e o seu descanso.
3.1.8. Por outro lado, desde janeiro de 2020 que o sono dos exequentes é reiteradamente perturbado pelas operações da executada, que não se iniciam sempre à mesma hora e, em consequência, os fazem acordar sobressaltados.”
Em jeito de conclusão, reponderados por nós os meios probatórios produzidos nos presentes autos, secundamos a apreciação crítica da prova realizada pelo tribunal a quo, improcedendo a pretensão de dar como não provados os pontos 3.1.4 e 3.1.5 que como tal se manterão no elenco dos factos provados.
Empreitada e obtenção de licenças especiais de ruído posteriores à sentença dada à execução
Os presentes Embargos de Executado foram apresentados no âmbito de uma execução de sentença.
Em sede de requerimento executivo foram formulados os seguintes pedidos:
A) Pagamento da quantia de 33.000,00€ devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que a executada já foi condenada;
B) Indemnização de cada um dos exequentes pelo prejuízo sofrido, a fixar em montante não inferior a 7.500,00€ para cada um;
C) Pagamento de juros de mora, à taxa supletiva legal, presentemente 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.
A sentença que constitui título executivo condenou a executada/embargante a não executar cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído na superfície descoberta com uma área não inferior a 3000 m2 que existe entre a linha e a Rua ..., junto ao edifício da ... da estação ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, ou na Rua ... em frente dele, entre as 20h00 e as 8h00.
Pela mesma sentença, a executada foi também condenada no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, de valor de 1.000,00 €, por cada infração à obrigação negativa acima enunciada.
Alegaram os exequentes/embargados que apesar da condenação, a executada nos anos de 2021 e 2022 executou repetidamente operações que produzem ruído nos locais e no horário vedados pela sentença.
Segundo o diposto no art. 729º do CPC, fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos taxativamente nele elencados sob as alíneas a) a i).
De entre esses fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, a aqui Apelante/embargante invocou a inexistência de título quanto à indemnização peticionada pelos Apelados/exequentes (art. 729º al. a) do CPC) e a existência de factos extintivos da obrigação, posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração apresentando para o efeito prova documental (art. 729º al. g) do CPC).
Comecemos por estes últimos que, se bem compreendemos a alegação da Apelante, corresponderão à questão de estarmos perante uma nova empreitada consignada após o trânsito em julgado da decisão exequenda e à obtenção de licenças especiais de ruído também posteriores ao encerramento da discussão no processo declarativo.
Adiantamos desde já que nenhum desses factos consubstancia facto extintivo ou modificativo da obrigação dada à execução, apesar de tais factos terem sido dado como provados através de documentos emitidos posteriormente ao encerramento da discussão no processo de declaração de que emana a sentença dada à execução.
A questão da consignação da empreitada apenas em Julho de 2020 já foi aflorada aquando do conhecimento da decisão sobre a matéria de facto, estando suficientemente demonstrado que a obrigação negativa imposta à aqui Apelante na sentença dada à execução não se resumia ao período de execução de qualquer empreitada em específico, a qualquer troço da linha férrea na qual a Apelante à data desenvolvesse trabalhos, até porque a decisão abrangia e continua a abranger a não execução de cargas e descargas ou outras operações que produzam ruído na superfície descoberta com uma área não inferior a 3000 m2 que existe entre a linha e a Rua ..., junto ao edifício da ... da estação ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, ou na Rua ... em frente dele, entre as 20h00 e as 8h00.
Nem se compreende como pode a Apelante sustentar que não existe título executivo que fundamente a execução, invocando para o efeito que os exequentes apresentaram como título executivo uma decisão de 7.02.2017 para fundamentarem o seu pedido decorrente da empreitada que teve início em 13 de julho de 2020, quando tem obrigação de saber que aquela decisão não balizou no tempo a obrigação de non facere que lhe foi imposta, essa obrigação perdurará durante todo o tempo que a Apelante execute qualquer operação que produza ruído na zona identificada no ponto 3.1.3 entre as 20h00 e as 8h00 e com isso afecte o direito dos Apelados ao repouso.
Significa aquela condenação que a Apelante não pode executar quaisquer operações que produzam ruído, naquela zona em concreto, entre as 20h00 e as 8h00, qualquer que seja a empreitada que esteja a executar, sob pena de violar a obrigação de non facere que lhe foi judicialmente imposta.
De todo o modo a argumentação da Apelante quanto ao início da referida empreitada sempre acabaria por ser inconsequente pois, como ficou exaustivamente provado, o ruído que voltou a produzir desde janeiro de 2020 ocorreu na zona e no horário abrangidos pela sentença dada à execução, tendo ocorrido maioritariamente não pela execução propriamente dita de trabalhos na via férrea da linha do Norte, mas por manobras e operações de manutenção de máquinas de grande porte, cortes e deslocações de materiais, cargas e descargas e outro tipo de tarefas que produzem ruído, ruído dos motores dos camiões e máquinas ao som das pás raspando no chão para recolher pedra, gravilha ou entulho e aos desses materiais deslocando-se nas pás e caindo e rebolando sobre as caixas metálicas dos camiões, operações essas acompanhadas de vozearia e por vezes de gritos dos trabalhadores, que decorreram a cerca de 6 metros das janelas da casa dos Apelados (pontos 3.1.4, 3.1.5, 3.16, 3.1.7 e 3.1.8 dos factos provados).
Deste modo, independentemente de qualquer nova empreitada entretanto celebrada após o encerramento da discussão no processo de declaração, certo é que as violações reiteradas da obrigação que fora imputada à Apelante, mormente para a aplicação da sanção pecuniária compulsória que lhe havia sido imposta na sentença dada à execução, ocorreram desde Janeiro de 2020, na execução de operações que produziram ruído na superfície descoberta com uma área não inferior a 3000 m2 que existe entre a linha e a Rua ..., junto ao edifício da ... da estação ferroviária da ..., na linha de caminho de ferro do Norte, ou na Rua ... em frente dele, entre as 20h00 e as 8h00.
Também a tão propalada emissão de licenças especiais de ruído não consubstancia facto extintivo da obrigação exequenda, sendo de meridiana compreensão que se bastasse a emissão daquele tipo de licença a Apelante teria sido disso esclarecida na referida sentença, o que para além de não ter acontecido, aconteceu precisamente o contrário, porquanto no Acórdão proferido em 7.02.2017 no Proc. Nº 1643/14.0TBVNG.P2 que confirmou a sentença dada à execução, refutou-se esse tipo de argumentação (porque nessa altura a aqui Apelante sustentava não ser necessária esse tipo de licença para o tipo de trabalhos que desenvolvia), tendo-o feito nos seguintes termos “a desnecessidade da licença especial de ruído por parte da Ré releva na relação entre esta, por um lado, e o Estado e demais entidades públicas, por outro. Mas tal não significa qualquer permissão para a perturbação do sossego e do descanso de terceiros estranhos àquela relação. A dispensa daquela licença especial não permite a violação de direitos fundamentais desses terceiros.”
Sobre esta problemática a doutrina e a jurisprudência têm concordado que a mera observância do Regulamento do Ruído e por conseguinte também a mera obtenção de licença especial de ruído, visa apenas e só o cumprimento de normativos de natureza administrativa, mas não invalida que esse ruído possa consubstanciar um acto ilícito, merecedor de censura em termos de responsabilidade civil, se apesar da emissão da licença forem violados direitos absolutos de terceiros, como é o direito ao repouso.
A violação do direito à saúde, ao sono, ao sossego, ao repouso- direitos de personalidade constitucionalmente protegidos (arts. 25º e 66º da CRP)-, pela gravidade que assumiram na saúde e personalidade psicossomática dos Apelados merece proteção à luz do disposto no art. 496º do CC.
No artº 70º do CC reconhece-se o direito geral de personalidade onde se integram o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono, enquanto aspectos do direito à integridade pessoal, estando também assegurado no art. 66º nº 1 da CRP o direito a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado.
Essa preocupação está também espelhada na Lei de Bases da Política do Ambiente- 19/2014 de 14/4 – que no art. 11º al. c) esclarece que “a política de ambiente tem, também, por objeto os componentes associados a comportamentos humanos, nomeadamente as alterações climáticas, os resíduos, o ruído e os produtos químicos, designadamente com os seguintes objetivos: a redução da exposição da população ao ruído é assegurada através da definição e aplicação de instrumentos que assegurem a sua prevenção e controlo, salvaguardando a qualidade de vida das populações e a saúde humana.”
Contrariamente ao afirmado pela Apelante, a sentença recorrida pronunciou-se sobre as licenças especiais de ruído, só não o fez no sentido propugnado pela Apelante, tendo considerado, a nosso ver bem, que a obtenção das licenças especiais de ruído para que pudessem ser efectuados trabalhos no horário nocturno não podem derrogar a obrigação que lhe foi imposta por sentença transitada em julgado.
Diremos mais, a violação daquele tipo de direitos poderá ocorrer ainda que eventualmente o ruído se mantenha dentro dos limites consagrados no Regulamento Geral do Ruído, como vem sendo defendido pela jurisprudência (neste sentido, p.ex. Ac STJ de 29.11.2016, Proc. 7613/09.3TBCSC.L1.S1, Ac RP de 24.10.2023, Proc nº 9832/17.0T8PRT.P1 (da mesma Relatora do presente Acórdão), Ac RP de 27.03.2023, Proc. Nº 12305/20.0T8PRT.P1, Ac RP de 9.06.2015, Proc. Nº 1491/06.1TBLSD.P2 e Ac RG de 18.03.2021, Proc. Nº 2641/19, www.dgsi.pt).
Como defendeu Cecília Agante, referindo-se ao Regulamento Geral do Ruído (D.L. n.º 9/2007, de 17.01), “embora este Regulamento estabeleça limites para a poluição sonora, entende-se que ele apenas tem efeitos dentro da atividade administrativa e no seu âmbito, não podendo interferir com a salvaguarda dos direitos de personalidade, cuja proteção se não esgota no limite do ruído estabelecido no diploma.”[3]
E foi efectivamente isso que ocorreu no caso sub judice, em que apesar de estar documentado que posteriormente ao encerramento da discussão no processo de declaração a aqui Apelante obteve licenças especiais de ruído, mormente porque entendeu ser necessário levar a cabo trabalhos nocturnos que ultrapassariam necessariamente o limite máximo de ruído para o horário da noite, realizou operações entre as 22h00 e as 8h00, quer na linha do comboio, quer no espaço descrito em 3.1.3 como na Rua ..., a cerca de 6 metros das janelas da casa dos Apelados que afectaram o sono e o descanso destes.
Apesar de inócuo também não podemos deixar de mencionar que mesmo que se perfilhasse entendimento distinto e se atribuísse àquelas licenças força extintiva da obrigação negativa imposta na sentença dada à execução, o que não concedemos, as licenças especiais de ruído obtidas pela Apelante só abrangiam o período entre as 23h00 e as 06h00, sendo que muitas das operações que causaram ruído e perturbaram o sono e descanso dos Apelados mencionadas no ponto 3.1.5 tiveram lugar antes das 23h00 e por essas violações sempre teria a Apelante de ser sancionada como o foi.
Não se discute ser lícita a actividade desenvolvida pela Apelante, respeitadora das regras administrativas (pelo menos as que contendem com o Regulamento do Ruído) e que nesta empreitada em particular consignada em Julho de 2020 a Apelante tenha considerado ser do interesse da generalidade dos utentes do transporte ferroviário que determinados trabalhos fossem executados no período nocturno, mas essa mesma actividade nos moldes concretos em que foi desenvolvida, tem de se considerar ter sido exercida de forma ilícita por não ter acautelado também os direitos de personalidade dos Apelados.
Atendendo à factualidade apurada, a ponderação dos interesses em conflito, a qual deve sempre ser feita de forma casuística, neste caso em concreto não se coloca, como parece sustentar a Apelante, entre o direito da generalidade dos passageiros do transporte ferroviário de não verem suspensa a circulação ferroviária durante o dia, e o direito dos aqui Apelados ao repouso durante a noite, desde logo porque o ruído que perturbou de forma significativa os Apelados- a ponto de durante mais de um ano o sono ser reiteradamente perturbado e acordarem sobressaltados, ficarem privados de 3 a 5 horas de sono por noite, causando-lhes irritação, ansiedade, cansaço, incapacidade de concentração confusão, dores de cabeça e de estômago- não foi maioritariamente causado por trabalhos na linha férrea mas por operações de circulação e manuseamento de máquinas e camiões acompanhadas de vozearia e gritos dos trabalhadores a cerca de 6 metros das janelas de casa dos Apelados, num espaço que a Apelante usou praticamente como “estaleiro e depósito de materiais” quando bem sabia que nessa zona estava impedida de produzir ruídos entre as 20h00 e as 8h00 por sentença transitada em julgado.
A atitude displicente da Apelante (que só se preocupou em obter licenças especiais de ruído para não incorrer em violação de normas administrativas), demonstra um total desrespeito por uma decisão judicial transitada em julgado que declarara o direito dos Apelados e a condenara numa indemnização por danos não patrimoniais, assim como numa sanção pecuniária compulsória por cada infração à obrigação negativa objecto da condenação anterior, a qual como se vê foi pouco dissuasora, face ao demonstrado incumprimento reiterado que persistiu por mais de um ano.
Deste modo, tem de se concluir que nenhum dos argumentos suscitados pela Apelante consubstancia fundamento válido de oposição à sentença previsto no art. 729º al. g) do CPC que permita declarar extinta a execução.
Falta de título executivo para indemnização peticionada pelos Apelados
Conforme já antecipamos no Acórdão por nós proferido anteriormente nestes autos, estando em causa a violação de uma obrigação de facto negativo- de abstenção (non facere), se a mesma redundar numa situação não repristinável, (como foi o caso), pode o exequente, de acordo com o art. 876º do CPC, formular pedido de indemnização pelo prejuízo sofrido, cumulativamente com o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória na qual a executada já havia sido condenada.
O mencionado art. 876º do CPC, que rege sobre a violação da obrigação quando esta tenha por objecto um facto negativo, consagra o princípio de que quando a obrigação do devedor consista em não praticar algum facto, o credor pode requerer que o juiz ordene:
a) a demolição da obra que eventualmente tenha sido feita; (hipótese que não se coloca nestes autos)
b) a indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido; e
c) o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter na execução.
“O facto negativo pode consistir numa obrigação de non facere (de abstenção) ou numa obrigação de pati(…) naquela primeira situação, o objecto da execução traduz-se no facto positivo da reparação (cf Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 7ª ed., pp 464-465).[4]
Não estando em causa uma obra, a execução não visa a remoção da violação da obrigação imposta pela sentença exequenda, até porque a actuação da Apelante gerou uma situação irremovível, insuscetível de reparação in natura e como tal podiam os Apelantes/exequentes pedir uma indemnização compensatória (art. 566º nº 1 do CC) pelos danos efectivamente sofridos em consequência da violação da obrigação de non facere, cumulativamente com a quantia fixada a título de sanção pecuniária compulsória.
“O objeto da execução não é a omissão- i.e. o objeto da prestação- mas as “consequências da violação dessa omissão.”[5]
Tendo ficado demonstrado que a Apelante incumpriu a obrigação negativa que lhe havia sido imposta na sentença dada à execução e, dessa violação decorreram danos para os Apelados de natureza não patrimonial, que pela sua gravidade merecem a tutela do direito (pontos 3.1.8, 3.1.9, 3.1.10, 3.1.11) é legítima a pretensão indemnizatória enquanto compensação pela violação irreversível do direito ao repouso, com repercussões relevantes na saúde dos Apelados.
A questão não se coloca em sede de falta de título executivo porquanto a indemnização é concedida no próprio processo executivo de forma cumulativa com a sanção pecuniária compulsória determinada na sentença dada à execução.
Concluindo, verificada a improcedência dos argumentos recursivos e acompanhando o sentido decisório da sentença recorrida, a mesma vai confirmada.
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V. DECISÃO
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pela Apelante, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante, que ficou vencida.
Notifique.

Porto, 19.11.2024
Maria da Luz Seabra
Rui Moreira
Márcia Portela

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
[3] in Cadernos do CEJ, A tutela geral e especial da personalidade humana, págs. 54-55, acessível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_TutelaP2017.pdf,
[4] Vide, entre outros, CPC Anotado, Vol. II, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, pág. 320/321
[5] Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, pág. 1027/1033