I – As disposições legais dos art.º 423.º e ss. do CP Civil, atinentes à prova por documentos, procuram conciliar o interesse público de apuramento da verdade e da realização da justiça com o direito a uma decisão judicial em prazo razoável.
II – Independentemente disso, as regras probatórias do processo civil têm que ser integradas com os princípios gerais estruturantes do mesmo, uns e outros à luz do desiderato da justa composição do litígio.
III – Assim, ao abrigo do princípio do inquisitório, o juiz deve balizar a produção de prova por documentos por referência às diligências necessárias ao apuramento da causa e à justa composição do litígio (cf. Art.º 411.º do CP Civil).
Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista
Juíza Desembargadora Adjunta: Alexandra Pelayo
Juiz Desembargador Adjunto: Ramos Lopes
SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
AA e BB, com morada em Portugal na Rua ..., ..., intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum para execução específica de contrato promessa de compra e venda de imóvel, contra “A..., LDA.”, sociedade com sede na Rua ..., pedindo que seja proferida sentença que produza os legais efeitos da declaração de venda omitida pela Ré, declarando transferido para si, por compra, o imóvel identificado no Doc. n.º 1 junto com a Petição Inicial (incluindo os lugares de garagem e arrumos).
Com vista à consignação em depósito do remanescente do preço convencionado, no montante de EUR 312.000,00, requerem que seja fixado prazo para o efeito, não obstante e por compatível com o pedido anterior e por provado, deva a Ré ser condenada a pagar-lhes o valor de EUR 7.500,00 a título de danos não patrimoniais e de EUR 1.598,43, acrescidos de juros de mora, à taxa civil legalmente aplicável, até integral e efetivo pagamento.
Alegam, em síntese e com relevo para a apreciação do presente recurso, que celebraram com a Ré, em 06/01/2021, um contrato promessa, tendo por objeto fração pertencente ao imóvel sito na Rua ..., Porto, ficando designadamente acordado que entregariam o valor de EUR 78.000,00 nessa data e o remanescente do preço, no valor de EUR 312.000,00, no ato de realização do contrato prometido; que estava previsto que o processo de construção ficaria concluído até junho de 2021, ressalvando-se a possibilidade de prorrogação do contrato; que a escritura de compra e venda prometida se realizaria até 30 dias depois de obtida a Licença de Habitabilidade, sob pena de ser a Ré dada como promitente faltosa, ficando a Ré expressamente vinculada a indicar o dia, a hora e o local da escritura com antecedência de, pelo menos, 15 dias úteis, através de carta registada com aviso de receção e que, em caso de incumprimento definitivo, a presença de sinal não afasta a possibilidade de recorrerem à execução específica, ao abrigo do art.º 830.º do Código Civil.
Declaram terem acordado com a Ré, em junho de 2021, a tradição da coisa, passando a dispor do imóvel e habitando o mesmo, de modo permanente, até ao presente.
Dizem que a licença de habitabilidade foi emitida em 7 de novembro de 2022, tendo, a partir dessa data, questionado em diversos momentos a Ré da data de realização da escritura pública.
Afirmam que, em 12 dezembro de 2022, a Ré lhes comunicou que a escritura pública seria celebrada de uma semana para a outra.
Alegam que a sua instituição de crédito no estrangeiro, ao reavaliar o contrato promessa com vista à disponibilização do valor da compra dos mesmos, encontrou dois problemas: o facto de no contrato constar cláusula que refere que o mesmo terminaria em 31 de julho de 2021 e o facto de o gerente da Ré ter indicado como conta destinatária de parte do pagamento do preço a sua conta em nome pessoal, sendo que o contrato refere expressamente que o preço é entregue a favor da promitente vendedora, a pessoa coletiva indicada ora como Ré.
Dizem ter informado a Ré destas questões levantadas pela entidade bancária assim como da solução que esta entidade propôs, designadamente a remessa de uma mera mensagem de correio eletrónico, da qual constasse a informação expressa de que o contrato continuava válido, sendo o pagamento destinado à compra do imóvel, atuação que a Ré não levou a cabo. Bem como que, consequentemente, o banco central negou a operação, por entender estar perante indícios de irregularidades, com suspeita de tentativa de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, o que foi informado à Ré.
Mais alegam que, de boa-fé e em crer na boa-fé da Ré, solucionaram a questão e solicitaram crédito em Portugal, tudo com conhecimento e aceitação da Ré, com vista à realização do contrato prometido por ambas as partes.
Afirmam que, em fevereiro de 2023 e estando este processo de financiamento em curso, o gerente da Ré, CC, se dirigiu ao imóvel, acusando-os de incumprimento do contrato por ter remetido para o endereço anterior da procuradora carta registada com notificação para a realização da escritura e afirmando que a mesma não a tinha ido levantar junto dos correios nem compareceu na data e local aí indicados.
Dizem terem, nessa sequência, tentado, por contactos efetuados nesse seguimento, obter resolução extrajudicial da matéria, sempre com interesse expresso na realização do contrato prometido.
A Ré veio contestar e reconvir, aceitando a celebração do contrato promessa dos autos e impugnando a demais factualidade alegada.
Com particular relevo, nega que os Autores tenham passado a habitar no imóvel, de forma permanente, ou que tenha permitido que os Autores dessem o imóvel para habitação a terceiros.
Afirma ter elaborado e remetido, a 20/01/2023, uma carta/comunicação, via postal registada com AR, dirigida aos Autores, com agendamento/marcação da escritura, indicando o dia, hora e local para a realização da mesma, tendo tal missiva sido devolvida.
Mais afirma ter remetido nova missiva com o mesmo teor, a 08/02/2023, igualmente via postal registada e com aviso de recepção, a qual veio igualmente devolvida.
Remete para a cláusula contratual do contrato promessa nos termos da qual se consigna que, na eventualidade dos PROMITENTES COMPRADORES não comparecerem no local, dia e horário designados para celebração da escritura pública de compra e venda, considerar-se-á definitivamente incumprido o contrato de promessa de compra e venda, com perda a favor da PROMITENTE VENDEDORA de todas as quantias entretanto pagas/entregues pelos PROMITENTES COMPRADORES; sem necessidade de qualquer interpelação, mormente, admonitória.
Declara ter expedido uma nova missiva, a 06/03/2023, através da qual e por força do incumprimento (a que supra se alude) dos Autores, resolve o contrato promessa.
Em sede de reconvenção reproduz as alegações produzidas em sede de contestação e defende que, não tendo os Autores comparecido aos agendamentos, incumpriram definitivamente o contrato e que, por força do que o mesmo estabelece, ficou resolvido o contrato de promessa por acto, legítimo e eficaz da sua parte.
Invoca que, por força de tal resolução, tem direito ao valor do sinal pago, à devolução do imóvel e a uma indemnização enquanto se mantiver a ocupação deste por terceiros, num valor diário de EUR 50,00/dia.
Conclui pedindo que a presente acção seja julgada totalmente improcedente, por não provada, com a sua absolvição dos pedidos.
Mais pede que seja julgada procedente e provada a reconvenção, sendo declarado resolvido o contrato promessa em apreço, por incumprimento definitivo imputável aos Autores e, em consequência, reconhecer-se e declarar-se que tem direito a haver para si o montante do valor que lhe tenha sido entregue a título e sinal, na monta de €78.000,00, devendo ainda serem os Autores condenados ao pagamento de € 50,00 diários, desde a data de resolução do contrato promessa e até efectiva e regular entrega/devolução do imóvel.
Os Autores vieram apresentar réplica, impugnando a matéria de facto da reconvenção e pedindo que o pedido reconvencional seja julgado integralmente improcedente, por não provado, com a sua absolvição do pedido.
Dispensou-se a realização de Audiência Prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os Temas da Prova.
Após a realização da primeira sessão de audiência de julgamento, a Ré veio apresentar um requerimento nos autos alegando que, em sede da sessão de julgamento ocorrida no dia 24 de abril de 2024, a testemunha DD (arrolada pelos Autores) aquando da sua inquirição referiu que os Autores tiveram um crédito de habitação aprovado, para aquisição do imóvel em discussão nos autos.
Afirma que se revela pertinente e com relevo para a boa decisão da causa, e porque só agora, com a inquirição se revelou que (alegadamente) tal documento existe e porque não se poderá fazer prova de tal existência, por via testemunhal, mas sim através da sua apresentação.
Requer, nos termos do disposto no artigo 432.º do Código de Processo Civil, que o Tribunal notifique a testemunha DD e que se notifiquem os próprios Autores, nos termos do disposto no artigo 429.º do Código de Processo Civil, para que venham juntar aos autos documento oficial e original de instituição bancária, nos moldes infra: documento comprovativo do pedido e aprovação do crédito, do qual conste claramente a entidade mutuante, as pessoas mutuárias, o valor do crédito, a identificação do imóvel para o qual o crédito é pedido/concedido, a expressa menção e sem reservas de aprovação desse mesmo crédito; documento esse que deverá encontrar-se subscrito pela entidade emissora e com expressa e clara referência ao momento do pedido do crédito bem como à data em que tal crédito/mútuo fora aprovado.
Em complemento, e tendo na génese os idênticos e preditos fundamentos, requer a notificação dos Autores para virem indicar em que instituição bancária decorreu tal pedido de crédito, para que, ulterior e oportunamente, o que desde já se requer, seja notificada a instituição bancária que venha a ser identificada nos termos supra, para que a mesma venha esclarecer o seguinte: que venha aos autos esclarecer, sob compromisso de honra, que pedido de crédito fora apresentado pelos Autores, relativamente a que imóvel, em que data tal pedido fora apresentado e para que fins, qual a decisão proferida pela instituição, em que data tal decisão fora proferida e comunicada aos Autores, assim como indicar se para além dos Autores o pedido de crédito fora igualmente subscrito por terceira pessoa.
Não se tendo o tribunal recorrido pronunciado sobre tal requerimento, veio a Ré apresentar novo requerimento escrito reiterando o requerido anteriormente.
No decurso da segunda sessão de audiência de julgamento, realizada no dia 14/06/2024, vieram os Autores pronunciar-se sobre o requerimento, nos seguintes termos:” Veio a Ré, através do requerimento com a referência 49152032 reiterar o pedido de junção documental que efectuou, solicitando ainda a junção de informação pelos Autores, sobre a instituição bancária para que o Tribunal solicite à mesma o constante no artº 8º, alínea a), desse mesmo requerimento. No que concerne à justificação desse pedido e, do momento em que é efectuado, é referido que aquando da inquirição de DD, na diligência que antecede a presente, esta referiu que os autores tiveram crédito de habitação aprovado para a aquisição do imóvel em discussão nos autos, acrescentando a Ré que a testemunha referiu que existia documento que atestava essa aprovação e que, apenas teve conhecimento desse facto na audiência. Portanto, mesmo que tivesse alguma utilidade esse documento, e no parecer dos Autores não tem, conforme consta da petição Inicial e do próprio depoimento da testemunha em causa, que entretanto foi disponibilizado via Citius para audição das partes, facto é que a mesma refere, ouvido esse depoimento, reiteradamente que o banco ainda procederia à vistoria, tendo sido até nessa questão dos trâmites procedimentais dos bancos, questionada pela Ré, se sabia ou não como estes se desenvolviam e, facto é que, nas palavras da mesma ficou claro, que só faltava a vistoria e que só não avançou em face da recusa da Ré no cumprimento do contrato, o que se concluí pela simples audição da gravação.
Portanto, por ser verdade o referido a respeito pelos autores na Petição Inicial quanto aos acontecimentos em causa, e ainda que entendam os mesmos saber se a questão do empréstimo finalizado sempre só relevaria se a escritura tivesse sido legalmente marcada pela Ré, qualquer documento que exista e que o Tribunal entenda essencial ao esclarecimento dos factos sobre este procedimento bancário será evidentemente junto pelos mesmos se instados para tanto, não entendendo no entanto, e ouvidas as declarações da testemunha, que essa essencialidade se verifique, sendo que, nesse sentido, tal notificação para junção deve ser indeferida, e a instância prosseguir, o que se requer.”
Dada a palavra à Ré, a mesma referiu: “Na sequência da exposição ora apresentada pelos Autores, e perante o seu teor, não se percebe como poderá o Tribunal deixar de atender ao que já fora peticionado pela Ré em Abril passado, portanto, há mais de 45 dias, uma vez que o exercício ao contraditório, no que tange a esse mesmo requerimento, se encontra há muito ultrapassado.
O requerimento último apresentado pela Ré, visou somente, e na tentativa de obter despacho prévio à presente diligência, reiterar aquele, que perante a versão apresentada pela testemunha em apreço se entende ser pertinente.
Do depoimento da mesma, resulta claramente ao minuto 24' e 14'' do seu depoimento o seguinte, dito pela testemunha (questionada sobre o empréstimo): "tudo certinho, liberado o empréstimo foi garantido e tinham que marcar vistoria".
Resulta de tal excerto que, a testemunha procurou garantir ao tribunal que o empréstimo foi concedido, e o que se pretende somente, e pela via legal/oficial, é clarificar tal informação, pois conforme se requereu em Abril, não se pretende somente clarificar a aprovação do empréstimo mas sim e também, se foi requerido, por quem, em que montante, para que efeito e, em que instituição bancária.
Por todo o exposto, o requerido deve ser admitido.”
Sequencialmente foi proferido despacho com o seguinte teor: “Considera-se irrelevante o requerido para a boa decisão da causa, sendo que, a prova produzida será apreciada livremente segundo a prudente convicção do julgador cf. 607º nº 5 do CPC. Assim sendo, indefere-se o ora requerido. Notifique.”
Inconformada com este despacho, a Ré interpôs o presente recurso, pedindo que seja declarado nulo o despacho em crise e (ainda que assim não se entenda) revogando-se a decisão/despacho recorrido que indeferiu o seu requerimento probatório, sendo o mesmo substituído por um novo despacho que ordene a realização das diligências probatórias peticionadas no seu requerimento probatório, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
A. A Recorrente não se conforma com a decisão (despacho proferido em audiência de julgamento, plasmado em Acta com a referência - 461182088) proferida pelo Tribunal a quo, através da qual indefere o requerimento de prova apresentado pela Ré.
B. O Requerimento de prova apresentado pela Ré (datado de 26 de Abril de 2024, com a referência – 38870828) mostra-se oportuno, pertinente e com sustento legal; tendo ocorrido em virtude do que fora alegado em audiência de julgamento por parte de testemunha arrolada pelos Autores, resultando claro – desde logo do artigo 346.º do CC que a Ré poderá apresentar contraprova dos factos que os Autores pretendem provar, no caso, a existência de processo de crédito bancário e a concessão do mesmo aos Autores.
C. De modo que o Tribunal possa decidir em consciência e com base na realidade, impunha-se que admitisse e deferisse o requerimento apresentado pela Ré.
D. Contudo, o Tribunal veio a indeferir o requerido, simplesmente por entender como não pertinente e referindo ainda que “a prova produzida será apreciada livremente segundo a prudente convicção do julgador”;
E. Ora, tais afirmações não configuram uma fundamentação, em bom rigor; não sendo admissível impor às partes que aguardem o termo do processo para perceber que livre convicção será essa.
F. Dispõe o artigo 154.º do CPC que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”; impondo a CRP (artigo 205.º) a mesma obrigação.
G. O Tribunal “a quo” não apresentou qualquer fundamento concreto para o indeferimento, limitando-se a usar um termo genérico, abstrato e sem qualquer incidência no caso em concreto; não consubstanciando uma verdadeira fundamentação, em bom rigor.
H. Como tal, violou o disposto no artigo 154.º n.º 1 do CPC, não dando cumprimento ao mesmo e como tal deverá ser declarado nulo, o que se peticiona.
I. No entanto e sem prescindir, o requerido pela Ré é pertinente, com bastante utilidade para os autos, de onde poderá advir meio para descoberta da realidade e verdade; mormente no sentido de perceber – nomeadamente através de informação prestada pelo próprio banco - se existiu algum processo de crédito promovido pelos Autores para compra do imóvel em causa nos autos e em caso afirmativo, qual a decisão da instituição bancária quanto ao mesmo; sem ter assim o Tribunal, que se basear no relato de uma testemunha, no caso, a procuradora que subscreveu o CPCV em apreço nos autos e como tal, com um interesse “indirecto” na causa.
J. A importância do requerido pela Ré assenta, inclusive, nos Temas da Prova – ponto 5 - Saber das razões pelas quais não se realizou o contrato prometido; importando clarificar este ponto, pois apesar de não constar do CPCV qualquer cláusula (seja suspensiva ou resolutiva) atinente a qualquer crédito bancário; o desinteresse e desleixo dos Autores é pertinente e tem interesse a sua percepção para o Tribunal; ainda que não seja fulcral para a decisão final, atendendo à prova já produzida.
K. Resulta do artigo 346.º do Código Civil que é lítico e admissível, à aqui Recorrente apresentar contraprova a respeito dos mesmos factos que os Autores pretenderam provar, não sendo lícito que o Tribunal se atenda a uma mera testemunha, arrolada pelos Autores, sem permitir à Ré o exercício do direito consignado na lei, com o fito de clarificar; seja confirmando ou contrariando o que a testemunha relatou.
L. A Ré tem o direito ao contraditório, plasmado na lei, no que toca a contrariar a prova produzida pelos Autores, no caso, por via testemunhal; sendo legítimo à Ré (e deveria ser do interesse do Tribunal) atestar e confirmar ou infirmar o relatado pela testemunha em causa; direito que lhe foi negado – infundadamente - pelo Tribunal.
M. Deverá assim ser declarado nulo o despacho, por falta de fundamentação, e (mesmo que assim não se entenda) ser substituído por outro que ordene a realização das diligências probatórias peticionadas pela Ré.
Os Autores vieram apresentar contra-alegações, pugnando por que o presente recurso seja julgado totalmente improcedente e supletivamente pedindo que se considere que a junção documental requerida, além de intempestiva, é absolutamente irrelevante.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
o Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;
o Apreciação da admissibilidade da produção de prova documental requerida pela Ré e não admitida pelo tribunal recorrido.
A Recorrente vem sustentar que o tribunal a quo não apresentou qualquer fundamento concreto para o indeferimento do seu requerimento, limitando-se a usar um termo genérico, abstrato e sem qualquer incidência no caso em concreto - não consubstanciando uma verdadeira fundamentação, em bom rigor.
Entende que, nesta medida, o tribunal recorrido violou o disposto no artigo 154.º n.º 1 do CP Civil, não dando cumprimento ao mesmo.
Pede que o despacho recorrido seja declarado nulo, por falta de fundamentação.
Decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil invocado que a sentença é nula – entre o mais – quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Trata-se de um vício de natureza formal e não substancial, aplicável aos despachos em apreciação dos requerimentos das partes.
Explica Antunes Varela[2] que o dever de fundamentação das decisões judiciais, decorrente do art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 158.º do CP Civil, encontra a sua justificação na necessidade de persuadir as partes “da legalidade da solução encontrada” e de “convencer aquela que perdeu da sua falta de razão em face do Direito”, e bem assim proporcionar à parte que perdeu o conhecimento dos fundamentos em que o julgador baseou a sua decisão, para que, pretendendo impugná-la, o possa fazer “com conhecimento de causa”.
A doutrina e a jurisprudência têm decidido de forma reiterada e unânime que a falta de fundamentação só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respetivo enquadramento legal.
Por contraponto, a sentença ou o despacho que contenha uma fundamentação deficiente ou incompleta[3] poderá padecer de vários vícios, mas não será, por esta via, nula.
No caso em apreço, deve ainda ter-se especialmente em conta que as necessidades de fundamentação dos despachos são bastante menos exigentes das que se impõem na sentença final.
Em face de tudo o exposto, é manifesto que o despacho recorrido, ao indeferir o requerido justificando que considera “irrelevante o requerido para a boa decisão da causa”, não padece do invocado vício de nulidade.
Ainda que se possa considerar tratar-se de fundamentação deficiente e/ou incompleta, não pode seguramente considerar-se tratar-se de uma situação de falta completa de fundamentação.
Improcede, assim, este fundamento de recurso.
A factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
A Ré veio, no decurso da audiência de julgamento, requerer, nos termos do disposto no artigo 432.º do CP Civil, que o tribunal notifique a testemunha DD e que se notifiquem os próprios Autores, nos termos do disposto no artigo 429.º do mesmo Código, para que venham juntar aos autos documento oficial e original de instituição bancária, nos moldes infra: documento comprovativo do pedido e aprovação do crédito, do qual conste claramente a entidade mutuante, as pessoas mutuárias, o valor do crédito, a identificação do imóvel para o qual o crédito é pedido/concedido, a expressa menção e sem reservas de aprovação desse mesmo crédito; documento esse que deverá encontrar-se subscrito pela entidade emissora e com expressa e clara referência ao momento do pedido do crédito bem como à data em que tal crédito/mútuo fora aprovado.
Em complemento, requer a notificação dos Autores para virem indicar em que instituição bancária decorreu tal pedido de crédito, para que, ulterior e oportunamente, seja notificada a mesma para que venha esclarecer o seguinte: que pedido de crédito fora apresentado pelos Autores, relativamente a que imóvel, em que data tal pedido fora apresentado e para que fins, qual a decisão proferida pela instituição, em que data tal decisão fora proferida e comunicada aos Autores, assim como indicar se para além dos Autores o pedido de crédito fora igualmente subscrito por terceira pessoa.
Justifica que a testemunha DD (arrolada pelos Autores), aquando da sua inquirição, referiu que os Autores tiveram um crédito de habitação aprovado para aquisição do imóvel em discussão nos autos.
Os Autores vieram pedir a improcedência do requerido, invocando falta de utilidade da junção da dita documentação e, por outro lado, errada interpretação da Ré quanto ao teor do depoimento da testemunha em causa.
O tribunal recorrido indeferiu o requerido, considerando irrelevante o requerido para a boa decisão da causa.
A Ré veio recorrer pedindo a revogação da decisão/despacho recorrido que indeferiu o seu requerimento probatório e que o mesmo seja substituído por um novo despacho que ordene a realização das diligências probatórias peticionadas no seu requerimento probatório.
Para além de reiterar a justificação antes apresentada para a formulação deste requerimento, alega que o por si requerido é pertinente, com bastante utilidade para os autos, de onde poderá advir meio para descoberta da realidade e verdade, mormente no sentido de perceber – nomeadamente através de informação prestada pelo próprio banco - se existiu algum processo de crédito promovido pelos Autores para compra do imóvel em causa nos autos e em caso afirmativo, qual a decisão da instituição bancária quanto ao mesmo.
Acrescenta que a importância do requerido assenta, inclusive, nos Temas da Prova – ponto 5 - Saber das razões pelas quais não se realizou o contrato prometido; importando clarificar este ponto, pois apesar de não constar do CPCV qualquer cláusula (seja suspensiva ou resolutiva) atinente a qualquer crédito bancário, o desinteresse e desleixo dos Autores é pertinente e tem interesse a sua perceção para o Tribunal.
Mais acrescenta ter direito ao contraditório, plasmado na lei, no que toca a contrariar a prova produzida pelos Autores, no caso, por via testemunhal.
Cumpre decidir.
Os documentos são – como se sabe – um dos meios de prova previstos no Código Civil[4] e no CP Civil (ao lado da prova por confissão, por declarações de parte, por prova pericial, por inspecção judicial e por prova testemunhal).
A regra geral prevista no art.º 423.º do CP Civil é a de que toda a prova documental deve ser junta com o articulado respetivo e apenas excecionalmente se admite a sua junção até 20 dias antes da data da audiência final.
Nas situações em que os documentos estejam em poder da parte contrária e/ou de terceiros, decorre do disposto nos art.º 429.º e 432.º do CP Civil que o interessado deve, em igual prazo, requerer que a parte contrária e/ou o possuidor seja notificado para os apresentar, identificando os factos que com eles quer provar.
Após este limite temporal, “só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”
Assim, nos casos de junção tardia, incumbe ao apresentante o ónus da justificação temporal da apresentação após os articulados.
Por se manter absolutamente atual, e aplicável diretamente ao caso destes autos, deixa-se aqui referência à decisão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 473/94, de 28/06/1994, que não julgou inconstitucionais as normas dos então arts. 523.º, 524.º, 543.º e 706.º do CP Civil, com a seguinte fundamentação: “A Constituição acolhe e define no art.º 2.º o princípio do Estado de direito democrático, individualizando depois no art.º 20.º, n.º 1, como um dos seus subprincípios concretizadores o direito de acesso aos tribunais. (…). À luz do sentido genérico assim atribuído ao direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição de indefesa, pode seguramente afirmar-se que o conjunto de normas definidor do regime próprio da produção da prova documental, não sofre dos vícios de inconstitucionalidade que lhe são assacados pelo recorrente. Com efeito, concilia-se ali, em termos adequadamente proporcionais, o interesse público de apuramento da verdade e da realização da justiça, ao qual convém a junção ainda que tardia dos documentos, com a disciplina ideal do processamento da ação que faz impender sobre as partes um dever de diligência e de colaboração com o tribunal.”
Deve, portanto, entender-se que a atual disposição legal do art.º 423.º do CP Civil, atinente à prova por documentos, procura conciliar o interesse público de apuramento da verdade e da realização da justiça com o direito a uma decisão judicial em prazo razoável.
No caso em apreciação, a Ré/Recorrente justificou o requerimento feito no decurso da audiência de julgamento dizendo que a testemunha DD (arrolada pelos Autores), aquando da sua inquirição, referiu que os Autores tiveram um crédito de habitação aprovado para aquisição do imóvel em discussão nos autos.
O depoimento da testemunha em causa, advogada e irmã dos Autores, não foi produzido nesse sentido, tal como realçam os Autores/Recorridos.
Esta testemunha limitou-se a dizer que a instituição bancária portuguesa pediu um conjunto de documentos e que, na posse destes, a informou, na qualidade de procuradora, que teria que se marcar uma vistoria ao imóvel.
Tendo a Ré/Recorrente perguntado expressamente a tal testemunha, em sede de esclarecimentos, se a entidade bancária concedeu o empréstimo aos Autores, a mesma respondeu “Não. Eu não sei qual é o trâmite do Banco”. Negou que tivesse conhecimento que o empréstimo tivesse chegado a ser aprovado, acrescentando “Qual é que é a ordem? Eu não trabalho em Bancos.”
Deve, portanto, concluir-se que a Recorrente não possui justificação cabal para a formulação do requerimento no momento tardio em que o fez.
No entanto, tal como vem sendo crescentemente realçado pela doutrina e jurisprudência, as regras estritas do processo civil têm que ser integradas com os princípios gerais estruturantes do mesmo, uns e outros à luz do desiderato da justa composição do litígio.
As normas processuais são um instrumento para a célere e equitativa composição do litígio, mas não devem constituir um espartilho à produção dos meios de prova necessários ao apuramento da verdade dos factos alegados.
Dois dos princípios estruturantes do processo civil, e aqueles potencialmente aplicáveis ao caso em apreciação, são o princípio inquisitório e o princípio da cooperação.
Ao abrigo do princípio do inquisitório, o juiz deve balizar a produção de prova por referência às diligências necessárias ao apuramento da causa e à justa composição do litígio (cf. Art.º 411.º do CP Civil).
Por seu turno, o princípio da cooperação, consagrado expressamente no art.º 7.º do CP Civil, trata-se de uma cláusula geral, tendente a direcionar o andamento do processo em cooperação recíproca, de forma breve, mas eficaz e justa, e, como tal, potencialmente aplicável a todo e qualquer processo ou ato processual e sempre que o caso concreto o demande.
Tal como refere Lebre de Freitas[5]: “A progressiva afirmação do princípio da cooperação, considerado uma trave mestra do processo civil moderno, tem levado a falar duma comunidade de trabalho entre as partes e o tribunal para a realização da função processual.”
Cita-se em abono desta nossa tese o Acórdão de 05/02/04 do Supremo Tribunal de Justiça, tendo como Relator Ferreira de Almeida[6], ainda que versando sobre uma situação não totalmente coincidente: “Se a parte houver requerido – em plena audiência de julgamento – a requisição de documentos em poder da parte contrária ou de alguma estação/entidade oficial poderá o tribunal, ao abrigo dos seus poderes/deveres inquisitórios ou de indagação oficiosa plasmados nos art.ºs 528.º, 519.º, 266.º e 265.º, todos do CPC, e com vista ao apuramento da verdade material, admitir essa diligência probatória adicional. Um tal requerimento não poderá, pois, ser indeferido tão-somente com base na respetiva extemporaneidade – haver sido formulado apenas em sede de audiência de discussão e julgamento – antes com fundamento na sua desnecessidade, impertinência ou no seu carácter espúrio ou meramente dilatório.”
Mesmo nesta perspetiva, entendemos não se justificar a obtenção dos documentos em causa.
Tal como resulta do relatório supra, os Autores não alegaram que tivessem um crédito de habitação aprovado para aquisição do imóvel em discussão nos autos.
Alegaram, diversamente, que solicitaram crédito em Portugal, tudo com conhecimento da Ré, tudo com vista à realização do contrato prometido por ambas as partes. Bem como que, em fevereiro de 2023 e estando este processo de financiamento em curso, o gerente da Ré, CC, se dirigiu ao imóvel, acusando-os de incumprimento por ter remetido para o endereço anterior da procuradora carta registada com notificação para a realização da escritura e por não terem comparecido no dia e local agendado para a realização da escritura.
Ou seja, as alegações dos Autores são coincidentes com o teor do depoimento da testemunha DD, no sentido de que estava um processo de financiamento em curso, em fase de realização de vistoria ao imóvel.
Não havendo, pois, no processo qualquer alegação ou princípio de prova no sentido de que os Autores chegaram a ter um crédito de habitação aprovado para aquisição do imóvel, torna-se completamente desnecessário e impertinente notificar a testemunha, os Autores e/ou a instituição bancária para comprovar tal factualidade.
Acrescenta-se, ainda, que a prova documental da mera existência desse financiamento bancário incumbe, em termos de ónus da prova, aos Autores e que, pretendendo a Ré fazer contraprova dessa factualidade, deveria tê-lo feito, face às alegações da Petição Inicial, no momento processual previsto no art.º 423.º do CP Civil.
A conclusão final é, portanto, a da improcedência do presente recurso.
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/Ré, confirmando-se a decisão recorrida.
Porto, 19 de novembro de 2024
Lina Castro Baptista
Alexandra Pelayo
João Ramos Lopes
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Manual de Processo Civil, 1984, pp. 670 e 671.
[3] cf. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 140, Antunes Varela e outros in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, p. 687.
[4] Doravante designado apenas por C Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[5] In Introdução ao Processo Civil (Conceito e princípios gerais à luz do novo código), 3.ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 190 e 191.
[6] Proferido no Processo n.º 03B4068 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.