ESCUSA
JUIZ
IMPARCIALIDADE
AMIZADE
CONHECIMENTO
PROCESSO
Sumário

Mostra-se de deferir a escusa requerida, verificando-se o não distanciamento da Sra. Juíza Desembargadora relativamente à situação dos autos, uma vez que está em causa uma relação grande amizade e proximidade pessoal (que ocorre desde há mais de 20 anos) entre a Sra. Juíza requerente e a advogada, subscritora das alegações de recurso, relevando também, a relação quotidiana e de proximidade estabelecida entre a Sra. Juíza requerente e a mencionada advogada e, por via dessa proximidade, a Sra. Juíza requerente tomou – antecipado - conhecimento dos argumentos do recurso que lhe foi distribuído, relativamente ao qual entende que pode colocar-se em questão a quebra da sua imparcialidade.

Texto Integral

I. A Sra. Juíza Desembargadora “A”, em exercício de funções na (…) Secção do Tribunal da Relação de Lisboa veio requerer, ao abrigo do estabelecido nos artigos 119.º, n.º 1 e 120.º, n.º 1, al. g), do CPC, seja dispensada de intervir no processo n.º (…)/24.3T8VFX, que lhe foi distribuído no dia 07-10-2024.
Para tanto, invocou, em suma, que:
- O recurso vem subscrito pela Advogada “B”, a qual, desde há mais de 20 anos que é sua amiga íntima, frequentando a casa uma da outra, partilhando alegrias e tristezas, contactando-se regularmente por telefone e encontrando- se amiúde;
- Tal razão justifica desconfiança sobre a sua imparcialidade, o que não pretende e constituiu fundamento para, no âmbito do Procº (…)/20.3T8VFX lhe ter sido concedida escusa;
- A matéria que constitui fundamento da apelação no processo agora distribuído foi, no âmbito da relação de amizade e confiança que ambas mantém, discutida entre a requerente e aquela Advogada, sendo, por isso, os argumentos apresentados na apelação do conhecimento da exponente, o que traduz uma circunstância ponderosa que leva, fundadamente, a supor pela suspeita da imparcialidade da ora signatária na condução e conhecimento do recurso, o que, obviamente não pretende também.
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II. Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz mantém, ou não, a sua imparcialidade, mas visa-se, preventivamente, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a decisão do julgador recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, de uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
“O pedido de escusa constitui, a par do incidente de recusa, um meio excepcional de afastar um Juiz de um processo. Tem, assim, de ser usado com ponderação, cautela e parcimónia, tanto mais que redunda num desvio ao princípio do Juiz natural, constitucionalmente consagrado, que visa assegurar precisamente a isenção e independência de um Magistrado quando toma uma decisão. Além disso há que ter presente que, no âmbito do pedido de escusa, não se pode sindicar a actividade jurisdicional da Juíza peticionante, ou seja, não interessa apurar se as decisões deste são ou não são justas, equilibradas e conformes ao direito, actividade essa reservada, como se sabe, aos recursos. Apenas interessa averiguar se ocorre alguma situação objectiva que, por fragilizar a independência e/ou a imparcialidade do Juiz, possa justificadamente minar a confiança pública na administração da justiça. O pedido de escusa de juiz tem de respeitar unicamente a processos concretos e não a todos os processos em que intervenham os advogados com os quais a Meritíssima Juíza mantém um litígio judicial” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-12-2007, Pº 2222/07-1, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO).
Na realidade, o deferimento de uma escusa (ou recusa) “têm como consequência a modificação de regras essenciais do processo, máxime do princípio do juiz natural” (assim, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, Almedina, 2022, p. 510), pelo que, a “abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)” (cfr., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ORLANDO GONÇALVES).
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. No caso em apreço, a Sra. Juíza requerente vem invocar, entre o mais, que lhe foi agora distribuído processo para a apreciação de recurso, no qual é advogada do alegante, a advogada “B”, que é sua amiga íntima, desde há mais de 20 anos, frequentando a casa uma da outra, partilhando alegrias e tristezas, contactando-se regularmente por telefone e encontrando- se amiúde, referindo outro processo no qual lhe foi concedida escusa com idêntico fundamento.
Neste contexto - refere ainda a Sra. Juíza requerente – foram discutidos entre a mesma e a referida advogada, os argumentos apresentados na apelação, que são do conhecimento da requerente.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo que, a postura de um juiz é sempre a de observância da lei, com rigor, imparcialidade e retidão.
Todavia, atentas as circunstâncias referenciadas, mostra-se objetivamente evidente o não distanciamento da Sra. Juíza Desembargadora relativamente à situação dos autos, uma vez que está em causa uma relação grande amizade e proximidade pessoal (que ocorre desde há mais de 20 anos) entre a Sra. Juíza requerente e a advogada, subscritora das alegações de recurso.
Não se coloca somente a questão do contacto profissional, funcional, ou mesmo de cortesia ou social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
No caso em apreço releva também, a relação quotidiana e de proximidade estabelecida entre a Sra. Juíza requerente e a mencionada advogada. Por via dessa proximidade, a Sra. Juíza requerente tomou – antecipado - conhecimento dos argumentos do recurso que lhe foi distribuído, relativamente ao qual entende que pode colocar-se em questão a quebra da sua imparcialidade.
Não seria só a imparcialidade (subjetiva) da Sra. Juíza Desembargadora que ficaria em causa, caso a mesmo tramitasse os autos, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder, objetivamente, gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões, tanto mais que, já tomou antecipado conhecimento e terá discutido com a advogada, elementos respeitantes ao objeto da causa.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo, quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza Desembargadora requerente seja dispensada de intervir no processo (sendo que, pelas mesmas circunstâncias, foi-lhe antes concedida escusa de intervenção no processo que menciona – cfr. decisão proferida no processo n.º (…)/22.8YRLSB deste Tribunal).
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IV. Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza Desembargadora “A”, no âmbito do processo n.º (…)/24.3T8VFX.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 09-10-2024,
Carlos Castelo Branco
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).