INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

I - Não é admissível que, ao abrigo do princípio do princípio do inquisitório, se pretenda do tribunal o desenvolvimento de iniciativas de prova exploratória, tendente não à demonstração da factualidade que tem de ser alegada para justificar a abertura do incidente de qualificação da insolvência a requerimento de um credor, mas à investigação sobre a eventual existência de uma tal factualidade que venha a justificar que o incidente tenha sido aberto antes mesmo do seu conhecimento.
II - O respeito pelo princípio do inquisitório previsto no art. 11º do CIRE não elimina a distinção entre a alegação da factualidade necessária à abertura do incidente, o aproveitamento de factualidade que resulte provada ao longo da instrução do incidente e a iniciativa probatória do tribunal, tendente esta já não à identificação de factualidade relevante para a qualificação da insolvência, mas apenas à demonstração de uma tal factualidade.
III – Para a qualificação da insolvência só relevam factos ocorridos nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, não tendo significado a eventual omissão da obrigação de apresentação á insolvência se, nesse período, essa obrigação esteve suspensa em função das Leis Covid-19 (Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril).
IV - É jurisprudência constante nesta secção do TRP a necessidade de verificação de um nexo de causalidade entre a violação de qualquer dos deveres que, nos termos do nº 3 do art. 186º do CIRE, fazem presumir a existência de culpa grave na insolvência e a criação ou agravamento da própria situação de insolvência.
V – Deve ser indeferida a abertura, a requerimento de um credor, de um incidente de qualificação de insolvência que, ab initio, não apresenta objecto nem viabilidade, não podendo admitir-se essa abertura com fins claramente exploratórios.

Texto Integral

PROC. N.º 2686/23.9T8AVR-D.P1Tribunal Judicial da Comarca ... Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3

REL. N.º 916




Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Maria Eiró
2º Adjunto: Juíza Desembargadora Anabela Andrade Miranda


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


1 - RELATÓRIO

Por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência da sociedade A..., S.A., AA apresentou requerimento com alegações e pedido de abertura do incidente de qualificação da insolvência, a fim de que se venha a proferir sentença declarando a insolvência como culposa, com afectação dos administradores de facto e de direito da sociedade insolvente BB e CC, bem como dos seus accionistas DD, EE, FF e GG.
Alegou, em suma:
- ser titular de um crédito sobre a insolvente, no valor total de €32.734,56, decorrente de um empréstimo que fez, no valor de €20.000,00, mediante a entrega a CC, que se arrogou dono e representante legal da insolvente, com vista a um investimento que garantiu ser seguro, tendo depois apurado que CC não era afinal representante legal da A..., S.A., mas seu administrador de facto.
- que, não tendo recebido o seu crédito, instaurou uma execução para pagamento de quantia certa, não tendo obtido pagamento porque os bens da sociedade já se encontravam penhorados, incluindo pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
- que todos os requeridos deviam ter apresentado a A..., S.A. à insolvência em Abril de 2016, mas não quiseram saber da sua situação económico-financeira, nem praticaram qualquer acto conducente à reversão do seu grave estado patrimonial, desconsiderando, em absoluto, os interesses dos seus credores e do avolumar do prejuízo que com a sua conduta promove e agrava.
- que a A..., S.A. detinha um património cujo valor venal e contabilístico era inferior ao valor do seu capital social e abismalmente inferior ao valor do seu passivo, daí que estava verificada a perda de metade do capital social, uma vez que o capital próprio da insolvente era inferior a metade do capital social, sem que tenha sido cumprido o disposto no artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais.
- que os accionistas da sociedade tiveram conhecimento da real situação da empresa e nada fizeram.
- que as contas foram legalmente depositadas apenas até ao ano de 2017 (inclusive), estando em falta 2018, 2019 e 2022, tendo sido depositadas as contas referentes ao ano de 2020 e 2021
- que a omissão em causa teve o propósito de evitar que o ROC tivesse de elaborar o competente relatório,
- que ao lado do estabelecimento da insolvente existe um novo que é utilizado pelos identificados administradores de direito e de facto da insolvente,
- que a conta 23, referente a pessoal, encontra-se com um saldo negativo de € 256.371,83 e assim sendo “das duas uma: ou foram pagos salários a mais do que era devido, tendo levado este saldo negativo a esta conta que é caracterizada por saldo positivo, ou não foram processados todos os salários levando a este saldo negativo.
- que o administrador de facto da insolvente (CC) encontrava-se numa outra escola de condução, na mesma rua da sede da insolvente, não se tendo mostrado receptivo a qualquer esclarecimento no âmbito dos presentes autos.
- que ambos os administradores da insolvente, de direito e de facto, constituíram a nova sociedade, alegadamente com a firma “Escola De Condução B...”, retirando a clientela àquela em benefício desta nova empresa
A final, o requerente credor requereu ainda a notificação do Fundo de Garantia Salarial para depositar à ordem do presente processo o crédito que foi reconhecido ao requerido CC, uma vez que este, nos termos do artigo 189º nº 2 alínea d) do CIRE, perderá quaisquer créditos sobre a insolvência, com o propósito de assegurar o efeito útil da decisão a proferir neste apenso e invocando o disposto no artigo 547º do Código de Processo Civil.
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Foi proferido despacho saneador que, apreciando a alegação do requerente, desvalorizou a factualidade alegada, salientando que outros argumentos se fundavam em meras hipóteses e suspeições. Por isso, a final, indeferiu a pretensão do requerente, de abertura do incidente de qualificação de insolvência.
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O requerente AA veio interpor recurso de tal decisão, arguindo também a sua nulidade, por entender ter invocado indícios concretos da prática de actos de administração culposa por parte dos administradores de direito e de facto da insolvente; por se não ter verificado o cumprimento dos artigos 18.º, n.º 1 e 3, 20.º, n.º 1, al. g), subalínea IV) do CIRE por parte dos administradores e accionistas da insolvente, que não apresentaram a empresa à insolvência apesar das dívidas à AT e SS; e por entender que o tribunal omitiu a produção de actos probatórios relevantes para a prova dos factos alegados como integradores das normas ínsitas no art. 186.º do CIRE.
Concluiu nos termos seguintes:
CONCLUSÃO PRIMEIRA
(DO OBJECTO DO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO)
A. O recorrente pretende uma nova análise, conclusão e decisão relativamente ao seu pedido de abertura do incidente de qualificação, já que o Meritíssimo Juiz a quo não levou em consideração todos os factos trazidos por si para os presentes autos e os quais preenchem o disposto no art. 186.º, n.º 2 devendo assim a insolvência ser qualificada como culposa, culminando assim na afectação dos administradores e accionistas da insolvente.
B. Não foi valorado o relatório da Exma. Senhora Administradora de Insolvência onde se verifica não só uma possível angariação de clientela para outra sociedade comercial do domínio dos administradores, em prejuízo patrimonial da insolvente; uso dos bens da insolvente contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da insolvente; prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; bem como a total falta de organização contabilística da insolvente.
C. Tudo o alegado pelo recorrente demonstra, de modo simplista, uma total má administração da insolvente o que necessariamente terá de levar à qualificação da insolvência como culposa e na afectação dos administradores da sociedade, quer de direito, quer de facto, bem como dos seus accionistas, como de resto concluiu o pedido do recorrente no seu requerimento de pedido de abertura do incidente da qualificação.
CONCLUSÃO SEGUNDA
(DOS FACTOS)
D. O aqui recorrente detém um crédito de EUR. 20.000,00 (vinte mil euros) correspondente a um contrato de mútuo e titulado por um cheque já junto aos autos, acrescido de juros de vencidos e computados à data de EUR. 12.734,56 perfazendo assim um total de EUR. 32.734,56 (trinta e dois mil setecentos e trinta e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos), o que foi objecto de reclamação de créditos e já reconhecido pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência e não impugnado nos termos do art. 130.º do CIRE.
E. Atento o não pagamento do seu crédito, o recorrente tentou judicial e extrajudicialmente cobrar o mesmo, todavia, tal valor nunca foi pago não obstante a acção declarativa de condenação intentada, da qual a Insolvente não recorreu bem como o processo executivo (processo n.º …/23.5T8OAZ e que corre os seus termos no Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, Juiz 1 da Comarca de Aveiro).
F. Das pesquisas efectuadas pelo Exmo. Senhor Agente de Execução o recorrente verificou que, não obstante os bens móveis detidos pela Insolvente, in casu, veículos automóveis, os mesmos já possuíam penhoras, em vários casos mais do que uma, sendo algumas dessas penhoras à “AT” por falta de pagamento de IUC’S.
G. No que concerne a saldos bancários também não foi possível proceder à penhora, o que revela que a Insolvente utilizava «dinheiro vivo» para cumprir as suas obrigações.
CONCLUSÃO TERCEIRA
(DOS FACTOS CONCRETIZADORES PARA O PEDIDO DE ABERTURA DO INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO)
R. Entendeu o Tribunal a quo que o requerimento para abertura do incidente da qualificação requerido pelo recorrente apenas estava dotado de suspeições ou meras possibilidades, sem qualquer substrato mínimo objectivo e por referência a factos concretos, concluindo pelo indeferimento da abertura do incidente de qualificação, o que não corresponde à verdade, uma vez que aquele carreou indícios factuais mais do que suficientes para a abertura do incidente em causa.
S. O recorrente alegou que existe uma outra sociedade comercial na mesma rua, em cujo estabelecimento comercial foi o administrador de facto CC encontrado pela Exma. Senhora Administradora de Insolvente (o que consta do seu relatório): Ainda a este propósito alegou que a administradora BB colocou um coração numa publicação da página do Facebook do dito estabelecimento comercial, o que só por si permite concluir por indício de que poderá haver angariação de clientela para outra sociedade comercial do domínio dos administradores, em prejuízo patrimonial da insolvente; uso dos bens da insolvente contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da insolvente; prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
a) Do dever de se apresentar à insolvência:
T. Nos termos do art. 18.º, n.º 1 do CIRE «o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência.».
U. Não só do processo executivo onde o aqui recorrente é exequente (processo n.º .../23.5T8OAZ e que corre os seus termos no Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, Juiz 1 da Comarca de Aveiro) verifica-se que sob os veículos propriedade da insolvente impendem várias penhoras, mormente da AT, como também a insolvente detinha dívidas à AT de EUR. 914.085,70 e ao “INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL” de EUR. 382.361,55.
V. Sem dúvida que estes valores, nesta dimensão, são factos mais do que suficientes para determinar o conhecimento da situação de insolvência da empresa e da sua apresentação, em que data muito anterior à que foi observada pela insolvente.
W. Sucede que os seus administradores, quer de facto, quer de direito, bem como os seus accionistas nada fizeram, constituindo assim uma crassa violação do disposto nos arts. 18.º, n.os 1 e 3 e 20.º, n.º 1, al. g), subal. iv) do CIRE, sendo que os processos fiscais datam de 2015, 2016, 2017, 2018, ou seja, supera largamente os 3 meses a que aludem os preceitos legais acabados de serem citados.
X. Note-se que o nexo de correspectividade entre um facto e outro iria ser apurado em razão dos elementos contabilísticos que só a Exma. Senhora Administradora de Insolvência podia carrear para os autos.
Y. Ora, a existência de um volume de dívida tributária e à Segurança Social e as datas (anos) dos processos de execução fiscal revelam que os administradores e os accionistas da insolvente ao não apresentar a empresa à insolvência agravaram o passivo da mesma ao ponto de não poder cumprir o demais passivo acumulado à data da insolvência num computo total de EUR. 1.437.512,64, pois não pagaram nem procuraram promover meios de reversão de tal situação, muito pelo contrário, só pioraram!
Z. Não só os administradores da insolvente CC e BB não deram cumprimento ao estatuído no art. 35.º, n.º 1 do CSC bem como os accionistas, que, à revelia do seu dever, não tomaram qualquer medida neste sentido.
AA. Nos termos da interpretação conjugada das normas ínsitas na al. a) do n.º 3 e n.º 4 do art. 186.º do CIRE estipula que se presume a existência de culpa grave quando o devedor que tenha incumprido o dever de se apresentar à declaração da sua insolvência.
R. Acresce que estes factos também são mais do que suficientes para integrarem a alínea g) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, uma vez que o acumulado de dívidas para a dimensão da insolvente permite o concludente juízo de que os administradores da sociedade CC e BB e os accionistas levaram a cabo uma exploração deficitária, ao que acresce que estes factos, são do conhecimento oficioso e podiam/deviam ser considerados pelo Juiz (art. 11.º do CIRE) para efeitos do incidente de qualificação da insolvência como culposa.
S. Com efeito, perante esta factualidade, deveria o Tribunal a quo ter ordenado que a Exma. Senhora Administradora de Insolvência carreasse para os autos a certidão comercial da empresa em causa e verificasse na contabilidade da Insolvente se ocorreu transmissão de funcionários, bens e clientes para esta «nova» empresa, inclusive identificar os vizinhos de modo a arrolá-los como testemunhas.
c) Da não obrigação de elaboração das contas:
T. Não assiste razão ao Meritíssimo Juiz a quo que, por manifesto lapso, não verificou que já tinha decorrido o prazo legal para a elaborar e registar as contas da insolvente.
U. Revela-se, através do relatório da Exma. Senhora Administradora de Insolvência, que as prestações de contas foram legalmente depositadas apenas até ao ano de 2017 (inclusive), estando em falta 2018, 2019 e 2022, tendo sido depositadas as contas referentes ao ano de 2020 e 2021, daí que andou mal o Tribunal a quo ao ignorar tal facto refugiando-se de que, para o caso concreto, apenas seria importante o não depósito das contas referentes ao exercício de 2022.
V. Ora, o CIRE não ampara a interpretação do Meritíssimo Juiz a quo, na medida o que releva são os actos dos últimos 3 anos, sendo certo que a omissão de apresentação de contas do ano de 2019, releva para o ano de 2020. Tendo a empresa apresentando-se à insolvência em 19 de Julho de 2023, ainda releva 5 meses do ano de 2020.
W. Se tal circunstância determinou a situação de insolvência, já é uma questão de prova – carreada e a carrear para o incidente depois de aberto.
d) Da afectação dos administradores de direito e de facto:
X. Apesar de à data da declaração da insolvente a administradora de direito e de facto da insolvente ser a Exma. Senhora BB, a realidade é que o Exmo. Senhor CC sempre actuou em nome daquela, daí que, a coberto da existência da insolvente, ambos administradores actuaram em proveito próprio, bem sabendo que isso traria prejuízo para aquela, já que, de antemão, sabiam que o contrato em causa não seria cumprido.
Y. Conforme se verifica, a actuação dos administradores da insolvente pautou-se em tudo menos numa actuação de diligência relativamente os seus deveres de administradores, o que culminou no manifesto estado de insolvência em que se encontra, sendo certo que o próprio balancete da sociedade demonstra uma brutal desorganização interna e contabilística da sociedade insolvente que os administradores não promoveram pela sua correcção, motivo pelo qual, e por tudo o alegado, deveriam ser afectados pela qualificação da insolvência da insolvente como culposa, os Exmos. Senhores BB e CC.
e) Da afectação dos accionistas:
Z. Os sócios desempenham um papel essencial, como órgãos necessários que são da sociedade, podendo ser convocados a assumir a gestão conforme estabelecido por lei (art. 253.º do CSC), mas também porque surgem comprometidos com os interesses da sociedade, os quais, a final, derramam nos seus próprios e egoístas interesses. Note-se que os accionistas em causa efectuaram quatro designações dos administradores da insolvente e um aumento de capital considerável, bem como detêm uma relação especial entre eles, sendo inclusive familiares, o que lhes permitiu aquilatar de toda a situação daquela, intervinham nas assembleias gerais de accionistas, designadamente a da aprovação, entre outros, do relatório de gestão e as contas do exercício (art. 376.º do CSC), motivo pelo qual e, face ao exposto e reiterando-se o concluído nos antecedentes pontos T. a W., os accionistas da sociedade tiveram conhecimento da real situação da empresa e nada fizeram, desde logo deliberar a destituição da administradora de direito com justa causa, ou a apresentação daquela a um processo especial para acordo de pagamento ou a um processo de insolvência.
AA. Atenta a sua total inércia, deverão ser afectados pela qualificação da insolvência da insolvente como culposa, os Exmos. Senhores DD, EE, FF e GG.
CONCLUSÃO QUARTA
(DA NULIDADE DECISÃO DE INDEFERIR A ABERTURA DO INCIDENTE DA QUALIFICAÇÃO)
BB. O recorrente alegou factos que integram as já identificadas alíneas do n.º 2 e do n.º 3 do art. 186.º do CIRE, evidenciando a actuação culposa por parte dos administradores, quer de facto quer de direito, e dos accionistas da insolvente, reiterando-se aqui o alegado nos pontos 4., 65. e 77. e concluído nos pontos B., S. e X.
CC. Não faz qualquer sentido jurídico, face ao que o recorrente alegou quanto à sua impossibilidade pessoal de investigação, ter requerido qualquer prorrogação do prazo previsto para o efeito no art. 188.º, n.os 2 e 3 do CIRE, uma vez que o recorrente jamais teria acesso a todos os elementos, nomeadamente contabilísticos, para o efeito, face à impossibilidade legal de aceder a elementos que estão cobertos por segredo contabilístico, bancário e comercial, não conseguindo por exemplo Como obter elementos probatórios (factos alegados nos pontos 43.º a 55.º e 62.º a 65.º da presente peça processual), sem o amparo do Tribunal a quo.
DD. Assim sendo, só lhe restaria alegar os indícios dos factos que permitem a qualificação da insolvência como culposa e pedir ao Meritíssimo Juiz, por via do princípio do inquisitório, promovesse todos os meios de prova necessários para a descoberta da verdade material e tal passaria por ordenar a produção dos elementos de prova elencados pelo recorrente (pontos 38, 39, 44, 47, 57, 72, 78, 70, 88, 89 e 94 do requerimento inicial) e bem assim múltiplas provas (Docs. n.os 6 a 11, também juntos com o requerimento inicial), designadamente, a junção de documentos contabilísticos, inquirição de testemunhas, desde logo do Contabilista Certificado, entre outros que o criterioso juízo judiciário equacionasse adrede.
EE. O Tribunal a quo, face a tudo o que foi alegado, apresentado e requerido, tinha o poder-dever de oficiosamente de praticar um de dois actos:
i. ordenar, antes de decidir pela abertura do incidente, a produção das diligências probatórias requeridas pelo recorrente, de modo a verificar a demonstração dos indícios alegados pelo recorrente (sendo certo que alguns constam inclusive dos Docs. n.os 6 a 11 juntos com o requerimento inicial bem como do próprio relatório da Exma. Senhora Administradora de Insolvência); ou
ii. declarar aberto o incidente da qualificação da insolvência, para depois deferir todas as diligências de prova requeridas pelo recorrente para o efeito.
FF. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, não só ignorou por completo o espírito do Legislador quanto a esta norma como também a defesa dos interesses legalmente protegidos do aqui recorrente, violando o seu direito à acção consagrado no art. 20.º da CRP.
GG. Com efeito, o espírito do Legislador ao criar o presente normativo visou não só uma protecção para a sociedade em geral como, ao afectar, in casu, os administradores de facto e de direito, bem como os accionistas da insolvente, criando nos mesmos uma reflexão sobre as atitudes causadas e com vista, na sua inibição para o comércio, ao não o fazerem numa outra sociedade.
HH. O poder-dever de investigação do julgador insolvencial plasmado no art. 11.º do CIRE prevê que este investigue livremente e recolha as provas e informações que entenda convenientes, daí que devia o Meritíssimo Juiz a quo ter praticado um dos actos indicados no antecedente ponto GG. das conclusões, tanto mais face ao alegado pelo recorrente e que consta no antecedente ponto 148. das alegações.
II. Face a esta alegação prolixa e nada fazendo, quando está em causa um poder- dever a omissão do acto judicial que tenha influência no exame e decisão da causa integra a nulidade da decisão nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte do CPC, a qual desde já se argui.
CONCLUSÃO QUINTA
(DAS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS)
JJ. Tudo o alegado evidencia o desajuste da decisão recorrida. KK. Foram violadas, entre outras normas e princípios legais, o disposto nos 11.º, 186.º, n.os 1, 2 e 3 e 188.º, n.º 1, todos do CIRE e nos arts. 411.º e 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC, art. 20.º da CRP.
LL. As normas e princípios jurídicos que se deixaram acima invocados devem ser interpretados com o sentido e alcance que se deixou alegado em sede de alegações, em menagem à melhor doutrina e jurisprudência devidamente referência na mesma sede.
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Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos do incidente e com efeito devolutivo. O tribunal recorrido rejeitou então ter incorrido em qualquer nulidade.
Foi recebido nesta Relação, cumprindo apreciá-lo.

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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
As questões a resolver, que se identificam entre as desnecessariamente extensas conclusões do apelante, são as seguintes:
1- Se foram alegados os seguintes factos, aptos a fundamentar a qualificação da insolvência como culposa: angariação de clientela para outra sociedade comercial do domínio dos administradores, em prejuízo patrimonial da insolvente; uso dos bens da insolvente contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa, de uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da insolvente; prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência; bem como a total falta de organização contabilística da insolvente
2 – Se dos factos alegados resulta o conhecimento, pela insolvente, da situação de insolvência e o incumprimento do dever de apresentação à insolvência;
3 – Se só durante o curso do processo haveria de se apurar a relação de causalidade entre a inércia de administradores e accionistas e a insolvência da empresa;
4 – Se o volume das dívidas permite inferir que os administradores da sociedade CC e BB e os accionistas levaram a cabo uma exploração deficitária, o que era de conhecimento oficioso.
5 – Se o tribunal deveria ter ordenado que a Exma. Senhora Administradora de Insolvência carreasse para os autos a certidão comercial da empresa em causa e verificasse na contabilidade da Insolvente se ocorreu transmissão de funcionários, bens e clientes para esta «nova» empresa, inclusive identificar os vizinhos de modo a arrolá-los como testemunhas.
6 – Se se verifica omissão de depósito de contas relativamente ao ano de 2020 e se o nexo de causalidade entre a omissão e a insolvência é uma questão de prova a produzir durante a instrução do incidente;
7- Se se mostram alegados factos de que resulte que CC sempre actuou em nome da insolvente, como administrador, além da BB;
8 – Se se mostram alegados factos de que resultem fundamentos para afectação dos accionistas da insolvente;
9 – Se o tribunal incumpriu o dever de “ordenar a produção dos elementos de prova elencados pelo recorrente (pontos 38, 39, 44, 47, 57, 72, 78, 70, 88, 89 e 94 do requerimento inicial) e bem assim múltiplas provas (Docs. nº 6 a 11, também juntos com o requerimento inicial), designadamente, a junção de documentos contabilísticos, inquirição de testemunhas, desde logo do Contabilista Certificado, entre outros que o criterioso juízo judiciário equacionasse adrede”, determinando a nulidade da sentença.
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Os elementos que integram a premissa menor da decisão a proferir são constituídos pelo teor da alegação do ora apelante, no requerimento inicial do incidente de qualificação da insolvência, pelo que não carecem de ser desde já transcritos, tanto mais que se identificam suficientemente no conteúdo da decisão recorrida e das alegações recursivas.
Neste pressuposto, cumpre começar por afirmar que se detecta, na tese do apelante, o que parece ser alguma confusão, ou pelo menos falta de rigor, na concepção do significado do princípio do inquisitório no procedimento em causa. Com efeito, chega a defender que, por força de tal princípio, o tribunal deve investigar oficiosamente a existência de indícios de culpa na insolvência, em ordem a permitir a abertura do próprio procedimento. Como veremos infra, tal concepção não se pode admitir.
Em qualquer caso, é certo que o art. 11º do CIRE dispõe que, no incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
Interpretando este dispositivo, decidiu-se no Ac. do TRL de 30/10/2023 (proc. nº10840/21.1T8SNT-A.L1-1, em dgsi.pt) que “O princípio do inquisitório especialmente previsto pelo art.º 11º do CIRE atribui ao juiz o poder dever de averiguação e consideração oficiosa de factos que, ainda que não alegados, resultem dos autos ou da sua instrução e, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, integrem os factos constitutivos de qualquer um dos seus pressupostos legais.”
Todavia, tem de se compaginar este regime com a restrição trazida à intervenção do tribunal, no que toca à iniciativa de abertura do incidente de qualificação de insolvência, com a actual redacção dos arts. 36º e 188º, nº 1 do CIRE.
Com efeito, como se explica no Ac. do TRG de 04-04-2024 (proc. nº 3618/22.7T8VCT.G1) as alterações legislativas introduzidas no C.I.R.E. pela Lei nº16/2012, de 20/04, determinaram que tenha deixado de ser obrigatório o incidente de qualificação da insolvência e o juiz apenas declara a sua abertura, na sentença declaratória da insolvência, quando disponha de elementos que o justifiquem, por indiciarem a existência de culpa. É o que dispõe a al. i) do nº 1 do art. 36º do CIRE. Mas, quando isso não aconteça, a legitimidade para requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência está exclusivamente conferida ao administrador da insolvência ou aos interessados, não podendo o Juiz, em momento ulterior, determinar oficiosamente tal abertura.
Significa isto, sob pena de incoerência, que a abertura do incidente de qualificação da insolvência a requerimento do administrador ou de qualquer interessado deve ser admitida pelo juiz quando o próprio requerimento contiver a alegação factual que faculte, no caso de se virem a comprovar esses factos, concluir pela culpa na insolvência.
Sem prejuízo de, durante a instrução do incidente, se apurarem outros factos que o tribunal pode usar na decisão, ou de ter o dever de garantir a produção de prova adequado à investigação dos factos alegados ou entretanto indiciados, pois a isso leva o princípio do inquisitório, não pode o tribunal admitir a abertura do incidente com base na hipótese de a respectiva instrução vir a proporcionar factos que o requerimento inicial não continha e que, aqueles sim, poderão justificar a qualificação da insolvência como culposa. Admiti-lo seria permitir ao tribunal, em momento ulterior, determinar a abertura do incidente com fundamentos não invocados pelas partes, o que já lhe está vedado, pois que o legislador não lhe admitiu essa iniciativa, para além da própria sentença de insolvência.
Por isso se concorda com o que, a propósito, se escreveu no Ac. do TRE de 23-06-2010 (proc. nº 2562/09.8TBEVR.E1, em dgsi.pt) segundo o que “I - O princípio do inquisitório, quando confere ao juiz a faculdade de fundar a sua decisão em factos não alegados pelas partes, ou quando lhe permite proceder oficiosamente à realização e recolha de provas, não conduz a que o juiz tenha que se substituir às partes, no que se refere à alegação da factualidade essencial, integradora da causa de pedir, ou no que se refere à recolha de prova pela qual as partes não curaram de diligenciar - visando tal princípio obstar a que razões meramente formais impeçam a realização dos direitos materiais.”
Conclui-se, em suma, que o respeito pelo princípio do inquisitório previsto no art. 11º do CIRE não elimina a distinção entre a alegação da factualidade necessária à abertura do incidente, o aproveitamento de factualidade que resulte provada ao longo da instrução do incidente e a iniciativa probatória do tribunal, tendente esta já não à identificação de factualidade relevante para a qualificação da insolvência, mas apenas à demonstração de uma tal factualidade.
Ora é isso mesmo que impõe que se deva rejeitar a arguição de nulidade concretizada pelo apelante neste recurso, consubstanciada pelo alegado incumprimento, pelo tribunal, da sua obrigação de, “…antes de decidir pela abertura do incidente, [determinar] a produção das diligências probatórias requeridas pelo recorrente, de modo a verificar a demonstração dos indícios alegados pelo recorrente (sendo certo que alguns constam inclusive dos Docs. n.os 6 a 11 juntos com o requerimento inicial bem como do próprio relatório da Exma. Senhora Administradora de Insolvência); ou declarar aberto o incidente da qualificação da insolvência, para depois deferir todas as diligências de prova requeridas pelo recorrente para o efeito (conclusão EE do recurso).
Com efeito, a questão põe-se claramente a montante, pois o que o tribunal rejeitou foi que tivessem sido alegados elementos que, sujeitos a ulterior averiguação por via da instrução probatória do incidente, pudessem vir a permitir concluir pela culpa na insolvência em causa.
Essa questão haverá de ser tratada de seguida. Porém, o que não se admite é a concepção processual do apelante segundo a qual ao próprio tribunal caberia desenvolver uma actividade investigatória antes da própria abertura do incidente, para identificar factos que justificassem essa mesma abertura (conclusão EE, al. i)).
Com efeito, não é admissível que, ao abrigo do princípio do princípio do inquisitório, se pretenda do tribunal o desenvolvimento de iniciativas de prova exploratória, tendente não à demonstração da factualidade que tem de ser alegada para justificar a abertura do incidente, mas à investigação sobre a eventual existência de uma tal factualidade que venha a justificar que o incidente tenha sido aberto antes mesmo do seu conhecimento.
Por todo o exposto, rejeita-se que o tribunal tenha incorrido em qualquer nulidade por não ter admitido e providenciado pela produção de meios de prova em ordem a identificar factos cuja presença não reconheceu no requerimento inicial, com isso acarretando a nulidade da própria decisão à luz da al. d) do nº1 do art. 615º do CPC. E isto sem ingressar na discussão sobre a própria subsunção de uma eventual omissão como a invocada ao regime dessa al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Improcede, pois, a apelação neste parte.
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Questão diferente e fulcral, pois essa é a essência da decisão recorrida, é a de saber se o requerimento de abertura do incidente oferecido pelo credor AA continha a descrição de factos que, se ulteriormente demonstrados, permitiria a qualificação da insolvência da A..., S.A. como culposa, ulteriormente se identificando da possibilidade de afectação de todos ou algum dos restantes requeridos, por tal qualificação.
Começou a sentença recorrida por evidenciar que, atento o limite dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, constante do nº 1 do art. 186º do CIRE, só relevam para o caso os factos que tenham ocorrido entre 19/7/2020 e 19/7/2023.
Sucessivamente selecionou os seguintes fundamentos, que identificou no requerimento de abertura do incidente:
a) incumprimento do dever de apresentação à insolvência, alegando que a sociedade se encontrava insolvente desde Abril de 2016, quer face às dividas que elencou à Autoridade Tributária e Aduaneira e Segurança Social, quer porque o seu passivo era superior ao activo;
b) falta de depósito das contas falta relativamente aos anos de 2018, 2019 e 2022, tendo sido depositadas as contas referentes ao ano de 2020 e 2021.
No que respeita ao incumprimento do dever de apresentação à insolvência, e uma vez que só relevam os factos ulteriores a 19/7/2020, afirmou a sentença que o prazo previsto para o efeito esteve suspenso até 5/7/2023, pois só então, pelo artigo 3º nº 3 alínea a) da Lei nº 31/2023 de 4 de Julho,, se superaram os efeitos da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril (comummente conhecidas por Leis Covid-19), prevendo a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência. Em consequência, o prazo de apresentação à insolvência esteve suspenso até 5/7/2023, sendo que a insolvência veio a ser requerida a 19/7/2023. Assim, não se poderá afirmar, no caso sub judice, que foi incumprido o prazo de apresentação do devedor à insolvência dentro do prazo de 30 dias previsto no art. 18º, nº 1 do CIRE, pelo que jamais se poderá considerar verificado o fundamento para a presunção de culpa prevista na al. a) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
No que respeita à falta de depósito das contas relativamente aos anos de 2018, 2019 e 2022, considerou o tribunal que o pedido de registo de prestação de contas de sociedades deve ser efectuado até ao 15º dia do 7º mês posterior à data do termo do exercício económico, como resulta do disposto nos artigos 2º e 5º do Decreto-Lei nº 8/2007, de 17 de Janeiro, e do artigo 15º nº 4 do Código de Registo Comercial.
Ora, sendo irrelevante a omissão respeitante aos anos de 2018 e 2019, por respeitar a período superior aos três anos anteriores ao início do processo, e tendo sido apresentadas as contas dos anos 2020 e 2021, considerou o tribunal que apenas deve ter-se em conta a falta de apresentação das contas relativas a 2022. Porém, estas deveriam ser apresentadas até ao 15º dia de Julho de 2023, sendo que o processo se iniciou em 19/7/2023.
Por conseguinte, e de resto tal como aconteceria em relação à falta de apresentação atempada à insolvência, se esta tivesse sido demonstrada, sempre falharia a demonstração do nexo de causalidade entre tais circunstâncias e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, nexo esse relativamente ao qual nada foi alegado.
Mais concluiu o tribunal recorrido que o requerimento de abertura do incidente nenhum facto alegou que fosse apto ao preenchimento de qualquer das hipóteses do nº 2 do art. 186º do CIRE, de onde resultariam eventuais presunções inilidíveis de que a insolvência foi culposa.
E acrescentou, quanto à figura de CC, nada ter sido alegado de que decorra ser ele administrador de facto da insolvente, bem como que nada de concreto foi alegado de que possa resultar a conclusão de que a insolvente tenha incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, ou que tenha mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou que tenha sido praticada irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da respectiva situação patrimonial e financeira.
Importa, então, atentar na impugnação que o apelante dirige a tais segmentos da decisão, os quais, na generalidade e compreensivelmente repetem o enunciado no requerimento de abertura do incidente e defendem a sua suficiência.
Assim, no tocante ao incumprimento do dever de apresentação à insolvência, o apelante vem defender que a situação económica da empresa, com dívidas às Finanças e à Segurança Social que originaram processos de execução fiscal durante os anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, há muito impunha a apresentação à insolvência, o que foi incumprido por administradores e accionistas.
Acontece, porém, que toda esta impugnação não põe em causa o fundamento da decisão do tribunal: só relevam os factos dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e, nesse período, essa obrigação esteve suspensa em função das Leis Covid-19 (Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março, alterada pela Lei nº 4-A/2020, de 6 de Abril).
Quando cessou a suspensão desse dever, o processo iniciou-se em menos de 30 dias.
Por isso, objectivamente, não pode ter-se por preenchida a previsão da al. a) do nº 3 do art. 186º do CIRE.
Afastada fica, pois, a possibilidade de qualificação da insolvência com base em tal pressuposto. Em suma, tal como – e bem – o concluiu o tribunal recorrido.
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Outra questão suscitada pelo apelante refere-se à não apresentação de contas anuais da sociedade. Considerou o tribunal que a omissão de apresentação de contas, por só relevar qualquer uma que se sedie nos três anos anteriores a Julho de 2023, só se verifica em relação às contas de 2022. Todavia, teve por insignificante o atraso verificado quanto a elas, pois que, devendo ser apresentadas até 15/7/2023, logo de seguida – em 19/7/2023 - foi pedida a insolvência da empresa. Ao que acresce a necessidade de se estabelecer um nexo de causalidade entre essa omissão e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quanto ao que não só nada foi alegado como o intervalo de tempo em questão não permitiria estabelecer esse nexo.
Temos por insusceptível de crítica este segmento da decisão, quer por não dever relevar a omissão de apresentação de contas relativamente a 2019 – a obrigação respectiva deu-se por incumprida em período anterior aos 3 últimos anos que precederam o início do processo de insolvência – quer por não se descortinar, na alegação do requerente, qualquer facto ou quadro de circunstâncias em função das quais o incumprimento verificado, designadamente em relação às contas relativas a 2022, tenha determinado ou agravado a situação de insolvência.
Alega o apelante (ponto 89 do recurso) que apurar “Se tal circunstância determinou a situação de insolvência, já é uma questão de prova – carreada e a carrear para o incidente depois de aberto.” Mais uma vez confunde o apelante a necessidade de alegação dos factos, com a sua ulterior demonstração, em resultado da actividade instrutória que seja pertinente. Com efeito, se o requerente nem sequer tenta enunciar factos aptos a revelar como a situação de insolvência foi gerada ou agravada por tal omissão, nada há que possa ser objecto de uma ulterior actividade probatória.
É jurisprudência constante nesta secção do TRP a necessidade de verificação de um nexo de causalidade entre a violação de qualquer dos deveres que, nos termos do nº 3 do art. 186º do CIRE, fazem presumir a existência de culpa grave na insolvência e a criação ou agravamento da própria situação de insolvência (cfr., entre outros, Ac. de 13/4/2021, proc nº 252/20.0T8AMT-A.P1).
Ora, no caso em apreço, não explica minimamente e em momento algum como é que a não apresentação de contas pode ter determinado ou contribuído para o agravamento da situação económica da A..., S.A., provocando a sua insolvência.
Conclui-se, pois, que quanto a esta questão carece igualmente de razão o apelante, não podendo obter provimento o seu recurso.
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Vem também o apelante alegar que a existência de dívidas à AT e ao ISS, de 914.085,70€ e de 382.361,55 €, que foram sendo incrementadas nos termos revelados pelos processos de execução fiscal entre 2015 e 2018, sem que administradores e accionistas tenham feito coisa alguma para inverter a situação, dando azo a que ao tempo da insolvência o passivo da empresa ascendesse a 1.437.512,64, conduz ao preenchimento da previsão da al. g) do nº 2 do art. 186º do CIRE, isto é, terem os seus administradores prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
Salienta que, ao tempo do seu requerimento de abertura do incidente, já se encontrava junto o parecer da administradora da insolvência cujo conteúdo evidenciava a mesma realidade, não devendo o tribunal tê-lo ignorado.
É certo, como o próprio apelante admite, ter ele alegado tal factualidade apenas para sustentar que os administradores da insolvente incumpriram o dever de apresentação á insolvência. Porém, defende que o tribunal era livre de operar a subsunção jurídica adequada, a qual, no caso poderia levar à hipótese de preenchimento da referida al. g).
No entanto, admitindo-se esta concepção jurídica reconduzível ao princípio iura novit curia, apesar de tal descrição factual ser passível de consubstanciar a alegação de que a insolvente prosseguiu uma actividade deficitária que veio a culminar no avolumar do seu passivo e a determinar a insolvência, não chegou o requerente a alegar também que isso foi feito no interesse de qualquer dos indicados administradores, nem sequer a favor da tal empresa que, sob a administração de CC, passou a laborar na mesma rua.
Note-se, por exemplo, que à parte o facto – que é inequivocamente insignificante - constituído pela aposição de um coração, pela administradora da insolvente, na página do Facebook dessa outra empresa, o requerente não chegou a alegar aquilo que seria essencial para o preenchimento da previsão da norma em análise, por exemplo, que o prosseguimento da actividade se destinou a facultar a progressiva transmissão, para essa outra empresa de CC, de funcionários, bens ou clientes. Com efeito, no art 72º do seu requerimento inicial, o requerente afirma desconhecer essa factualidade, pretendendo que seja o tribunal a apurá-la, suscitando a actuação da administradora da insolvência com esse objectivo.
De resto, no art. 73º do seu articulado, o requerente vai mais longe, chegando a afirmar: “Desconhecem-se, além dos já alegados, outros actos subsumíveis às normas do art. 186.º do CIRE foram praticados pela Insolvente, designadamente, se mantinha a sua contabilidade organizada, o que deverá ser minuciosamente verificado pela Exma. Senhora Administradora de “Insolvência.”
Assim, não chega a assumir qualquer significado, para sustentar a afirmação de uma desorganização da contabilidade da empresa, a alegação relativa ao preenchimento da conta 23 (consta do relatório do art. 155º: “Na conta 23 – “Pessoal” um saldo negativo de € 256.371,83, na totalidade a conta de 2312 – “Pessoal”). Com efeito, o que aí está registado é uma dívida de 256.371,83€ e não um crédito, que seria algo incompreensível porquanto indiciaria pagamentos de pessoal superiores ao devido. Com efeito, quando uma conta da classe 2, como é o caso, apresenta um saldo credor ou negativo, isso significa que a empresa é devedora do montante inscrito.
Mal se compreende, assim, que o requerente conclua pela possibilidade de preenchimento das hipóteses previstas nas als. b), d), f), g) e i) do CIRE (cfr. art. 81º do seu articulado), quando, afinal, apenas descreve o negócio que gerou o seu crédito, constituído pela entrega de 20.000,00€ a CC, que lhe afirmou representar também a insolvente, apesar de afirmar que o empréstimo era para si próprio e que seria ele próprio a restituir esse valor.
Pelo contrário, em plena concordância com o tribunal recorrido, o que se conclui é que o requerente, para além do negócio que motivou o seu prejuízo e do conhecimento das dívidas constantes de processos pendentes contra a insolvente, em especial os de execução fiscal, nada alegou de concreto que possa conduzir à verificação de qualquer das hipóteses previstas em tais alíneas, isto é, criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas (al. b.); disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros (al d.); exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa (al.e.) feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto (al f.); prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência (al. g); ou incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º (al. i.).
Com efeito, o requerente pretendeu lançar o incidente de qualificação de insolvência com base numa percepção subjectiva e não concretizada de que CC e BB terão praticado actos passíveis de subsunção àquelas diversas alíneas, mas que desconhecem e que admitem que vejam a ser apurados no decurso do procedimento. Suspeita, admite como possível, tem fé de que se venham a descobrir actos diversos que originaram ou agravaram a situação de insolvência, mas que admite desconhecer .
No contexto desse desconhecimento, cumpre ainda acrescentar que nenhum auxílio decorre, para a pretensão do requerente, do teor do relatório apresentado pela administradora da insolvência. É que além da caracterização da situação económica e financeira da empresa, bem como da forma negativa segundo a qual a mesma evoluiu, nem a própria administradora chega a afirmar que os elementos apurados devem determinar a subsunção do caso a qualquer das regras dos nºs 2 ou 3 do art. 186º, limitando-se a concluir pelo encerramento da actividade respectiva e pelo prosseguimento do processo para liquidação.
Nestas circunstâncias, nem sequer se torna útil apurar se, tal como alegado, CC era administrador de facto da insolvente. A este propósito, o requerente chegou a alegar que BB e CC, mancomunados e em conjugação de esforços, tomaram e tomam todas as decisões da Insolvente, procedendo ao registo das contas anuais, realizando assembleias gerais de accionistas, habilitando o contabilista certificado e o ROC com os elementos de contabilidade (facturas, extractos bancários, recibos, etc.), contratando com fornecedores e clientes, relacionando-se com as instituições bancárias, CTT, autoridades policiais, autoridade tributária e de segurança social, etc. (art. 47º do requerimento). Porém, para que tal facto – caso se viesse a comprovar – fosse útil, sempre teria de se demonstrar também a prática, por ele também, de qualquer factos susbsumível às apontadas als. do nº 2 do art. 186º (excluída que está a verificação de qualquer das hipóteses do nº 3).
Ora, tal como antes afirmou o tribunal recorrido e com o que se concorda, não chega o requerente a concretizar qualquer facto que, ulteriormente, pudesse ser demonstrado. Não o faz em relação ao desenvolvimento de uma actividade dolosamente vocacionada para o aproveitamento pessoal dos administradores ou de qualquer outra empresa, explicitando em que é que se concretizou e a favor de quem tal aproveitamento; afirma desconhecer se a contabilidade estava desorganizada; que a sociedade Escola De Condução B... foi constituída por BB e CC para beneficiar dos clientes da insolvente, mas sem afirmar que conheça sequer algum que tenha sido desviado, o mesmo se passando quanto a funcionários e a equipamentos (veículos, equipamentos de escritório? Nada vem referido).
Sendo estas as circunstâncias dos autos, não podia o tribunal recorrido deixar de indeferir, como fez, a abertura de um incidente de qualificação de insolvência que, ab initio, não tinha objecto nem viabilidade, não podendo admitir-se essa abertura com fins claramente exploratórios.
Por fim, não se pode sustentar que uma tal solução representa uma violação do direito de acesso à justiça, garantido nos termos do art. 20º, nº 1 da CRP, porquanto o que se verifica, simplesmente, é a falência dos pressupostos de um procedimento de que o requerente pretendia lançar mão, por não ter chegado a alegar os fundamentos que a lei exige para o efeito.
Resta, em conclusão, afirmar o não provimento do recurso, na confirmação da decisão recorrida.

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Sumário:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao presente recurso, na confirmação da decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Registe e notifique.
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Porto, 19/11/2024

Rui Moreira
Maria Eiró
Anabela Andrade Miranda