I - Não devem considerar-se provadas a área e as confrontações de um prédio constantes do registo predial, por não ser atribuível à respetiva certidão força probatória plena, sendo que a presunção contemplada no artigo 7º do Código de Registo Predial não abrange esses fatores descritivos, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
II – O standard de prova que opera no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável do que não”, o qual se consubstancia em duas regras fundamentais que enuncia nos termos seguintes: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
III - Sempre que o público faça passagem através de um prédio particular, seja para aceder a imóveis situados nas suas imediações, seja para atalhar ou encurtar determinados trajetos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º do Código Civil.
IV - Assim, qualificado um caminho como atravessadouro, o respetivo leito integra-se no prédio que atravessa, podendo o seu dono usar dos poderes que lhe confere o direito de propriedade, designadamente o da sua destruição, alteração ou mudança, bem como o de impedir que terceiros o utilizem, a menos que o mesmo se mostre estabelecido em favor de prédios determinados, constituindo servidão, ou então, nos termos do artigo 1384º do Código Civil, quando, havendo posse imemorial, o mesmo se dirija a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não houver vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra.
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. António Mendes Coelho
2ª Adjunta Desª. Anabela Mendes Morais
SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA e BB, com residência na Travessa ..., na ..., vieram propor a presente ação declarativa sob a forma comum contra CC e DD, com residência na Travessa ..., na ..., pedindo que:
- os réus sejam condenados a reconhecer e respeitar o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
- os réus sejam condenados a reconhecer e respeitar o legítimo direito de servidão de passagem constituída a favor do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
- os réus sejam condenados a reconhecer e respeitar que pelo caminho identificado nos artigos 7º e 8º da petição inicial se exerce a passagem a pé, carro e veículos automóveis agrícolas para o acesso ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, caminho que deverá estar livre e desimpedido para esse exercício;
- os réus sejam condenados a demolir, à sua conta, no prazo de 30 dias desde a data do trânsito em julgado da sentença, a construção identificada nos artigos 7º e 8º da petição inicial e que invade o caminho de servidão identificado no artigo 7º, retirando esses materiais demolidos de modo a que o caminho de servidão fique livre e desimpedido e tal como se encontrava antes da realização da mesma;
- os réus sejam condenados, no mesmo prazo e também à sua conta a edificarem o muro que delimita o prédio dos réus e reporem a situação anterior ao derrube do muro sobre o caminho de servidão identificado em 7º, de modo a que possa ser exercida como acontecia antes, a normal passagem a pé, carro e veículos automóveis agrícolas por esse caminho descrito nos artigos 6º e 7º para acesso ao terreno dos autores identificado no artigo 1º da petição inicial;
- os réus sejam condenados, no mesmo prazo e também à sua conta a procederem à poda e/ou abate das árvores plantadas no prédio dos réus e cuja trajectória dos seus ramos e galhos incidam para sul e sobre o caminho de servidão mencionado em 7º, repondo a situação anterior e libertando o caminho de servidão e permitindo o acesso dos autores ao terreno identificado no artigo 1º da petição inicial;
- os réus sejam condenados a abster-se de todo e qualquer acto que impossibilite os autores de acederem ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, por intermédio da servidão descrita em 7º da petição inicial;
- se reconheça e se declare que os réus são donos e possuidores do terreno destinado a construção urbana (composto de parte rústica e parte urbana), melhor identificado no artigo 5º da petição inicial, que há mais de 20 anos, por si e seus antepossuidores, o possuem como coisa sua, nele plantando e colhendo produtos hortícolas, utilizando-o como pastagem, plantando árvores, colhendo frutos à vista de todas as pessoas, sem oposição e ininterruptamente ao longo desses anos e sempre na plena convicção do exercício de um legítimo direito, pelo que até por usucapião adquiriram o direito de propriedade a esse seu referido terreno.
Para substanciar tais pretensões alegam, em síntese, que:
. São donos e legítimos possuidores de um terreno a lavradio, atravessado pela antiga linha férrea da “... à ...”, situado no Lugar ... e denominado de Campo ..., do concelho e comarca da Maia, com a área total de 900 m2, que confronta a norte com caminho de servidão, a nascente com EE, a poente com ... e a sul com FF, inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ... sob o artigo Matricial ...60, e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia, sob o número ...11;
. São ainda donos e legítimos possuidores, do prédio urbano composto de edifício de rés-do-chão recuado da via pública, destinado a habitação e logradouro, desanexado do n.º ...1/20160407, com a área coberta de 33 m2 no sítio, que integra o prédio mencionado em 1 e aonde habitam, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia ..., sob o artigo ...58, e descrito na conservatória do Registo Predial da Maia, sob o número ...12;
. Os réus são donos e possuidores de um terreno destinado a construção urbana (composto de parte rústica e parte urbana), composto por terreno agrícola e casa de habitação onde os mesmos habitam, correspondente ao número ...5 da Travessa ..., localizado na cidade ..., ..., ..., que confronta a sul com o caminho de servidão que separa os referidos prédios;
. Com início na Travessa ..., em paralelepípedo, parte um caminho público em terra batida, sensivelmente no sentido nascente-poente, com cerca de 3 m de largura, encostado a um muro de vedação com construções de 1,80m, em média, de altura, durante cerca de 25m, até que, nas imediações de canastro aí existente, flecte para a direita, onde inicia um caminho de servidão;
. Esse caminho de servidão prossegue, então, durante cerca de 15 metros, sensivelmente no sentido poente - nascente, sempre em terra batida e com a largura de cerca de 3 metros, até que flete de novo para a direita e é interrompido pela antiga linha férrea da ...;
. Utilizam a passagem atrás descrita para acesso ao seu prédio, de pé e de carro, há muito mais de 20 anos, à vista de toda a gente, sem oposição e continuadamente, na plena convicção do exercício de um direito;
. Nessa medida, encontra-se constituída a favor desse prédio uma servidão de passagem;
. Há cerca de uns 4 anos, os réus iniciaram uma construção amovível contígua para sul ao mesmo caminho e procederam à alteração do leito do mesmo caminho, encurtando-o em cerca de 1 metro pela sua largura;
. Com a referida construção, os réus pretendem impossibilitar o acesso dos autores ao seu terreno, por intermédio de veículo automóvel, visto que a construção coincide com o portão de acesso ao restante terreno;
. Os réus têm vindo a praticar atos que inviabilizam a utilização do referido caminho de servidão e o acesso ao seu prédio.
Citados os réus apresentaram contestação na qual impugnam a factualidade invocada pelos autores, alegando que o seu (deles, réus) prédio não confronta com qualquer caminho de servidão, não tendo violado ou perturbado qualquer direito daqueles.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu “julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
- Condenar os réus CC e DD a reconhecer e respeitar o direito de propriedade dos autores AA e BB sobre o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
- Condenar os réus CC e DD a reconhecer e respeitar o direito de servidão de passagem constituída a favor do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial sobre a parcela de terreno aludida no ponto 9) da matéria de facto;
- Condenar os réus CC e DD a reconhecer e respeitar que pela parcela de terreno aludida no ponto 9) da matéria de facto se exerce a passagem a pé, carro e veículos automóveis agrícolas para o acesso ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, caminho que deverá estar livre e desimpedido para esse exercício;
- Condenar os réus CC e DD a demolir, à sua conta, no prazo de 30 dias desde a data do trânsito em julgado da sentença, a construção identificada nos artigos 7º e 8º da petição inicial, na parte que invade a parcela de terreno aludida no ponto 9) da matéria de facto, retirando esses materiais demolidos de modo a que a mencionada parcela de terreno fique livre e desimpedida e tal como se encontrava antes da realização da mesma;
- Condenar os réus CC e DD, à sua conta, no prazo de 30 dias desde a data do trânsito em julgado da sentença, a reporem a situação anterior ao derrube do muro que delimita o seu prédio sobre a parcela de terreno aludida em 9), de modo a que possa ser exercida como acontecia antes, a passagem a pé, carro e veículos automóveis agrícolas por essa parcela de terreno para acesso ao terreno dos autores identificado no artigo 1º da petição inicial;
- Condenar os réus CC e DD, à sua conta, no prazo de 30 dias desde a data do trânsito em julgado da sentença, a procederem à poda e/ou abate das árvores plantadas no prédio dos réus e cuja trajetória dos seus ramos e galhos incidam para sul e sobre a parcela de terreno aludida em 9), repondo a situação anterior e permitindo o acesso dos autores ao terreno identificado no artigo 1º da petição inicial;
- Condenar os réus CC e DD a abster-se de todo e qualquer acto que impossibilite os autores de acederem ao prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, por intermédio da parcela de terreno aludida em 9) da matéria de facto;
- Reconhecer que os réus CC e DD são donos e possuidores do terreno destinado a construção urbana (composto de parte rústica e parte urbana), melhor identificado no artigo 5º da petição inicial».
Não se conformando com o assim decidido, vieram os réus interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
a) — Os factos que impõem decisão diversa da recorrida são os constantes dos pontos 7, 9,10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20 e 23 dos factos provados.
b) — Os meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida são a prova documental e o depoimento das testemunhas GG, HH, II e JJ.
c) - O depoimento da testemunha GG deveria ter merecido algumas reservas pelo facto de existirem desavenças assumidas pela testemunha entre a mesma e os RR.
d)- Esta testemunha contrariou a versão dos AA. quanto à natureza da parcela referida no ponto 9 dos factos provados, afirmando que a mesma era pública, o que em nenhum momento foi alegado pelos AA.
e)- A testemunha referiu ainda que a mencionada parcela tem uma largura de 2,5 metros e não de 3 metros como o Tribunal a quo considerou provado e que os AA. já não acedem ao seu prédio através da mesma há 15 anos.
f)- A testemunha HH revelou um parco conhecimento dos factos em discussão nos autos, designadamente no que respeita à utilização da parcela, não conseguindo sequer precisar quando é que deixaram de aí passarem veículos.
g)- Esta testemunha também contraria a versão dos AA. quanto à natureza da aludida parcela, referindo, tal como a testemunha GG, que a sua manutenção era feita pela junta de freguesia, o que constituiria um indício da publicidade da mesma.
h)- Não resultou do depoimento da testemunha II qualquer animosidade da mesma em relação aos AA.
i)- Esta testemunha respondeu com clareza às questões que lhe foram colocadas, revelando conhecimento sobre os factos decorrente da sua qualidade de inquilino do prédio dos AA.
j)- A testemunha referiu de forma espontânea e segura que, no tempo em que era inquilino no local, acedia ao prédio através do campo dos AA., onde exista um caminho.
k)- A testemunha expôs o seu conhecimento sobre a matéria em litígio através de factos concretos, não sendo nessa medida vago o seu depoimento.
l)- O depoimento da testemunha JJ corroborou o depoimento da testemunha II, confirmando os factos relatados por esta, e prestou declarações de forma concretizada e convincente.
m)- A presunção derivada do registo não abrange os elementos identificativos do prédio, tais como a composição, área, limites e confrontações.
n)- "Caminho de servidão" é um conceito de direito, cuja qualificação depende a verificação de requisitos legais.
o)- Não basta declarar que determinado prédio confronta com caminho de servidão para se concluir pela real existência de um caminho de servidão.
p)- Os elementos matriciais e descrições prediais juntos aos autos não são aptos a comprovar que os prédios de AA. e RR. confrontam com um caminho de servidão.
q)- Na escritura junta com a petição inicial como doc. 4 é mencionado que o prédio dos AA. confronta do norte com caminho público, o que é substancialmente diferente de um caminho de servidão.
r)- Não existem confrontações com caminhos de servidão, mas sim com os prédios onde os mesmos se situam.
s)- Relativamente ao ponto 9 dos factos provados, não foi produzida qualquer prova de que a parcela aí mencionada tivesse uma largura de 3 metros.
t)- Apenas uma testemunha se pronunciou sobre a largura da parcela, no caso a testemunha GG que referiu que a mesma era de 2,5 metros.
u)- Não foi feita qualquer prova quanto aos limites dos prédios de AA. e RR., pelo que o Tribunal a quo não poderia concluir que a parcela descrita no ponto 9 dos factos se situa entre ambos e está autonomizada dos terrenos contíguos.
v)- Quanto à utilização da parcela descrita em 9 dos factos provados, não foi feita prova bastante da matéria constante nos pontos 11 e 17.
w)- Todas as testemunhas afirmaram que os AA. tiveram e têm acesso ao seu prédio através de outra entrada que não a alegada nestes autos, sendo que não foi feita qualquer prova de que tal entrada não permite o acesso de veículos agrícolas.
x)- Face aos concretos meios probatórios acabados de enunciar, os concretos pontos de facto supra enunciados, ao serem considerados provados, consubstanciam um julgamento incorreto e um claro erro da apreciação da prova.
y)- A não correspondência entre a prova invocada pelo Tribunal e a decisão sobre a matéria de facto que sobre ela assentou traduz uma violação e uma interpretação inconstitucional do preceituado no artigo 6070, no 3 do Código de Processo Civil e viola o artigo 2050 da Constituição da República Portuguesa.
z)- Deveriam considerar-se não provados os factos constantes dos pontos 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20 e 23 dos factos provados.
aa)- Nos termos do artigo 1543 0 do Código Civil, servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
ab) De acordo com o artigo 1545 0 n.0 1 do Código Civil, as servidões não podem ser separadas do prédio a que pertencem, ativa ou passivamente.
ac) - O direito de servidão pressupõe a existência de dois prédios: o serviente, onde é constituída a servidão; e o dominante, que beneficia da mesma.
ad) - Só pode ser constituída uma servidão sobre um prédio e tal prédio tem de ser devidamente determinado e identificado, até porque o direito de servidão é inseparável do mesmo.
ae) - Os AA., na petição inicial, apenas identificam o prédio dominante, não fazendo alusão ao prédio serviente.
af) - Por sua vez, o Tribunal a quo decidiu que a favor do prédio dos AA. existe um direito de servidão de passagem constituído sobre a parcela descrita no ponto 9 dos factos provados, ou seja, "uma parcela de terreno com o comprimento de cerca de 15 metros, sensivelmente no sentido poente — nascente, sempre em terra batida e com a largura de cerca de 3 metros, encostado a construções amovíveis e a um muro em pedra solta em média com cerca de 0,90 metros de altura, até que flecte de novo para a direita e é interrompido pela antiga linha férrea da ....
ag) - O Tribunal declara a existência de um direito de servidão sem referir sobre que prédio é que o mesmo está constituído.
ah) - O Tribunal a quo refere que a parcela descrita no ponto 9 dos factos provados não está integrada, nem faz parte integrante do prédio dos AA., nem dos RR., que não se logrou provar a sua titularidade, nem se a mesma assume natureza pública ou privada.
ai) - Resulta da sentença recorrida que não se mostra identificado o prédio serviente.
aj) - Não podem ser constituídas servidões sobre bens do domínio público artigo 2020, n.0 2 do Código Civil.
ak) - O facto de os AA. alegadamente necessitarem de passar pela referida parcela para aceder ao seu prédio não basta para que se constitua um direito de servidão.
al) - Sendo a servidão um encargo imposto a um prédio e inseparável deste, é fundamental que o mesmo esteja identificado sob pena de faltar um requisito essencial do direito.
am) O Tribunal a quo reconhece a existência de um direito de servidão de passagem sobre uma realidade não identificada como sendo ou fazendo parte de um determinado prédio.
an) - Não estando determinado o prédio serviente, não se pode concluir pela existência do direito de servidão.
ao) - A decisão do Tribunal a quo viola o disposto nos artigos 1543 0 e 15450, n.0 1 do Código Civil.
ap) - Deveria ter sido julgado improcedente o pedido de reconhecimento do direito de servidão constituído a favor do prédio descrito no artigo 1 0 da petição inicial.
aq) - Consequentemente, os pedidos subsequentes, formulados nos pontos 3 a 7, porque sustentados no alegado direito de servidão, também deveriam ter sido julgados improcedentes.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se os autores beneficiam, ou não, de um direito de servidão de passagem sobre o caminho identificado no artigo 8º da petição inicial.
2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1 – Mostra-se inscrita na 1º Conservatória do Registo Predial da Maia, mediante apresentação n.º 300, datada de 7/4/2016, a aquisição a favor de KK, por divisão de coisa comum, do terreno a lavradio, atravessado pela linha férrea da ... à ..., situado no Lugar ..., denominado “Campo ...”, no concelho ..., que confronta a norte com caminho de servidão, a nascente com EE, a poente com ... e a sul com FF, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...60, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 2, cujo teor se dá por reproduzido.
2 - Mediante escritura pública datada de 19 de Julho de 1960, denominada “compra e venda”, KK declarou vender ao autor AA que, por seu turno, declarou comprar, pelo preço de seis mil escudos, um talho de terreno destinado a construção urbana, com a área de novecentos metros quadrados, sito no Lugar ..., da Freguesia ..., a confrontar do norte com o caminho público, do sul com LL, do nascente com MM e do poente com a linha férrea, a destacar do prédio artigo n.º ...60 da matriz rústica, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva como parte da gleba sétima do prazo já remido doze mil trezentos e seis, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 4, cujo teor se dá por reproduzido.
3 - Mostra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia, mediante apresentação n.º 302, datada de 7/4/2016, a aquisição a favor do autor AA, por compra, do prédio urbano situado na Travessa ..., na ..., com a área total de 900 m2, composto por edifício de rés-do-chão recuado da via pública, destinado a habitação, e logradouro, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 1, cujo teor se dá por reproduzido.
4 – Os autores habitam no edifício aludido em 3).
5 – Os autores, por si e através dos seus antepossuidores, usam e fruem o prédio aludido em 2) e 3) há mais de 20 anos, nele semeando e colhendo centeio, utilizando-o como pastagem, plantando árvores, colhendo frutos à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta ao longo desses anos e sempre com a convicção do exercício de um seu direito.
6 - Os réus CC e DD são proprietários de um prédio composto de terreno agrícola e casa de habitação, correspondente ao n.º ...5 da Travessa ..., na ....
7 – O prédio aludido em 6) confronta a norte com NN, a sul com caminho de servidão, a nascente com caminho público e a poente com caminho de ferro.
8 – Com início na Travessa ..., em paralelepípedo, parte um caminho público em terra batida, sensivelmente no sentido nascente-poente, com cerca de 3 metros de largura, encostado a um muro de vedação com construções em média de 1,80 metros de altura, durante cerca de 25 metros, até que, nas imediações de um canastro aí existente, flete para a direita.
9 – Nesse local, inicia-se uma parcela de terreno com o comprimento de cerca de 15 metros, sensivelmente no sentido poente - nascente, sempre em terra batida e com a largura de cerca de 3 metros, encostado a construções amovíveis e a um muro em pedra solta em média com cerca de 0,80 metros de altura, até que flecte de novo para a direita e é interrompido pela antiga linha férrea da ....
10 – A parcela de terreno aludida em 9) situa-se entre os prédios aludidos em 3) e em 6).
11 – Há mais de 20 anos, os autores utilizam a parcela de terreno aludida em 9) para passar para o prédio aludido em 2) e 3) a pé, com carro e com veículos agrícolas, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma continuada e na plena convicção do exercício de um direito.
12 – A parcela de terreno aludida em 9) encontra-se ao longo de mais de 50, sempre em terra batida e com as características ali referidas, autonomizada dos terrenos que lhe são contíguos - os prédios aludidos em 3) e em 6) -, destinando-se à passagem de várias pessoas para os seus respetivos prédios.
13 – Em data não concretamente determinada, mas pelo menos desde 2016, os réus iniciaram a construção de uma estrutura amovível, contígua para sul à parcela de terreno aludida em 9), ocupando parte da mesma, encurtando-a em cerca de 1 metro pela sua largura.
14 – Em virtude da implantação da construção aludida em 13), os autores ficaram impossibilitados de aceder ao prédio mencionado em 2) e 3) com veículos agrícolas ou com veículos pesados.
15 - Desde data não concretamente determinada, parte do muro que delimita o prédio aludido em 6) da parcela de terreno mencionada em 9) encontra-se derrubado sobre esta mesma parcela, impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao seu prédio por intermédio de veículo automóvel ou de veículos agrícolas.
16 – Ao longo dos últimos anos, os réus têm vindo a permitir que os ramos e galhos das árvores plantadas na delimitação do prédio aludido em 6) invadam o espaço da parcela mencionada em 9), impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao prédio referido em 3), por intermédio de veículo automóvel e de veículos agrícolas.
17 – A parcela de terreno aludida em 9) permite o acesso a pé, de carro e de veículos agrícolas ao prédio referido em 3) e delimita em toda a sua extensão de cerca de 15 metros os prédios mencionados em 3) e em 6) no sentido sensivelmente nascente – poente.
18 - A parcela de terreno aludida em 9) destina-se também ao acesso de pé ao eco-caminho correspondente a um troço da antiga linha ferroviária de ... integrado num percurso mais abrangente, este de aproximadamente 3,3 km, desde a Quinta ..., na freguesia ..., ao antigo ..., na freguesia ....
19 – Em virtude da conduta dos réus, os autores deixaram de poder aceder ao seu prédio indicado em 3) pelo portão a norte e deixaram de poder transitar com veículos automóveis, nomeadamente de natureza agrícola, para o interior do seu prédio.
20 - Os autores não dispõem de nenhum outro acesso ao prédio aludido em 3) com veículos pesados e com veículos automóveis agrícolas.
21 - O prédio aludido em 3), outrora atravessado pela antiga linha férrea da “... à ...”, é atualmente atravessado (confinante, a poente), pelo eco-caminho mencionado em 18).
22 – O eco-caminho mencionado em 18) destina-se ao exercício da actividade desportiva e de lazer, designadamente caminhada, corrida ou bicicleta, caminhada com animais ou piquenique.
23 – A parcela de terreno aludida em 9) constitui a única forma para os autores acederem ao eco-caminho mencionado em 18) através do prédio referido em 3).
2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provado o seguinte facto:
24 - Em virtude da atuação dos réus, os autores tenham ficado impossibilitados de aceder ao prédio aludido em 3) a pé ou com veículo automóvel.
Nas conclusões recursivas vieram os apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes».
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugerem, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação dessa decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “[s]e os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão aos apelantes neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, os apelantes advogam que devem ser dadas como não provadas as afirmações de facto vertidas nos pontos nºs 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20 e 23 dos factos provados.
Começando pelo ponto nº 7 dos factos provados[5], as confrontações aí indicadas correspondem exatamente à transcrição do que consta da certidão emitida pela 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia, referente ao imóvel descrito sob o nº ...93/19970418, da Freguesia ..., sendo que foi com base nesse suporte documental que o decisor de 1ª instância deu como provada a materialidade nele plasmada.
Ora, de há muito constitui entendimento pacífico na jurisprudência[6] que, tendo por sustentáculo a dita certidão, não devem considerar-se provadas a área e as confrontações de um prédio constantes do registo predial, por não ser atribuível, nesse aspeto, a essa certidão, força probatória plena, sendo que a presunção contemplada no art. 7º do Código de Registo Predial não abrange esses fatores descritivos, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
Consequentemente determina-se a eliminação do ponto nº 7 do elenco dos factos provados.
Nos demais enunciados fácticos deu-se como provado que:
. “Nesse local, inicia-se uma parcela de terreno com o comprimento de cerca de 15 metros, sensivelmente no sentido poente - nascente, sempre em terra batida e com a largura de cerca de 3 metros, encostado a construções amovíveis e a um muro em pedra solta em média com cerca de 0,80 metros de altura, até que flete de novo para a direita e é interrompido pela antiga linha férrea da ...” (ponto nº 9);
. “A parcela de terreno aludida em 9) situa-se entre os prédios aludidos em 3) e em 6)” (ponto nº 10);
. “Há mais de 20 anos, os autores utilizam a parcela de terreno aludida em 9) para passar para o prédio aludido em 2) e 3) a pé, com carro e com veículos agrícolas, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma continuada e na plena convicção do exercício de um direito” (ponto nº 11);
. “A parcela de terreno aludida em 9) encontra-se ao longo de mais de 50 metros, sempre em terra batida e com as características ali referidas, autonomizada dos terrenos que lhe são contíguos - os prédios aludidos em 3) e em 6) -, destinando-se à passagem de várias pessoas para os seus respetivos prédios” (ponto nº 12);
. “Em data não concretamente determinada, mas pelo menos desde 2016, os réus iniciaram a construção de uma estrutura amovível, contígua para sul à parcela de terreno aludida em 9), ocupando parte da mesma, encurtando-a em cerca de 1 metro pela sua largura” (ponto nº 13);
. “Em virtude da implantação da construção aludida em 13), os autores ficaram impossibilitados de aceder ao prédio mencionado em 2) e 3) com veículos agrícolas ou com veículos pesados” (ponto nº 14);
. “Desde data não concretamente determinada, parte do muro que delimita o prédio aludido em 6) da parcela de terreno mencionada em 9) encontra-se derrubado sobre esta mesma parcela, impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao seu prédio por intermédio de veículo automóvel ou de veículos agrícolas” (ponto nº 15);
. “Ao longo dos últimos anos, os réus têm vindo a permitir que os ramos e galhos das árvores plantadas na delimitação do prédio aludido em 6) invadam o espaço da parcela mencionada em 9), impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao prédio referido em 3), por intermédio de veículo automóvel e de veículos agrícolas” (ponto nº 16);
. “A parcela de terreno aludida em 9) permite o acesso a pé, de carro e de veículos agrícolas ao prédio referido em 3) e delimita em toda a sua extensão de cerca de 15 metros os prédios mencionados em 3) e em 6) no sentido sensivelmente nascente – poente” (ponto nº 17);
. “Em virtude da conduta dos réus, os autores deixaram de poder aceder ao seu prédio indicado em 3) pelo portão a norte e deixaram de poder transitar com veículos automóveis, nomeadamente de natureza agrícola, para o interior do seu prédio” (ponto nº 19);
. “Os autores não dispõem de nenhum outro acesso ao prédio aludido em 3) com veículos pesados e com veículos automóveis agrícolas” (ponto nº 20);
. “A parcela de terreno aludida em 9) constitui a única forma para os autores acederem ao eco-caminho mencionado em 18) através do prédio referido em 3)” (ponto nº 23).
As transcritas proposições consubstanciam as essenciais questões de facto que se discutem no âmbito do presente processo e que se prendem em apurar se os autores beneficiam de passagem pela parcela de terreno identificada no ponto nº 9 dos factos provados para aceder ao seu imóvel e bem assim se os réus têm dificultado ou obstaculizado essa passagem.
Vejamos, antes do mais, em que termos o juiz a quo fundamentou o sentido decisório referente à descrita materialidade, sendo que na respetiva motivação escreveu que «[o] tribunal fundamentou a sua convicção no conjunto da prova testemunhal e documental junta aos autos, analisada à luz das regras da experiência comum e da lógica, sendo que aquela se encontra devidamente gravada.
Assim, para fundamentação da matéria de facto o Tribunal baseou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas:
- GG, técnico eletrotécnico, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ser filho dos autores e ter residido no local em apreço nos autos durante grande parte da sua vida.
Prestou o seu depoimento de forma clara, coerente e credível, logrando convencer o tribunal da veracidade das suas declarações.
Referiu ter sessenta anos de idade e ter sido criado no prédio aludido nos autos, motivos pelos quais revelou ter um conhecimento direto e aprofundado da matéria em apreço nos autos.
Descreveu a composição do prédio pertencente aos autores, a utilização dada ao mesmo ao longo dos anos, designadamente quanto ao seu aproveitamento agrícola, bem como a forma de acesso a tal imóvel.
A este propósito, referiu que o portão visível nas fotografias juntas com a petição inicial sob os n.ºs 14 a 16 constituiu a entrada originária do prédio, sendo essa a única forma de acesso ao prédio.
Esclareceu ainda que a entrada visível na fotografia junta com a petição inicial sob o n.º 7 foi aberta há cerca de quinze anos, referindo que a mesma se tornou necessária face à conduta dos réus, os quais inviabilizaram o acesso com veículos através do portão originário.
Descreveu de forma pormenorizada e credível as condutas assumidas pelos réus com vista a impedir o uso do mencionado caminho de servidão por parte dos autores.
Pronunciou-se quanto à utilização dada a tal caminho, quer pelos autores, quer por terceiros, referindo que o mesmo dava passagem para vários prédios.
Referiu que durante muitos anos a Junta de Freguesia promoveu a limpeza do referido caminho, o que deixou de suceder há alguns anos, devido à oposição e à agressividade manifestada pelos réus.
Esclareceu a data e as circunstâncias em que os réus procederam à construção dos anexos, referindo que os mesmos foram parcialmente implantados sobre o caminho em apreço.
Referiu ainda que os autores não dispõem de qualquer outro acesso ao seu prédio por veículo pesado ou por máquinas agrícolas.
- OO, estagiário, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ser neto dos autores e de ter residido no local.
Prestou o seu depoimento de forma clara e coerente, corroborando, no essencial, o depoimento prestado pela testemunha GG.
Visualizou as fotografias juntas ao processo, identificando os diversos prédios em apreço, bem como o mencionado caminho de servidão e a entrada originária para o prédio dos autores.
Esclareceu os litígios existentes entre os autores e os réus a propósito da utilização do mencionado caminho de servidão, referindo que ele próprio – na sequência de uma denúncia dos réus – foi arguido num processo criminal, em virtude de ter procedido à limpeza do caminho.
Pronunciou-se quanto à utilização do referido caminho por parte dos autores, referindo a sua essencialidade para o acesso ao prédio de que são proprietários.
Descreveu as condutas assumidas pelos réus com vista a inviabilizar a utilização do caminho por parte dos autores.
Afirmou ainda que no passado chegou a ver funcionários camarários a procederem à limpeza do caminho.
- II, pintor reformado, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ter sido caseiro dos autores, tendo cessado tal relação há cerca de 30 anos.
Prestou o seu depoimento de forma vaga e inverosímil, revelando animosidade para com autores.
Tais circunstancialismos abalaram a credibilidade do depoimento prestado, não tendo logrado convencer o tribunal da veracidade das declarações prestadas.
Pronunciou-se quanto à forma de acesso ao prédio dos autores, sendo que a esse propósito foi contraditado pelo depoimento da testemunha GG, o qual se revelou mais credível e consentâneo com a realidade visível nas fotografias juntas ao processo.
Apesar de ter referido que os autores tinham acesso ao seu prédio através de um carreiro, nesta parte, depôs de forma manifestamente incoerente e até contraditória ao longo do depoimento.
- JJ, pintor, que revelou ter conhecimento dos factos em virtude de ter residido no local com os seus pais, que eram arrendatários dos autores.
Prestou o seu depoimento de forma vaga e insegura, referiu que já deixou de residir no local há cerca de 12 anos.
Pronunciou-se quanto à forma de acesso dos autores ao seu prédio.
Foram ainda considerados os documentos juntos aos autos, designadamente as certidões de registo predial e matricial juntas ao processo (que atestam a propriedade de cada um dos imóveis em apreço nos autos e que comprovam que os prédios dos autores e dos réus confrontam, respetivamente a norte e a sul com um caminho de servidão; saliente-se que os réus não alegam que o mencionado caminho de servidão integre o seu prédio ou que lhes pertença, sendo que em bom rigor se limitam a impugnar a posição dos autores, não invocando qualquer direito exclusivo ao uso da mencionada parcela de terreno), a escritura junta com a petição inicial (que comprova a data e as circunstância da aquisição do prédio por parte dos autores; saliente-se que também este documento mencionada que o prédio pertencente aos autores confronta a norte com um caminho), as fotografias aéreas e as plantas juntas ao processo (que permitem visualizar os diferentes prédios e parcelas de terreno, bem como a sua implantação na área), as fotografias juntas com a petição inicial (que permitem aferir as características do mencionado caminho de servidão, as formas de acesso ao prédio dos autores, bem como os obstáculos à utilização do mencionado caminho), a notificação judicial avulsa junta com a petição inicial (que consubstancia a interpelação dos autores ao réu quanto ao mencionado caminho de servidão), os elementos documentais referentes ao processo crime aludido nos autos (que atestam a existência de litígios quanto à utilização do mencionado caminho de servidão) e a certidão referente ao prédio dos réus (que atesta a sua propriedade e as suas confrontações)».
Colocados perante a transcrita motivação da decisão de facto, os apelantes sustentam, desde logo, que, contrariamente do que foi decidido pelo tribunal de 1ª instância, a prova produzida não é de molde a dar como provados os enunciados fácticos supra transcritos, já que a leitura que fazem dessa prova é no sentido de que o caminho em causa não é um caminho de servidão.
Procedeu-se à audição integral do registo fonográfico dos depoimentos prestados na audiência final, verificando-se que todas as quatro testemunhas inquiridas nesse ato processual revelaram, em maior ou menor medida, conhecimento da materialidade que consubstancia objeto de impugnação nesta sede recursiva, por terem vivido em habitações próximas do local onde se situa o ajuizado caminho.
Assim, a testemunha GG (filho dos autores, contando presentemente 61 anos de idade), adiantou que “toda a sua vida” viveu no imóvel situado no nº ...2 da Travessa ... (que é o imóvel descrito no ponto nº 3 dos factos provados) e que o prédio mencionado no ponto nº 1 dos factos provados (pertencente aos seus pais) foi, desde que se recorda, destinado à agricultura.
Referiu que o acesso a esse prédio rústico se fazia por um caminho que se iniciava na Travessa ... e que seguia no sentido da linha de caminho de ferro que durante bastante tempo aí existiu [e onde atualmente se situa o eco-caminho a que se alude no ponto nº 18 dos factos provados], sendo que esse caminho era utilizado por diversas pessoas (na expressão da testemunha “toda a gente passava ali abaixo”) que nele transitavam para aceder quer a terrenos situados nas suas proximidades, quer para seguir para outros locais, nomeadamente para a Estrada Nacional nº ...3. A este propósito adiantou que durante algum tempo (e até há cerca de dez anos) funcionários da Junta da Freguesia chegaram a fazer a limpeza e manutenção do caminho, trabalhos que deixaram de realizar porque eram “incomodados” pelos réus que os injuriavam quando os estavam a levar a cabo. Questionado a este respeito referiu estar convencido que o caminho em questão “é público, mas que no PDM terão alterado isso”.
Acrescentou que no prédio rústico descrito no ponto nº 1 dos factos provados existe há já vários anos um portão pelo qual, provindo do mencionado caminho, se fazia o acesso a esse prédio, seja a pé, seja com carros de bois e trator, situação essa que se manteve até há cerca de 15/16 anos, data em que tiveram de fazer um novo portão situado mais acima, porquanto já não podiam aceder, de carro ou trator, por aquele outro portão, em razão de arbustos que cresciam nessa parte do caminho e que terão sido plantados pelos réus no seu imóvel [isto é, no prédio descrito no ponto nº 6 dos factos provados], os quais, há mais de vinte anos (acabando por adiantar que esse facto terá ocorrido no ano de 1984), fizeram um aumento de um anexo construído no seu terreno e que terá ocupado cerca de um metro do caminho.
Referiu que os prédios referidos nos pontos nºs 1 e 3 dos factos provados confrontam com a Travessa ..., não tendo, contudo, entrada direta por essa via, fazendo-se a entrada (a pé e de carro) atualmente pelo novo portão que os autores construíram, não conseguindo, no entanto, os mesmos aí aceder se utilizarem um trator.
Adiantou que, apesar de há vários anos existir dificuldade em transitar pelo caminho, os autores nunca pediram à Junta de Freguesia ou mesmo à Câmara Municipal ... para proceder à sua desobstrução, acrescentando que já várias pessoas se queixaram dessa dificuldade e da ocupação que vem sendo feita do mesmo.
Por seu turno, a testemunha HH (neto dos autores e que presentemente conta 32 anos de idade) referiu que sempre morou no imóvel identificado no ponto nº 3 dos factos provados.
Adiantou que o acesso ao imóvel a que se alude no ponto nº 1 dos factos provados até um determinado momento (que situa no ano de 2015) era feito por um portão velho que “deitava para o caminho”, através do qual acediam seja a pé (através dum “portãozinho”), seja por intermédio de carro ou veículos agrícolas, sendo que esse caminho teria sensivelmente a mesma largura do “caminho de cima” [reporta-se ao caminho a que se alude no ponto nº 8 dos factos provados]. Essa situação manteve-se até à mencionada data, mas, em resultado de desavenças existentes entre os autores e os réus por causa do caminho, acabaram aqueles por fazer um novo portão [que é o portão que pode ser visto no registo fotográfico junto com a petição inicial como documento nº 8]. Ainda a este respeito referiu que o acesso ao imóvel descrito no ponto nº 3 dos factos provados não é diretamente feito pela Travessa ..., apesar de o mesmo confrontar com essa via.
Acrescentou que até um determinado momento [que não soube precisar no tempo] chegou a ver no local funcionários da Junta da Freguesia a fazer a limpeza da totalidade do caminho, sendo que a partir de uma dada ocasião deixaram de efetuar essa limpeza porque os réus “implicavam com eles”, continuando, no entanto e durante algum tempo, a fazer essa limpeza até ao portão novo.
Adiantou que o caminho foi sendo encurtado ao longo do tempo por ação dos réus, que foram plantando arbustos no seu terreno, mas que derivavam para o caminho.
Referiu também que ainda se consegue entrar no prédio referido no ponto nº 1 dos factos provados através do “portão velho”, mas apenas a pé, não sendo possível, pelas atuais condições do caminho, aí aceder de carro ou trator.
A testemunha II referiu ter sido caseiro dos autores durante cerca de 8/9 anos, vivendo então nuns anexos existentes no imóvel a que se alude no ponto nº 3 dos factos provados, tendo deixado de laborar para aqueles há cerca de 28/30 anos.
Adiantou que acedia aos anexos onde morava através de um carreiro “com cerca de um metro, um metro e pouco” o qual desembocava na Travessa ..., sendo que os autores também utilizavam esse carreiro.
Acrescentou que mais adiante havia um caminho (que denominou “quelha”) que se iniciava na Travessa ... e que seguia na direção da linha do caminho de ferro que então aí existia, o qual era utilizado por diversas pessoas – fossem ou não proprietários de imóveis situados nas suas imediações -, sendo que os autores o usavam para entrar no prédio referido no ponto nº 1 dos factos provados, enquanto os réus aí passavam para seguir em direção a um imóvel que tinham já depois da linha do caminho de ferro e onde secavam bacalhau.
Por último, a testemunha PP (que presentemente conta 43 anos de idade) referiu ser filho da testemunha II e que viveu com os seus pais nos anexos existentes no imóvel referido no ponto nº 3 dos factos provados, tendo deixado de aí residir quando teria 13/14 anos.
Adiantou que acedia aos anexos onde morava através de um carreiro que se iniciava na Travessa ..., acrescentando que, para aceder ao local onde habitava, utilizava também um caminho que dava para a linha de caminho de ferro e que se iniciava naquela Travessa, caminho esse que era utilizado como “acesso às pessoas que viviam ali ou pessoas que conheciam esse atalho” para se dirigirem para outros locais situados depois da linha do comboio.
Referiu não ter ideia que no imóvel dos autores que “deita” para esse caminho (isto é, o imóvel referido no ponto nº 1 dos factos provados) existisse então qualquer portão de acesso, adiantando que, nessa ocasião, se entrava nesse imóvel a pé, de bicicleta ou motorizada, não tendo lembrança de aqueles acederem ao mesmo utilizando veículo automóvel.
Para além da indicada prova pessoal foram ainda carreados para os autos diversos documentos, constituindo a generalidade deles registos fotográficos do caminho em diversas partes do mesmo, de cuja análise resulta que o mesmo se inicia junto de um “caminho público” que tem o seu início na Travessa ... derivando depois em direção à antiga linha de caminho de ferro (onde hoje se situa uma eco-via).
Questão que, então, se coloca é a de saber se os indicados meios de prova são, ou não, suficientes para considerar demonstrados os factos objeto de impugnação, o que importa a prévia determinação do padrão de prova exigível, rectius, do standard de prova aplicável[7].
Como a este propósito escreve LEBRE DE FREITAS[8], quanto ao grau de convicção exigível em processo civil, “no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança”.
Ainda sobre esta temática explica PIRES DE SOUSA[9] que o standard que opera no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável do que não”, o qual se consubstancia em duas regras fundamentais que enuncia nos termos seguintes: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
Como se deu nota, no caso presente, as proposições factuais objeto de impugnação em sede recursiva dizem essencialmente respeito ao modo como ao longo do tempo foi sendo utilizado o caminho em discussão na presente demanda.
Ora, o que os mencionados subsídios probatórios revelam é que o referido caminho foi sendo, ao longo dos anos, utilizado não só pelos proprietários de imóveis situados nas suas imediações para acesso aos mesmos, como também por outras pessoas que o usavam para encurtar a distância para outros locais, designadamente para a Estrada Nacional nº ...3, sendo que a limpeza e manutenção do caminho foi, durante vários anos, realizada por funcionários da Junta da Freguesia ....
De igual modo, esses elementos de prova confirmam que os autores, há já vários anos a esta parte, utilizam esse caminho para aceder ao seu imóvel descrito no ponto nº 1 dos factos provados, o que inicialmente fizeram através do que as testemunhas denominaram de “portão velho”, passando a partir de um determinado momento a fazê-lo por um novo portão situado mais acima, face ao estado de “degradação” que o caminho passou a apresentar na parte inferior do seu curso, em consequência, designadamente, de arbustos que aí foram crescendo, alguns dos quais plantados pelos réus no seu imóvel e que derivaram para o caminho.
Em resultado da concatenação dos indicados meios de prova, afigura-se-nos justificar-se a alteração da redação dos pontos nºs 11, 12 e 14 dos factos provados de modo a que haja uma efetiva correspondência com a prova adrede produzida quanto aos mesmos.
Como assim, tais pontos passarão a ter o seguinte teor:
. “Há mais de 20 anos, os autores utilizam a parcela de terreno aludida em 9) para passar para o prédio aludido em 2) e 3) a pé, com carro e com veículos agrícolas” (ponto nº 11);
. “A parcela de terreno aludida em 9) encontra-se ao longo de mais de 50 metros, sempre em terra batida e com as características ali referidas, autonomizada dos terrenos que lhe são contíguos - os prédios aludidos em 3) e em 6) -, sendo utilizada pelos proprietários de imóveis situados nas suas imediações para acesso aos mesmos e bem assim por outras pessoas que o usavam para encurtar a distância para outros locais, designadamente para a Estrada Nacional nº ...3” (ponto nº 12);
. “Em virtude da implantação da construção aludida em 13), os autores ficaram impossibilitados de aceder, com veículos agrícolas ou com veículos pesados, ao prédio mencionado em 2) e 3) através da parcela de terreno aludida em 9)” (ponto nº 14).
Já no concernente aos demais enunciados fácticos alvo de impugnação, os apontados elementos de prova não são de molde a impor (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º) uma decisão diversa, na justa medida em que tais afirmações de facto se mostram por eles confirmadas em termos que, à luz do enunciado standard da probabilidade prevalecente, legitimam a emissão do juízo probatório positivo que quanto a elas foi sufragado no ato decisório sob censura. Deverão, assim, manter-se com a mesma redação no elenco dos factos provados.
3. FUNDAMENTOS DE FACTO
Face à decisão que antecede, passa a ser a seguinte a factualidade relevante provada:
1 – Mostra-se inscrita na 1º Conservatória do Registo Predial da Maia, mediante apresentação n.º 300, datada de 7/4/2016, a aquisição a favor de KK, por divisão de coisa comum, do terreno a lavradio, atravessado pela linha férrea da ... à ..., situado no Lugar ..., denominado “Campo ...”, no concelho ..., que confronta a norte com caminho de servidão, a nascente com EE, a poente com ... e a sul com FF, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...60, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 2, cujo teor se dá por reproduzido.
2 - Mediante escritura pública datada de 19 de Julho de 1960, denominada “compra e venda”, KK declarou vender ao autor AA que, por seu turno, declarou comprar, pelo preço de seis mil escudos, um talho de terreno destinado a construção urbana, com a área de novecentos metros quadrados, sito no Lugar ..., da Freguesia ..., a confrontar do norte com o caminho público, do sul com LL, do nascente com MM e do poente com a linha férrea, a destacar do prédio artigo n.º ...60 da matriz rústica, descrito na Conservatória do Registo Predial respetiva como parte da gleba sétima do prazo já remido doze mil trezentos e seis, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 4, cujo teor se dá por reproduzido.
3 - Mostra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia, mediante apresentação n.º 302, datada de 7/4/2016, a aquisição a favor do autor AA, por compra, do prédio urbano situado na Travessa ..., na ..., com a área total de 900 m2, composto por edifício de rés-do-chão recuado da via pública, destinado a habitação, e logradouro, conforme documento junto com a petição inicial sob o n.º 1, cujo teor se dá por reproduzido.
4 – Os autores habitam no edifício aludido em 3).
5 – Os autores, por si e através dos seus antepossuidores, usam e fruem o prédio aludido em 2) e 3) há mais de 20 anos, nele semeando e colhendo centeio, utilizando-o como pastagem, plantando árvores, colhendo frutos à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta ao longo desses anos e sempre com a convicção do exercício de um seu direito.
6 - Os réus CC e DD são proprietários de um prédio composto de terreno agrícola e casa de habitação, correspondente ao n.º ...5 da Travessa ..., na ....
7 – Eliminado.
8 – Com início na Travessa ..., em paralelepípedo, parte um caminho público em terra batida, sensivelmente no sentido nascente-poente, com cerca de 3 metros de largura, encostado a um muro de vedação com construções em média de 1,80 metros de altura, durante cerca de 25 metros, até que, nas imediações de um canastro aí existente, flete para a direita.
9 – Nesse local, inicia-se uma parcela de terreno com o comprimento de cerca de 15 metros, sensivelmente no sentido poente - nascente, sempre em terra batida e com a largura de cerca de 3 metros, encostado a construções amovíveis e a um muro em pedra solta em média com cerca de 0,80 metros de altura, até que flecte de novo para a direita e é interrompido pela antiga linha férrea da ....
10 – A parcela de terreno aludida em 9) situa-se entre os prédios aludidos em 3) e em 6).
11 – (alterada a redação) Há mais de 20 anos, os autores utilizam a parcela de terreno aludida em 9) para passar para o prédio aludido em 2) e 3) a pé, com carro e com veículos agrícolas.
12 – (alterada a redação) A parcela de terreno aludida em 9) encontra-se ao longo de mais de 50 metros, sempre em terra batida e com as características ali referidas, autonomizada dos terrenos que lhe são contíguos - os prédios aludidos em 3) e em 6) -, sendo utilizada pelos proprietários de imóveis situados nas suas imediações para acesso aos mesmos e bem assim por outras pessoas que o usavam para encurtar a distância para outros locais, designadamente para a Estrada Nacional nº ...3.
13 – Em data não concretamente determinada, mas pelo menos desde 2016, os réus iniciaram a construção de uma estrutura amovível, contígua para sul à parcela de terreno aludida em 9), ocupando parte da mesma, encurtando-a em cerca de 1 metro pela sua largura.
14- (alterada a redação) Em virtude da implantação da construção aludida em 13), os autores ficaram impossibilitados de aceder, com veículos agrícolas ou com veículos pesados, ao prédio mencionado em 2) e 3) através da parcela de terreno aludida em 9).
15 - Desde data não concretamente determinada, parte do muro que delimita o prédio aludido em 6) da parcela de terreno mencionada em 9) encontra-se derrubado sobre esta mesma parcela, impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao seu prédio por intermédio de veículo automóvel ou de veículos agrícolas.
16 – Ao longo dos últimos anos, os réus têm vindo a permitir que os ramos e galhos das árvores plantadas na delimitação do prédio aludido em 6) invadam o espaço da parcela mencionada em 9), impossibilitando que os autores possam aceder ao portão originário de acesso ao prédio referido em 3), por intermédio de veículo automóvel e de veículos agrícolas.
17 – A parcela de terreno aludida em 9) permite o acesso a pé, de carro e de veículos agrícolas ao prédio referido em 3) e delimita em toda a sua extensão de cerca de 15 metros os prédios mencionados em 3) e em 6) no sentido sensivelmente nascente – poente.
18 - A parcela de terreno aludida em 9) destina-se também ao acesso de pé ao eco-caminho correspondente a um troço da antiga linha ferroviária de ... integrado num percurso mais abrangente, este de aproximadamente 3,3 km, desde a Quinta ..., na freguesia ..., ao antigo ..., na freguesia ....
19 – Em virtude da conduta dos réus, os autores deixaram de poder aceder ao seu prédio indicado em 3) pelo portão a norte e deixaram de poder transitar com veículos automóveis, nomeadamente de natureza agrícola, para o interior do seu prédio.
20 - Os autores não dispõem de nenhum outro acesso ao prédio aludido em 3) com veículos pesados e com veículos automóveis agrícolas.
21 - O prédio aludido em 3), outrora atravessado pela antiga linha férrea da “... à ...”, é atualmente atravessado (confinante, a poente), pelo eco-caminho mencionado em 18).
22 – O eco-caminho mencionado em 18) destina-se ao exercício da actividade desportiva e de lazer, designadamente caminhada, corrida ou bicicleta, caminhada com animais ou piquenique.
23 – A parcela de terreno aludida em 9) constitui a única forma para os autores acederem ao eco-caminho mencionado em 18) através do prédio referido em 3).
4. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Na peça processual com que deram início ao presente processo os autores filiam os diversos pedidos que direcionam contra os réus no facto de estes estarem, indevidamente, a obstaculizar o exercício do direito de servidão de passagem de que gozam sobre o caminho aí identificado.
Na sentença recorrida o decisor de 1ª instância julgou procedente, ainda que parcialmente, as concretas pretensões de tutela jurisdicional formuladas nesse articulado por considerar que os autores são efetivamente titulares do arrogado direito real (menor) de gozo, por o haverem adquirido por usucapião.
É contra esse segmento decisório que ora se rebelam os réus/apelantes, argumentando fundamentalmente que na esfera jurídica patrimonial dos demandantes não radica qualquer direito de servidão sobre o ajuizado caminho.
Que dizer?
Tal como os autores configuram a presente ação assume a mesma natureza de ação reivindicatória[10] (cfr. arts. 1311º e 1315º do Cód. Civil), na justa medida em que exigem dos réus o reconhecimento de um direito de servidão sobre o caminho identificado no ponto nº 9 dos factos provados, com o consequente dever de estes procederem ao afastamento dos obstáculos que opõem ao exercício efetivo desse direito.
Portanto, para que possa proceder este tipo de ação importa, como prius, que os autores façam a prova da titularidade do mencionado direito real.
A servidão, tal como é definida e regulada pela lei civil (cfr. art. 1543º), constitui sempre um «[e]ncargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente».
Nesta noção são identificáveis quatro ideias-chave: (i) a servidão predial é um encargo; (ii) o encargo recai sobre um prédio; (iii) aproveita exclusivamente a outro prédio; (iv) os prédios devem pertencer a donos diferentes.
A servidão constitui, pois, um ius in re aliena, representando uma limitação ao direito de propriedade sobre o prédio onerado, implicando uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio serviente impedindo-o de praticar atos que possam prejudicar o exercício da servidão.
De igual modo, a servidão implica uma relação imobiliária, afirmando-se necessariamente (cfr. art. 1544º do Cód. Civil) uma ligação objetiva entre o gozo das utilidades do prédio serviente e a titularidade do prédio dominante.
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio, o problema que nele se equaciona é o de saber se a materialidade apurada permite densificar faticamente as enunciadas caraterísticas tipológicas do direito de servidão cujo reconhecimento os autores reclamam ter adquirido por usucapião.
Em conformidade com o regime plasmado nos arts. 1287º a 1297º do Cód. Civil, para a constituição de uma servidão pela indicada via originária, torna-se mister que o proprietário do prédio dominante pratique atos de posse, suscetíveis de conduzir à aquisição do direito de passagem, utilizando uma faixa de terreno do prédio serviente, delimitada no solo através de sinais visíveis e permanentes[11], desde há mais de vinte anos, continuada, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos de outrem. Encontra-se assim subjacente ao regime legal que os atos praticados por mera tolerância ou cortesia, bem como todos aqueles que traduzem o exercício de servidões não aparentes, sendo equívocos ou clandestinos, não permitem afirmar com segurança uma posse ad usucapionem.
Apelando ao quadro factual provado, dele emerge que os autores, há mais de vinte anos, utilizam o “caminho público” referido no ponto nº 8 dos factos provados, entrando seguidamente no caminho a que se alude no ponto nº 9 dos factos provados para aceder ao imóvel identificado no ponto nº 1 dos factos provados.
No entanto, não resulta dos autos (nem os autores o alegam) que os demandados sejam proprietários do prédio serviente, não estando sequer identificado qual o concreto imóvel onerado com o alegado direito de servidão e a quem pertencerá, afinal, a parcela de terreno que constitui o “leito” do ajuizado caminho.
Ao invés ficou demonstrado que o que os autores designam por “caminho de servidão” vem sendo utilizado há mais de vinte anos não só pelos proprietários de imóveis situados nas imediações e para aceder às respetivas propriedades (como é o caso dos autores e réus), como também por outras pessoas que aproveitam o “caminho público” mencionado no ponto nº 8 dos factos provados, utilizando o ajuizado caminho para seguirem em direção a outros locais, designadamente para a Estrada Nacional nº ...3, encurtando o respetivo percurso.
Portanto, o que o tecido fáctico provado revela é que o caminho que os autores utilizam no acesso à sua propriedade (que, note-se, não é um prédio absoluta ou relativamente encravado para os efeitos do disposto no art. 1550º do Cód. Civil, dispondo de acesso direto à via pública – Travessa ...) não é - por lhe faltarem as caraterísticas tipológicas acima descritas - um caminho de servidão de passagem na verdadeira aceção jurídica do termo.
Poder-se-ia equacionar a possibilidade desse caminho ser qualificado como caminho público, o que seria passível de ser indiciado pelo facto de, como resultou da prova pessoal adrede produzida, durante largo tempo, funcionários da Junta da Freguesia ... terem procedido à sua manutenção e limpeza.
No entanto, a materialidade que logrou demonstração não é de molde a permitir afirmar os requisitos dessa dominialidade, que são essencialmente dois: o uso direto e imediato pelo público e a imemorialidade desse uso[12]-[13].
Perante as assinaladas caraterísticas do caminho em questão (maxime dada a utilização coletiva e pública que é feita do mesmo), estaremos, summo rigore, em presença do que a lei substantiva denomina de atravessadouro (também, por vezes, designados de “atalhos”) que são serventias públicas que se fazem através de prédios particulares e têm por fim essencial encurtar o percurso entre locais determinados, isto é, atalhos que se fazem por terrenos particulares, por isso fazendo os seus leitos parte dos prédios atravessados.
Isso mesmo é posto em evidência por PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA[14], quando escrevem que “sempre que (…) o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajetos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º do Código Civil, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem entrou no domínio público, através de alguns dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade”.
Assim, qualificado um caminho como atravessadouro, o respetivo leito integra-se no prédio que atravessa, podendo o seu dono usar dos poderes que lhe confere o direito de propriedade, designadamente o da sua destruição, alteração ou mudança, bem como o de impedir que terceiros o utilizem, a menos que o mesmo se mostre estabelecido em favor de prédios determinados, constituindo servidão, ou então, nos termos do art. 1384º do Cód. Civil, quando, havendo posse imemorial, o mesmo se dirija a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não houver vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra.
Em face do exposto temos, pois, que o alegado direito de passar pelo ajuizado caminho que os autores reclamam reconduz-se a uma mera situação de facto que vem sendo mantida há mais de vinte anos, não se vendo como se possa afirmar ter sido constituído, pela via da usucapião, um direito de servidão de passagem a favor do seu prédio sem que essa questão tenha, alguma vez, sido dirimida com o proprietário do respetivo prédio serviente.
Consequentemente, não tendo os demandantes logrado provar os factos constitutivos do direito (real) de servidão que se arrogam (art. 342º nº 1 do Cód. Civil), impõe-se, por isso, a improcedência dos pedidos que, com base nessa causa petendi, direcionaram contra os réus.
A apelação terá, por conseguinte, de proceder.
III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, em consequência do que se absolvem os réus dos pedidos contra si formulados.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos autores (art. 527º, nºs 1 e 2).
Porto, 11/11/2024
Miguel Baldaia de Morais
Mendes Coelho
Anabela Morais
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Que tem o seguinte teor: “O prédio aludido em 6) confronta a norte com NN, a sul com caminho de servidão, a nascente com caminho público e a poente com caminho de ferro”.
[6] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 29.10.1992 (processo nº 082672), de 18.01.2018 (processo nº 668/15.3T8FAR.E1.S2), de 28.09.2017 (processo nº 809/10.7TBLMG.C1.S1) e de 10.12.2019 (processo nº 1808/03.0TBLLE.E1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Conforme escreve PIRES DE SOUSA (in Prova por presunção no Direito Civil, 2ª edição, Almedina, pág. 149), um standard de prova consiste “numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira”.
[8] In Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 160 e seguinte.
[9] In Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, págs. 55 e seguintes.
[10] Cfr., sobre essa caraterização, inter alia, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 119, ALBERTO VIEIRA, in Direitos Reais, 3ª edição, Almedina, págs. 444 e seguintes e MENEZES LEITÃO, in Direitos Reais, 9ª edição, Almedina, págs. 257 e seguintes.
[11] Cfr. arts. 1294.º, alínea a), e 1548.º, do Cód. Civil.
[12] Como é consabido, a necessidade desse distinguo esteve na base do assento nº 7/89, de 19.04.1989 (hoje com valor de acórdão de uniformização de jurisprudência), onde se se doutrinou que «são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso direto do público», doutrina esta que tem vindo a ser alvo de uma interpretação restritiva/corretiva no sentido de a dominialidade exigir ainda a afetação do caminho a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objeto a satisfação de interesses coletivos de certo grau e relevância - cfr. sobre a questão, entre outros, acórdão do STJ de 30.01.2013 (processo nº 113/09.3TBSBG.C2.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[13] Sobre os diversos critérios (v.g. critério da construção e manutenção e critério do uso) que têm presidido à distinção entre caminhos públicos e caminhos privados/particulares, vide, por todos, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, ob. citada, pág. 281 e CARVALHO MARTINS, in Caminhos públicos e atravessadouros, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 66 e seguintes.
[14] Ob. citada, pág. 283.