TÍTULO EXECUTIVO
PRECLUSÃO
PRINCÍPIO DA INTAGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA
CULPA LEVE
Sumário

I - Sendo a base de qualquer execução um título, é este que determina o fim e os limites de uma ação executiva (artigo 10º nº 5 do CPC), cujo objetivo é a realização coativa de uma obrigação devida ao credor (10º nº 4 do CPC).
II - Sendo o título dado à execução uma sentença judicial, deveriam todos os meios de defesa ter sido aduzidos oportunamente em sede declarativa.
Em respeito pelo princípio da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e da defesa e respetivas razões de direito [vide artigos 552º nº 1 al. d) e 573º do CPC] fica precludido o direito de posteriormente virem a ser invocados factos modificativos ou extintivos de tal direito, nomeadamente em sede de embargos – salvo se posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, ou, no caso da prescrição do direito ou da obrigação, a provar por qualquer meio - vide artigo 729º al. g) do CPC.
III - O princípio da intangibilidade da obra pública não é mais do que “uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC” enquanto legitimação a uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, a substituir “pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio” nos casos em que a ocupação de prédios alheios por entidades públicas resulte de um comportamento integrável na mera culpa ou na ausência de culpa e a execução da restituição resulte em dano de difícil ou impossível reparação e em manifesta desproporção entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença.
IV - Sempre tendo como pressuposto uma atuação da entidade a favor de quem se reconheça tal limitação que não ultrapasse subjetivamente os limites da culpa leve.
Culpa leve que incumbe à entidade pública alegar e demonstrar, como pressuposto da aplicação de tal princípio.

Texto Integral

Processo nº. 2606/20.2T8VLG-A.P1

3ª Secção Cível

Relatora – M. Fátima Andrade

Adjunto – Carlos Gil

Adjunto – Jorge Martins Ribeiro

Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. de Execução de Valongo

Apelante/ Município ...

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):

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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

O Município ... deduziu por apenso à execução para prestação de facto/entrega de coisa certa em que é exequente AA e outros, a presente oposição à execução por embargos, pedindo que pela procedência dos embargos se julgue a execução extinta.

Para tanto alegou/invocou, em suma:

“Por sentença transitada em julgado, foi o aqui Embargante/Executado condenado a:

- Reconhecer que os AA. são comproprietários do prédio rustico denominado ..., sito no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., descrito na conservatória do registo predial de Gondomar sob o nº ...91, na proporção de 3/16 indivisos para a A. AA e na proporção de 1/8 para a A. AA e na proporção de 1/8 para a A. BB;

- Abstendo-se o Embargante de praticar quaisquer atos que ponham em causa esse direito;

- Demolir a obras edificada sobre o prédio já identificado, na área de 1757,96 m2 identificados na planta junta a fls. 887 do processo;

Repor o prédio, a área de 1757,96 m2 no estado em que se encontrava antes da ocupação pelo Executado”;

- Na sentença dada à execução, os co-exequentes CC, DD e EE não constam como autores, pelo que são partes ilegítimas;

- O requerimento executivo é inepto;

- O bem em causa não pode ser alvo de execução por integrar o domínio público municipal. Não podendo o executado cumprir a sentença;

- O terreno objeto da execução já não pertence ao executado, tendo sido concessionado aos vários munícipes da freguesia;

- A execução desta sentença ao mandar:

. Demolir a obras edificada sobre o prédio já identificado, na área de 1757,96 m2 identificados na planta junta a fls. 887 do processo;

. Repor o prédio, a área de 1757,96 m2 no estado em que se encontrava antes da ocupação pelo Executado;

(…)

Excede, com o devido respeito, todos limites da boa-fé, bons costumes, assim como ultrapassa o fim do próprio direito, pelo que na nossa opinião, tal execução é ilegítima e ilegal.


*

Recebidos liminarmente os embargos e notificados os exequentes, contestaram, em suma tendo pugnado pela total improcedência das exceções invocadas, e a final pela improcedência dos embargos.

Mais tendo requerido a condenação do embargante como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor dos embargados, «que deve consistir, não só no reembolso das despesas e dos honorários do seu mandatário, mas igualmente numa indemnização não inferior a € 100,00 por cada dia que demorar a repor o prédio de que os Embargados são comproprietários …”no estado em que se encontrava antes da sua ocupação”… pelo Embargante.»

Agendada audiência prévia, foi no seu âmbito proferido despacho a convidar os exequentes a fazer intervir nos autos BB, com vista a regularizar a legitimidade ativa no processo principal. A intervenção em causa foi tramitada e admitida nos autos principais, onde a chamada foi citada.

Na sequência de tal citação, veio a chamada aos autos declarar fazer seus os articulados dos exequentes/embargados.


*

Oportunamente veio a ser proferido despacho saneador sentença, decidindo-se a final:

“- Julgar improcedentes os embargos.

- Fixar em 30 (trinta) dias o prazo para o início da realização das obras necessárias à reposição da parcela dos autos no estado em que se encontrava anteriormente à ocupação por parte do embargante e em 1 (um) ano o prazo para conclusão das mesmas e entrega da parcela aos embargados.”


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Do assim decidido apelou o embargante, oferecendo alegações e formulando as seguintes

Conclusões:

“1. Ora com o devido respeito, o título executivo dado à execução não identifica a parte do prédio que terá de se entregar, o que equivale a não formular qualquer pedido, pelo que estamos perante uma falta de pedido o que determina a nulidade de todo o processo, por ineptidão do requerimento executivo.

2. Além de que há uma violação do litisconsórcio, que implicara sempre a ilegitimidade da parte de litiga desacompanhada, nos termos do Ar. 28º 2 do CPC, sendo assim os Exequentes partes ilegítimas do presente processo executivo.

3. Os cemitérios municipais pertencem ao domínio público do município e das freguesias, por isso, porque estão fora do comércio privado, são bens inalienáveis num contexto de relações jurídicas privadas e disciplinadas pelo direito civil privado;

4. Logo, o bem em causa não pode ser objeto da execução, uma vez que integra o domínio publico municipal.

5. O Recorrente não tem o poder de transladar nem exumar os corpos.

6. A presente decisão é inconstitucional uma vez que viola o direito a propriedade da autarquia local, assim como o direito concessionado por esta e adquirido pelo particular, compatível com um verdadeiro direito de propriedade.

Termos em que,

Deve assim ser o dado provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se a douta decisão recorrida, com as necessárias consequências legais, fazendo-se assim inteira e sã JUSTIÇA.”

Apresentaram os recorridos/exequentes contra-alegações em suma tendo concluído pela improcedência do recurso face ao bem decidido pelo tribunal a quo.


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O recurso, após prestação de caução, foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos (da oposição) e com efeito suspensivo.

Foram colhidos os vistos legais.


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II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante ser questão a apreciar se ocorre erro na decisão de direito, com fundamento em:

- ineptidão do requerimento executivo por não identificação da parte do prédio a entregar (conclusão 1);

- ilegitimidade por violação de litisconsórcio (conclusão 2);

- integração do bem a entregar no domínio público e consequente impossibilidade de ser objeto de execução (conclusões 3 a 5);

- inconstitucionalidade da decisão dada à execução por violar o direito de propriedade da autarquia local, bem como o direito concessionado aos particulares (conclusão 6).


***

III- Fundamentação

O tribunal a quo julgou provada a seguinte matéria de facto.

“(…)

1) Em 6 de novembro de 2018 foi proferida sentença que condenou o executado a “Reconhecer que os AA são comproprietários do prédio denominado ..., sito no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº. ...52/300891, inscrito na matriz predial sob o artigo ...77, na proporção de 3/16 indivisos para a inicial A. AA e na proporção de 1/8 indivisos para a A. BB, abstendo-se a R. de, sobre ele, praticar quaisquer atos que ponham em causa este direito; Demolir a obra edificada sobre o prédio indicado em A.1), na área de 1.757,96 m2, nos termos identificados a cor amarela na planta de fls. 887 dos autos, dele removendo tudo o que for de sua pertença; Repor o prédio, na área ocupada de 1.757,96 m2 nos termos identificados a cor amarela na planta de fls. 887 dos autos, no estado em que se encontrava antes da sua ocupação pela R.;”, tendo a mesma transitado em julgado em 13 de junho de 2019.

2) A ação em que foi proferida a sentença atrás referida foi interposta por FF e BB, na qualidade de comproprietárias do prédio descrito sob o nº. ...91 da Freguesia ..., vindo, em virtude do óbito da primeira das referidas AA a ser habilitados como herdeiros da mesma GG, AA e HH.

3) Tendo posteriormente falecido o referido GG foram habilitados como herdeiros do falecido, CC, EE e DD.

4) Mais consta da referida sentença que o ali R. e aqui executado requereu a intervenção principal dos demais comproprietários quanto ao pedido reconvencional, vindo esta instância reconvencional a ser julgada deserta.

5) Resulta dos Factos Provados na sentença dada à execução que os ali AA tiveram conhecimento, entre 1 de janeiro e 10 de maio de 2002 que o R. estava a efetuar obras de terraplanagem em parte do prédio descrito sob o nº. ...52 e que à data da prolação da sentença estava completa a edificação do Cemitério ....

6) Em 13 de abril de 2023 a propriedade do prédio descrito sob o nº. ...52 da Freguesia ... mostrava-se inscrita a favor das pessoas identificadas na certidão predial junta aos autos sob a refª. 35369917 cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

Aditam-se ainda à factualidade assente os seguintes factos, atendendo às questões colocadas à nossa apreciação:

7) Aquando da interposição da execução, os exequentes HH e outros indicaram como título executivo a sentença proferida no processo ... proferida pelo Juízo Local Cível de Gondomar, Juiz 3, de que juntaram cópia.

Mais tendo invocado os seguintes factos, como fundamento da execução:

“1. Conforme melhor se alcança do título executivo, a R., ora Executada, foi condenada por sentença transitada em julgado a: 1) Reconhecer que os AA. são comproprietários do prédio rústico denominado ..., sito no Lugar ..., Freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o nº ...91, inscrito na matriz predial sob o artigo ...88, na proporção de 3/16 indivisos para a inicial A. AA e na proporção de 1/8 indivisos para a A. BB, abstendo-se a R. de, sobre ele, praticar quaisquer atos que ponham em causa este direito; 2) Demolir a obra edificada sobre o prédio indicado em A.1), na área de 1.757,96 m2, nos termos identificados a cor amarela na planta de fls. 887 dos autos, dele removendo tudo o que for de sua pertença; 3) Repor o prédio, na área ocupada de 1.757,96 m2, nos termos identificados a cor amarela na planta de fls. 887 dos autos, no estado em que se encontrava antes da sua ocupação pela R.;

2. Sucede que, até à presente data, a Executada não se prestou a reconhecer a compropriedade dos AA., nem a demolir a obra e nem a repor o prédio, conforme descrito na douta sentença, pelo que, vem a Exequente exercer o seu direito e executar a referida sentença.

3.A sentença transitou em julgado, sem que a ora Executada tenha cumprido tal condenação.

4. TERMOS EM QUE Requer a V. Excia se digne mandar cumprir o disposto no artigo 868.º do CPC, seguindo-se os ulteriores termos até final.”


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Do direito.

Em função da factualidade assente e demais vicissitudes processuais constantes do relatório supra elaborado, tendo igualmente presente o objeto do recurso delineado pelas conclusões acima reproduzidas, cumpre apreciar de direito.

Questionou o embargante em primeiro lugar a ineptidão do título executivo por não identificação da parte do prédio a entregar.

Não assiste razão ao embargante nesta argumentação.

Como muito bem o sabe, já que foi demandado e ficou vencido na ação declarativa contra si interposta da qual emergiu o título executivo, a parcela em questão é a que consta do segmento decisório do título dado à execução e está aliás devidamente identificada no ponto 1 dos factos alegados no requerimento executivo e igualmente vem identificada em 1) dos factos provados da sentença recorrida. Parcela identificada entre o mais por referência a uma planta junta aos autos de ação declarativa a fls. 887 dos autos e nesta planta assinalada “a cor amarela”.

A alegação da ineptidão do título executivo por falta de pedido ou por referência a uma alegada não identificação da parte do prédio a entregar é como tal claramente improcedente.

A pretensão dos exequentes manifestada no requerimento executivo que acima reproduzimos é clara e tem por base o título dado à execução – sentença condenatória proferida no âmbito de ação declarativa que previamente correu seus termos e em que o embargante foi demandado, tendo aí deduzido a defesa tida por pertinente.

Motivo por que improcede o primeiro fundamento de recurso apresentado pelo recorrente.

Questão diferente é saber se os exequentes, enquanto comproprietários de uma determinada parcela, podem pedir a entrega da sua totalidade, bem como a execução dos demais atos que o título executivo discrimina.

O que nos reconduz à segunda questão suscitada pelo recorrente, relativa à ilegitimidade dos exequentes.

Tendo, como já assinalado, corrido termos ação declarativa entre as partes, daqui decorre uma limitação para o embargante quanto aos fundamentos que pode convocar em sua defesa em sede de requerimento de embargos.

Os meios de defesa devem ser deduzidos todos aquando da apresentação do respetivo articulado na ação em que o direito é discutido, respeitando o princípio da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e das razões de direito [vide artigos 552º nº 1 al. d) e 573º do CPC].

A não observância de tal princípio, impede a posterior invocação de tal meio de defesa por via do princípio da preclusão que configura o contraponto do princípio da concentração dos meios de defesa antes assinalado.

E, quanto aos meios de defesa apreciados nessa mesma ação declarativa, uma vez transitada a decisão, por via do caso julgado não podem os mesmos ser de novo reapreciados. Nomeadamente quando seja dada à execução a decisão.

Este o motivo por que o legislador limitou os fundamentos de embargos, quando o título executivo seja uma sentença judicial, ao previsto no artigo 729º[1] do CPC.

Deste se realçando (com relevo para os autos) a possibilidade de invocação de qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, ou, no caso da prescrição do direito ou da obrigação, a provar por qualquer meio.

A legitimidade dos exequentes para demandar a ora recorrente na ação declarativa foi ali apreciada e com o trânsito da decisão, ficou definitivamente assente.

Em sede executiva, por sua vez, tem a legitimidade dos exequentes de ser aferida em função do título executivo.

Importa para a sua aferição ter presente o disposto no artigo 10º nº 5, bem como nos artigos 53º e 54º, ambos do CPC.

Sendo a base de qualquer execução um título, é este que determina o fim e os limites de uma ação executiva (artigo 10º nº 5 do CPC), cujo objetivo é a realização coativa de uma obrigação devida ao credor (10º nº 4 do CPC).

A exequibilidade de uma pretensão pode ser intrínseca, por à mesma não ser oponível um qualquer vício material ou exceção perentória que impeça a sua realização coativa; ou extrínseca na medida em que se sustenta num documento formalmente válido que formaliza a obrigação executiva[2], i.e., o título executivo (vide artigo 703º do CPC). Pelo que a falta de título executivo determina a inexequibilidade extrínseca da pretensão executiva.

O título dado à execução é formalmente válido e contém em si o reconhecimento de um direito aos exequentes que lhes confere o poder de demandar o executado ao cumprimento da prestação por via executiva.

Pelo que é extrinsecamente exequível.

A questão coloca-se em termos de exequibilidade intrínseca.

A exequente invocou a ilegitimidade dos exequentes.

Nos termos do artigo 53º nº 1 do CPC, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.

Acresce, no caso de ter havido sucessão no direito ou na obrigação, dever então a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor obrigação exequenda – vide artigo 54º nº 1 do CPC.

No próprio requerimento executivo devendo o exequente deduzir os factos constitutivos da sucessão.

Dos factos provados vêm identificadas as partes na ação em que foi proferida a sentença dada à execução (partes iniciais e herdeiros habilitados) – vide factos provados 2 e 3[3].

Tal qual resulta do requerimento executivo, os exequentes identificados, incluindo a interveniente que, entretanto, fez seus os articulados dos exequentes – BB - são quem figura no título executivo como credores.

A sua legitimidade para instaurar a execução, com base no título executivo está, pois, demonstrada.

Acresce – sem prejuízo do já afirmado quanto ao trânsito da decisão dada à execução que reconheceu legitimidade aos ora exequentes e ali autores para demandar o recorrente - que e tal como corretamente afirmado na sentença recorrida, o legislador reconheceu o direito a cada consorte de reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro – vide artigo 1405º nº 2 do CC. Pelo que igualmente improcede esta objeção do recorrente em sede de recurso suscitada.

Improcede por tal a arguida ilegitimidade dos exequentes.

Em terceiro lugar, invocou o recorrente estar a parcela em causa integrada no domínio público municipal, com a consequente impossibilidade de ser objeto de execução (conclusões 3 a 5).

Relembrando uma vez mais que o título dado à execução é uma sentença judicial, deveriam todos os meios de defesa ter sido aduzidos oportunamente em sede declarativa. Tendo, em respeito pelo princípio da concentração dos meios de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e da defesa e respetivas razões de direito [vide artigos 552º nº 1 al. d) e 573º do CPC] ficado precludido o direito de posteriormente virem a ser invocados factos modificativos ou extintivos de tal direito, nomeadamente em sede de embargos – salvo se posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento, ou, no caso da prescrição do direito ou da obrigação, a provar por qualquer meio [vide artigo 729º al. g) do CPC, já supra citado].

A argumentação do recorrente não respeita este requisito temporal, nem tampouco vem demonstrada por via documental.

Motivo por que por esta via tem de improceder.

Ainda que assim se não entendesse.

O recorrente alegou em sede de requerimento de embargos que o bem foi adquirido para integrar o domínio público.

A aquisição da parcela em causa, pelo recorrente, foi discutida na ação declarativa e afastada. Então, o embargante não o demonstrou e, ao invés, demonstraram os ali AA. e aqui embargados, a propriedade do prédio e sobre a parcela em causa na execução de que estes embargos são apenso.

Tal como afirmado na sentença dada à execução:

“(…) no caso em apreço, ficou demonstrado nos autos a propriedade do prédio a favor dos AA., enquanto comproprietários.”

Bem como a ocupação do recorrente de “1.757,96 m2 do prédio destes, que a R. não lhes restituiu, nos termos identificados na planta de fls. 887 dos autos, a cor amarela, sendo que o prédio dos AA. tem uma área de 10.000 m2, como resultou da prova produzida. Cumpriram, assim, os AA. a exigência de provar a identidade, ainda que parcial, do prédio que reclama com o que é possuído pela R..”

Ocupação que o ali R. e aqui embargante não logrou justificar com base em título válido, como igualmente ali se afirmou:

“Como justificação para a posse desta área pela R., indica esta a escritura pública identificada em J) dos factos provados e a propriedade dessa área de terreno pela vendedora respetiva, o que, no entanto, não logrou demonstrar, como lhe competia, ao abrigo do disposto no artigo 342º do CCivil.

Ou seja, não logrou demonstrar que a parcela de terreno que adquiriu correspondia à área de terreno ocupada pelo cemitério.

Por outro lado, não ficou demonstrada a existência de qualquer motivo de recusa da restituição, nos termos previstos no artigo 1311º nº 2 do CCivil, pois não ficou demonstrada a existência de qualquer decisão de expropriação nos termos legais, como determinado pelo artigo 1308º do CCivil, nem logrou a R. demonstrar a aquisição do prédio por meio de usucapião, como alegado”.

Em sede de recurso alega o recorrente, já não a aquisição da parcela em causa, mas antes que a mesma se integrou no domínio público municipal – parte do Cemitério ... 2 ou Cemitério ..., como é vulgarmente conhecido.

Estando a ser utilizada pela população em geral, para satisfação dos seus interesses, estando assim fora do comércio jurídico, e não podendo sobre ele recair esta decisão de entrega da parcela.

Ainda alega:

- que ao abrigo do previsto na Lei 169/99 de 18/09 [artigos 34º nº 6 al. d) e 68º nº 2 al. r)] e no DL 280/2007 [artigo 28º], celebrou contratos de concessão de jazigos com particulares, os quais sobre o correspondente pedaço de terra têm o direito de uso e fruição. Pelo que a titularidade dominial do recorrente se vê onerada por um direito real de natureza civil – do particular em relação aos jazigos privativos e às sepulturas perpétuas – impedindo o recorrente de entregar a parcela de terreno em causa aos exequentes;

- para além da impossibilidade de, após a inumação dos corpos, estes não poderem ser trasladados num prazo nunca inferior a 5 anos. Prazo este a ser alargado, dependendo do grau de conservação em que o cadáver se encontra.

Implicando a execução da sentença [que manda ainda demolir o edificado sobre a parcela em causa e repor a mesma no estado em que se encontrava antes da ocupação] com todos os limites da boa-fé, bons costumes e o próprio fim do direito.

Tal qual se infere da alegação do recorrente [tanto em sede recursória, como no requerimento de embargos] e conforme acima assinalado, toda a factualidade pelo recorrente alegada não vem sustentada em qualquer facto novo - entenda-se, posterior ao encerramento da discussão do processo de declaração.

E como tal – para além de afastada a sua oportunidade alegatória ao abrigo do disposto na al. g) do artigo 729º do CPC – deveria ter sido discutida e invocada em sede declarativa.

Tendo-se precludido o direito de posteriormente o recorrente o fazer.

O momento oportuno para o recorrente discutir, quer a alegada impossibilidade de entregar o bem no estado em que se encontrava, antes de o ocupar, quer eventual abuso do direito ou ofensa dos bons costumes, na pretensão formulada, era na respetiva ação declarativa, o que não fez. Com a consequente preclusão de posteriormente vir invocar novos meios de defesa não fundamentados em factos novos. Como é o caso.

De qualquer modo, não pode o município recorrente ignorar que:

- o direito de propriedade se adquire “por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei” [cfr. artigo 1316º do CC];

- “ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei” [cfr. art. 1308.º do CC].

- bem como que o domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas coletivas públicas está igualmente sujeito às disposições do CC, em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio [cfr. art. 1304.º do mesmo Código].

Tem o direito de propriedade privada consagração constitucional (vide artigo 62º da CRP):

“1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”

Sem prejuízo da requisição e expropriação por utilidade pública, a serem efetuadas “com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.” (nº 2 do mesmo artigo 62º da CRP e artigo 1310º do CC).

Expropriação que tem de seguir a tramitação legal prevista, competindo às entidades expropriantes e demais intervenientes no procedimento e no processo expropriativos prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos expropriados e demais interessados, observando, nomeadamente, os princípios da legalidade, justiça, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa-fé (vide artigo 2º do C.Expropr.).

Requerendo a declaração da utilidade pública e mesmo atribuindo a esta caráter de urgência em função da obra em causa [vide concretamente artigos 10º a 17º do C. Expropr.].

Nada alegou o recorrente Município no sentido de ter tomado providências com vista a legitimar a ocupação que faz da parcela de terreno que por via judicial já foi declarado não lhe pertencer, não obstante o tempo entretanto decorrido desde a prolação da sentença que constitui o título executivo, proferida esta em 2018 no âmbito de uma ação declarativa intentada em 2005.

Ocupação sem nenhum título legítimo de aquisição, seja por via das regras de direito privado, seja por recurso ao processo expropriativo, respeitando as formalidades pelo mesmo exigidas.

Os interesses que o recorrente alega defender e que em abstrato são significativos, remetem-nos para as figuras da “via de facto” oriunda da teoria geral do direito administrativo e “apropriação irregular e/ou expropriação indireta”, bem como e associado a esta segunda figura, para o «princípio da intangibilidade da obra pública» criado pela jurisprudência francesa e baseado “na ideia de manutenção da posse por parte da administração, apesar desta assentar num título ilegal, e desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público”.

Mesmo para os defensores do princípio da intangibilidade da obra pública – cuja existência não é no nosso ordenamento jurídico pacífica[4] - sempre a sua aplicação é de afastar nas situações em que a entidade pública, in casu o Município, tenha atuado à margem do dever de cumprimento da legalidade, sem ouvir o particular afetado pela sua atuação.

O princípio da intangibilidade da obra pública não é mais do que “uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC” enquanto legitimação a uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, a substituir “pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio” nos casos em que a ocupação de prédios alheios por entidades públicas resulte de um comportamento integrável na mera culpa ou na ausência de culpa e a execução da restituição resulte em dano de difícil ou impossível reparação e em manifesta desproporção entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença.

Ainda assim e sempre tendo como pressuposto uma atuação da entidade a favor de quem se reconheça tal limitação que não ultrapasse subjetivamente os limites da culpa leve[5].

Culpa leve que incumbe à entidade pública alegar e demonstrar como pressuposto da aplicação de tal princípio.

O recorrente município não só não alegou circunstancialismo que permita enquadrar a sua atuação no campo da culpa leve na ação declarativa, como devia, como tampouco o fez no âmbito destes embargos.

Apenas se limitando, agora em sede de embargos, a invocar o interesse público na obra, bem como e assim os direitos que ao abrigo da sua pressuposta, mas não demonstrada, propriedade da parcela em questão, concedeu a terceiros. Note-se que o poder de conceder terrenos nos cemitérios para jazigos, mausoléus e sepulturas perpétuas consagrado no artigo 68º nº 2 al. r) para o município e 34º nº 6 al. d) para as juntas de freguesia [disposições legais do convocado DL 169/99 de 18/09, na redação convocada pelo recorrente], estava dependente de tais terrenos serem propriedade do município ou das freguesias.

E que a parcela de terreno em questão não é do domínio público [nos termos do artigo 14º do DL 280/2007, imóveis do domínio público são os classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante a identificação por tipos] é o que foi decidido na sentença que constitui o título executivo e transitou em julgado, ao reconhecer a mesma como propriedade dos recorridos, nos termos na mesma justificados.

Terceiros, acrescenta-se ainda, que tampouco o embargante identificou, nem concretizou as situações factuais que serão afetadas pela decisão, para que demonstráveis fossem.

Do exposto resulta a improcedência da argumentação do recorrente.

Sendo certo que é também ao recorrente que cumpre dar cumprimento ao determinado, em função do disposto no artigo 24º do DL 411/98, de 30/12.

Igualmente improcedente é o argumento da inconstitucionalidade da decisão recorrida, com fundamento numa alegada violação do disposto nos artigos 84º e 62º da CRP (Constituição da República Portuguesa).

A invocação da violação de ambas estas normas, tal como resulta da argumentação do recorrente, pressupõem estar em causa bens do domínio público.

O que não é o caso, como já referido, pelo que soçobra uma tal invocação, nada mais se impondo aduzir.

Concluindo, tem o recurso de improceder.


***


IV. Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Porto, 2024-11-11.

(M. Fátima Andrade)

(Carlos Gil)

(Jorge Martins Ribeiro)

____________________________
[1] Artigo 729º do CPC cujo teor aqui se deixa reproduzido:
“Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.”
[2] Vide Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, edição Lex, 1997, p. 607/608.
[3] Dos factos provados mais consta que o recorrente requereu a intervenção principal dos demais comproprietários quanto ao pedido reconvencional – instância que, entretanto, veio a ser julgada deserta (vide fp 4).
[4] Conforme é mencionado no Ac. do Pleno do STA de 04/02/2003, nº de processo 043274 in www.dgsi.pt
[5] Assim foi defendido no Ac. STJ de 05/02/2015, nº de processo 2125/10.5TBBRR.L1.S2 in www.dgsi.pt  (tal como os demais citados).
Bem como no Ac. STJ de 15/04/2015, nº de processo 100/10.0TBVCD.P1.S1, onde foi convocada a aplicação deste princípio, em situação em que a entidade expropriante agiu de boa-fé ou culpa leve, por em causa estar o reconhecimento de nulidade de uma declaração de utilidade pública (DUP) de uma parcela predial, por motivo não imputável à entidade expropriante e nova emissão de DUP.
Ainda Ac. STJ de 11/09/2018, nº de processo 342/12.4TBFAF.G2.S2 onde uma vez mais foi apreciada a censurabilidade da atuação da entidade pública, in casu um Município como pressuposto da aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública.
Igualmente no Ac. STJ da mesma data - 05/02/2015 - nº de processo 742/10.2TBSJM.P1.S1, de cujo sumário se extraem as seguintes conclusões:
“IV - A figura da «via de facto» – oriunda da teoria geral do direito administrativo – caracteriza-se pelo ataque grosseiro à propriedade de um particular, por meio de factos, à margem de qualquer processo legal; por seu turno, a «apropriação irregular e/ou expropriação indireta» caracteriza-se pela tomada de posse, por parte da administração, de um bem imóvel de um particular, com base num título que enferma de uma ilegalidade, não de uma ilegalidade grave e grosseira, mas de uma ilegalidade simples e leve.
V - Foi da consideração do interesse público, ponderado e valorado na expropriação indireta, que a jurisprudência francesa criou o «princípio da intangibilidade da obra pública» – princípio geral do direito das expropriações –, e que traduz a ideia de manutenção da posse por parte da administração, apesar desta assentar num título ilegal, e desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público.
VI - Uma coisa é o Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público e atuando de boa fé; outra, completamente distinta, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser «tido ou achado», em atuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade.
VII - Nos casos, como o dos autos, em que haja uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imbuído de ilegalidade flagrante, não tem sentido convocar o denominado «princípio da intangibilidade da obra pública», justificando-se o reconhecimento do direito de propriedade e a manutenção e/ou restituição da posse da parcela de terreno ocupada.
VIII - Quando a administração atue pela «via de facto», pela política do facto consumado, sem se fazer revestir da sua autoridade – traduzida na legalidade dos procedimentos utilizados com vista aos seus intuitos –, não se justifica colocá-la numa situação de superioridade ou supremacia, mas antes numa posição idêntica à de qualquer particular, visto ter sido ela própria a despojar-se desses seus poderes e prerrogativas que lhe permitiriam impor-se a este.”