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MAUS TRATOS A ANIMAIS
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO PERANTE OPC
VALOR
LIVRE CONVICÇÃO
VÍCIOS DO ART.º 410º Nº 2 C.P.P.
Sumário
I- É através da fundamentação da sentença, na explicitação exame crítico aí empreendidos que se poderá aferir da objetividade, rigor, consistência, congruência e legitimidade do processo lógico de formação da convicção do julgador e, assim, exercer a possibilidade de controlo de tal decisão, sendo que tal controlo não é arbitrário, exerce-se na medida do necessário e é, naturalmente, respeitador do consignado no artigo 127º do Código de Processo Penal. II- Os diferentes vícios do 410º nº 2 do Código de Processo Penal não podem ser conhecidos por rogativa a declarações, depoimentos, documentos do processo ou qualquer outro tipo de prova produzida no julgamento. (sumário da responsabilidade do relator)
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1-RELATÓRIO:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal singular nº 360/21.0PCSNT.L1 que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste-Juízo Local Criminal de Sintra- Juiz 1 foi proferida sentença cujo dispositivo após correção é, ao que nos interessa, do seguinte teor: Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de dois crimes de abandono de animais de companhia, na pena parcelar de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), cada, absolvendo-o dos demais crimes imputados. Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo o montante global de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros) E ainda condenado na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de um ano.
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Inconformado com a sentença condenatória dela recorreu o arguido AA extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: 1. Vem o presente recurso contra a sentença que condena o arguido, aqui recorrente, pela prática de dois crimes de abandono de animais de companhia. 2. Sendo o arguido condenado, por cada um deles, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ e, em cúmulo jurídico na pena única de 130 dias de multa à taxa diária de 5,00€, que perfazem o montante global de 650,00€. 3. Vai o arguido ainda condenado nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs. 4. O arguido não se conforma com a condenação, recorrendo tanto de facto como de direito. 5. Efectivamente, o tribunal a quo não efectuou uma análise crítica à prova produzida. 6. Nem fundamenta a decisão conforme o determina o n.º 5 do art.º 97º do CPP e n.º 1 do art.º 205º da CRP. 7. Ao contrário, a sentença em crise remete, de forma global, para a sua livre convicção, sem sequer se preocupar em indicar a norma onde tal lhe é permitido (presumimos que seja nos termos do art.º 127º do CPP, mas ficamo-nos pela presunção já que a sentença não o indica), e para os depoimentos dos Agentes Policiais que confirmarão um aditamento que eles próprios terão feito. 8. Esse aditamento configura uma suposta “confissão” feita pelo arguido perante o Agente BB, a qual o arguido não reconhece, desmente e impugna. 9. Descura a sentença que o depoimento do Agente CC desmente e está contrário ao depoimento do Agente BB relativamente à própria investigação e à existência de suspeitos: a) O Agente CC afirma que no próprio dia em que os animais foram retirados do local foram realizadas diligências tendentes à identificação do responsável, tendo eles chegado logo nesse dia ao nome do arguido AA; b) O Agente BB afirma que até ao dia em que o arguido resolveu ir ter com ele e “confessar-se” nada tinham em termos de investigação. 10. Esta contradição é importante na medida em que, existindo já a suspeita do arguido como sendo o autor dos crimes em investigação (como o afirmou o Agente CC), quando ele se apresenta perante o Agente BB e resolve confessar-se em “conversas informais’ como o responsável pelos animais (falso, mas que aqui ponderamos para efeitos de demonstrar a nulidade desse auto), essa confissão teria de ter sido precedida da sua constituição como arguido, nos termos da al. a) do n.º1 do art.º 58º do CPP. 11. Efectivamente, mesmo que houvesse essa conversa informal reduzida a auto, com esse conteúdo confessório, e não houve, sempre esse auto seria nulo por violação de um direito fundamental de qualquer cidadão que é o de não se auto- incriminar e o de ser constituído arguido quando é suspeito de algum crime. 12. Isto mesmo que se tenha entendimento de que essas “conversas informais’ auto-incriminadoras são admissíveis como prova... e no nosso entendimento não são. 13. Imagine-se o que seria permitir que um investigador pudesse fazer constar aquilo que bem entendesse num auto e depois vir a tribunal testemunhar sobre aquilo que ele próprio escreveu relativamente a confissões, e o Tribunal aceita essa prova para efeitos de condenação... Estava encontrado o “remédio milagroso” para qualquer investigação onde não era possível avançar em termos de prova, bastando um qualquer agente policial fazer constar num auto que em conversa informal o indivíduo lhe confessou o crime, e no julgamento o agente policial confirma essa sua mesma versão e o arguido é condenado, mesmo que conteste a veracidade ou conteúdo dessa conversa... 14. No caso o aqui recorrente sempre afirmou que não era responsável por qualquer dos animais em causa. 15. Por outro lado, as testemunhas CC e BB apresentaram depoimentos claramente desconformes com os factos. 16. Ambos afirmaram que os canídeos estavam prostrados e, expressão deles, apenas à espera da morte... 17. Contudo, confrontados estes depoimentos com o da Veterinária que acompanhou os animais após a sua retirada do local, Dra. DD, fica-se a saber que nenhum dos animais estava prostrado e a aguardar a morte... Pelo contrário, dos 4 animais canídeos, apenas 1 deles apresentava sinais de pequena magreza, estando 3 deles com “condição corporal ideal” e o quarto apenas a 1 ponto dessa condição. 18. Ou seja, os agentes policiais extrapolaram as suas declarações para além do que era a verdade, no intuito de levar à condenação do arguido. 19. Também relativamente a um coelho que lá se encontrava, afirmaram os Agentes CC e BB que o coelho estava maltratado, muito ferido no nariz, e a Veterinária DD confirmou que o coelho estava bem. 20. De referir que a credibilidade do Agente BB foi colocada em causa em julgamento, por existir relato por parte de perseguição policial ao arguido (situação esta referida tanto pelo aqui recorrente como pelo próprio Agente BB), o que claramente impunha uma melhor fundamentação caso a decisão tomasse em conta os depoimentos destes agentes. 21. Aliás, tanto arguido como Agente BB falam de várias visitas para instrução de vários processos contra o arguido AA, onde, pelo depoimento gravado deste referido Agente Policial, tudo o que sejam canídeos, mesmo que registados em nome de outras pessoas, todos são do AA... 22. E assim foi neste processo, onde os 4 canídeos foram imputados na acusação que veio da investigação destes agentes, como estará a acontecer noutros que desconhecemos, mas que o Agente BB afirmou existirem já contra o alvo escolhido. 23. Não temos a menor dúvida que, pelo menos, o Agente BB tem um interesse pessoal na condenação do arguido aqui recorrente. 24. Tanto assim que, fosse no seu tempo pessoal, fosse no tempo laboral que deve ao Estado, o Agente BB compareceu em todas as sessões de julgamento, para assistir ao mesmo, tendo no final do seu depoimento afirmado que existe um sentimento de impunidade por parte do arguido AA e que ele quer acabar com essa impunidade... Temos aqui claramente um agente policial a agir por interesse próprio e que compromete qualquer investigação ou depoimento que faça. 25. Por outro lado, a própria sentença enferma de contradição ao afastar a responsabilidade do arguido relativamente ao Canídeo 1 (por não ter sido indagado junto do seu dono a quem o animal tinha ficado confiado), mas já tem um entendimento diverso relativamente aos Canídeos 3 e 4. 26.É que também relativamente aos Canídeos 3 e 4 não foi indagado a quem tinham sido deixados à guarda... 27. Sendo o aqui recorrente condenado apenas com base na suposta “confissão’ expressa no famoso auto de aditamento de fls. 84, elaborado pelo Agente interessado em acabar com a impunidade de que gozaria o arguido, sendo que a sentença até se refere ao auto de aditamento de fls. 14 e que em momento algum foi falado em julgamento... será talvez o mesmo... 28. Mas, a ser assim, teria toda a lógica que o arguido fosse condenado por todos os canídeos, já que segundo a sua auto-incriminação, ele era responsável por todos os cães. 29. A verdade é que tal auto de aditamento não reflecte a verdade do que o arguido terá dito, e o seu conteúdo é da exclusiva responsabilidade de quem o assinou. Não pode o seu autor servir de própria testemunha para validar algo que ele próprio cria e imputa a terceiros, sob consequência de acabarmos com o Estado de Direito e se passar a ter um Estado de Polícia. 30. Sendo nulo, como tem de ser, tanto o auto de aditamento elaborado pela polícia, sem garantir ao cidadão os direitos constantes da constituição como arguido, e verificando-se que a decisão em crise assenta maioritariamente nessa auto- incriminação que não se reconhece como existente, teremos de considerar que existe absoluta insuficiência da matéria para uma condenação ou sequer imputação da responsabilidade pelos canídeos ao aqui recorrente. 31. Isto apesar de não existir qualquer abandono dos animais por parte do arguido, já que não se pode abandonar aquilo de que não se é responsável. 32. A sentença padece dos vícios de insuficiência para a matéria dada como provada, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º, e contradição insanável da fundamentação, nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 410º, ambos do CPP, com as consequências previstas no art.º 426º, nº1 do Código de Processo Penal. 33. Padece também de erro notório na apreciação da prova - al. c) do n.º 2 do art.º 410º do CPP. 34. Foram violados os arts. 127.º, 356.º, n.º 7 e 357.º do CPP, e por conseguinte, a sentença é nula por terem sido considerados provados factos baseados em prova proibida. 35. A sentença em crise viola normas processuais penais, nomeadamente ao não formular uma análise crítica à prova, ao não indicar as normas pelas quais forma a sua convicção, ao não fundamentar de facto e de direito, ao não reconhecer ao recorrente o direito de ser constituído arguido no inquérito no momento em que lhe são imputadas declarações auto-incriminadoras, bem como viola as normas constitucionais ao lhe negar uma defesa efectiva (n.º 1 do art.º 32º), um processo de acordo com regras processuais leais e conhecidas (n.º 5 do art.º 32º), um reconhecimento da sua inocência até prova em contrário (n.º2 do art.º 32º). 36.Estão assim, e em súmula, violadas na sentença em crise, as normas constantes dos arts. 97º, n.º 5, 127.º, 356.º, n.º7, 357.º e alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, art.º 2º, n.º 2 do art.º 3º, n.º 1 do art.º 18º, n.ºs 1 e 4 do art.º 20º, n.ºs 1, 2 e 5 do art.º 32º e 205º, n.º 1 todos da CRP, bem como colocados em causa os princípios universais consagrados nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º da DUDH.
Termina requerendo que seja dado integral provimento ao recurso e, em consequência declarada nula a sentença recorrida e substituída in totum por uma outra que absolva o recorrente.
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Admitido o recurso no tribunal recorrido o Ministério Público apresentou resposta extraindo da mesma as seguintes conclusões: A) Desde logo, cumpre notar que, nem nas conclusões, nem na motivação, o recorrente cumpre o ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 a 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal. B) Porém questiona o arguido o referido julgamento, considerando que a sentença remete, de forma global, para a sua livre convicção, sem sequer se preocupar em indicar a norma onde lhe é permitido fazê-lo. E para os depoimentos dos Agentes Policiais que confirmam um aditamento por si elaborados. C) Clarificando-se o sentido do referido dispositivo legal que “para se impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto ter-se-ão de indicar as provas que impõemversão apresentada pelo recorrente, sendo, antes, necessário que tais provas só possam levar a que se dêem por não provados os factos que o recorrente indicou. D) Depois, confrontando-se, aqui, a versão do arguido com a convicção alcançada pelo tribunal a quo na valoração feita das respetivas provas, haverá, sempre, que fazer relevar o entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência, segundo o qual, ainda que a prova produzida e as regras da experiência permitam ou não colidam com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções possíveis segundo as regras de experiência, ela será inatacável, pois que foi proferida, também, no respeito pelo disposto no atrás citado art.º 127º. E) Sempre que a convicção do tribunal seja, uma convicção racional, objetivável, motivável e explicável à luz das regras de experiência comum, deve acolher-se e respeitar-se a opção do julgador. F) In casu, a decisão do tribunal a quo mostra-se sólida e objetivamente fundamentada, relevando, pelas razões apresentadas, as provas que lhe ofereceram como credíveis e que foram as declarações das testemunhas quer de acusação (agente CC e Agente BB) quer de defesa (EE) e o documento aditamento nº 3 (constante de fls. 14 cópia, 63 original e 84 cópia) junto aos autos. G) No caso dos autos, porém, como o tribunal a quo salientou, na valoração das respetivas provas, não assistiram dúvidas nem a sua convicção se mostra, por qualquer forma, fragilizada. H) Em processo penal vigora o princípio da aquisição da prova associada ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem, devendo o tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos na procura da verdade material. I) Também vigora o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal que dispõe: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e livre convicção da entidade competente. O artigo 125º do CPP consagra o princípio da legalidade dos meios de prova e os artigos 128º e seg. do CPP consagram sete meios típicos de prova. O Código de Processo Penal não enumera, de forma taxativa, as provas proibidas. Todavia indica os limites à produção de prova e à sua valoração. j) Assim o artigo 126º do CPP dispõe acerca dos “métodos proibidos de prova” incluindo os meios de prova e os meios de obtenção de prova, os quais constituem verdadeiros limites à descoberta da verdade. L) O Recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal recorrido de valorar o “aditamento nº 3” enquanto prova pois daí retira que se trata de uma “confissão” por parte do recorrente e, que tais declarações sem estarem devidamente assinadas pelo arguido consubstanciam prova proibida. M) O direito à não-incriminação tem o seu fundamento na proteção do acusado contra o exercício impróprio de poderes coercivos pelas autoridades e está relacionado com o respeito pela vontade do acusado, incumbindo à acusação, num processo criminal, provar a sua tese contra o acusado sem recorrer a elementos de prova obtidos através de métodos coercivos ou opressivos com desrespeito pela vontade deste. N) Conforme plasmado no Acórdão do STJ de 12.12.201 “Se qualquer suspeito, de sua livre vontade e iniciativa fornece dicas ou informações relevantes para a investigação policial, à autoridade que investiga e que utiliza tais informações na investigação, não pode dizer que a prova da investigação assenta em conversas informais, mas sim nas diligencias e atuações da entidade policial que devem decorrer de harmonia com o principio da legalidade das provas quer no conteúdo quer na forma, não ficando por isso, inibida a autoridade investigatória de explicar os termos da sua investigação e das bases em que assentou. Os depoimentos do agentes policiais constituiriam meio de prova proibido se na sua investigação policial se fundassem em declarações dos arguidos, obtidas, de forma fraudulenta, sob coação, ou com meios enganosos, violando o direito deles, à sua livre autodeterminação no exercício do direito de expressão e colaboração, ou, se se substituíssem às exigências legais ou proibições processuais de produção de prova, desprezando-as ou aniquilando-as”. O) Resulta assim do teor do aditamento nº 3 (cfr. cópia de fls. 14, original de fls. 63 e fls. 84 cópia) que o arguido se dirigiu à Esquadra acompanhado de FF e aí referiu aos senhores agentes, que também confirmaram essa interação com o arguido em julgamento, que eram responsáveis pelos quatro canídeos e pelo coelho que haviam sido retirados do local. P) Em audiência de julgamento, o Recorrente, tal como consta da douta sentença proferida, (questionou a validade probatória do documento, ainda que não negue o arguido ter-se deslocado à esquadra naquele dia, o que refere é que nunca assumiu que os animais eram seus; com efeito, do auto não consta que se tenha assumido proprietário, mas assumiu-se como responsável pelos mesmos. Ora no momento do aditamento efetuado, não corria contra si qualquer suspeita, tal como confirmaram os agentes. Q) No momento em que fala com os agentes trata-se de um simples cidadão e nem sequer suspeito, pelo que não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações é válida, pois que antes das mesmas não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiram dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e noticia do crime, e das medidas cautelares e de policia e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvindo o cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, pelo que não constitui violação da lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida, a qual será admitida e valorada em julgamento. R) E, assim, ao assumir-se como co-responsável destes animais, admite a responsabilidade de cuidado do canídeo nº 3 e nº 4, que, como estabelecemos, se encontravam em situação de maus tratos, ambos pelo acorrentar forte e prolongado ao ponto de causar feridas, um deles em estado de subnutrição. S) Ora duvidas inexistiram que os dois cães estavam à guarda do arguido e que, nesta sequência, deixou um deles subnutrido e ambos com feridas na pele, sem nenhuma possibilidade de locomoção adequada. T) Ainda a este respeito, Maia Gonçalves in Código de Processo Penal Anotado- Legislação Complementar- pág. 803 afirma que “os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta ser feita a respetiva leitura, visualização ou audição, desde que se trate de caso em que esta leitura não seja proibida. U) Também o Acórdão do TRC de 12.09.2018, Proc. nº 696/15.9T9CTB.C1 lança mão do conceito de provas pré-constituídas (de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória) e considera que se distinguem das provas que têm de ser produzidas em audiência na medida em que as pré-constituídas, uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação. Estas não são produzidas em audiência pela evidência de que foram produzidas e incorporadas nos autos antes do início da audiência de julgamento, apenas ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza. V) Revertendo-se ao caso dos autos, o aditamento nº 3 constitui prova pré constituída, relativamente à qual, aquando da abertura da audiência de julgamento, já se mostrava cumprido o contraditório (em virtude das várias notificações, entretanto efetuadas aos sujeitos processuais) Ainda assim, foi analisado em julgamento, foi exibido às testemunhas de acusação. X) Mais se acrescenta que, decorre da audição da testemunha de defesa e, vizinha EE, que o arguido teria, pelo menos, uma cadela (que coincide com o canídeo nº 3 ser fêmea) e, de acordo com as declarações dos agentes da PSP inquiridos, bem como da referida testemunha de defesa, os cães estavam acorrentados na parcela do arguido. Z) Atendendo a que o aditamento nº 3 efetuado e constante dos autos não se traduziu em qualquer ato inadmissível e não está afetado por qualquer proibição de prova, não se encontra ferida de nulidade e é admissível como meio de prova legitima em processo penal, pode e deve ser livremente apreciada e valorada, como meio de prova, pelo tribunal, tento o principio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP.
Termina pugnando pelo não provimento do recurso interposto pelo arguido com a consequente manutenção da sentença recorrida.
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Remetido o recurso a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público do Tribunal a quo e pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido recorrente.
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Observado o disposto no artigo 417º nº2 do Código de Processo Penal nada mais foi aduzido.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso interposto pelo arguido cumprindo, assim, apreciar e decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº 2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz da delimitação das conclusões da motivação do recurso em causa o que se impõe apreciar:
- se a decisão recorrida padece de falta de fundamentação violando o disposto nos artigos art.º 97º nº5 do Código de Processo Penal e 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa.
-se a decisão recorrida procede a valoração de prova proibida violando o disposto nos artigos 127º, 356.º n.º 7 e 357.º do Código de Processo Penal.
- se a decisão padece dos vícios de insuficiência para a matéria dada como provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova nos termos previstos no artigo 410º nº 2 als. a), b) e c) do Código de Processo Penal.
-se a decisão recorrida viola as garantias constitucionais do recorrente previstos nos art.º 2º, n.º 2 do art.º 3º, n.º 1 do art.º 18º, n.ºs 1 e 4 do art.º 20º, n.ºs 1, 2 e 5 do art.º 32º e 205º, n.º 1 todos da Constituição da República Portuguesa e os princípios universais consagrados nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
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2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara a sentença recorrida na parte que releva para a apreciação do recurso interposto pelo arguido AA que a seguir se transcreve: III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 4. Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa: 1) No dia 6 de Abril de 2021, pelas 10h00m, num terreno baldio e murado, situado no Caminho do Penedo, em Agualva-Cacém, Concelho de Sintra, área desta Comarca, o arguido AA e FF, mantinham quatro animais de raça canina e um coelho. 2) Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, os quatro cães encontrados encontravam-se na seguinte condição física: "Canídeo 1: Processo GMVM 576/2021, raça indefinida, cortigrado, sexo masculino, nome "Tarzan", porte médio, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, ± 33,5 Kg, identificação eletrónica ..., detentor HH, morador na ... O animal apresentava condição corporal ideal (grau 4 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas palpáveis com mínima cobertura de gordura. Vista de cima, a cintura observa-se facilmente. Reentrância abdominal evidente. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pêlo) por pressão da corrente/coleira e apresentava o fígado com ligeiras alterações degenerativas, alterações prostáticas compatíveis com hiperplasia benigna da próstata, e diminuição acentuada das plaquetas; apresentava também infecção pelas bactérias "rickettsia", "ehrlichia", "babesia", hemoparasitas estes cujos principais vectores são as carraças. Canídeo 2: Processo GMVM 577/2021, raça indefinida, cor preta, sexo feminino, nome "Aríel", porte grande, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, ± 28 Kg, identificação eletrónica ..., detentor II, morador na ..., NIF: ..., contacto .... O animal apresentava condição corporal ideal (grau 4 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas palpáveis com mínima cobertura de gordura. Vista de cima, a cintura observa-se facilmente. Reentrância abdominal evidente. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pelo) por pressão da corrente/coleira. Canídeo 3: Processo GMVM 578/2021, raça indefinida, cor creme, sexo feminino, porte grande, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, + 18,3 Kg, identificação eletrónica ... (implantado no GMVM). O animal apresentava condição corporal ideal (grau 4 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas palpáveis com mínima cobertura de gordura. Vista de cima, a cintura observa-se facilmente. Reentrância abdominal evidente. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pelo) por pressão da corrente/coleira. Canídeo 4: Processo GMVM 579/2021, raça indefinida, cor preta, sexo masculino, porte grande, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, ± 32 Kg, identificação eletrónica ... (implantado no GMVM). O animal apresentava condição corporal subalimentado (grau 3 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas facilmente palpáveis podem estar visíveis sem gordura palpável. Visível o topo das vértebras lombares. Os ossos pélvicos começam a ficar visíveis. Cintura e reentrância abdominal evidentes. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pelo) por pressão da corrente/coleira." 3) Nas referidas circunstâncias de tempo e de lugar, o coelho encontrado encontrava-se no interior de uma gaiola fechada e na seguinte condição física: sexo feminino, com ligeira conjuntivite bilateral, sem presença de parasitas externos visíveis, com condição corporal correspondente ao grny_i dos felídeos (de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), bem proporcionado, cintura visível depois das costelas, costelas palpáveis com pequena cobertura de gordura, panícula adiposo abdominal mínimo." 4) No local, não existia qualquer abrigo dos elementos naturais. 5)O arguido sabia que o Canídeo n.º 3 e o Canídeo n.º 4, pelas suas características, são destinados a proporcionar companhia e entretenimento aos seres humanos que os detenham. 6) Mais sabia o arguido que o Canídeo n.º 3 e o Canídeo n.º 4 são dotados de sensibilidade e instintos próprios das suas raças, e têm necessidades de alimentação e de hidratação, de se movimentarem livremente e de expressarem os seus instintos. 7)Não obstante, com a conduta descrita, agiu o arguido com o propósito concretizado de manter os animais de raça canina N.º 3 e n.º 4 acorrentados, limitando os seus movimentos, no terreno onde se encontravam, sem abrigo dos elementos naturais, bem sabendo que dessa forma lhes provocavam - como consequência directa e necessária da sua conduta, como efectivamente sucedeu - fome, sede, mal-estar físico, subnutrição e marcas no pescoço pela acção friccionante das correntes nos respectivos pescoços, resultados esses com os quais se conformou. 8) O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 9) O arguido encontra-se no estado civil de solteiro, vive com a filha e os netos. 10) O arguido reside em casa própria. 11) O arguido aufere mensalmente a quantia de €300,00 de pensão de viuvez. 12) O arguido encontra-se em Portugal desde 1994. 13) Por sentença proferida em 3 de Abril de 2019, transitada em julgado em 13 de Maio de 2019, no âmbito do Processo N.º1506/17.8PCSNT, que correu termos no Juízo Local Criminal de Sintra, foi o arguido condenado pela prática, em 2 de Novembro de 2017, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de um ano e nove meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pena declarada extinta em 14 de Junho de 2021. 5. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. Designadamente não se logrou provar que: a) Que todos os canídeos se encontravam prostrados, sem reacção à presença de pessoas, e foi encontrado um recipiente com pedaços de pão e carne crua, em estado de putrefação, para alimentação destes animais. 6. O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha. Nega o arguido que os animais lhe pertencessem, apenas assumindo que cuidava do coelho. Impõe-se iniciar a análise por referir que consta dos autos um aditamento (fls. 72) que declara, no essencial, que o canídeo n.º 1 e o canídeo n.º 2 têm chip identificativo em nome, respectivamente, de JJ e HH. JJ não foi inquirido, mas HH referiu em julgamento que o canídeo n.º 2 era seu e o deixou aos cuidados de seu irmão e não ao arguido. Negando o arguido, em julgamento, a responsabilidade de cuidado de ambos, sendo que, para o canídeo n.º 2 é o próprio dono a nomear outro cuidador que não o arguido e para o canídeo n.º 1 nem sequer foi indagado junto do dono a quem o deixou aos cuidados, afigura-se que, quanto a estes dois animais, prova alguma existe que estavam ao cuidado do arguido, ainda que todos os animais tenham sido encontrados no mesmo espaço que, como se viu, se trata de uma horta comum a várias pessoas, ainda que parcelada. Resta-nos, assim, apurar a responsabilidade do arguido relativamente ao canídeo n.º 3, ao canídeo n.º 4 e ao coelho. Ouvimos a veterinária, DD que observou os animais e esclareceu que, dos quatro cães, apenas um estava em estado de subnutrição - o canídeo n.º 4 (fls. 25 e 26) - pelo que nem o cão n.º 3 ou o coelho estariam subnutridos, crendo-se que a presença de pulgas e carraças nos cães não é o suficiente para considerar que se encontravam em dor ou sofrimento. Questão distinta quanto ao facto de estarem acorrentados, esclarecendo a senhora veterinária que se ambos os cães tinham marcas de pressão da coleira, o que causa, evidentemente, feridas e dor. Assim, dúvidas inexistem que estes dois animais estavam em situação que carecia de cuidado, por força das feridas que tinham no pescoço, com a clara limitação de liberdade a que estavam sujeitos. Já quanto ao coelho, apresentando "ligeira conjuntivite bilateral", não cremos que seja o bastante para considerar que se encontraria em dor ou emsofrimento, não podendo,apenas porque se detecta a presença de doença num animal, que o dono o coloca em situação de maus tratos. Assim sendo, concluindo-se pelos maus tratos ao canídeo n.º 3 e ao canídeo nº 4, urge apurar de quem era a responsabilidade, negando o arguido qualquer encargo. Sucede, porém, que a vizinha do arguido, EE, refere que o arguido teria, pelo menos, uma cadela (não esquecendo que o canídeo n.º 3é do sexo feminino) e, de acordo comos agentes da PSP inquiridos, assim como por esta testemunha de defesa, EE, os cães estavam acorrentados na parcela do arguido. Existe ainda nos autos o aditamento n.ºs 3 de fls. 14, do qual resulta que o arguido e FF deslocaram-se à esquadra da PSP e aí referiram aos senhores agentes, que também confirmaram esta interacção com o arguido em julgamento, que "eram responsáveis pelos quatro canídeos e pelo coelho que haviam sido retirados do local". Questiona a defesa a validade probatória do documento, ainda que não negue o arguido ter-se deslocado à esquadra naquele dia, o que refere é que nunca assumiu que os animais eram seus; com efeito, do auto não consta que se tenha declarado proprietário, tanto assim é, que já o estabelecemos quanto a dois dos cães, mas assumiu- se como responsável pelos mesmos. Como valorar estas declarações? Há que dizer que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o artigo 58.º do Código de Processo Penal, implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela. Sucede, porém, que, in casu, no momento em que o arguido se desloca à esquadra e se assume responsável pelos animais, nenhuma suspeita, sequer, corria sobre si; isso confirmaram os agentes, referindo que, até àquele momento, estavam sem qualquer pista. Assim, no momento em que fala com os agentes, trata-se de simples cidadão e nem sequer suspeito, pelo que não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações é válida, pois que antes das mesmas não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiram dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime, e de medidas cautelares e de policia e, sem má fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvindo do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, pelo que não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida, a qual será admitida e valorada em julgamento. E, assim, ao assumir-se como co-responsável destes animais, admite a responsabilidade de cuidado do canídeo nº 3 e do canídeo n.º 4, que, como estabelecemos, se encontravam situação de maus tratos, ambos pelo acorrentar forte e prolongado ao ponto de causar feridas, um deles em estado de subnutrição. É evidente para qualquer cidadão a forma adequada de cuidar minimamente de um animal; se cremos que se pode exigir zelo adicional a um cuidador, o facto de os animais terem pulgas ou carraças não se enquadra numa situação de maus tratos, sobretudo quando os animais se encontram em contacto com a natureza. No entanto, parece claro que nenhum ser vivo deve permanecer acorrentado durante muito tempo, ou pelo menos, o suficiente para a coleira fazer pressão e feridas no seu pescoço; também parece evidente que a subnutrição é condição a evitar no cuidado de um animal, devendo o responsável ter o discernimento de saber quando não pode cuidar do mesmo. O Tribunal não dá como provado que os animais estivessem prostrados, sem reacção à presença de pessoas, pois que não o referiu a senhora veterinária; já quanto ao recipiente com pedaços de pão e carne crua, em estado de putrefação, não se apurou se era para alimentação destes animais, sendo que a mera presunção de o barril se encontrar perto dos animais, não é o suficiente. Quanto às condições sócio-económicas do arguido, o Tribunal fez fé no declarado pelo próprio que, na medida do dado como provado, lograram convencer. No demais, relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal formou a sua convicção no teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos. IV- ENQUADRAMENTO JURÍDICO-LEGAL: 7. Vem o arguido acusado da prática de cinco crimes de maus tratos a animais, previsto e punido pelo artigo 387.º n.º 3 do Código Penal que determina que é punido com pena de prisão de seis meses até um ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias, "quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia". A efetiva criação de um estatuto jurídico concernente aos animais pressupõe o reconhecimento jurídico dos mesmos enquanto seres vivos dotados de especial sensibilidade, muitos dos quais sencientes, e não "coisas", não sendo, assim, admissível mantê-los inseridos em normativos que regulam as "coisas'. E assim, é, de facto, sendo patente, também entre nós, o reconhecimento geral de que o animal tem direitos que merecem a tutela do direito. Por sua vez, o n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 92/95, de 12 de setembro, que aprovou a Lei de Proteção dos Animais, reconhece implicitamente o direito dos animais ao não sofrimento ou morte desnecessários. Neste caso, o agente do crime poderá ser todo aquele que tem o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o que coloca a esfera de punição normativa ao nível da simples detenção do animal; estamos ainda perante crime de perigo concreto, em que a consumação do resultado se dá com a mera criação de perigo para a alimentação e prestação de cuidados devidos ao animal de companhia. O bem jurídico protegido não reside na integridade física e na vida do animal de companhia, mas é um"bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém. Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções"(Crimes Contra Animais: os novos Projectos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, n.º 4, Jul-Dez 2016, p. 104, Teresa Quintela de Brito). Por animais de companhia, entende-se"qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia"conforme resulta do artigo 389.º n.º 1 do Código Penal. Ora, dúvidas inexistem que os dois cães estavam à guarda do arguido e que, nesta sequência, deixou um deles subnutrido e ambos com feridas na pele, sem nenhuma possibilidade de locomoção adequada. Quanto aos outros dois cães não se provou que estivessem ao cuidado do arguido e quanto ao coelho, a circunstância de ter conjuntivite não é o suficiente para concluir que lhe infligiu dor ou sofrimento. Os factos provados realizam o tipo na modalidade menos grave prevista no nº 3, não ocorrendo, em concreto, nenhuma das circunstâncias previstas no nº 4. Das acções e omissões do arguido (o tipo integra comportamentos activos e omissivos e a arguida praticou o crime nessas duas modalidades) não resultou "a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção", sendo por isso de afastar a forma agravada. Quis, no entanto, o arguido comportar-se desta forma, pelo que, objectivamente criou esta situação de perigo para os animais, de forma consciente e voluntária, conformando-se com os seus resultados, agindo, em nosso ver, não de forma negligente, mas com dolo eventual. Os factos provados enquadram-se no tipo legal em apreço, concluindo-se que o arguido cometeu dois crimes de maus tratos a animal de companhia, pelo que por estes terá de ser condenado, absolvendo-o dos demais. V- DETERMINAÇÃO DA PENA: 8. Subsumidos os factos à sua dignidade criminal, importa agora encontrar a resposta punitiva adequada com a determinação da medida da sanção a aplicar. O crime de maus tratos a animais de companhia previsto e punido pelo 378.º n.º 3 do Código Penal, é punido com pena de prisão de seis meses até um ano ou com pena de multa de 60 até 120 dias. É um crime punido em alternativa com a pena de prisão e a pena de multa. Em casos como este, em que se admite que a punição preveja a aplicação, em alternativa, de duas penas principais, cumpre proceder à determinação da espécie da pena que concretamente irá ser aplicada atendendo, para o efeito, ao sentido e ao alcance que resulta da combinação dos artigos 40º e 70º, ambos do Código Penal. Nas situações em que o legislador tenha admitido o funcionamento alternativo de uma reacção detentiva e de uma pena não privativa da liberdade, deverá o Tribunal dar preferência à segunda sempre que, através dela, for possível realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição. “E como a aplicação de penas tem por objectivo a protecção de bens jurídicos e a integração do agente na sociedade, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial a decidir da possibilidade de preferir, no caso concreto, uma medida não detentiva a uma de prisão” (cfr. Anabela Rodrigues em anotação ao Ac. STJ de 21/05/90, RPCC, 2, 1991, pg. 243). Há que tomar ainda em linha de conta a ressonância ética que a lesão dos bens jurídicos sempre provoca na comunidade, procurando o Direito Penal reforçar o sentimento de segurança na consciência jurídicacomunitária, face à violação da norma. Sem esquecer que, no entanto, a culpa será o limite inultrapassável da medida concreta da pena (cfr. Figueiredo Dias, in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pg. 227 e ss). Tendo por base as finalidades das penas (artº 40.º, n.º 1 do Código Penal) o tribunal tem em conta, para efectuar a escolha entre pena privativa e não privativa de liberdade, há que ter presente que as exigências de prevenção geral são significativas na medida em que o legislador assume que os animais ganharam estatuto de seres vivos dotados de sensibilidade, impondo-se, como sociedade, educar para a assunção de outro tipo de comportamentos para com os animais, evitando manifestações de especismo mas, sobretudo, de tratamentos cruéis para com os mesmos. As finalidades de prevenção especial revelam-se de carácter baixo, uma vez que o arguido encontra-se inserido social e profissionalmente e não possui quaisquer antecedentes criminais desta natureza, pelo que a aplicação de uma pena de muta será suficiente para consciencializá-lo e proteger os bens jurídicos violados. 9. Chegados ao momento de determinar a concreta medida da pena, impõe-se não olvidar que a necessidade da tutela de bens jurídicos terá que ser encontrada em concreto, segundo as circunstâncias do caso em análise e não em abstracto. Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, importa atender à culpa do agente e às exigências de prevenção - artigo 71.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal - bem como a todas as circunstâncias que, ainda que não façam parte do crime, deponham a favor ou contra este. A pena deverá ser concretamente determinada em conformidade com o sistema dos dias de multa proposto pelo legislador no artigo 47.º do Código Penal, procedendo-se à fixação, em primeiro lugar, do número de dias de multa - dez dias de mínimo, trezentos e sessenta de máximo - e, seguidamente, do quantitativo diário, sendo que o mínimo legal se fixa em 5€ e o máximo em 500€. Assim sendo, foram tidas em consideração as seguintes circunstâncias: o arguido actuou com dolo directo, na medida em que não obstante saber que não podia deixar um animal e comida e em condições de ausência absoluta de tratamento ao ponto de provocar feridas no pescoço, sem possibilidade de locomoção adequada, estava bem ciente dos resultados dessa conduta, não se absteve de adoptá-la, bem sabendo que colocava os animais, dois, o que agrava a ilicitude, em sofrimento e dor. A consciência da ilicitude é média, uma vez que tem a capacidade para conhecer sobre o carácter ilícito e a reprovabilidade da sua conduta, que não se absteve de adoptar; iterando as exigências de prevenção geral e prevenção especial que se assinalaram, a favor do arguido milita a ausência de antecedentes criminais, bem como a sua inserção sócio-económica. Destarte, julga-se adequado aplicar ao arguido a pena de 80 (oitenta) dias de multa, por cada crime. In casu, impõe-se fixar o quantitativo diário em 5,00 € (cinco euros).
10. Face ao disposto no artigo 77º nº 1 do Código Penal "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena." Ora, é precisamente esta situação que se verifica nos presentes autos quanto ao arguido, pelo que importa, portanto, apurar a pena única a aplicar ao mesmo. Dispõe, ainda, o aludido preceito que na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Por outro lado, nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, a pena única aplicada tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.Assim sendo, a pena única a aplicar tem de situar-se entre os 80 e os 160 dias de multa. Em conclusão, operando o cúmulo jurídico das penas parcelares com os critérios estabelecidos no art.º 77.º do Código Penal, atendendo à personalidade do agente e ao grau de ilicitude dos factos numa perspectiva conjunta, atentas as circunstâncias já explanadas no momento da determinação concreta das penas parcelares e muito concretamente no que respeita às suas condições pessoais de vida, entende o tribunal condenar o arguido na pena única de 130 dias de multa à taxa diária de €5,00. 11. Dispõe o artigo 388.º-A do Código Penal que “1 - Consoante a gravidade do ilícito e a culpa do agente, podem ser aplicadas, cumulativa mente com as penas previstas para os crimes referidos nos artigos 387º. - e 388.º -, as seguintes penas acessórias: a) Privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 5 anos.” Considerando que estamos perante a colocação em estado de sofrimento e dor, não de um, mas de dois animais, sendo que o quadro sócio-económico que explicou e que justificou esta actuação ainda não se terá dissipado, entende o Tribunal que a arguida não estará em condições de deter animais, motivo pelo qual se aplica a pena acessória de privaçãodo direito de detenção de animais de companhia pelo período de um ano. VI- DAS CUSTAS: 12. Condena-se o arguido nas custas, que se fixam no montante de 2 UC – art.º 513.º n.º 1 e art.º 514.º n.º 1 ambos do Código do Processo Penal e art.º 8.º n.º 5 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Aqui chegados importa proceder à concreta apreciação das questões suscitadas pelo recorrente arguido:
- se a decisão recorrida padece de falta de fundamentação violando o disposto nos artigos art.º 97º nº5 do Código de Processo Penal e 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa:
A fundamentação das decisões judiciais tem consagração no artigo 6º nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem4 e o artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que o recorrente refere ter sido violado, estipula o seguinte: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Apesar do recorrente se referir apenas ao disposto no artigo 97º nº 5 do Código de Processo Penal que consagra o dever de fundamentação ao consignar que os actos decisórios são sempre fundamentados devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão relativamente aos requisitos incluindo de fundamentação da sentença e consequências de tal omissão versam os artigos 374º e 379º ambos do Código de Processo Penal.
Com efeito o princípio constitucional é observado pela lei processual penal, mormente, no artigo 379º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal que comina com nulidade a sentença que não contiver as menções referidas no nº2 do artigo 374º e na alínea b) do nº3 do artigo 374º do mesmo diploma legal.
O artigo 374º do Código de Processo Penal que versa sobre os requisitos da sentença prevê no seu nº 2: “ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa ainda que concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Como afirma José Tomé de Carvalho5: O dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, pois permite o controlo da legalidade do ato e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça.
E, ainda, Oliveira Mendes6 a fundamentação «visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, nº 1, da Constituição da República».
O Supremo Tribunal de Justiça concretizou o dever de fundamentação da sentença ao consignar que: a decisão, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.7
Por conseguinte é através da fundamentação da sentença, na explicitação e exame crítico aí empreendidos que se poderá aferir da objetividade, rigor, consistência, congruência e legitimidade do processo lógico de formação da convicção do julgador e, assim, exercer a possibilidade de controlo de tal decisão, sendo que tal controlo não é arbitrário, exerce-se na medida do necessário e é, naturalmente, respeitador do consignado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Do exposto, decorre que a fundamentação da decisão deve pautar-se por uma lógica de convencimento que viabilize a sua integral compreensão quer pelos seus destinatários quer pelo tribunal de recurso enquanto entidade que procede ao controlo de tal decisão por via do recurso.
O artigo 374º nº 2 do Código de Processo Penal o que refere é que a seguir ao relatório segue-se a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Invoca o arguido recorrente que a decisão recorrida não formula uma análise crítica à prova, ao não indicar as normas pelas quais forma a sua convicção, ao não fundamentar de facto e de direito.
Ora, a mera leitura da sentença recorrida permite contrariar esta invocação do recorrente bem como concluir pelo preenchimento dos requisitos legalmente exigidos e referidos em tal preceito.
Com efeito, a decisão recorre expressamente à invocação do princípio da livre apreciação da prova e a falta de referência do preceito em que o mesmo está consagrado não consubstancia qualquer falta de fundamentação nos termos delineados nos artigos suprarreferidos.
A decisão só padeceria de falta de fundamentação se se omitisse a enumeração dos factos provados e não provados, a explicitação das razões de facto e de direito que subjazem a tal enumeração e a indicação e exame crítica das provas em que se sustenta o processo de formação da convicção do Tribunal, o que não se verifica no caso vertente.
O que ocorre é uma divergência do recorrente relativamente ao teor da fundamentação, mormente, à interpretação aí vertida relativamente à prova que o mesmo subsume a falta de fundamentação e até uma valoração de prova proibida.
Porém, tal falta de fundamentação não se verifica porquanto a decisão recorrida, como decorre da transcrição da mesma supra efetuada, enumera os factos provados e não provados e empreende uma explicitação dos motivos de facto e de direito com indicação e exame crítico das provas que sustentam a formação de convicção do julgador.
Ademais a questão, também, suscitada de valoração na sentença de prova proibida não é questão que enquadre o vício de falta de fundamentação.
Assim, inexiste falta de fundamentação e, consequentemente, qualquer nulidade da sentença recorrida nos termos previstos nos artigos 374º nº 2 e 379º nº 1 al. a) ambos do Código de Processo Penal.
Prosseguindo na apreciação das questões suscitadas neste recurso penal importa de seguida indagar se a decisão recorrida procede a valoração de prova proibida violando o disposto nos artigos 127º, 356º, n.º 7 e 357.º todos do Código de Processo Penal.
Neste particular invoca o recorrente arguido, em síntese, que declaração do ora recorrente vertida no aditamento considerado na sentença recorrida como um meio de prova válido é uma confissão em conversa informal com o agente que elaborou o aditamento e que tal auto é nulo por violação de um direito fundamental de qualquer cidadão que é o de não se auto- incriminar e o de ser constituído arguido quando é suspeito de algum crime pelo que tal confissão deveria ter sido precedida da sua constituição como arguido nos termos da al. a) do nº 1 do artigo 58º do Código de Processo Penal.
Ora, não assiste razão ao recorrente, desde logo, porque não estamos no âmbito de qualquer conversa informal nem tão pouco no âmbito de qualquer confissão ou declaração de arguido ou sequer de pessoa que devesse naquele momento ter sido constituída como tal.
O que se verifica nos autos é que o ora recorrente na sequência da retirada dos animais do local se dirigiu à esquadra da PSP acompanhado de FF (coarguido cujo responsabilidade criminal se extinguiu por morte) indagando sobre a retirada dos animais do local tendo sido elaborado aditamento.
A constituição de arguido é obrigatória como decorre do artigo convocado pelo recorrente (artigo 58º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal) logo que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.
No momento em que ora recorrente se dirigiu à esquadra nenhuma suspeita e muito menos fundada suspeita sobre si recaía pelo que como se refere na sentença recorrida era no momento em que fala com os agentes um simples cidadão e nem sequer suspeito.
O aditamento configura uma diligência efetuada pelo órgão de polícia criminal no âmbito das suas competências atribuídas pelos artigos 249º e seguintes do Código de Processo Penal e o seu teor não consubstanciam declarações de arguido ou de pessoa que devesse naquele momento assumir tal qualidade pois que inexistia fundada suspeita relativamente ao mesmo.
Como se exara, inter alia, no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/1/20178a atividade investigatória de recolha informal de indícios tem cobertura legal não estando as declarações que constam de aditamento sujeitas às restrições estabelecidas nos artigos 356º nº1 e 357º nº 1 ambos do CPP pelo que a sua leitura em audiência não determina qualquer nulidade.
Ademais e como se consigna no Ac. do Tribunal da Relação de Évora9 no ordenamento português e no caso concreto parece-nos indubitável que simples cidadão ou cidadão suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido.
Revertendo ao caso vertente estamos perante uma deslocação e indagação voluntária do recorrente e de quem o acompanhava sobre os animais cuja retirada tinha sido efetuada e que foi vertida em aditamento elaborado no âmbito de uma competência conferida legalmente aos órgãos de polícia criminal em fase de inquérito e num momento em que não se impunha legalmente a constituição do recorrente como arguido.
Tal aditamento não configura prova proibida podendo ser valorado nos termos dos artigos 125º e 127º ambos do Código de Processo Penal.
Assim improcede, também, neste segmento o recurso do arguido AA.
Invoca, ainda, o recorrente que a decisão padece dos vícios de insuficiência para a matéria dada como provada, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova nos termos previstos no artigo 410º nº 2 als. a), b) e c) do Código de Processo Penal.
Prevê o artigo 410º nº 2 do Código que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) o erro notório na apreciação da prova.
Importa sublinhar que em qualquer das hipóteses indicadas o vício tem de resultar da decisão recorrida por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum não sendo assim, admissível apelar a elementos estranhos àquela para o sustentar.
Destarte, a apreciação da existência dos vícios elencados nas diferentes alíneas do referido normativo incide apenas sobre o texto da decisão recorrida, em sim mesma ou em conjugação com as regras da experiência comum, e sem apelo a declarações, depoimentos, documentos do processo ou qualquer outro tipo de prova produzida no julgamento10.
São, assim vícios intrínsecos, estruturais da decisão recorrida percetíveis numa mera leitura da mesma e apreensíveis pelo cidadão médio, pelo que evidentes e revelando juízos ilógicos, contraditórios, ao arrepio das regras e máximas da experiência comum, ou seja, ao normal vivenciar e conhecimentos adquiridos do homem médio.
No que respeita ao vício traduzido na insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que se reporta a al. a) do nº 2 do artigo 410º este verifica-se não só quando a matéria de facto provada seja exígua e, por isso, inidónea a fundamentar a decisão de direito, mas também quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para tal decisão11.
Contudo este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para sustentar a matéria de facto provada uma vez que esta última respeita ao princípio da livre apreciação da prova.
Como se exara no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça12 «A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados».
No que se reporta ao vício previsto na al. b) do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal: contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão este traduz-se na incompatibilidade (inultrapassável através do teor da própria decisão recorrida) entre os factos dados como provados, entre estes e os dados como não provados, entre os meios de prova invocados na fundamentação de facto ou entre a fundamentação e a decisão.
Como defendido por Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques13: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem–se mutuamente”.
E como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça14 “A contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente, ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. A contradição e a não conciliabilidade têm, pois, de se referir aos factos, entre si ou enquanto fundamentos, mas não a uma qualquer disfunção ou distonia que se situe unicamente no plano da argumentação ou da compreensão adjuvante ou adjacente dos factos”.
No que respeita ao vício indicado na al. c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal: o erro notório na apreciação da prova: este ocorre quando o homem médio em face do teor da decisão em si mesma ou conjugada com o senso comum facilmente se apercebe que o decisor levou a cabo em tal decisão uma apreciação desadequada, incorreta sustentada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Tal vício também se manifesta quando se infringem as regras da experiência, da prova vinculada ou das leges artis ou quando sem qualquer fundamento se diverge do juízo pericial
É naturalmente um vício patente na decisão aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente15.
Redunda num vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido16.
Tal entendimento é perfilhado por todos os Tribunais da Relação e, ainda, pelo Supremo Tribunal de Justiça de que se cita, deste último e a título meramente exemplificativo, o Acórdão de 9 de março de 202317 que refere “O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça”.
Advertindo, também, o Supremo Tribunal de Justiça18: «O vício da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, percetível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».
Assim, tal vício não ocorre se a divergência do recorrente decorre da forma como a decisão recorrida apreciou a prova produzida, ou seja, a não coincidência entre a versão do recorrente sobre a matéria de facto e a da decisão recorrida não preenche o vício de erro notório na apreciação da prova.
Revertendo, ao caso em apreço, importa referir, que o recorrente arguido empreende uma argumentação global da sua discordância relativamente à decisão recorrida aí abarcando os diferentes vícios do 410º nº 2 do Código de Processo Penal que suscita sem a devida concretização dos mesmos e olvidando que tais vícios não podem ser conhecidos por rogativa a declarações, depoimentos, documentos do processo ou qualquer outro tipo de prova produzida no julgamento.
Aliás, se o arguido recorrente pretendia questionar a prova produzida em audiência poderia ter utilizado a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal, o que não fez, posto que não só não o invoca expressamente no seu recurso, como não cumpre no mesmo o tríplice ónus de especificação imposto pelo artigo 412º nº 3 bem como o disposto no nº4 do referido artigo sendo que tal ónus tem de estar evidenciado na motivação e nas conclusões do recurso.
Como se consigna no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2010 proferido no processo 70/07.0JBLSB.L1.S1 de que é Relator Pires da Graça: “A lei é exigente quanto ao modo de impugnação do recurso em matéria de facto de harmonia com o disposto no artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP sendo que a modificabilidade da decisão da 1º instância apenas ocorre nos termos apontados no artigo 431º do CPP entre os quais a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º nº 2 do mesmo diploma. Na impugnação da matéria fáctica não basta mera referência ou indicação genérica dos pontos de facto e das provas dissonantes, mas deve especificar-se os concretos pontos de facto e as concretas provas que impõem decisão diversa. Por isso o tribunal de 2º instância apesar de ter poderes de cognição em matéria de facto não pode sem mais sindicar os meios de prova de que se socorreu o tribunal da 1ª instância ao dar como provados determinados factos e não outros. Torna-se necessário a indicação expressa dos concretos pontos de facto e das concretas provas que para esses concretos pontos de facto impõem solução diversas. Acresce que como determina o artigo 412º nº 4 do CPP que as concretas provas que impõem decisão diversa devem fazer-se “por referência ao consignado na acta nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O modo como o recurso é gizado é um ónus, mas também um direito do recorrente e, em face do teor do mesmo a impugnação é por apelo aos vícios previstos no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal
Assim, estando em causa a apreciação destes vícios e, em face do já exposto, é inócuo o exercício empreendido pelo recorrente de apelo aos depoimentos das testemunhas CC e BB e/ou a prova documental.
Importa, também, reiterar que o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é de insuficiência de factos e não de insuficiência de meios de prova pelo que a alegação do arguido recorrente que se sustenta em meios de prova e não na matéria de facto provada não pode, naturalmente, proceder.
Ademais e no que se refere ao vício de contradição insanável supra aludido refere o recorrente arguido que o mesmo se verifica por a sentença afastar a responsabilidade do arguido relativamente ao Canídeo 1 (por não ter sido indagado junto do seu dono a quem o animal tinha ficado confiado), mas já tem um entendimento diverso relativamente aos Canídeos 3 e 4 e que também relativamente aos Canídeos 3 e 4 não foi indagado a quem tinham sido deixados à guarda...
Ora, trata-se de uma interpretação localizada e interessada do recorrente relativamente à fundamentação da decisão porquanto a leitura desta não evidencia a contradição apontada.
Com efeito, a fundamentação relativa à responsabilidade do arguido relativamente aos canídeos 3 e 4 assenta na valoração de distintos meios de prova como decorre da decisão recorrida, mormente, o depoimento de EE vizinha do arguido, depoimentos dos agentes da PSP inquiridos em audiência e prova documental pelos mesmos elaborada e a referente ao canídeo 1 não assenta apenas no segmento referido pelo recorrente mas, também, na circunstância de tal canídeo ter um chip em nome de JJ, deste último, não ter sido inquirido e do arguido ter negado em julgamento ser responsável pelo mesmo.
Inexiste contradição uma vez que o que a decisão recorrida faz é retirar ilações sobre factos distintos com base numa valoração de meios de prova distintos.
O arguido recorrente, também, invoca a existência de erro notório na apreciação da prova, mas nas conclusões da sua motivação não concretiza em que consiste o referido erro o que compromete a possibilidade de se analisar adequadamente tal vício.
Todavia e tendo em conta o invocado na motivação tal erro assenta na divergência do tribunal relativamente à avaliação da condição dos animais feita pela veterinária que entende o recorrente ter valor probatório pericial e de que não se poderia extrair a conclusão de que os animais sofriam de maus tratos.
Ora, na sentença não resulta que tal relatório tenha valor pericial a referida veterinária foi inquirida como decorre da decisão recorrida como testemunha e não como perito.
A natureza pericial da prova não decorre da vontade do recorrente e neste caso tal prova não assume tal natureza. Ademais mesmo que o fosse o tribunal recorrido não estava impedido da mesma divergir desde que fundamentasse tal divergência.
Não se constata na decisão a existência de qualquer erro notório, qualquer vício de raciocínio na apreciação das provas e em bom rigor a divergência apontada nem sequer se verifica porquanto a sentença recorrida dá como provado designadamente que: Canídeo 3: Processo GMVM 578/2021, raça indefinida, cor creme, sexo feminino, porte grande, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, + 18,3 Kg, identificação eletrónica ... (implantado no GMVM). O animal apresentava condição corporal ideal (grau 4 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas palpáveis com mínima cobertura de gordura. Vista de cima, a cintura observa-se facilmente. Reentrância abdominal evidente. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pêlo) por pressão da corrente/coleira. Canídeo 4: Processo GMVM 579/2021, raça indefinida, cor preta, sexo masculino, porte grande, pelagem curta, cauda comprida, comportamento dócil e amistoso, ± 32 Kg, identificação eletrónica ... (implantado no GMVM). O animal apresentava condição corporal subalimentado (grau 3 de acordo com o Sistema de Avaliação da Condição Corporal desenvolvido no Centro Nestlé Purina), costelas facilmente palpáveis podem estar visíveis sem gordura palpável. Visível o topo das vértebras lombares. Os ossos pélvicos começam a ficar visíveis. Cintura e reentrância abdominal evidentes. Presença de carraças e pulgas e marcas no pescoço (pele e pêlo) por pressão da corrente/coleira." No local, não existia qualquer abrigo dos elementos naturais. O arguido sabia que o Canídeo n.º 3 e o Canídeo n.º 4, pelas suas características, são destinados a proporcionar companhia e entretenimento aos seres humanos que os detenham. Mais sabia o arguido que o Canídeo n.º 3 e o Canídeo n.º 4são dotados de sensibilidade e instintos próprios das suas raças, e têm necessidades de alimentação e de hidratação, de se movimentarem livremente e de expressarem os seus instintos. Não obstante, com a conduta descrita, agiu o arguido com o propósito concretizado de manter os animais de raça canina n.º 3 e n.º 4 acorrentados, limitando os seus movimentos, no terreno onde se encontravam, sem abrigo dos elementos naturais, bem sabendo que dessa forma lhes provocavam - como consequência directa e necessária da sua conduta, como efectivamente sucedeu - fome, sede, mal-estar físico, subnutrição e marcas no pescoço pela acção friccionante das correntes nos respectivos pescoços, resultados esses com os quais se conformou. O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
E na respetiva fundamentação que ouvimos a veterinária, DD, que observou os animais e esclareceu que, dos quatro cães, apenas um estava em estado de subnutrição - o canídeo n.º 4 (fls. 25 e 26) - pelo que nem o cão n.º 3 ou o coelho estariam subnutridos, crendo-se que a presença de pulgas e carraças nos cães não é o suficiente para considerar que se encontravam em dor ou sofrimento. Questão distinta quanto ao facto de estarem acorrentados, esclarecendo a senhora veterinária que se ambos os cães tinham marcas de pressão da coleira, o que causa, evidentemente, feridas e dor. Assim, dúvidas inexistem que estes dois animais estavam em situação que carecia de cuidado, por força das feridas que tinham no pescoço, com a clara limitação de liberdade a que estavam sujeitos. E que os referidos animais se encontravam em situação de maus tratos, ambos pelo acorrentar forte e prolongado ao ponto de causar feridas, um deles em estado de subnutrição. É evidente para qualquer cidadão a forma adequada de cuidar minimamente de um animal; se cremos que se pode exigir zelo adicional a um cuidador, o facto de os animais terem pulgas ou carraças não se enquadra numa situação de maus tratos, sobretudo quando os animais se encontram em contacto com a natureza. No entanto, parece claro que nenhum ser vivo deve permanecer acorrentado durante muito tempo, ou pelo menos, o suficiente para a coleira fazer pressão e feridas no seu pescoço; também parece evidente que a subnutrição é condição a evitar no cuidado de um animal, devendo o responsável ter o discernimento de saber quando não pode cuidar do mesmo.
Não se deteta à luz do exposto qualquer erro porquanto os maus tratos no caso vertente não se relacionam apenas com a condição de nutrição dos animais, mas sim com as demais circunstâncias indicadas que lhes provocam dor e sofrimento.
Destarte improcede, também, neste segmento o recurso do arguido AA impondo-se declarar que a decisão recorrida não padece de nenhum dos vícios consagrados no artigo 410º nº2 do Código de Processo Penal.
Por último, o recorrente arguido invoca que a decisão recorrida viola as garantias constitucionais do recorrente previstos nos art.º 2º, n.º 2 do art.º 3º, n.º1 do art.º 18º, n.ºs 1 e 4 do art.º 20º, n.ºs 1, 2 e 5 do art.º 32º e 205º, n.º 1 todos da CRP e os princípios universais consagrados nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Entende o recorrente que a decisão recorrida infringe normais processuais ao não formular uma análise crítica à prova, ao não indicar as normas pelas quais forma a sua convicção, ao não fundamentar de facto e de direito, ao não reconhecer ao recorrente o direito de ser constituído arguido no inquérito no momento em que lhe são imputadas declarações auto-incriminadoras e consequentemente viola as normas constitucionais ao assim lhe negar uma defesa efectiva (n.º 1 do art.º 32º), um processo de acordo com regras processuais leais e conhecidas (n.º 5 do art.º 32º), um reconhecimento da sua inocência até prova em contrário (n.º2 do art.º 32º). E ainda que infringe os princípios universais consagrados nos artigos 7º, 8º, 9º, 10º e 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Prevê o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa que A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
O artigo 3º nº2 da Constituição da República Portuguesa estipula que: O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
Por sua vez consigna-se no artigo 18º nº 1 da referida Lei Fundamental que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
Os artigos 20º nº 1 e nº 4 da mesma lei referem, respetivamente, que: A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos e Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Estipula o artigo 32º nº 1, n.ºs 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, respetivamente, que O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, que Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença da condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa e que O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório.
Por seu turno o artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece que: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Alude, ainda o recorrente aos artigos 7º, 8º, 9º, 10º, 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos que preceituam, respetivamente: Todos são iguais perante a lei e sem distinção têm direito a igual protecção perante a lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei. Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ele seja deduzida.
No caso vertente não se considerou que a decisão recorrida tivesse infringido qualquer norma processual penal, tendo soçobrado como decorre do presente recurso todas as questões, nesse particular, pelo mesmo invocadas.
Ademais não se deteta que qualquer uma das normas constitucionais ou de direito universal invocadas pelo recorrente tenham sido infringidas.
O recorrente foi constituído arguido quando se impunha que o fosse, foi acusado, julgado e tendo sido condenado recorreu de tal decisão condenatória. O arguido esteve representado por advogado e exerceu o direito ao contraditório ao longo de todo o processo e exerceu o seu direito ao recurso como se evidencia.
O artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa estipula que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Como se refere no Ac. do Tribunal Constitucional nº175/202219: “a consagração constitucional do princípio da presunção de inocência decorre que o processo penal tem de ser estruturado de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado. (…) O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo”.
No caso vertente não se vislumbra, para além do já afirmado, qualquer violação do princípio da presunção da inocência do arguido recorrente porquanto ao mesmo foram asseguradas todas as garantias de defesa incluindo o direito ao recurso sendo que tal presunção persiste até ao trânsito em julgado da decisão final.
Assim, improcede na sua totalidade o recurso do arguido AA impondo-se, por conseguinte, manter, a decisão recorrida.
III- DECISÓRIO:
Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar na íntegra a sentença recorrida.
Custas da responsabilidade do arguido recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art.º 513º do Cód. de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último).
*
Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 20 de novembro de 2024
Ana Rita Loja
Ana Guerreiro da Silva
João Bártolo
_____________________________________________________
1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. – Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Onde se exara nomeadamente que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.».
5. Breves Palavras sobre a Fundamentação da Matéria de Facto no âmbito da Decisão Final Penal no Ordenamento Jurídico Português- JULGAR nº21-2013
6. Código de Processo Penal Comentado”, 5ª edição, pág. 1168
7. Ac. Supremo Tribunal de justiça de 13/10/1992 - Coletânea de Jurisprudência XVII. Página 136
8. Proferido no processo nº 186/14.76CLSA.C1 de que é relator Vasques Osório
9. Proferido em 28/08/2023 no processo nº 389/17.2PBELV.L1 de que é relator Gomes de Sousa
10. Neste sentido Maia Gonçalves, em Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 729, Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., pág. 339 e Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, em Recursos Penais 9.ª ed., pág. 73 e ss e, entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 11/07/2024 -processo nº489/21.4SXLSB1-5.
11. Neste sentido Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, em Recursos em Processo Penal, 9.ª ed., pág. 73 e ss.
12. de 6/10/2011 proferido no proc. 88/09.9PESNT.L1. S1 e relatado por Souto de Moura
13. em Recursos Penais, 9.ª ed., pág. 73 e segs.
14. de 03.10.2007 proferido no processo nº 07P1779 em que é relator Henriques Gaspar
15. vide Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 341.
16. vide Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, em Recursos Penais, 9.ª ed., pág. 73 e ss.
17. Proferido no processo 1368/20.8JABRG.G1.S1 e relatado por Helena Moniz,
18. Através do seu Acórdão de 23 de setembro de 2010 proferido no processo proc. 427/08.0TBSTB.E1. S2 e relatado por Souto de Moura
19. de 15 de março de 2022 em que é relator Pedro Machete.