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CONTRATO DE EMPREITADA
PRESUNÇÃO DE CULPA
MORA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
I - De entre os factos alegados pelas partes nos articulados, na sentença, devem ser dados como provados ou não provados, todos aqueles que são constitutivos do direito do Autor . II - Tendo a R. sobre si uma presunção de culpa – artigo 799º do CC - para a afastar é necessário, não apenas a simples contraprova, mas a prova do contrário. Não o fazendo, mantém-se a presunção de culpa III - Perante um contrato de empreitada com prazo certo para o cumprimento da obra, ultrapassado esse prazo e não estando aquela concluída, pode afirmar-se que o devedor entrou em mora. Tendo o empreiteiro sido notificado pelo dono da obra que lhe concede um prazo suplementar para o cumprimento e, decorrido este prazo, a obra não estiver concluída, a mora do credor transforma-se em incumprimento definitivo, dando azo à resolução do contrato. IV - Havendo resolução do contrato por incumprimento, a indemnização tende a colocar o dono da obra na situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio (interesse contratual negativo)
Texto Integral
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 4
Processo nº 2701/22.3T8VNG.P1
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa comum contra A..., Unipessoal, Lda., alegando, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de empreitada que não cumpriu, peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 22.966,10€, valor dos danos que sofreu.
A ré contestou e deduziu pedido reconvencional, alegando, em síntese, que a autora desistiu da empreitada, o que lhe causou danos no valor de 12.526,79€, cujo valor peticiona que a autora seja condenada a pagar-lhe.
A autora contestou o pedido reconvencional.
O pedido reconvencional foi admitido, foi proferido despacho saneador, identificados o objeto do litígio e os temas da prova.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão nos seguintes termos:”
a) julgar a ação improcedente, por não provada, absolvendo a ré A..., Unipessoal, Lda., do pedido formulado pela autora.
b) julgar a ação reconvencional improcedente, por não provada, absolvendo a autora/reconvinda AA do pedido formulado pela ré/reconvinte.
As custas da ação são a suportar pela autora (artigo 527.º, 1, do CPC).
As custas da reconvenção são a suportar pela ré (artigo 527.º, 1, do CPC).”
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RECURSO
Não se tendo conformado com tal decisão, veio a A. AA interpor recurso.
Após as alegações apresenta as seguintes CONCLUSÕES
A. O prazo para a conclusão da obra era essencial para a Recorrente, tendo-o por várias vezes referido à Recorrida.
B. A obra tinha o seu início contratado para o começo de Fevereiro de 2021 e o seu término durante o mês de setembro de 2021.
C. A obra esteve várias vezes parada e os trabalhadores e empreiteiro da Recorrida não iam todos os dias à obra, como pugnam.
D. O atraso no licenciamento dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas ficou a dever-se à conduta da Recorrente (leia-se Recorrida) que não fornecia a documentação necessária à Recorrente, nem tão pouco, concluiu corretamente as infraestruturas necessárias.
E. A Recorrida (leia-se Recorrente) tem direito a ser ressarcida da renda parcial de novembro e dezembro, como peticionado nos autos anteriormente.
F. A Recorrente enviou a missiva a informar que a Recorrida estava em mora, dentro do prazo.
G. A Recorrente tem direito a ser ressarcida pela Recorrida no valor 15.879,98 euros entregue a mais, face aos trabalhos já concluídos pela Recorrente.
H. Bem como, a juros de mora até ao integral pagamento.
I. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a douta sentença nos termos sobreditos.
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Não houve resposta às alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. A DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a decidir prendem-se com: Da impugnação da matéria de facto Fundamento e consequências da resolução do contrato
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. OS FACTOS
Decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto controvertida.
Matéria de facto provada 1) A autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano sito na Travessa ... em .... 2) A ré é uma sociedade comercial que exerce a atividade de construção e engenharia civil. 3) Em finais de outubro do ano de 2020, a autora solicitou à ré um orçamento para a realização de trabalhos de construção, reconstrução e ampliação de uma moradia unifamiliar no prédio urbano referido em 1). 4) Na sequência de tal solicitação, a ré apresentou à autora a proposta de orçamento n.º ..., datada de 03.11.2020, onde se encontravam discriminados e detalhados todos os trabalhos a serem levados a cabo na execução e ampliação da construção da moradia unifamiliar, tudo conforme termos do documento 2 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 5) Aceitando a proposta de orçamento apresentada pela ré, no dia 9 de fevereiro de 2021, autora e ré acordaram na empreitada constante do documento 1, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido 6) Sendo o preço global para execução dos trabalhos discriminados e orçamentados de 80.000€ mais IVA, e pagar pela forma, nos prazos e demais previsto no documento 3, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido 7) E ficando acordado que os trabalhos teriam a conclusão integral em 240 dias de calendário, com início previsível em fevereiro de 2021 e conclusão em setembro de 2021. 8) Com o decorrer da obra, a autora interpelou a ré para que fossem feitas alterações. 9) A autora pagou à ré 64.350€. 10) A 28 de outubro a autora enviou carta registada com aviso de receção à ré, interpelando-a a concluir os trabalhos acordados, informando-a que se encontrava em mora, definindo um prazo para a concretização dos mesmos, até ao dia 10 de dezembro para a parte interior e 10 de janeiro para a parte exterior da casa, informando ainda que, caso tal não se realizasse, a ré entraria em incumprimento definitivo contratual, tudo conforme termos do documento 9) junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 11) A 15 de dezembro de 2021 a autora enviou um email à ré dando por concluído a partir desse dia o contrato de empreitada, tudo conforme termos do documento 13) junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido. 12) A ré procedeu a trabalhos de limpeza e de demolição no imóvel da autora em janeiro de 2021. 13) A data de emissão do alvará para a obra que a autora pretendia executar é de 08/02/2021. 14) Os trabalhos de construção de remodelação e ampliação da moradia começaram a 05/03/2021. 15) O prazo de licença das obras concedido pela Câmara Municipal ... era por 6 meses. 17) Cabia a terceiros proceder aos trabalhos de caixilharia, serralharia e carpintaria a realizar na remodelação e ampliação da moradia da autora. 17) Pelo menos parte das alterações efetuadas vieram a refletir-se no documento 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido, consistente este numa descrição dos trabalhos a realizar. 18) A obra esteve parada por falta de material, por doenças provocada pelo covid-19, no período das férias de verão e ainda noutros períodos curtos. 19) Pretendendo a ré iniciar os trabalhos de eletricidade e com medo do cobre ser furtado queria que a obra fosse fechada com janelas e portas, o que veio a suceder. 20) Existiu um problema de ligação das instalações de água e saneamento aos ramais públicos, que cabia à autora resolver 21) Estando a 13/12/2021 ainda a aguardar-se que fossem efetuados. 22) A autora pagou 1.113,24€ de rendas entre outubro e dezembro de 2021 23) Foram efetuados dois pedidos à B... de prorrogação do prazo para terminar a obra, tendo o primeiro um período de 3 meses. 24) Tendo a autora pago 336,54€ com o primeiro pedido de prorrogação. 25) A 18 de dezembro de 2021, a ré tinha procedido no imóvel da autora a trabalhos que foram avaliados em 48.470,02€. 26) À data de saída da ré: a) a obra estava vedada com caixilhos e parou na fase de abertura de roços e instalação de cablagens estando as paredes e pavimentos em tosco e sem qualquer revestimento b) O projeto de telecomunicações não estava de acordo com os regulamentos exigidos tem sido detetada desconformidades na sua conceção (onde refere em nota que “os tubos não indicados são do tipo VD/ISOGRIS de 25mm de diâmetro) sendo posteriormente comunicadas ao respetivo responsável pela sua elaboração. Não obstante do atrás referido a instalação foi feita de acordo com o plano ATI contudo ainda assim foi verificada a colocação de uma caixa sub-dimensionada, está em falta a instalação de alguns elementos exigidos para aprovação e um dos tubos instalados não cumpre o regulamento sendo obrigatória a instalação de dois tubos diferentes para a mesma função. c) O projeto de gás foi respeitado até certo ponto, mas não está completa a instalação, estando em falta tubagem regulamentar. d) O projeto de estabilidade foi objeto de acompanhamento constante ao longo da obra estando ele a ser cumprido até então tendo sido alterada a posição altimétrica de uma viga no exterior (lavandaria) e a eliminação de 2 degraus de acesso ao meio piso passível de ser submetida a correção do projeto de estabilidade em aditamento. e) Não existe projeto de eletricidade ficando a responsabilidade a cargo do instalador, contudo a caixa elétrica instalada encontra-se sub-dimensionada e terá que ser alterada. f) A arquitetura sofreu bastantes alterações ao projeto inicial, contudo, nada compromete a sua aprovação mediante aditamento de telas finais. Foram alterados materiais, cores, vãos, altimetrias espaciais, altimetrias de vedação, disposições de peças, usos espaciais assim como também outros elementos técnicos. De referir que a eliminação de 2 degraus (cerca de 40cm) de acesso ao meio piso inviabilizou a instalação de um escritório nessa zona ficando assim sendo uma zona de arrumos gerais tudo o resto mantém o uso proposto. g) O projeto de águas residuais não está de acordo com projeto aprovado e também não está concluído, contudo está de acordo com esquiço e sugestões de melhoramento propostas por técnico de vistoria da B... e será submetido aditamento com as respetivas correções. h) O projeto de águas pluviais não se encontra concluída, contudo o caimento das águas dos telhados está a ser respeitado e os pontos de ligação dos tubos de queda encontram-se na posição correta, os tubos de queda estão projetados para serem ocultos e verificam-se em espera, como tal aguarda-se solução que permitirá ocultar os mesmos, tudo conforme termos do relatório junto como documento 12 com a petição inicial, cujo teor se dá por concluído. 27) Concluindo nesse relatório que “As desconformidades acima descritas comprometem o fecho do processo e a sua aprovação assim como também o pedido da respectiva licença de Utilização sendo pertinente a sua regularização, quer projectos quer retificação e complementação das instalações feitas até á data. Contudo não foram detectadas deficiências suficientemente relevantes que comprometam o bom funcionamento do prédio sendo as desconformidades passiveis de serem retificadas. Verificou-se também, em algumas situações, um devaneio perante o projecto de Arquitectura e nos seus detalhes, tornando-se difícil avaliar as questões estéticas. Sendo Director de Fiscalização e Autor de Projecto refiro que todas as incongruências relativas à Arquitectura são passiveis de serem retificadas e tendem preferencialmente ir de encontro ás preferências do dono de obra, seja por questões de gosto ou questões de economização verbas. A obra sofreu bastante com o incumprimento dos prazos previamente estabelecidos devido ás inúmeras paragens dos trabalhos estando em causa perdas monetárias significativas. A Licença expira no início do mês de Maio de 2022 e não haverá possibilidade de nova prorrogação. Caso a actual licença expire terá de ser feito novo pedido e pago as respectivas taxas inerentes ao procedimento. Em falta estão algumas das instalações técnicas assim com todos os acabamentos interiores e exteriores, peças de utilidade e decorativas e peças de mobiliário fixo e de conforto (…)”. 28) A autora destinava o imóvel a ser remodelado e ampliado para ser a sua habitação. 29) Em 2017 foi reconhecida à autora uma incapacidade de 60%, que deveria ser reavaliada em 2022.
Matéria de facto não provada 30) Os atrasos na conclusão da obra ficaram-se a dever unicamente à ré, que frequentemente ficava dias e semanas sem aparecer na obra. 31) A autora gastou 972,88€ com dois pedidos à B... de prorrogação do prazo para terminar a obra. 32) A ré recusou-se a rever alguns pontos do orçamento de trabalhos que estava a cobrar, mas que na realidade não os iria realizar, designadamente retirada de portão, alteração no termossifão e alteração aos estores nas janelas 33) Postura que indignou a autora. 34) A ré comprometeu-se com a autora “pela saúde dos seus filhos” que cumpriria com a data acordada para realização da obra 35) A ré realizou uma ligação ilegal de eletricidade a um poste de eletricidade da via pública. 36) Situação que causou bastante transtorno na Autora, pois, neste momento, ainda se encontra a resolver essa questão junto das entidades competentes e tal está a causar-lhe despesas extras. 37) O facto da ré pretender que a obra fosse fechada para fazer a parte elétrica provocou atrasos porque impediu ou atrasou o trabalho do serralheiro na colocação das janelas. 38) Tendo a autora pedido um financiamento ao banco para a realização das obras, ficando a disponibilização dos valores dependente da avaliação do desenvolvimento dos trabalhos, a avaliação do banco, feita por uma entidade externa, foi no sentido que a obra pouco avançou. 39) Os trabalhos efetuados pela ré em desconformidade ao contratado comprometerem a emissão da licença de utilização de habitação. 40) O prazo de oito meses inicialmente acordado entre as partes não era essencial para a autora. 41) Os atrasos na conclusão da obra ficaram a dever-se unicamente à autora, por causa dos trabalhos extra que pedia à ré, por atraso nos pedidos de ligação dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas, e ainda pela falta de conclusão por terceiros de outros serviços de especialidade, como caixilharia, serralharia e carpintaria. 42) A ré procedeu a trabalhos no imóvel da autora no valor de 12.526,79€, que esta última não pagou.
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Seguiremos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2023, tirado no processo 13205/19.1T8PRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt, relatado pela Srª Conselheira Maria João Tomé. Pode ler-se:” Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC, de acordo com a abundante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, importa distinguir, de um lado, entre as exigências da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), da especificação dos concretos meios probatórios convocados (art. 640.º, n.º 1, al. b)) e da indicação da decisão a proferir (art. 640.º, n.º 1, al. c)) - que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto – e, de outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (art. 640.º, n.º 2, al. a)) – que visa facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação. Enquanto a inobservância das primeiras (art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c)) implica a rejeição imediata do recurso na parte infirmada, o incumprimento ou o cumprimento deficiente da segunda (art. 640.º, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte1. (…) Recorde-se, nesta sede, que a impugnação da matéria de facto não se destina a reiterar um julgamento na sua totalidade, mas antes a corrigir determinados aspetos que o Recorrente entenda não terem merecido um tratamento adequado por parte do Tribunal a quo. Efetivamente, uma das funções mais relevantes do Tribunal da Relação consiste na reapreciação da decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, quando impugnada, em sede de recurso, porquanto é da fixação dessa matéria que depende a aplicação do direito determinante do mérito da causa e do resultado da ação. (…) 15. Importa, todavia, evitar que o referido grau de exigência possa prejudicar o objetivo almejado. 16. Efetivamente, “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (…) 17. No caso sub judice, o Recorrente não especificou corretamente os concretos pontos de facto, cuja alteração pretendia, mediante a referência explícita à designação que os mesmos mereceram na descrição da matéria de facto julgada como provada na sentença. Mas fê-lo de outro modo com clareza suficiente para a delimitação da quaestio decidendi e da respetiva solução. 18. A lei (art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC) não impõe, nem na letra e nem no espírito, que a identificação dos factos seja feita pela indicação do seu número ou do seu teor exato. Pode considerar-se suficiente qualquer outra referenciação cuja elaboração não deixe dúvidas sobre aquilo que o Recorrente pretende ver sindicado, definindo o objeto do recurso nessa parte mediante uma enunciação suficientemente clara das questões que submete à apreciação do Tribunal de recurso5. 19. É precisamente isto que se verifica no caso dos autos. 20. Teria sido fácil ao Recorrente cumprir o ónus da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados de outro modo, mediante a indiciação do seu número ou do seu teor. Contudo, não deixou de indicar os factos concretamente elencados na materialidade dada como provada, constante da decisão recorrida.”
Entendemos que se consegue extrair das conclusões que a Recorrente pretende impugnar a matéria de facto no que toca ao prazo do contrato e às causas do atraso na obra.
Assim, na senda do Acórdão citado, entendemos que a Recorrente cumpriu, ainda que minimamente, mas suficiente, o ónus em causa,
Como se pode ler no Acórdão desta Relação em que é relator o Ex. Sr. Desembargador Artur Dionísio Oliveira, processo nº 767/21.2T8PNF.P1, ainda não publicado “ Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas. É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados». Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
· DA ESSENCIALIDADE, PARA A A., DA FIXAÇÃO DO PRAZO DE DURAÇÃO DA OBRA
No caso presente a Recorrente pretende que fique a constar dos factos provados que o prazo de duração da obra era essencial para esta.
APRECIANDO
A recorrente alegou na petição inicial a essencialidade desse prazo. Cfr:
8. A empreitada foi adjudicada em dezembro de 2020 e tinha como prazo de execução o fim do mês de setembro de 2021.
9. Sendo tal prazo de conclusão da empreitada uma condição essencial para a celebração do contrato e para a adjudicação da obra.
(…)
11. Aliás, desde a primeira reunião entre Autora e Ré que foi sempre frisado pela Autora que o prazo tinha que ser escrupulosamente cumprido.
12. E foi assegurado pela Ré que o prazo de conclusão dos trabalhos seria cumprido.
13. Ademais, foi perante a garantia de que tal prazo seria cumprido que a obra foi adjudicada à aqui Ré.
Na motivação à decisão de facto escreveu-se: “Sobre este assunto recorda-se que do contrato de empreitada celebrado entre as partes consta que o prazo global para a conclusão integral dos trabalhos de empreitada é de 240 dias de calendário, não tendo sido feita prova minimamente credível do alegado pela ré de que este prazo não era essencial para a autora e que podia ser violado. Basta verificar que do documento junto como documento 6 com a contestação, email que data de novembro de 2021, defende-se a ré da acusação da autora da obra estar atrasada, o que, independentemente de saber se estava ou não e qual era a causa, permite desde logo perceber que se a autora acusa a ré de a obra estar atrasada era porque considerava o prazo como relevante ou essencial.”
Pese embora não constar dos Factos Provados, partiu a sentença da premissa de que o prazo era essencial para a A, passando logo a analisar a origem do seu não cumprimento.
Como se pode ler no Acórdão desta Relação em que é relator o Ex. Sr. Desembargador Rui Moreira, datado de 23.11.2021, tirado no processo 8994/19.6T8VNG.P1” I - A indicação dos temas de prova não é um acto inócuo e desprovido de utilidade. No entanto, o novo CPC adoptou uma solução que passa, já não pela concretização de factos, mas por uma indicação genérica e eventualmente conclusiva da matéria controvertida sobre a qual há-de incidir a instrução da causa, que apenas deve ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas. II - Sem prejuízo de casos em que solução diversa seja mais adequada, a obterem tratamento à luz do princípio de adequação processual, a indicação dos temas de prova deve prevenir qualquer tipo de excesso na vinculação temática do tribunal, facultando, pelo contrário, que a decisão sobre a vertente fáctica da causa, no termo da audiência de julgamento, expresse a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou, para assegurar a adequação da sentença à realidade. III - Os limites da factualidade a considerar não derivam dos termos em que foram elencados os temas de prova, mas antes da causa de pedir invocada pelo autor e das excepções arguidas pelo réu. IV - No que toca à definição da causa de pedir e das excepções, o tribunal está vinculado à alegação das partes. Estabelecida a causa de pedir em função da alegação suficiente dos factos essenciais, o juiz pode importar para a decisão outros que resultem da instrução da causa: se forem instrumentais, pode fazê-lo sem mais –art. 5º nº 2, al. a); se forem complemento ou concretização daqueles essenciais, o seu aproveitamento exige que sobre eles a parte tenha tido oportunidade de se pronunciar – art. 5º nº 2, al. b). V – Deve entender-se que a parte teve oportunidade de se pronunciar sobre um facto se o mesmo foi alvo de discussão em audiência de julgamento, tendo sido sobre ele inquirida testemunha, sob instância dos mandatários de ambas as partes.” NB: bold da nossa autoria.
O prazo do contrato e a sua essencialidade foi alegado pela A., constituindo facto constitutivo do seu direito.
Em termos de regras gerais sobre o ónus da prova, opera o preceituado no disposto no artigo 342º do Código Civil: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (nº1) e a prova dos factos extintivos do direito, compete àquele contra quem a invocação é feita (nº2). II Se a parte não se limita a uma defesa directa, carreando para os autos factos tendencialmente extintivos do direito que a contraparte se arroga – maxime para a conclusão de inexistência de proveito comum - a referida factualidade terá de ser integrada em sede de defesa indirecta, tal como dispõe o normativo inserto no artigo 342º, nº2 do Código Civil. Na verdade, no caso sob apreciação, cabe à A. alegar e provar a existência do contrato, o prazo e a essencialidade do mesmo, o incumprimento e as consequências deste, como factos constitutivos do seu direito (não vamos entrar aqui na problemática questão relativa ao ónus da prova do incumprimento, dado que não houve posições divergentes relativamente à mesma)
Da outra banda, cabe à R. alegar e provar factos extintivos do direito da A., ou seja, em concreto:
- que o prazo constante do contrato não era relevante, mas meramente indicativo (fazendo com que, ultrapassado esse prazo a R. não entraria em mora de forma automática – art. 805º nº 2 al. a)
- demonstrando que cumpriu, afastando a presunção que tem sobre si nos termos do disposto no artigo 799º Código Civil.
Ora, a prova produzida concorre toda no sentido da essencialidade, para a A., do prazo de duração da empreitada, tal como ficou expresso na sentença em crise e confirmado por este tribunal de recurso.
Concluindo, ficará a constar dos Factos provados que: 7 - A“ o prazo de 240 dias para a conclusão da empreitada era, para A., uma condição essencial para a celebração do contrato e para a adjudicação da obra.”
· DOS ATRASOS DA OBRA
Pretende a Recorrente a alteração do ponto 18 dos Factos Provados (“A obra esteve parada por falta de material, por doenças provocada pelo covid-19, no período das férias de verão e ainda noutros períodos curtos.”) no sentido de ficar a constar que a obra esteve parada por causa da R., uma vez que o empreiteiro e funcionários não compareciam
Vejamos quais os factos provados e não provados relacionados com o atraso da obra: Factos provados
17) Cabia a terceiros proceder aos trabalhos de caixilharia, serralharia e carpintaria a realizar na remodelação e ampliação da moradia da autora.
17) Pelo menos parte das alterações efetuadas vieram a refletir-se no documento 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido, consistente este numa descrição dos trabalhos a realizar.
18) A obra esteve parada por falta de material, por doenças provocada pelo covid-19, no período das férias de verão e ainda noutros períodos curtos.
19) Pretendendo a ré iniciar os trabalhos de eletricidade e com medo do cobre ser furtado queria que a obra fosse fechada com janelas e portas, o que veio a suceder.
20) Existiu um problema de ligação das instalações de água e saneamento aos ramais públicos, que cabia à autora resolver
21) Estando a 13/12/2021 ainda a aguardar-se que fossem efetuados.
Factos não provados
30) (que) Os atrasos na conclusão da obra ficaram-se a dever unicamente à ré, que frequentemente ficava dias e semanas sem aparecer na obra.
37) (que) O facto da ré pretender que a obra fosse fechada para fazer a parte elétrica provocou atrasos porque impediu ou atrasou o trabalho do serralheiro na colocação das janelas.
38) (que) Tendo a autora pedido um financiamento ao banco para a realização das obras, ficando a disponibilização dos valores dependente da avaliação do desenvolvimento dos trabalhos, a avaliação do banco, feita por uma entidade externa, foi no sentido que a obra pouco avançou.
39) (que) Os trabalhos efetuados pela ré em desconformidade ao contratado comprometerem a emissão da licença de utilização de habitação.
41) (que) Os atrasos na conclusão da obra ficaram a dever-se unicamente à autora, por causa dos trabalhos extra que pedia à ré, por atraso nos pedidos de ligação dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas, e ainda pela falta de conclusão por terceiros de outros serviços de especialidade, como caixilharia, serralharia e carpintaria.
42) (que) A ré procedeu a trabalhos no imóvel da autora no valor de 12.526,79€, que esta última não pagou.
Os factos constantes dos pontos 17, 17, 19, 20, 21 constituem meros respigos da alegação da R. no sentido de ser imputada à A. o não cumprimento do prazo fixado.
Porém, uma vez que não se provou que “41. Os atrasos na conclusão da obra ficaram a dever-se unicamente à autora, por causa dos trabalhos extra que pedia à ré, por atraso nos pedidos de ligação dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas, e ainda pela falta de conclusão por terceiros de outros serviços de especialidade, como caixilharia, serralharia e carpintaria.”, aqueles factos perdem qualquer relevância.
Ficamos, assim, com o citado ponto 18 (A obra esteve parada por falta de material, por doenças provocada pelo covid-19, no período das férias de verão e ainda noutros períodos curtos), o qual temos que relacionar com a não prova de que “30. Os atrasos na conclusão da obra ficaram-se a dever unicamente à ré, que frequentemente ficava dias e semanas sem aparecer na obra. “
Vejamos.
Relativamente a estes factos, escreveu-se na sentença: “A autora foi ouvida em declarações de parte, assim como foi ouvido como testemunha BB, funcionário da ré e que foi o encarregado da obra, tendo ambos prestado declarações que não convenceram totalmente o tribunal por revelarem um sentido pré-determinado de defenderem uma posição conforme as suas pretensões, no fundo a primeira dizendo que a obra se atrasou unicamente por culpa exclusiva da ré e o segundo que a obra se atrasou por culpa exclusiva da autora por pedir alterações constantes ao projeto inicial e por atraso na realização e terceiros dos trabalhos que lhes cabiam. A primeira prestou mesmo um depoimento, além de tendencioso, confuso, e contraditório, negando evidências como alterações nos trabalhos a executar na empreitada, apenas aceitando numas escadas de acesso ao piso inferior, para mais tarde referir que existiram alterações numa laje e em medidas de janelas e portas, mas mantendo que não as pediu ou que delas teve conhecimento. Note-se que CC, que foi o responsável técnico da obra e que não pareceu ter algum interesse pessoal nesta questão, referiu a existência de diversas alterações, não dando grande importância a algumas por se tratarem de pequenas coisas, outras dizendo serem mais significativas, como baixar o pé direito dos anexos, alterações que surgiam à medida que a obra se ia desenvolvendo e se verificava serem necessárias, acrescentando que a autora estava sempre ao corrente delas. Do mesmo modo, ainda que de forma não tão evidente, o testemunho de BB não pareceu isento o suficiente, procurando a testemunha afastar de si ou da ré qualquer responsabilidade por atrasos, dizendo que estiveram sempre na obra trabalhadores, o que se veio a desmentir, mais uma vez, pelo depoimento de CC. Em face disso, não deixando o tribunal de considerar factos que a autora e a testemunha BB referiram e que pareceram estar em sintonia com outros meios de prova, inclusive em questões sobre as quais ambos estavam de acordo (…) mas no geral os seus depoimentos não foram atendidos por de cada um deles não ter resultado uma descrição minimamente isenta, precisa e correta deste episódio. Pelo contrário, foram valorados especialmente os documentos juntos com a petição inicial, destacando-se nestes o contrato de empreitada que as partes celebraram (documento 1, onde se refere expressamente que fevereiro de 201 é a data previsível do inico das obras), o orçamento n.º ..., com data de 03.11.2020, onde se encontram discriminados e detalhados todos os trabalhos a serem levados a cabo (documento 2), o segundo orçamento de 10/11/2021, que já prevê algumas das alterações em relação ao primeiro (documento 3), o livro de obra (documento 6), os relatórios técnicos do Banco 1... (entidade financeira que terá emprestado dinheiro à autora para pagar a empreitada) a propósito do andamento da obra (documento 8), a carta que a autora escreveu à ré a 28 de outubro de 2021 (documento 9) e o parecer do arquiteto CC, que é o técnico responsável pela obra (documento 12). (…) O livro de obra junto é também considerado, não deixando ainda assim de destacar que não está completo, faltam-lhe páginas, pelo que apenas da sua consulta não se consegue fazer um acompanhamento pleno da evolução da obra, além de a determinada altura apenas conter inscrições feitas pela autora como dona da obra, numa altura em que já era evidente o mal-estar com a ré, razão pela qual estas notas, pela falta de objetividade e isenção, não são por si só consideradas. (…) Desse documento resultam ainda diversas inscrições feitas por CC, no próprio documento apontado como sendo o responsável pela direção de fiscalização da obra e coordenação do projeto, que aludem a trabalhos efetuados, a alterações que se revelaram necessárias, à paragem da obra no período de férias, à vedação da obra e que em dezembro ainda se aguardava pela ligação aos ramais de saneamento. Por sinal, CC contou em audiência de julgamento que a obra parou por falta de material (não dizendo qual ou a quem era responsável pela sua falta - do orçamento resulta que, por exemplo, as louças sanitárias são fornecidas pelo dono da obra), por causa da pandemia do covid-19 e noutros períodos curtos que não especificou, ainda assim do que disse e escreveu não resultando que a ré frequentemente ficava dias e semanas sem aparecer na obra, conforme alegou a autora. (…) Referiu a testemunha CC que elaborou um parecer após a saída da ré da obra, consistindo este no documento 12 junto com a petição inicial, que alude aos atrasos existentes, aos trabalhos executados e executados de forma imperfeita pela ré que, não tendo sido contraditado, antes reforçado pelo depoimento do próprio, face à especial credibilidade e importância que reveste o tribunal aproveitou para dar o que dele decorre por provado. (…) Ainda quanto a este segmento de documentos acima mencionados, cabe ainda apontar que, ao contrário do referido na petição inicial, dos relatórios técnicos do Banco 1..., que se percebeu ter sido a entidade financeira que terá emprestado dinheiro à autora para pagar a empreitada, não resulta que a obra pouco tenha avançado e que isso poderia ter comprometido o financiamento, pois que deles resulta que a obra “decorre normalmente”, existindo evolução positiva na percentagem da obra efetuada em cada um deles. (..) Sobre este assunto recorda-se que do contrato de empreitada celebrado entre as partes consta que o prazo global para a conclusão integral dos trabalhos de empreitada é de 240 dias de calendário, não tendo sido feita prova minimamente credível do alegado pela ré de que este prazo não era essencial para a autora e que podia ser violado. Basta verificar que do documento junto como documento 6 com a contestação, email que data de novembro de 2021, defende-se a ré da acusação da autora da obra estar atrasada, o que, independentemente de saber se estava ou não e qual era a causa, permite desde logo perceber que se a autora acusa a ré de a obra estar atrasada era porque considerava o prazo como relevante ou essencial. (..) Os depoimentos prestados por DD e EE pouco significado tiveram, sendo a primeira amiga da autora e que também contratou a ré para efetuar uma obra para si e o segundo vizinho da autora, dizendo a primeira que a obra da autora esteve parada e o segundo que viu quando iniciou pouco mais sabendo a seguir. Do mesmo modo os testemunhos de FF, GG e HH, todos funcionários da ré que estiveram a trabalhar no imóvel da autora, pouca importância revestiram, no essencial limitando-se cada uma delas a contar o trabalho concreto que lhe coube na empreitada, acrescentando as duas primeiras que ficaram sem trabalho por falta de intervenção dos serviços de carpintaria e serralharia, o que não mereceu assentimento de outra prova, designadamente do testemunho ou relatório de CC. Para além do que acima já se referiu quanto a alguns factos dados por não provados, a restante matéria que mereceu essa sorte assim resultou ausência de mobilização probatória. Percebeu-se pelos depoimentos da autora e de BB que a ré pretendeu vedar a obra para poder colocar a parte elétrica (sendo feita uma alusão a esta circunstância no livro da obra), mas foi apenas isto que se conseguiu alcançar, não se provando que isso impediu ou atrasou o trabalho do serralheiro na colocação das janelas. Não foi produzido qualquer meio de prova a propósito da ligação ilegal da ré a um posto de eletricidade e dos transtornos que isso causou à ré. A alegação da ré de que os atrasos na conclusão da obra ficaram a dever-se unicamente à autora, por causa dos trabalhos extra que pedia à ré, por atraso nos pedidos de ligação dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas, e ainda pela falta de conclusão por terceiros de outros serviços de especialidade, como caixilharia, serralharia e carpintaria não mereceram o conforto da prova produzida. Conforme acima se disse, a testemunha CC, cujo depoimento maior credibilidade criou pela especial posição que tinha enquanto técnico responsável da obra e por não ter parecido que tivesse algum interesse particular neste pleito, explicou que a obra parou por falta de material (não dizendo qual ou a quem era responsável pela sua existência/presença em obra), por causa da pandemia do covid-19 e noutros períodos curtos que não especificou, tendo ainda feito constar do livro de obras que parou no período de férias de verão, se bem que não precisando por quantos dias. (…)
Resulta claro que o Sr. Juiz apenas considerou credível o depoimento de CC responsável técnico da obra, porquanto o mesmo não parecia ter algum interesse particular na discussão da causa.
Este explicou que a obra parou por falta de material (não dizendo qual ou a quem era responsável pela sua existência/presença em obra), por causa da pandemia do covid-19 e noutros períodos curtos que não especificou, tendo ainda feito constar do livro de obras que parou no período de férias de verão, se bem que não precisando por quantos dias. (…). Porém, entendeu o sr. Juiz que, do que disse e escreveu, não resulta que a ré frequentemente ficasse dias e semanas sem aparecer na obra, conforme tinha alegado a autora.
Tal como já escrevemos supra, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
Este tribunal de recurso, ouvido o testemunho de CC, comunga dessa credibilidade.
Deve notar-se, porém, que o Sr. Juiz escreveu na motivação à decisão de facto que considerou provado tudo o que constava do relatório elaborado por esta testemunha.
Salientamos que ali se escreveu “A obra sofreu bastante com o incumprimento dos prazos previamente estabelecidos devido às inúmeras paragens dos trabalhos”, que deve sercompletado com a prova de que “a obra esteve parada por falta de material, por doenças provocada pelo covid-19, no período das férias de verão e ainda noutros períodos curtos.”
Dada a presunção resultante do disposto no artigo 799º Código Civil, era necessário que a contraparte (a R) efetuasse a prova do contrário, não bastando a simples contraprova, uma vez que as presunções constituem prova legal plena, não estando sujeitas à livre convicção do julgador.
Não existindo nenhuma presunção a favor de uma das partes, à contraparte bastaria efetuar simples contraprova que abalasse a convicção do juiz. Mas isso não significa que essa parte tenha o ónus da prova, apenas que tem o ónus da contraprova. Inverter o ónus da prova é impor a prova do contrário. Cfr. MANUEL DE ANDRADE, «Anotação ao acórdão do STJ de 14 de junho de 1955. Em face da matéria apurada podemos afirmar que a R. fez prova do contrário?
A resposta é claramente negativa.
“A prova do contrário destina-se a tornar certo não ser verdadeiro um facto já demonstrado formalmente, v.g., como no caso em apreço, por via de presunção legal e, esta prova, nada tem a ver com a contraprova (ou prova contrária), pois esta destina-se apenas a tornar incerto o facto visado, a criar a dúvida no espírito do julgador (um non liquet) - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 207. – “cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 04-12-2006, tirado no processo 8914/2006-2, disponível em dgsi.t.
No caso, a prova de que a R. cumpriu destinava-se a demonstrar que não era certo um facto que resultava como verdadeiro em virtude da presunção legal, ou seja, o incumprimento ocorre por parte dela (da R). Concluindo, entendemos que, quanto a esta questão, não há que proceder a qualquer alteração ao nível dos factos, sendo certo que, aquando da subsunção jurídica do direito aos factos apurados, serão retiradas as consequências da circunstância da R. não ter ilidido a presunção do artigo 799º do Código Civil.
· DA RESPONSABILIDADE DO LICENCIAMENTO DOS RAMAIS
Relativamente ao licenciamento dos ramais consta dos factos provados que 20) Existiu um problema de ligação das instalações de água e saneamento aos ramais públicos, que cabia à autora resolver.
Pretendia a A. que o ponto 20 fosse alterado no sentido de não lhe ser imputada a incumbência da sua resolução.
Tal como já escrevemos supra, este facto constante do ponto 20 inseria-se na alegação da R. no sentido de imputar à A. a culpa pelo atraso na obra.
Já tivemos oportunidade de dizer que esse facto, assim como os outros, não obstante ter sido dado como provado, mostra-se completamente inócuo em face do que se considerou não provado na decisão, ou seja, que “ 41. Os atrasos na conclusão da obra ficaram a dever-se unicamente à autora, por causa dos trabalhos extra que pedia à ré, por atraso nos pedidos de ligação dos ramais de saneamento, luz e abastecimento de águas, e ainda pela falta de conclusão por terceiros de outros serviços de especialidade, como caixilharia, serralharia e carpintaria.”,
A Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida for inócua para a decisão da causa, ou seja, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inconsequente e inútil que, por isso, lhe está legalmente vedada (artigo 130.º do CPC). Deste modo, este tribunal não reapreciará esse segmento da matéria de facto.
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B. O DIREITO
FUNDAMENTO E CONSEQUÊNCIAS DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO
· DO TÉRMINO DO CONTRATO
Entende a A., ora recorrente, que a decisão sobre a calendarização da obra se relevou confusa. Deveria o tribunal a quo ter concluído que o prazo dos 240 dias de duração da obra terminava a 08/10/2021, tendo como consequência considerar que a carta enviada pela A. se deu num momento em que a R. já se encontrava em mora, operando-se, assim, a conversão da mora em incumprimento definitivo.
Vejamos quais os factos provados no que respeito ao prazo da obra e, consequentemente, ao término do contrato.
5) Aceitando a proposta de orçamento apresentada pela ré, no dia 9 de fevereiro de 2021, autora e ré acordaram na empreitada constante do documento 1, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido
6) Sendo o preço global para execução dos trabalhos discriminados e orçamentados de 80.000€ mais IVA, e pagar pela forma, nos prazos e demais previsto no documento 3, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido
7) E ficando acordado que os trabalhos teriam a conclusão integral em 240 dias de calendário, com início previsível em fevereiro de 2021 e conclusão em setembro de 2021.
12) A ré procedeu a trabalhos de limpeza e de demolição no imóvel da autora em janeiro de 2021.
13) A data de emissão do alvará para a obra que a autora pretendia executar é de 08/02/2021.
14) Os trabalhos de construção de remodelação e ampliação da moradia começaram a 05/03/2021.
Tal como já se afirmou supra, o prazo de 240 dias fixado no contrato era essencial para a A.
A questão que se coloca, em face da decisão dada pelo Tribunal a quo, é desde quando se inicia a contagem desse prazo.
Dos factos provados constam diversas datas:
- Janeiro de 2021 - trabalhos de limpeza e demolição no imóvel
- 08/02/2021 – emissão do alvará
- 9 de fevereiro de 2021 – assinatura do contrato
- 05/03/2021 – início dos trabalhos de construção de remodelação e ampliação da moradia
Na decisão em crise escreveu-se “Neste caso concreto, foi acordado um prazo de 240 dias para realização da obra, que se iniciou a 05/03/2021, aqui recordando que no contrato constava que fevereiro seria a data previsível do início, desconhecendo-se a razão pela qual não se iniciou naquele mês. Chama-se ainda a atenção que, em rigor, não se pode considerar que o prazo de oito meses se tenha iniciado em janeiro de 2021 com os trabalhos de limpeza e demolição na medida em que a ré levou-os a cabo sequer sem a emissão do alvará, que data de 08/02/2021. “
Entendeu o Sr. Juiz que se devia considerar como 05.03.2021 a data do início de contagem do prazo, dado que, não obstante terem sido efectuados trabalhos em Janeiro de 2021 (antes da própria assinatura do contrato), nessa altura não existia alvará. Ressalta desta posição do Sr. Juiz que o facto marcante é o alvará.
Deste modo e seguindo o que consta dos artigos 53.º e 58.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) - o prazo para a execução da obra começa a contar da data de emissão da licença ou da data do pagamento das taxas devidas (em caso de comunicação prévia ou deferimento tácito) – entendemos que o início da contagem do prazo deve ocorrer em 08/02/2021 – data da emissão do alvará.
· RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Note-se que nos autos não estamos perante um caso de aplicação dos artigos 1220ss do Código Civil relativo ao cumprimento defeituoso, o que implicaria seguir os diversos “degraus” fixados na lei, mas sim, perante um incumprimento contratual.
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 13.05.2021, tirado no processo nº 1697/17.8T8MTS.P2, o “incumprimento definitivo pode revelar-se por diversos meios, entre os quais: a) A perda de interesse do credor na prestação, em consequência da mora do devedor, ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (cfr. artigo 808.º, n.º 1 do Código Civil); b) Pelo decurso do prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale àquela perda de interesse; ou c) Pela recusa peremptória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, não se justificando então a necessidade de nova interpelação ou de fixação de prazo suplementar. Para além destas situações expressamente contempladas na lei, existe uma outra que a doutrina e a jurisprudência equiparam ao incumprimento definitivo e que se traduz na declaração expressa ou tácita do devedor de não querer cumprir”.
Nos termos do disposto no artigo 804º do Código Civil com a epígrafe “mora do devedor – princípios gerais) “1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Por seu turno, o artigo 805.º do mesmo código, versando sobre o momento da constituição em mora preceitua que “1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. 2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação: a) Se a obrigação tiver prazo certo; b) Se a obrigação provier de facto ilícito; c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido. 3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”
Tendo sido considerado que o contrato em causa tinha como duração 240 dias, que esse prazo era essencial para a A., iniciando-se a contagem do mesmo em 08.02.2021, o seu término ocorria em 08.10.2021.
Como se pode ler no Acórdão desta Relação, de 04.11.2019, tirado no processo nº 7402/16.9YIPRT.P1 “I - Verifica-se mora do devedor na situação em que a prestação, possível, não foi realizada no tempo devido, por facto imputável ao devedor. II - A determinação do tempo de cumprimento é de primordial importância, para determinar o momento de constituição em mora, que marca o desencadear das consequências que lhe estão associadas. III - Tais momentos estão assinalados no art. 805º, do Código Civil, que regula o “tempo do cumprimento”, consagrando, como regra a despoletar a mora, o princípio da essencialidade da interpelação - em que a constituição em mora não opera de per si, mas está dependente da iniciativa do credor (mora ex persona) - (nº1) e prevendo exceções - situações em que a mora debitoris surge por si, independentemente daquela iniciativa (mora ex re) - (nº2), ressalvando, destas situações que, em princípio, desencadeariam a mora ex re, as hipóteses de iliquidez do crédito (não se gerando mora do devedor em função da falta de liquidez da obrigação, por o credor não adotar o comportamento necessário ao cumprimento).
Não podemos deixar de fazer aqui um breve parêntesis para constatar que não se percebe o desenvolvimento efectuado na sentença relativamente à prova dos factos extintivos do direito da A. – designadamente a prova de que o atraso se deveu à A. e não à R. - quando, de facto, no entender do tribunal a quo, não obstante os atrasos, ainda não tinha sido ultrapassado o prazo fixado para a execução da obra.
Na verdade, parece-nos só fazer sentido falar na presunção de culpa que onera a R. quando seja possível afirmar que, no caso, esta não cumpriu com o prazo acordado.
Saber se a culpa deste não cumprimento do prazo se deveu à A. ou à R., como se faz na decisão em crise, pressupõe que se tenha como certo que o prazo fixado foi ultrapassado.
Ora, na decisão em crise, considerou-se que esse prazo ainda não tinha decorrido, não obstante ter-se dado como provado o que constava do relatório junto com a petição inicial que afirmava expressamente que foram incumpridos os prazos – cfr. Ponto 27 dos factos provados
Não podemos concordar com o Sr. Juiz quando diz que “facilmente se percebe que em outubro de 2021, quando a autora escreve uma carta à ré dizendo que estava em mora e lhe concedida um prazo para acabar as obras, isso não correspondia exatamente à verdade, na medida em que aquele prazo apenas acabaria em novembro, parecendo assim que a autora se terá precipitado. É verdade que a obra registava atrasos e que em dezembro de 2021, quando a autora resolveu o contrato, não estava ainda concluída, mas isso não retira significado à conclusão acima extraída da precipitação da autora em considerar que a ré não se encontrava em mora.”
Quando a A. escreve a carta à R. dizendo que esta está em mora, esta última está efectivamente em mora, uma vez que a obrigação tinha um prazo certo de cumprimento.
A referida carta, concedendo à R. um prazo suplementar para terminar a obra, constituiu uma interpelação admonitória, tendo o condão de transformar a mora em incumprimento definitivo.
A este propósito ver Acórdão da Relação de Lisboa de 11.05.2023, retirado no processo 27124/19.8T8LSB.L1-2, consultável em dgsi.pt: “ É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção – art.º 432º/1, do CCivil. A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor – art.º 790º/1, do CCivil. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro – art.º 801º/2, do CCivil. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido – art.º 804º/1, do CCivil. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo; provier de facto ilícito ou, se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido – art.º 805º/2/a/b/c, do CCivil. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação – art.º 8087º/1, do CCivil. Empreitada, é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço – art.º 1207º, do CCivil. (…) A violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada faz incorrer o empreiteiro em responsabilidade contratual (art.º 798º do Cód. Civil) [25], [26], [27], [28]. Efetivamente, como o empreiteiro, por virtude do contrato que o liga ao dono da obra, está obrigado a realizar uma obra, deixando de efetuar a sua prestação em termos adequados, dá-se o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade[29]. O não cumprimento da prestação do empreiteiro será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o comitente ter nela perdido o interesse (art.º 808º/1, 1ª parte), ou, por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo dono da obra (art.º 808º/ 1, 2ª parte). Se a obra não foi atempadamente realizada e já não puder vir a sê-lo, na medida em que, entretanto, se tornou impossível a sua execução por causa não imputável ao empreiteiro, a situação é legalmente equiparada ao incumprimento definitivo (art.º 801º/2)). Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, cabe ao dono da obra resolver o contrato e exigir uma indemnização (art.º 801º/2, do CCivil)[30]. Se a obra não foi entregue na data acordada, mas ainda pode vir a sê-lo e o dono da obra mantiver o interesse nessa prestação, há um simples retardamento ou mora[31]. Mesmo assim, o empreiteiro só entra automaticamente em mora se foi estabelecido um termo certo para a entrega da obra, pois caso contrário, a situação de mora apenas surge após a interpelação que o comitente faça, tendo em conta o prazo razoável para a execução da obra[32]. Uma vez constituído em mora, o empreiteiro ainda pode efetuar um cumprimento retardado, desde que indemnize o dono da obra dos danos causados pelo atraso (purgação da mora) [33]. Temos, pois, que a simples mora do empreiteiro na execução da obra (isto é, a não conclusão atempada da obra) não concede ao dono da obra o direito de resolver imediatamente o contrato, salvo se este já tiver perdido o interesse na realização da obra[34]. Para além dos casos em que a mora se transforma em incumprimento definitivo por perda de interesse do credor, objetivamente considerada, na efetivação da prestação, a mora do devedor apenas gerará incumprimento definitivo se a prestação não for realizada em prazo razoavelmente fixado pelo credor, nos termos do art.º 808º/1, 2ª parte do CCivil[35]. (…) Assim, existindo incumprimento definitivo por parte do empreiteiro no que respeita à execução da obra, cabe ao dono da obra resolver o contrato.
Ora, no contrato de empreitada, a lei não permite que o dono da obra intime o empreiteiro em mora para a reiniciar dentro de certo prazo. Facultou-se ao credor a designação do prazo para o cumprimento da obrigação e não para o mero começo do cumprimento[42],[43]. Temos, pois, que não é permitido ao dono da obra intimar o empreiteiro, nomeadamente quando este estiver em mora, para iniciar ou reiniciar os trabalhos em determinada data ou dentro de certo prazo[44]. O que o dono da obra pode e deve fazer, para sair do impasse criado pela mora do empreiteiro, é fixar-lhe um novo prazo para a conclusão da obra, sob a cominação de o contrato ser por si resolvido caso a obra se não mostre concluída dentro desse prazo suplementar[45].
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25 O desrespeito pelo empreiteiro, no exercício da sua atividade, dos direitos de outrem (p. ex., direitos dos proprietários de prédios vizinhos daquele onde se executa a obra, ou direitos absolutos do dono da obra, designadamente a sua integridade física), ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios (p. ex., normas sobre a emissão de ruídos ou fumos) dá origem à responsabilidade extracontratual – PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, p. 179. [26]O empreiteiro, mesmo não sendo responsável perante o dono da obra, por ter apenas obedecido a qualquer ordem dele, pode responder perante terceiros lesados em consequência do defeito da obra, se não devesse ter obedecido àquela ordem – PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume II, 4.ª edição, p. 865. [27]A mera invocação da celebração de um contrato de empreitada, eventualmente mal cumprido, não exclui, por si mesma, a possibilidade de invocação de responsabilidade civil de tipo delitual relativamente a prejuízos resultantes da má execução da obra – Ac. do STJ de 22/10/1987, BMJ 370/529. [28] Mesmo não havendo violação do contrato de empreitada, a inobservância pelo construtor das boas regras de construção civil, impostas por lei e conhecidas pelos construtores civis, acarreta para aquele responsabilidade civil extracontratual», e isto «mesmo que tenha sido o dono da obra a solicitar a prática dos atos em infração daquelas regras e que este tenha aceitado a obra sem reservas – Ac. do STJ de 4/2/1992, BMJ 414/442. [29] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, p. 184. [30] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, p. 185. [31] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada, p. 185. [32] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada., p. 185. [33] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contrato de Empreitada., p. 185. [34]Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2007-09-18, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [35] BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, II, pp. 302/405. [36] Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2007-09-18, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [37]PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da Cessação do Contrato, p. 569, e nota 1144. [38] Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2012-10-16, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [39] O empreiteiro só entra automaticamente em mora se foi estabelecido um termo certo para a entrega da obra; caso contrário, a situação de mora surge após a interpelação que o comitente faça (art.º 777º/1), tendo em conta o prazo razoável para a execução da obra (art.º 777º/2) – PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações, (Parte Especial), Contratos, p. 434. [40] O dono da obra pode resolver o contrato em caso de incumprimento definitivo do empreiteiro, motivado pelo não cumprimento no prazo fixado - Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 2011-06-30, Relator: CARVALHO GUERRA, http://www.dgsi.pt/jtrc. [41] O contrato só pode ser resolvido se o empreiteiro não ultimar a obra em prazo razoável fixado para o efeito ou se declarar expressamente que não vai realizar a obra ou se tiver conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva no sentido de não cumprir a obrigação contratual de concluir a mesma - Ac. Tribunal da Relação do Porto de 2008-01-28, Relatora: ISOLETA COSTA, http://www.dgsi.pt/jtrp. [42] PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, volume II, 2.ª edição, p. 61, nota (4). [43] No contrato de empreitada, havendo mora do empreiteiro, o dono da obra tem a possibilidade, nos termos gerais, de fixar um novo prazo para o cumprimento da obrigação, mas já não de fixar a data do começo desse cumprimento – Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2012-10-16, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [44] Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2012-10-16, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl. [45] Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 2012-10-16, Relator: TORRES VOUGA, http://www.dgsi.pt/jtrl.
Reportando-nos ao caso dos autos, decorrido o prazo fixado no contrato para a duração da obra e não estando esta concluída, a R. entra em mora. Não tendo a R. terminado a obra após ter sido notificada pela A. de que resolveria o contrato no prazo acrescido que aquela lhe concedeu, operou-se a transformação da mora em incumprimento definitivo, sendo possível a resolução.
Dispõe o artigo 436.º do Código Civil que: “1. A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte.»
Logo, também a resolução do contrato, por inexecução (salvo quando a lei o impõe, o que não é o caso), reveste carácter extrajudicial (resolução ope voluntatis).
Significa isto que o credor, para obter a resolução, não tem de recorrer ao tribunal, é ele próprio que resolve o contrato e, havendo litígio, a intervenção do tribunal limita-se a verificar se estavam reunidas as condições necessárias para o credor poder romper o contrato por vontade unilateral.
· CONSEQUÊNCIAS DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Concluindo, temos como lícita a resolução do contrato operada pela A., tendo a mesma direito a uma indeminização.
O que peticionou a recorrente?
Em sede de recurso a A. pediu o pagamento das rendas de Outubro, Novembro e Dezembro, valor esse relativo ao locado a que teve de se socorrer em virtude do não cumprimento do contrato (cfr. Petição inicial - 83. Com os sucessivos atrasos por parte do empreiteiro, a Autora não conseguiu entrar na sua casa no final de setembro de 2021, tal como contratualmente estabelecido. 84. E, por isso, a Autora teve que arrendar um local para viver com as suas duas filhas menores durante os seguintes meses. 85. A Autora durante o mês de outubro, novembro e dezembro de 2021 pagou de renda 371,08€ (trezentos e setenta e um euros e oito cêntimos) mensais (Cfr. Doc. 15) 86. Perfazendo um total de 1 113,24€ (mil, cento e treze euros e vinte e quatro cêntimos).
Pediu, ainda, o valor de 15.879,98€ correspondente ao montante já entregue à R. mas que ultrapassou os trabalhos efectivamente realizados por esta.
Em sede de recurso a A. “deixou cair” o pedido relativo ao pagamento de € 972,88€ correspondente ao pedido das duas prorrogações de licença administrativa.
Tradicionalmente vinha sendo defendido pela nossa doutrina e jurisprudência que, optando o credor pela resolução do contrato, o direito à indemnização a que alude este dispositivo legal se restringia ao interesse contratual negativo, i.e., à indemnização que vise compensá-lo pelas perdas conexionadas com a mera celebração do contrato (cfr., nesse sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 58).
Militavam a favor desta tese argumentos como o fim destruidor da resolução, a retroatividade da sua eficácia e a incompatibilidade lógica entre a resolução e uma indemnização positiva.
Porém, nos últimos anos, tem-se assistido a uma inflexão neste entendimento, sendo várias as vozes que tem vindo a admitir a cumulação da resolução contratual com uma indemnização positiva. – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 12.02.2009 (cfr. processo n.º 08B4052, relator João Bernardo, in www.dgsi.pt), que, pese embora, por regra, a resolução contratual abra caminho a indemnização apenas pelos danos negativos, em situações excecionais pode haver lugar a indemnização pelos danos positivos. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15.02.2018 (cfr. processo n.º 7461/11.0TBCSC.L1.S1, relator Tomé Gomes, in www.dgsi.pt), pronunciou-se sobre tal problemática, salientando que «no quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado».
Tal ponderação mostra-se conforme a jurisprudência mais recente. Em rigor a declaração de resolução apenas vem por fim à relação negocial, logo, a indemnização que se pretende não contende com qualquer outro efeito resultante da resolução. Já assim não seria se, por exemplo, o dono da obra reclamasse a devolução do preço e o pagamento da reparação.
Por outro lado, é de crer que esta se apresenta como a solução de maior equilíbrio e de menor ofensa dos interesses de ambas as partes se, perspetivarmos um desfecho mais consequente como a retirada dos aparelhos outrora colocados, face ao uso que lhes foi dado e, a devolução integral do preço.
Em defesa deste equilíbrio a jurisprudência, nomeadamente a citada na sentença, vem afirmando a possibilidade de, numa apreciação casuística, compatibilizar a resolução contratual com a indemnização do interesse contratual positivo, se no caso tal não contender com o equilíbrio da relação e o princípio da boa fé. O acórdão do STJ de 18-01-2022, P. 3609/17.0T8AVR.P1.S (Pedro Lima Gonçalves), resume bem essa tendência: «No quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado.» Ora, no caso em apreciação, os danos peticionados pela A. correspondem a danos sofridos no âmbito do interesse contratual negativo – danos que a A. não teria tido caso não tivesse celebrado o contrato. Não faz a A. qualquer pedido relativo a danos sofridos no âmbito do interesse contratual positivo, sendo certo que a indemnização pelo interesse contratual positivo não é cumulável com a indemnização pelo interesse contratual negativo.
Havendo resolução do contrato por incumprimento, a indemnização tende a colocar o dono da obra na situação em que estaria se não tivesse celebrado o negócio.
Concluindo, tem a A. direito a ser ressarcida do valor das rendas e do valor que pagou indevidamente tendo em conta a obra efectivamente executada pela R. e que se apurou ser de 15.879,98€
IV. DECISAO
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em dar provimentoao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra na qual se decide condenar a R. a pagar à A. a quantia de:
· 15.879,98€ (quinze mil, oitocentos e setenta e nove euros e noventa e oito cêntimos) correspondente à diferença entre o valor que lhe foi pago e o valor dos trabalhos executados;
· 1.113,24€ (mil cento e treze euros e vinte e quatro cêntimos), correspondente a despesas com as rendas.
1. Tais quantias são acrescidas de juros comerciais, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento- cfr. Artigo 102º & 5 do Código Comercial, Portaria n.º 277/2013, de 26 de Agosto Aviso DGTF 1535/2022] [Aviso DGTF 13997/2022] Aviso DGTF 1672/2023] Aviso DGTF 14922/2023] Aviso DGTF 1850/2024] Aviso n.º 14751/2024/2
2. Custas pela R.
Registe e notifique.
DN
Porto,19 de Novembro de 2024.
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Correia de Lima
Maria Eiró
Maria da Luz Seabra [Declaração de voto
“Apenas não acompanho o segmento decisório deste Acórdão quanto ao conhecimento do recurso na parte referente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por perfilhar o entendimento de que o recurso nessa parte deveria ter sido rejeitado uma vez que a Recorrente não fez menção nas conclusões de recurso, que balizam o seu objecto, aos concretos pontos de facto impugnados, não tendo cumprido o ónus de impugnação previsto no art. 640º nº 1 al. a) do CPC (conforme relatado no Ac de 20.02.2024 Proc nº 20765/20.2T8PRT-D.P1 e no Ac de 16.05.2023 Proc nº 778/20.5T8VFR.P1, www.dgsi.pt; neste sentido, entre outros Ac STJ de 19.01.2023, Proc nº 3160/16.5T8LRS-A.P1 e Ac STJ de 6.07.2022, Proc nº 28533/15.7T8PRT.P1, www.dgsi.pt; A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2ª edição, pág.135).”]