AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
EXTENSÃO DOS EFEITOS DO CASO JULGADO
NEGÓCIO JURÍDICO INEFICAZ
INOPONIBILIDADE DOS DIREITOS DE TERCEIRO
Sumário


I – É de reconhecer a força reflexa ou expansiva do caso julgado, de modo a assegurar a coerência do sistema perante a existência de relações jurídicas interdependentes, conexas, subordinadas e prejudiciais, podendo afectar também terceiros, nomeadamente, os juridicamente interessados titulares de “relações subordinadas ou dependentes de outra”, tendo em consideração o regime jurídico que as enformam.
II – Perante um tal negócio ineficaz, não são oponíveis ao verdadeiro proprietário os direitos de terceiros, nomeadamente nos termos do art.º 291º, nº 1, do CC, dado tais direitos serem insusceptíveis de produzir efeitos na esfera jurídica do referido proprietário, ainda que os terceiros tenham agido de boa fé.
III - A procedência da acção de reivindicação encontra-se sujeita à demonstração cumulativa de três condições de procedência:
- O autor seja titular do direito real de gozo invocado;
- O réu tenha a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor;
- O réu não prove ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo.
IV – No âmbito das acções de reivindicação tem-se entendido, de forma quase pacífica, que não basta ao autor invocar ser proprietário da coisa reivindicada, uma vez que também é indispensável que o autor alegue e prove uma das formas de aquisição originária; quando a aquisição for derivada, terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária.
V – Considerando, contudo, que tal prova será por vezes de difícil consecução, o nosso ordenamento jurídico consente o recurso a determinadas presunções legais da existência e titularidade do direito real, designadamente a presunção da titularidade desse direito no possuidor, ao abrigo do art.º 1268º, nº 1, do CC, bem como a presunção da sua existência a favor do titular inscrito no registo predial, nos termos do disposto no art.º 7º do Código Registo Predial.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

AA, representada por BB, na qualidade de acompanhante,
veio propor a presente acção declarativa de condenação contra
CC, e mulher, DD,
peticionando a condenação dos réus:
(i) a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre a fracção autónoma, destinada a habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao rés-do-chão traseiras e primeiro andar traseiras, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no lugar ..., ..., ..., inscrita na matriz sob o artigo ...90º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...12, da freguesia ... e ..., concelho ...,
(ii) a verem declarada a escritura de compra e venda efectuada entre EE e o réu marido ineficaz quanto à autora,
(iii) no cancelamento de todos os registos de propriedade da fracção posteriores ao registo de aquisição da autora datado de 7.03.1988,
(iv) a restituírem à Autora a fracção autónoma que ocupam, no estado em que se encontra, livre de pessoas e bens.
Alegou, para o efeito e em síntese, que, em Outubro de 2012, sofreu um acidente vascular cerebral que lhe causou uma doença do foro neurológico com dificuldade de entendimento e facilidade de manipulação, sendo certo que em Novembro de 2015, possuía as suas capacidades cognitivas profundamente diminuídas; no ano de 2015, a sobrinha da autora, FF, convenceu-a a assinar uma procuração constituindo-a sua bastante procuradora e com essa procuração, a sobrinha FF outorgou, em representação da autora, escritura pública de compra e venda da referida fracção autónoma a EE; porém, nunca recebeu qualquer valor pela venda da fracção pela venda do imóvel, nem discutiu com ninguém os termos do referido negócio, não tendo, por isso, dado o seu acordo ao mesmo;  que o réu marido acabou por adquirir a fracção em causa, em ../../2017 e por escritura pública, ao referido EE e que tendo proposto contra a sobrinha e contra EE acção que correu termos no Tribunal Judicial de Braga sob o nº 5612/21...., foi proferida sentença na qual se declarou a nulidade, por indeterminabilidade do objecto, da procuração supra-referida e se declarou a ineficácia, em sentido estrito, em relação à autora, AA, do contrato de compra e venda celebrado entre os referidos FF e EE.
Regularmente citados, contestaram os réus, por excepção, dilatória (ilegitimidade passiva) e peremptória (caducidade) e por impugnação, tendo deduzido reconvenção, por via da qual peticionaram o reconhecimento dos réus como donos e senhores da fracção supra referida, tendo alegado, para o efeito e em síntese, a posse da autora sobre a referida fracção, a posse de EE e a posse dos próprios Réus, de boa fé, por mais de 20 anos.
A autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções e da reconvenção deduzida pelos réus.
Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho a admitir a reconvenção, tendo ainda sido saneado o processo, julgando-se improcedente, por não verificada, a excepção de ilegitimidade passiva invocada pelos réus e relegado para a decisão final o conhecimento da excepção da caducidade. Mas foi delimitado o objecto do processo e enunciados os temas de prova.
Realizada a audiência final foi proferida sentença, decidindo-se:
“Em face do exposto, julgo a acção proposta por AA, representada por BB (acompanhante), contra CC, e mulher, DD, improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvo os Réus dos pedidos contra si deduzidos.
Mais julgo a reconvenção deduzida pelos Réus contra a Autora, improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvo esta dos pedidos contra si deduzidos.
Custas da acção pela Autora e da reconvenção pelos Réus.
Registe e notifique.”.
Inconformada com tal sentença, dela apelou a autora, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«I. A ora Recorrente propôs contra a sobrinha e contra EE, ação que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz ..., sob o número 5612/21...., na qual foi proferida sentença que declarou a nulidade, por indeterminabilidade do objeto, da procuração suprarreferida e se declarou a ineficácia, em sentido estrito, em relação à Autora, AA, do contrato de compra e venda celebrado entre os referidos FF e EE.
II. A pretensão da Recorrente assenta na supramencionada decisão judicial que declarou ineficaz em sentido estrito, em relação à Autora, do contrato de compra e venda celebrado entre a Ré FF e o Réu EE, através de escritura pública, decisão essa que determinou, que em relação a terceiros, o negócio não produz quaisquer efeitos, sejam eles reais ou pessoais, dado que eles não se deram também entre as partes.
III. A sentença de que se recorre na sua decisão teve um entendimento diametralmente oposto ao do Juízo Central Cível de Guimarães, que considerou que “Em relação a terceiros, o negócio não produz quaisquer efeitos, sejam eles reais ou pessoais, dado que eles não se deram também entre as partes. (…) sendo a venda feita ao 2.º réu ineficaz em relação à Autora, o mesmo sucedendo com a subsequente revenda feita por aquele a terceiro, o interesse da Autora satisfaz-se com a reivindicação da coisa ao seu atual possuidor.”
IV. Com efeito, a Recorrente não se conforma com tal entendimento, porquanto existe jurisprudência relevante em sentido oposto.
V. Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. datado de 19/04/2016, Relatora Maria Clara Sottomayor, in www.dgsi.pt), que “O facto de a autora ter intentado a ação de reivindicação contra o terceiro decorridos mais de três anos após a conclusão do primeiro negócio inválido (prazo de caducidade previsto no art. 291.º, n.º 2), e de esta ação não ter sido registada antes do registo do terceiro, como exige o art. 291.º, n.º 1, não tem relevância se vier a provar-se que a autora não teve intervenção no primeiro negócio da cadeia de negócios inválidos (…)”.
VI. Ora, inserto num sistema de registo meramente declarativo, o art. 291.º do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.
VII. De facto, o art. 291.º do C.C. opera somente quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé, o que não ocorre no caso dos autos.
VIII. Ou seja, a invalidade do negócio inicial declarada pelo Juízo Central Cível de Guimarães, invalida toda a cadeia transmissiva subsequente, afetando, outrossim, o negócio celebrado entre o adquirente EE e os Recorridos, ou seja, o caso julgado tem eficácia na propriedade e posse dos imoveis pelos terceiros recorridos.
IX. Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, o que não aconteceu nos presentes autos, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.
X. Acresce ainda que, conforme decidido pelo Juízo Central Cível de Guimarães no âmbito do Processo n.º 5612/21...., em relação a terceiros, aquele negócio primitivo não produz quaisquer efeitos, sejam eles reais ou pessoais, dado que eles não se deram também entre as partes.
XI. Motivo pelo qual, sendo a venda feita ao 2.º Réu ineficaz em relação à Autora, o mesmo sucedendo com a subsequente revenda feita por aquele a terceiro, o interesse desta satisfaz-se com a reinvindicação da coisa ao seu atual possuidor, conforme sentença do Juízo Central Cível de Guimarães.
XII. Destarte, decidindo o tribunal a quo como decidiu, incorreu em violação do artigo 268.º, n.º 1 do Código Civil, devendo a sentença de que se recorre ser considerada nula, ex vi art. 294.º daquele diploma legal.
XIII. Neste conspecto, a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Guimarães, no âmbito do Processo n.º 5612/21...., é oponível aos Réus, aqui Recorridos, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo.».
Terminou pedindo que o presente recurso seja considerado procedente por provado, devendo o Tribunal ad quem reconhecer o direito de propriedade da Recorrente sobre a fracção autónoma, destinada a habitação, melhor descrita nos autos; ordenar o cancelamento de todos os registos de propriedade da fracção posteriores ao registo de aquisição da decorrente datado de 7.03.1988 e condenar os recorridos a restituir à recorrente a fracção autónoma que ocupam, livre de pessoas e bens. Mais pede que a sentença recorrida seja considerada nula por violação do art.º 268º, nº 1 do CC, ex vi art.º 294º do mesmo diploma legal.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.

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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente e a sua precedência lógica, são:
a) a de saber se a sentença é nula por violação do art.º 268º, nº 1 do CC, ex vi art.º 294º do mesmo diploma legal;
b) a de saber se a decisão proferida no processo nº 5612/21.... do Juízo Central Cível de Guimarães é oponível aos réus/recorridos, devendo ser declarado o negócio de compra e venda, celebrado por estes em 2.10.2017, ineficaz relativamente à autora/recorrente e consequentemente inaplicável o regime previsto no art.º 291º, do CC;
e caso assim se entenda
c) a de saber se deve ser reconhecido o direito de propriedade da autora/recorrente sobre a fracção autónoma melhor descrita nos autos e, em consequência, serem os réus/recorridos condenados a restituir à autora/recorrente o aludido imóvel; bem como, se deve ser ordenado o cancelamento de todos os registos de propriedade posteriores ao registo de aquisição do mesmo imóvel a favor da autora/recorrente.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:
«1 – Factos provados
a) Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...08..., uma fracção autónoma, composta de rés-do-chão traseiras e primeiro andar, destinada a habitação, com 3 varandas, cave direita, sótão traseiras e 2 logradouros, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) A Autora fez registar a titularidade dominial da referida fracção mediante a Ap. ...5 de 1988/03/07, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) A aquisição da titularidade dominial da descrita fracção autónoma encontra-se inscrita na referida Conservatória a favor de CC, casado com DD, no regime da comunhão geral de bens, mediante a Ap. ...22 de 2017/10/03, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) Em 09.11.2015, a Autora outorgou uma procuração a favor de FF, com assinatura reconhecida por termo de autenticação, com os poderes que melhor surgem descritos na cópia junta aos autos de fls. 16v a 18v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) Em ../../2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial, e Automóveis de ..., em título de compra e venda, FF, na qualidade procuradora de AA, declarou vender e EE declarou comprar a fracção descrita em a), conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 19 a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
f) Em ../../2017, no Cartório Notarial de GG, em ..., em escritura pública, EE declarou vender e CC, casado sob o regime da comunhão geral de bens com DD, declarou comprar, pelo preço de € 100.000,00, a fracção descrita em a), conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 21v a 23v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
g) Por sentença proferida em 22.02.2022, no âmbito do processo de maior acompanhado que correu termos sob o nº 1151/21...., do Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram definidas as seguintes medidas de acompanhamento, em benefício da requerida AA: (i) representação geral para todos os actos da vida corrente, sem prejuízo dos actos que careçam de autorização judicial; (ii) administração total de bens; (iii) limitação do exercício de direitos pessoais, os quais compreendem, entre outros, o direito de ser tutor, vogal do conselho de família ou administrador de bens de incapazes, de desempenhar as funções de cabeça-de-casal, de se deslocar sozinha no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar e de aceitar ou rejeitar liberalidades; conforme se retira da cópia da sentença junta aos autos de fls. 10v a 13v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
h) De acordo com a mesma decisão decidiu-se “fixar o dia 01.11.2015 como a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes”;
i) Por sentença proferida em 23.01.2023, pelo Juízo Central Cível, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, já transitada em julgado, em processo que correu termos sob o nº 5612/21.... (acção proposta por AA contra FF e EE), decidiu-se: “declarar a nulidade, por indeterminabilidade do objecto, da procuração outorgada pela Autora, AA, no dia 9 de Novembro de 2015, autenticada, na mesma data, no Cartório da Notária HH (…). (…) Declarar a ineficácia em sentido estrito, em relação à Autora, AA, do contrato de compra e venda celebrado entre a Ré FF e o Réu EE, através de escritura pública lavrada no dia 2 de Dezembro de 2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ...”, conforme se retira do teor das decisões juntas aos autos de fls. 24 a 60 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
j) A Autora, desde ../../1988, usou e fruiu da fracção descrita em a) durante mais de 10 e 20 anos, por si e antecessores, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com a convicção de ser proprietária da mesma;
k) EE usou e fruiu a fracção descrita em a) entre ../../2015 e ../../2017, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com a convicção de ser proprietário da mesma;
l) Os Réus, desde ../../2017, vêm usando e habitando a fracção descrita em a) retirando dela os benefícios e as utilidades que é susceptível de proporcionar, nomeadamente nele habitando-a, nela dormindo, recebendo amigos e familiares, nela introduzindo benfeitorias e nela fazendo obras de conservação e melhoramentos, colocando louças novas (sanitas, lavatórios e torneiras) na casa de banho, na cozinha, na sala, instalação eléctrica nova, persianas e caixilharias em substituição das antigas, armários;
m) As referidas obras foram realizadas desde 2017 com a colocação de andaimes e materiais no exterior, virados para a rua;
n) Os Réus praticaram os actos referidos em l) e m), desde 2017, continuamente, de forma exclusiva, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, e com a convicção de serem os proprietários da referida fracção;
o) Para financiarem as obras que realizaram na fracção descrita na alínea a), os Réus venderam a II, por escritura pública de 14.01.2017, a fracção ..., ... andar, sito na ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o número ...22/..., pelo preço de € 81.000,00, conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 107v a 110 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
p) Os Réus tomaram conhecimento dos factos descritos nas alíneas d) a i) com a citação para a presente acção;
q) Os Réus, em 2017, souberam que a fracção descrita em a) se encontrava à venda através de um anúncio da sociedade “EMP01...”, sendo que as negociações que antecederam a celebração da escritura pública decorreram com a mediação de sociedade de mediação imobiliária;
r) Os Réus conheceram o vendedor, EE, no dia da celebração da escritura pública.
2 – Factos não provados (com exclusão dos enunciados fácticos já provados por acordo, dos enunciados fácticos que apenas podem ser provados por documentos, dos enunciados de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito)
Da petição inicial: artigos 8º a 13º, 17º a 20º, 23º e 24º.
Da contestação: artigos 14º, 43º, 49º a 53º, sem prejuízo do valor do preço declarado na escritura pública (alínea f)), 73º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas j) a n), e 77º.».
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3.2. Fundamentação de Direito

3.2.1. Da nulidade da sentença
A recorrente concluiu as suas alegações de recurso, afirmando que a sentença recorrida é nula porquanto viola o disposto no art.º 268º, nº 1 do CC, ex vi art.º 294º do mesmo diploma legal.
O tribunal a quo não proferiu despacho a pronunciar-se sobre a invocada nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, nº 1 e 617º, nº 1 do NCPC. Todavia, tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade (cfr. nº 5, do referido art.º 617º, do NCPC e Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo Civil, 6ª edição, p. 214).
Vejamos, então, se assiste razão à recorrente.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no art.º 615º, do NCPC e não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação em desconformidade com a lei.
Não deve, por isso, confundir-se o erro de julgamento com os vícios que determinam as nulidades em causa.
De facto, as decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido art.º 615º. Vide, entre muitos outros o ac. do STJ de 9.03.2022, relatado por Isaías Pádua, acessível in www.dgsi.pt.
Tendo isto presente, importa desde já referir que, quanto ao vício invocado pela recorrente – erro na aplicação de determinadas normas legais -, facilmente se conclui que o mesmo não consubstancia a invocação da violação de qualquer regra própria da elaboração ou estruturação da sentença, mas tão só eventual erro de julgamento ou errónea subsunção dos factos ao direito, que apreciaremos de seguida.
Improcede, pois, a nulidade invocada.

3.2.1. Da errónea subsunção dos factos ao direito
Na presente acção, tal como resulta do supra descrito, a autora, ora recorrente, veio peticionar não só que se declare que a mesma é proprietária de uma fracção autónoma que descreve e que se condene os réus a restituir tal imóvel à autora, mas ainda que se declare que o contrato de compra e venda através do qual os réus/recorridos adquiriram o referido bem a EE seja declarado ineficaz relativamente àquela e se ordene o cancelamento do respectivo registo.
A demandante assentou, desde logo, a sua pretensão na decisão judicial, já transitada em julgado, proferida no processo nº 5612/21.... que declarou nula a procuração outorgada pela mesma a favor de FF, por indeterminabilidade do objecto, e, em consequência, declarou ineficaz em relação à autora o contrato de compra e venda celebrado entre o referido EE e a dita FF, na qualidade de procuradora da ora apelante.
Entendeu, porém, o tribunal a quo que a decisão final proferida no processo nº 5612/21.... não é oponível aos aqui réus, porquanto os mesmos não tiveram qualquer intervenção na aludida acção, entendimento este que a recorrente questiona no recurso em apreço, pugnando pela oponibilidade de tal decisão a terceiros e, nomeadamente, aos aqui réus.
A questão assim enunciada convoca, assim e primordialmente, a problemática da eficácia do caso julgado material formado com o trânsito em julgado da decisão anteriormente proferida numa acção em que não tiveram intervenção os ora recorridos.
Como é sabido, segundo a actual lei adjectiva o caso julgado constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e cuja ocorrência impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. art.ºs 494º, nº 1, al. i), 495º e 493º, nº 2, do NCPC), e não do pedido como sucedia anteriormente quando constituía excepção peremptória.
Esta excepção pressupõe, nos termos do art.º 497º, nºs 1 e 2 do NCPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Decidida determinada questão e transitada em julgado, isto é, não admitindo a decisão proferida recurso ordinário ou reclamação (art.º 628º, do NCPC), a mesma torna-se inatacável e inalterável, promovendo-se, assim, a justiça, a segurança jurídica, a paz social e o prestígio dos tribunais.
Com efeito, o caso julgado visa garantir, fundamentalmente, o valor da segurança jurí­dica, fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, num princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido – cfr. art.º 2º da Constituição da República Portuguesa –, destinando-se a evitar que no exercício da função jurisdicional, duplicando-se as decisões sobre idêntico objecto processual, se contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior.
Essa inatacabilidade ou incontestabilidade das decisões judiciais pode, no entanto, projetar-se apenas intra processualmente ou, ainda, extra processualmente e daí que se imponha distinguir entre caso julgado formal e caso julgado material.
Haverá caso julgado formal se a sentença ou o despacho incidirem, apenas, sobre a relação processual, circunscrevendo-se a sua força obrigatória à questão processual concreta julgada no processo (art.º 620º do NCPC).
Já o caso julgado material respeita ao mérito da causa subjacente à relação material controvertida, passando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, de acordo com o nº 1 do art.º 619º do NCPC.
Com efeito, dispõe este normativo que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.
Manuel de Andrade fornece-nos a seguinte noção de caso julgado material (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 305): “Consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão.”.
Assim, e no que respeita à eficácia do caso julgado material, desde há muito, quer a doutrina, quer a jurisprudência têm distinguido duas vertentes:
a) – uma função negativa, reconduzida a excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura;
b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.
Na sua dimensão de “efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção (proibição de repetição)”, isto é, de excepção dilatória, o caso julgado material funciona como bloqueio ao direito de acesso aos tribunais, e na sua “dimensão de efeito positivo da constituição da decisão proferida constitui pressuposto indiscutível para outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)”, impedindo a suscitação de solução para uma controvérsia jurídica já decidida. Cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 2ª ed., p. 354.
Dados os efeitos severos do caso julgado material, o mesmo enquanto excepção dilatória, isto é, na sua dimensão negativa, encontra-se sujeito a contornos rígidos e rigorosos que se reconduzem ao requisito da denominada “tripla identidade”, segundo a qual, para que estejamos perante a mesma relação jurídica, é necessário que ocorra identidades de partes, causas de pedir e de pedidos (art.º 581º, nº 1 do NCPC).
Já a autoridade do caso julgado relaciona-se com a existência de relações – já não de identidade jurídica – mas de prejudicialidade entre os objectos processuais, de modo que julgada, em termos definitivos, certa relação jurídica numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira acção impõe-se necessariamente em todas as posteriores acções que venham a correr entre as mesmas partes, incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção.
Ou seja, a excepção dilatória de caso julgado pressupõe o confronto de duas acções (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas de sujeitos, de causa de pedir e de pedido (cfr. art.ºs 580º e 581º, do NCPC). Visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, por forma a evitar a repetição de causas.
Por sua vez, a força e autoridade de caso julgado decorre de uma anterior decisão que tenha sido proferida e em que ficara decidido, com força de caso julgado, uma determinada questão de mérito, impondo que essa questão não mais possa ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.
Prende-se com a força vinculativa da primeira decisão e do inerente caso julgado e visa o efeito positivo de impor essa primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, e pode funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela excepção, pressupondo apenas a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida – cfr., neste sentido e entre muitos outros, os acs. do STJ, de 12.10.2022, processo nº 2337/19.6T8VRL.G1.S1 e de 15.12.2022, processo nº 2222/20.9T8FNC.L1.S1, in base de dados da DGSI.
Porém, em princípio, a regra é que a eficácia do caso julgado se limita às partes.
Como resulta da conjugação do disposto no nº 2 do art.º 581º, com a previsão do art.º 619º, ambos do NCPC, o caso julgado material apenas vincula quem foi parte na causa em que aquele se formou, ou quem veio a assumir a posição jurídica no decurso da lide.
Trata-se de regra geral que remonta ao direito romano [nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere solet] e justifica-se pela circunstância de só as partes ou os respectivos sucessores mortis causa ou por acto inter vivos, na relação controvertida, que intervieram ou tiveram possibilidades de intervir, no processo em que foi proferida a decisão de mérito, transitada em julgado, para nele defender os seus interesses e para alegarem e provarem os factos informativos do seu direito, podem ser abrangidas pelo caso julgado da decisão nele proferida, sob pena de violação do princípio do contraditório (vide, ac. do STJ de 24.10.2019, processo nº 6906/11.4YYLSB-A.L1.S2, acessível in www.dgsi.pt).
Quanto aos terceiros, na medida em que não participaram no processo em que foi proferida a decisão de mérito transitada em julgado sobre a relação jurídica material aí discutida e dirimida, aqueles não participaram nessa anterior acção, sequer tiveram oportunidade de nela participar e de defenderem os seus interesses, os quais podem naturalmente colidir, no todo ou em parte, com os da parte vencedora, a decisão de mérito proferida nessa anterior acção, salvo casos excepcionais, não lhes pode ser oponível, sob pena de lhes ser coarctado o seu direito fundamental de defesa.
Porque assim é, em duas acções distintas, em que ocorra identidade de causas de pedir e de pedidos, mas em que ocorra diversidade de partes, nada obsta que sejam proferidas decisões de mérito distintas, sequer o trânsito em julgado da sentença de mérito proferida numa dessas ações impede que seja posteriormente proferida na outra acção decisão de mérito distinta (cfr. Manuel Andrade, ob. cit., p. 309 e 310 e Castro Mendes, in Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, p. 51).
É, todavia, comum reconhecer-se a força reflexa ou expansiva do caso julgado, de modo a assegurar a coerência do sistema perante a existência de relações jurídicas interdependentes, conexas, subordinadas e prejudiciais, podendo afectar também terceiros (vide, ac. do STJ de 12.02.2018, processo nº 622/18.1TBPFR-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt).
Com efeito, os terceiros não podem ignorar as sentenças proferidas e transitadas nas diferentes acções (em que não intervieram como partes e daí que são terceiros em relação às mesmas), agindo como se elas não existissem na esfera das realidades jurídicas, sabendo-se que numa vida de relação, com interações sociais cada vez mais intensas, as sentenças judiciais ao definirem determinada relação jurídica entre os pleiteantes, são susceptíveis de afectarem os direitos de terceiros, designadamente, por terem relações conexas com aqueles.
Note-se, no entanto, que tratando-se aqui de afastar o principio regra da eficácia relativa do caso julgado às partes, impondo a eficácia subjectiva extra processual da autoridade do caso julgado da decisão de mérito proferida em processo a terceiros que não foram partes nessas acções em que essas decisões de mérito, transitadas em julgado, foram proferidas e que, consequentemente, nelas não tiveram oportunidade de se defender, sequer de controlar a prova nelas produzida e de contribuir activamente para a decisão de mérito que acabou aí por ser proferida e por transitar, naturalmente que essa extensão extra processual da autoridade e eficácia extra processual do caso julgado não se pode abstrair da concreta relação que esses terceiros tenham com a relação jurídica controvertida discutida e decididas nessas outras acções, em que não foram partes.
Neste domínio, e no seguimento dos ensinamentos vertidos pela doutrina citada no já referido ac. do STJ de 12.04.2018 (vide, designadamente, Alberto dos Reis, in Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, BFD, XVII, p. 208 a 216 e 245 a 261 e Manuel Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 309 a 316), a propósito da eficácia reflexa do caso julgado em relação aos terceiros, impõe-se distinguir “os terceiros juridicamente indiferentes”, dos “terceiros juridicamente interessados”.
Dir-se-á que são “terceiros juridicamente indiferentes” aqueles em relação aos quais a sentença transitada em julgado não lhes causa prejuízo jurídico, deixando íntegra a consistência do seu direito, embora lhes possa causar um prejuízo de facto ou económico. É o caso dos credores de determinado devedor, demandado em determinada acção por um outro credor, que nela obtém vencimento.
Esses “terceiros juridicamente indiferentes” têm de acatar a sentença proferida nessa primeira acção em que aqueles não foram parte, sendo-lhes plenamente oponível a eficácia do caso julgado da decisão de mérito nela proferida.
Por sua vez são “terceiros juridicamente interessados” todos aqueles em relação aos quais a sentença transitada em julgado causa prejuízo jurídico, inviabilizando a existência ou reduzido o conteúdo do seu direito, e não apenas destruindo ou abalando a sua consistência prática.
De entre os identificados “terceiros juridicamente interessados”, distinguem-se os terceiros titulares de relações jurídicas: a) independentes e incompatíveis; b) paralelas; c) concorrentes; ou d) subordinadas e dependentes com a julgada, por decisão de mérito, transitada em julgada numa anterior ação em que não foram partes.
São terceiros juridicamente interessados titulares de uma “relação jurídica independente e incompatível com a das partes”, as pessoas que se arrogam a titularidade de uma relação ou posição incompatível com a reconhecida na sentença anteriormente proferida e transitada em julgado. Em relação a esses terceiros, a sentença proferida e transitada em julgado em processo em que esses terceiros não foram partes, nunca os pode atingir e, consequentemente, não lhes é oponível o respectivo caso julgado.
Já são terceiros juridicamente interessados titulares de “relações paralelas”, as pessoas que se arrogam titulares de uma relação de conteúdo semelhante à sobre que se debruçou a sentença antes proferida e transitada em julgado. A sentença transitada em julgado não estende a sua eficácia a esses terceiros que não foram parte nessa acção, embora fossem titulares de relações paralelas com o demandante ou o demandado.
São terceiros juridicamente interessados, titulares de “relações concorrentes”, os terceiros que se arrogam titulares de relações de conteúdo único com o demandado na acção onde foi proferida a decisão de mérito transitada em julgado. A acção intentada contra um dos co-titulares do direito, não é oponível a esses terceiros co-titulares do direito em causa, dado que não tendo sido os mesmas partes no processo onde essa decisão de mérito, transitada, foi proferida, e não sendo possível cindir-se a relação nele julgada, o caso julgado operado nunca lhes poderá ser oposto.
Finalmente, são terceiros juridicamente interessados titulares de “relações subordinadas ou dependentes de outra”, aqueles que se arrogam titulares de relações jurídicas que não podem existir, sequer subsistir sem aquela que foi objecto da acção em que foi proferida a decisão de mérito, transitada em julgado, pelo que esta poderá estender a sua eficácia a esses terceiros, nomeadamente, tendo em consideração o regime jurídico que as enformam.
Feitas essas considerações, e voltando ao caso em apreciação, dir-se-á que entre a relação jurídica material controvertida, discutida e dirimida no processo nº 5612/21...., por sentença transitada em julgado, e aquela que se encontra em discussão nos presentes autos, existe claramente uma relação de dependência ou de subordinação.
E, desde já se adianta que - ao contrário do decidido pelo tribunal recorrido –, se nos afigura que se impõe admitir na presente acção a projecção reflexa do caso julgado material formado naqueloutra acção.
Com efeito, a oponibilidade do caso julgado operado pela decisão de mérito proferida na primeira acção intentada pela autora aos aqui réus encontra justificação, desde logo, no regime jurídico da ineficácia dos negócios jurídicos.
Senão, vejamos.
Ressuma da factualidade dada como provada que na referida acção - proposta pela também aqui autora AA contra FF e EE -  foi proferida sentença, já transitada em julgado, na qual se declarou a nulidade, por indeterminabilidade do objecto, da procuração outorgada pela autora a favor da aludida FF e se declarou a ineficácia em sentido estrito, em relação à autora do contrato de compra e venda celebrado entre os réus FF e EE, com fundamento no disposto no art.º 268º, do CC.
Dispõe este normativo legal, com a epigrafe “Representação sem poderes” que:
“1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retrocativa, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se esta não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes de representação”.
De acordo com este normativo, se o negócio for celebrado em nome e por conta de outra pessoa sem que, para tanto, existam os necessários poderes de representação, o negócio é ineficaz relativamente ao dominus, se este o não ratificar.
Ou seja, o negócio celebrado, sem que o representante esteja dotado dos devidos poderes será ineficaz, mas susceptível de ratificação (v.g., o negócio pode ser favorável ao dominus e, se o for, este pode ratificá-lo e o negócio segue válido e eficaz).
Por conseguinte, no caso da representação sem poderes, celebrado o negócio, a ineficácia não é de imediato absoluta, mas relativa, verificando-se apenas em relação ao representado. Como muito bem chama a atenção Oliveira Ascensão “celebrado o acto, abre-se uma situação de pendência, durante a qual não se sabe se o acto produzirá ou não efeitos.” (cfr. Direito Civil, Teoria Geral, Vol. II, 1999, p. 257).
Todavia, uma vez “[n]egada a ratificação (expressa, tacitamente ou nos termos do nº 3) ou revelando-se esta inviável, o negócio torna-se definitivamente ineficaz, sendo doravante em absoluto incapaz de produzir os seus efeitos.” (cfr. Raúl Guichad, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2ª ed., p. 799).
Ora, no caso em apreciação, resulta expresso na sentença proferida no âmbito do processo nº 5612/21.... “que o negócio celebrado entre a 1.ª Ré, extrapolando os poderes de representação que lhe foram conferidos pela Autora, e o 2.º Réu nunca foi ratificado pela primeira. A propositura da presente ação, em que a Autora refuta os efeitos do negócio, equivale mesmo a uma renúncia à faculdade de ratificar o negócio que, assim, tem de ser considerado ineficaz em sentido estrito.”.
Ou seja, foi aí considerado e declarado que o negócio celebrado entre a putativa procuradora da autora e o referido EE se tornou definitivamente ineficaz, incapaz de produzir quaisquer efeitos.
Por outro lado, resulta da factualidade apurada nestes autos que a autora também não teve qualquer intervenção no negócio celebrado entre EE e os aqui réus. 
Concomitantemente, não existem dúvidas que estamos perante um caso de ineficácia quanto à autora/recorrente, alheia a toda a cadeia de transmissões da fracção autónoma ora reivindicada, pelo que o último negócio dessa cadeia deve ser declarado igualmente ineficaz relativamente àquela.
Com efeito, sendo tal negócio ineficaz, não são oponíveis à autora os direitos de terceiros, nomeadamente nos termos do art.º 291º, nº 1, do CC [normativo legal este que se encontra inserido no regime aplicável aos negócios feridos de nulidade ou anuláveis], dado tais direitos serem insusceptíveis de produzir efeitos na esfera jurídica da referida autora, ainda que os terceiros tenham agido de boa fé.
As sucessivas disposições que foram feitas sobre a fracção autónoma descrita nos autos são ineficazes em relação à autora/recorrente, podendo ela opor o seu direito a quem quer que seja, nomeadamente, aos terceiros de boa-fé.
Neste sentido, desde há muito se vem pronunciado a jurisprudência de forma reiterada e unânime. Veja-se, a título de exemplo, os acs. do STJ de 25.03.2004 (processo nº 04B3891), de 16.11.2010 (processo nº 42/2001.C1.S1), de 15.03.2012 (processo nº 662/05.3TCSNT-A.L1.S1), de 19.04.2016 (processo nº 5800/12.6TBOER-L1-A.S1) e de 16.01.2024 (processo nº 42/21.2T8STR.E1.S1); os acs. da RL de 21.06.2008 (processo nº 15398/16.0T8LSB.L1-6) e de 26.02.2015 (processo nº 1257/09.7TBSCR.L1), de 18.05.2017 (processo nº 1374/9TVLSB.L1); o ac. da RP de 18.11.2021 (processo nº 2989/14.3TBVFR); e o ac. desta Relação de Guimarães de 27.10.2016 (processo nº 1122/11.8TBBCl.G1), todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Sobre o mesmo tema e na distinção entre “nulidade” e “ineficácia” transcreve-se, por elucidativo, um excerto do ac. do STJ de 29.03.2012, (processo nº 2441/05.8TBVIS.C1.S1, acessível in www.dgsi.pt):
É que, enquanto a nulidade é uma forma de ineficácia, em sentido amplo, pressupondo uma falta ou irregularidade, quanto aos elementos internos ou essenciais do negócio [falta de capacidade, falta ou defeito da declaração de vontade, impossibilidade física ou legal do objecto, ilicitude], a ineficácia, em sentido estrito, baseia-se na falta ou irregularidade de outra natureza, não já de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas antes de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação de facto produtiva de efeitos jurídicos [falta de titularidade do direito de que se dispôs ou onerou, falta de registo relativamente terceiros, etc.].
Ora, o disposto no artigo 291º, do CC, aplica-se, expressamente, aos casos de declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico, nas relações, tão-só, entre o alienante e o adquirente, institutos esses distintos da ineficácia que, portanto, se encontra fora do seu âmbito de incidência”.
Como sublinha Maria Clara Sottomayor, (in Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, p. 338), “(…) o fundamento do art. 291.º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter actuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a acção de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídico-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os do terceiro sub-adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroactivos da invalidade.”.
Esclarecendo mais à frente que, “(…) Para funcionar a protecção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário. Se um sujeito obtém um registo falso e aliena a terceiro, este não está protegido pelo art. 291.º (…)” – cfr. ob. cit., 481.
Mais refere a mesma autora, em confronto com o registo constitutivo alemão, que: “No direito português, não é terceiro, para efeitos de registo, na situação triangular, quem adquire um direito de quem nunca foi titular, e não é terceiro para efeitos do art. 291.º, quem adquire a partir de uma cadeia de negócios inválidos que não foi originada pelo verdadeiro titular. O registo apenas dá publicidade a direitos existentes, não estabelecendo presunções a favor de direitos que nunca existiram. A ser assim, tratar-se-ia de uma ficção e não de presunções, e o registo teria efeitos constitutivos – cfr. Hörster, «Efeitos do registo – terceiros – aquisição a non domino, 1982, p. 131.” – ver ob. cit, p. 720.
Razão assiste, por conseguinte, à autora/recorrente, ao invocar a irrelevância do disposto no art.º 291º do CC, precisamente na circunstância de o negócio aqui em causa – contrato celebrado entre os aqui réus e o referido EE - ser ineficaz em relação à autora/recorrente, operando a ineficácia ipso iure.
Assim, como não se verificou entre a autora e os réus a celebração de qualquer negócio jurídico e não sendo possível aplicar o art.º 291º do CC, pode a autora reivindicar o seu direito de propriedade perante os réus e/ou invocar a ineficácia, apesar destes terem adquirido a fracção autónoma com base num registo desconforme e estejam de boa fé.
Ver, neste sentido, Maria Clara Sottomayor, ob. cit., 718 e ainda Vaz Serra, RLJ, Ano 100º, 26 e 59; Antunes Varela, RLJ, Ano 116º, 16; Baptista Lopes, Do Contrato de Compra e Venda, 1971, p. 141 e 142, bem como os acs. do STJ de 30.06.2009, processo nº 268/04.3TBTBV.C1.S1 e de 16.11.2010, processo nº 42/2001.C1.S1, o ac. RC de 12.12.2006, processo nº 195/04.4TBSBG.C1 e o ac. da RP de 18.11.2021, processo nº 2989/14.3TBVFR.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Nesta conformidade, e por maioria de razão, não podemos deixar de afirmar que carece de fundamento a invocada caducidade do direito de acção da autora, ao abrigo do disposto no art.º 287º, do CC (excepção peremptória igualmente alegada na contestação), pois, como vimos relativamente à ora apelante não estamos – insiste-se - perante qualquer negócio nulo ou anulável, mas perante um negócio absolutamente ineficaz [a ineficácia em sentido estrito, ao contrário do que parecem entender os réus no seu articulado, não abrange apenas a ineficácia relativa, mas também a absoluta – vide, Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 606].
Atento tudo quanto deixamos exposto, e conforme já se adiantou, temos necessariamente de concluir pela extensão reflexa da eficácia do caso julgado material operado no processo nº 5612/21.... aos aqui réus e, consequentemente, pela declaração de ineficácia do negócio celebrado entre os réus e EE, relativamente à autora/recorrente.
E, assim se concluindo, impõe-se, decidir agora se a sentença recorrida deve ser igualmente revogada quanto ao decidido sobre os restantes pedidos formulados pela autora/recorrente na petição inicial [a decisão proferida relativamente ao pedido reconvencional não foi objecto de qualquer impugnação pelos réus, pelo que já transitou em julgado].
Com efeito, a ora apelante veio pedir, como vimos, a condenação dos apelados a reconhecerem o direito de propriedade daquela sobre a fracção autónoma objecto dos negócios acima referidos, bem como a restituição de tal imóvel e o cancelamento dos registos incompatíveis com tal direito.
A presente acção é, pois, neste conspecto, inequivocamente, uma acção de reivindicação.

A este respeito rege o art.º 1311º do CC que dispõe o seguinte:

“1 - O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2 – Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei.”.

A acção de reivindicação, revela-se, assim, como um corolário da faculdade ou direito de sequela que acompanha os direitos reais.
Tendo por escopo afirmar o direito de propriedade e fazer cessar as situações ou actos que o violem, a acção de reivindicação apresenta, como objectivo inicial, a declaração da existência do direito (pronuntiatio), e, como objectivo subsequente, a sua realização (condemnatio), ou seja, a condenação do terceiro na restituição da coisa.
Este tipo de acções compreende, por isso, dois pedidos: a) o reconhecimento do direito de propriedade; b) e a restituição da coisa.
A acção de reivindicação tem como causa de pedir o acto ou facto jurídico concreto que gerou o direito de propriedade (ou outro direito real – cfr. art.º 1315º, do CC) na esfera jurídica do peticionante e, ainda, os factos demonstrativos da violação desse direito.
O reivindicante tem de alegar e provar que é proprietário da coisa, e que esta se encontra em poder do réu, a si cabendo, pois, o ónus de alegação e o da prova.
Ou seja, neste expediente processual, a alegação e prova do direito de propriedade do demandante e da detenção/posse por parte dos demandados, ou seja, da causa de pedir, cabem àquele, por via do disposto no art.º 342º, nº 1, CC.
Quer isto dizer que à luz das regras do direito probatório material, o ónus da prova do reivindicante limita-se à demonstração de que é proprietário de uma coisa que se encontra sob o uso material do réu.
Uma vez provada a propriedade e a detenção/posse pelo réu, caberá ao demandado provar que detém/possui a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação; ou seja, tem o utente da coisa o ónus de alegação e prova de factos legitimadores do uso da coisa, portanto, dos factos impeditivos do efeito essencial reivindicante, tudo nos termos conjugados dos art.ºs 342º, nº 2 e 1311º, nº 2, do CC.
Aliás, podendo, nos termos do nº 1, do referido artigo, o proprietário exigir de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, “[s]ó tem legitimidade activa para recorrer à reivindicação quem seja titular de um direito real que atribua a posse da coisa, mas não tenha a posse. Por sua vez, tem legitimidade passiva para a acção de reivindicação quem seja possuidor ou detentor da coisa, mas não seja titular do correspondente direito real.” (cfr. Meneses de Leitão, Direitos Reais, 6º ed., p. 105 e 106).
O artigo 1316º, do CC consagra os modos de aquisição do direito de propriedade, contando-se entre eles a invocada, usucapião, fixando o art.º 1317º, do mesmo diploma o momento da aquisição (que no caso de usucapião é o do início da posse - v. al. c), sendo que, nos termos do art.º 1288º, do CC, a aquisição do direito correspondente à posse que se exerceu e a correlativa extinção de qualquer direito real pré-existente é retroactiva ao início da posse prescricional, isto é posse boa para a aquisição por usucapião).
A noção de usucapião consta do art.º 1287º, do CC que estatui que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
Deste modo, a usucapião “é a aquisição do direito de propriedade ou de outro direito real de gozo por efeito da posse nos termos desse direito, mantida por certo lapso de tempo. O objecto da aquisição por via da usucapião é, pois, constituído pelos direitos reais de gozo.” [cfr. Ana Prata (Coord.) e outros, in Código Civil Anotado, vol. II, p. 68 e 69].
Ou seja, e como é sabido, a usucapião constitui uma forma voluntária de aquisição de certos direitos reais que necessita de uma posse com certas características e mantida pelos prazos legais.
São requisitos da aquisição do direito de propriedade por usucapião: a posse e que ela seja pública (por exercida à vista de toda a gente); contínua (por exercida de forma ininterrupta) e pacífica (por exercida sem oposição de ninguém).
Para além da materialidade da posse, tem de resultar também o animus e que a posse se tenha mantido durante um lapso de tempo suficiente para permitir a aquisição do direito de propriedade.
A usucapião tem, sempre, na sua génese uma situação possessória, que pode derivar de constituição ex novo ou de posse anterior.
Pese embora a probatio diabolica característica das acções de reivindicação (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 115), em que tem de se fazer a demonstração da aquisição originária do direito, onerando-se os peticionantes com uma prova extremamente difícil de realizar em concreto, a tarefa dos mesmos é facilitada, tornando-se menos exigente, pela existência de presunções, concretamente, no que ao caso interessa:
- a presunção de titularidade do direito de propriedade derivada da posse, prevista no nº1, do art.º 1268º, do CC; sendo a usucapião, forma de aquisição originária que se basta com a demonstração da cadeia de transmissões até perfazer o prazo de 20 anos (prazo máximo para usucapião) e, usando a possibilidade de acessão na posse prevista no art.º 1256º, do mesmo diploma legal;
- a presunção de titularidade derivada do registo predial (art.º 7º, do Código de Registo Predial) pois que, estando o direito do reivindicante inscrito no registo em seu nome, o mesmo goza da presunção de titularidade, ficando dispensado da prova do facto presumido.
Basta, assim, ao reivindicante provar os factos constitutivos de uma presunção superior à que, hipoteticamente, beneficie o réu, cabendo a este ilidir a dita presunção (cfr. art.º 350º, do CC).

Em suma, e como lapidarmente se pode ler no ac. desta Relação de Guimarães de 12.01.2023 (prolatado no processo nº 68/20.3T8VRL.G1 e consultável in www.dgsi.pt):
“I – A procedência da ação de reivindicação encontra-se sujeita à demonstração cumulativa de três condições de procedência:
- O autor seja titular do direito real de gozo invocado;
- O réu tenha a coisa em seu poder, como possuidor ou detentor;
- O réu não prove ser titular de um direito que lhe permita ter a coisa consigo.
II – No âmbito das ações de reivindicação tem-se entendido, de forma quase pacífica, que não basta ao autor invocar ser proprietário da coisa reivindicada, uma vez que também é indispensável que o autor alegue e prove uma das formas de aquisição originária; quando a aquisição for derivada, terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária.
III – Considerando, contudo, que tal prova será por vezes de difícil consecução, o nosso ordenamento jurídico consente o recurso a determinadas presunções legais da existência e titularidade do direito real, designadamente a presunção da titularidade desse direito no possuidor, ao abrigo do art. 1268º, n.º 1, do Cód. Civil, bem como a presunção da sua existência a favor do titular inscrito no registo predial, nos termos do disposto no art. 7º do Código Registo Predial.
IV – Nada impede que o direito assim presumido fundamente uma ação destinada especificamente ao reconhecimento do direito de propriedade e à consequente condenação da outra parte a respeitá-lo.”.
Tendo presente tais premissas, é altura de regressar ao caso dos autos.

Está provado, para o que ora interessa, que:
“a) Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...08..., uma fracção autónoma, composta de rés-do-chão traseiras e primeiro andar, destinada a habitação, com 3 varandas, cave direita, sótão traseiras e 2 logradouros, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) A Autora fez registar a titularidade dominial da referida fracção mediante a Ap. ...5 de 1988/03/07, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) A aquisição da titularidade dominial da descrita fracção autónoma encontra-se inscrita na referida Conservatória a favor de CC, casado com DD, no regime da comunhão geral de bens, mediante a Ap. ...22 de 2017/10/03, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 14v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
(…)
e) Em ../../2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial, e Automóveis de ..., em título de compra e venda, FF, na qualidade procuradora de AA, declarou vender e EE declarou comprar a fracção descrita em a), conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 19 a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
f) Em ../../2017, no Cartório Notarial de GG, em ..., em escritura pública, EE declarou vender e CC, casado sob o regime da comunhão geral de bens com DD, declarou comprar, pelo preço de € 100.000,00, a fracção descrita em a), conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 21v a 23v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
(…)
i) Por sentença proferida em 23.01.2023, pelo Juízo Central Cível, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, já transitada em julgado, em processo que correu termos sob o nº 5612/21.... (acção proposta por AA contra FF e EE), decidiu-se: “declarar a nulidade, por indeterminabilidade do objecto, da procuração outorgada pela Autora, AA, no dia 9 de Novembro de 2015, autenticada, na mesma data, no Cartório da Notária HH (…). (…) Declarar a ineficácia em sentido estrito, em relação à Autora, AA, do contrato de compra e venda celebrado entre a Ré FF e o Réu EE, através de escritura pública lavrada no dia 2 de Dezembro de 2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de ...”, conforme se retira do teor das decisões juntas aos autos de fls. 24 a 60 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
j) A Autora, desde ../../1988, usou e fruiu da fracção descrita em a) durante mais de 10 e 20 anos, por si e antecessores, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com a convicção de ser proprietária da mesma;
k) EE usou e fruiu a fracção descrita em a) entre ../../2015 e ../../2017, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, com a convicção de ser proprietário da mesma;
l) Os Réus, desde ../../2017, vêm usando e habitando a fracção descrita em a) retirando dela os benefícios e as utilidades que é susceptível de proporcionar, nomeadamente nele habitando-a, nela dormindo, recebendo amigos e familiares, nela introduzindo benfeitorias e nela fazendo obras de conservação e melhoramentos, colocando louças novas (sanitas, lavatórios e torneiras) na casa de banho, na cozinha, na sala, instalação eléctrica nova, persianas e caixilharias em substituição das antigas, armários;
m) As referidas obras foram realizadas desde 2017 com a colocação de andaimes e materiais no exterior, virados para a rua;
n) Os Réus praticaram os actos referidos em l) e m), desde 2017, continuamente, de forma exclusiva, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, e com a convicção de serem os proprietários da referida fracção;
(…).”.
A autora fez, assim, prova da factualidade constitutiva do direito que invoca, já que não restam dúvidas de que, desde a aquisição em 1988 e, pelo menos, até 2015, praticou actos de posse sobre o imóvel em causa.
A posse da autora é, por outro lado, pública, já que os actos sobre tal imóvel foram praticados à vista de toda a gente; pacífica, porque nunca houve oposição de ninguém, a não ser a partir de 2015; titulada, porque resultou de uma aquisição legal e formalmente válida; e de boa-fé, porque baseada numa forma legal de adquirir.
A posse da autora foi contínua e ininterrupta, desde a dita aquisição em 1988, até a fracção autónoma ter sido alienada pela procurada da autora sem poderes para o efeito, no ano de 2015.
Ora, resulta do citado nº 1 do art.º 1268º do CC que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
Deste preceito legal resulta que, para que não funcione a presunção derivada da posse, será necessário que exista a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse, isto é, havendo conflito de presunções, uma derivada do registo, isto é, do art.º 7º do Código do Registo Predial e a outra emergente da posse, ou seja, do art.º 1268º, nº 1, do CC, prevalece esta última, designada por presunção da propriedade, que só cede em confronto com a presunção derivada do registo anterior ao do início da posse.
E assim, no caso dos autos, conforme resulta da factualidade supra descrita, sendo a autora possuidora da fracção autónoma, em termos do direito de propriedade, goza da presunção de que dele é dona. Presunção esta que não se mostra ilidida pelos réus mediante a prova do contrário.
É certo que o possuidor perde a posse, além do mais que no caso em apreço não releva, pelo abandono ou pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado um ano e um dia (cfr. art.º 1267º nº 1, als. a) e d) do CC).
O referido abandono implica necessariamente a extinção do corpus e do animus da posse por virtude de acto material intencionalmente dirigido à rejeição da posse ou da coisa possuída, não se confundindo com a simples inacção do titular que não cuida da coisa.
Na situação dos autos, é patente não estar minimamente demonstrado ter a autora praticado qualquer acto material com a intenção de rejeitar o seu direito.
De todo o modo, os réus também não lograram provar que tenham a posse sobre a fracção autónoma pelo período de tempo necessário à sua aquisição por usucapião.
Como se diz na decisão recorrida - e nesta parte já transitou em julgado - embora os réus tenham adquirido a posse da fracção autónoma (cfr. art.º 1263º, do CC), a mesma não se prolongou pelo tempo necessário para que o possuidor tivesse adquirido o direito de propriedade (veja-se o disposto no art.ºs 1287º e 1294º do CC).
Por outro lado, mostra-se provado que o registo que os réus têm a seu favor não é anterior ao início da posse da autora, pelo que não gozam aqueles da presunção de propriedade [o registo a favor dos réus é de 2017, ao passo que o início da posse da autora é de 1988].
A primeira consequência a retirar de tudo o que vem de ser dito é a de que os pedidos formulados pela autora têm de ser julgados procedentes, pois que os réus devem ser condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre a referida fracção autónoma e logo o direito da autora a ocupar tal imóvel (o proprietário goza de modo pleno e exclusivo do direito de usar e fruir da coisa que lhe pertence e logo de ocupar os prédios que lhe pertencem – art.º 1305º do CC), devendo assim os réus serem condenados a restituir à autora a referida fracção autónoma, livre de pessoas e bens (art.º 1311º do CC).
Por fim, ante a afirmação precedente de que o direito de propriedade do referido imóvel pertence à autora, por via da usucapião, é manifesta ainda a procedência do pedido de cancelamento dos registos que foi formulado pela ora apelante na petição inicial que encontra cobertura no art.º 13º, do Código do Registo Predial.
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Ante todo o exposto, procede integralmente o recurso interposto, impondo-se revogar a sentença recorrida, e em consequência, julgar totalmente procedentes os pedidos formulados pela autora no seu petitório.
As custas da acção e do presente recurso são da responsabilidade dos recorridos (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida e, em consequência, decidindo:

(i) declarar a autora AA proprietária da fracção autónoma, destinada a habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao rés-do-chão traseiras e primeiro andar traseiras, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito no lugar ..., ..., ..., inscrita na matriz sob o artigo ...90º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...12, da freguesia ... e ..., concelho ...;
(ii) declarar a escritura de compra e venda efectuada entre EE e o réu marido CC ineficaz quanto à autora AA;
(iii) ordenar o cancelamento de todos os registos de propriedade que incidem sobre a fracção aludida em (i), posteriores ao registo de aquisição da autora datado de 7.03.1988,
(iv) condenar os réus a restituírem à autora a fracção autónoma que ocupam livre de pessoas e bens.
Custas da acção e do recurso pelos recorridos.
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Guimarães, 21.11.2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Ana Cristina Duarte
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Eva Almeida