I - Para além das hipóteses em que a lei ou o negócio o exijam, o litisconsórcio é necessário quando a intervenção de todos os interessados, atendendo à natureza da relação jurídica, deva ter lugar para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal; ou seja, regule, em definitivo e de modo uniforme, a situação concreta em relação a todos os interessados.
II - Quando esteja em causa a invalidade de um contrato, é obrigatória a intervenção na ação, em litisconsórcio necessário, de todos os contraentes que possam vir a ser afetados pelo reconhecimento daquele vício.
III - Não estando presentes esses contraentes, o juiz, findos os articulados, está obrigado a providenciar pelo suprimento do litisconsórcio, convidando as partes a assegurá-lo.
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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda;
Anabela Dias da Silva.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto,
I - Relatório
1- AA, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo que seja declarado nulo o contrato de arrendamento celebrado pela Ré, ou caso assim não entenda, seja declarada a anulabilidade do antedito contrato, com as inerentes consequências legais, e a Ré condenada a pagar-lhe uma indemnização a fixar pelo tribunal, “de acordo com o seu livre e prudente arbítrio, tendo por base a lesão do direito de propriedade do Autor com a inerente privação do uso, fruição e disposição do imóvel contabilizada desde a data da celebração do aludido contrato de arrendamento”.
Isto porque, em resumo, a Ré arrendou o aludido imóvel, que pertence a ambos (que já foram casados um com o outro), sem lhe comunicar a identidade dos arrendatários, o valor da renda, as obrigações impostas aos arrendatários e demais informações atinentes ao arrendamento.
2- Contestou a Ré rejeitando esta pretensão, uma vez que nunca aceitou qualquer condicionalismo do A. relativamente ao referido arrendamento e que aquele lhe deu o consentimento para o arrendamento sem qualquer restrição, na audiência em que foi decretado o divórcio entre ambos.
Pede, assim, a improcedência desta ação e a condenação do A. como litigante de má fé.
3- O A. respondeu reafirmando a sua tese inicial e refutando a má-fé que lhe é imputada.
4- Terminados os articulados e realizada a audiência prévia sem êxito conciliatório, foi, em seguida, proferida sentença na qual se julgou a presente ação improcedente e se absolveu ainda o A. do pedido de condenação como litigante de má-fé.
5- Inconformada com esta sentença, dela recorre o A., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“1- No entendimento do Recorrente, versa o presente recurso sobre:
a) a decisão da matéria de facto, mais concretamente quanto aos factos dados como provados e não provados no douto despacho saneador-sentença;
b) quanto à errada aplicação da lei ao caso concreto;
c) quanto à omissão de acto na marcha de processo;
2- No que se refere à matéria dada como provada, andou mal o Tribunal a quo, ao omitir da sentença proferida, factos alegados pelo Autor e, provados documentalmente, que demonstram a oposição por parte do aqui Recorrente ao contrato de arrendamento celebrado pela sua ex-cônjuge; Se não, vejamos:
3- Em sede de audiência datada de 07.11.2022 foi decretado o divórcio por mútuo consentimento do Recorrente e da Recorrida.
4- Sucede que, até à presenta data o Recorrente e a Recorrida ainda não procederam à partilha dos bens comuns.
5- Do património comum não partilhado, consta o imóvel correspondente à fração autónoma designada pela letra “AU”, sito na Rua ..., na freguesia ..., Concelho ... e Distrito do Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Maia, sob o n.º: ...54 da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia, sob o artigo ...34.
6- No âmbito da referida audiência, ficou lavrado em acta, a anuência do Recorrente ao arrendamento do imóvel em causa.
7- Não obstante o antedito, a referida autorização, é uma autorização de carácter geral para que a Recorrida promovesse o arrendamento da referida fração, dado que o Recorrente reside no estrangeiro.
8- Sucede que, face ao envio pela Recorrida (ex-cônjuge), via email, de uma minuta de contrato de arrendamento de forma aleatória, ao Recorrente (ex-cônjuge) (Cfr. doc. 5 junto na petição inicial), este manifestou perentoriamente a sua oposição ao arrendamento em causa, invocando para tal os devidos motivos (Cfr. Doc. 5);
9- Sendo tais motivos os seguintes: a minuta enviada nada tinha a ver com o acto concreto efetivamente celebrado, não se referindo sequer ao imóvel objeto do contrato a celebrar, identificando outras pessoas que não os Arrendatários efetivos do imóvel, referindo um valor de renda que nada tem que ver com a renda contratada pela ex-cônjuge, não contemplando quaisquer cláusulas quanto ao mobiliário e equipamento;
10- o Tribunal a quo, ignorou todos estes factos invocados e provados documentalmente pelo ora Recorrente, quando os mesmos eram de fácil constatação pela comparação entre a minuta enviada pela Recorrida ao Recorrente e pelo contrato de arrendamento celebrado pela Recorrida, junta por esta aos autos, quando notificada para tal.
11- e ignorar é a palavra correta e adequada, atendendo a que, lendo a sentença proferida, os anteditos factos não são referidos quer nos factos provados (como deveriam ser, no entendimento do Recorrente, dado que os mesmos estão provados documentalmente), como igualmente não constam dos factos não provados;
12- Veja-se que na sentença proferida consta no capítulo atinente aos factos não provados “Com interesse para a decisão da causa, inexistem factos não provados a enunciar.”;
13- Da referida menção, depreende o Recorrente que o Tribunal a quo considerou que, todos os demais factos alegados e carreados para os autos com respetivo suporte e prova documental, factos esses que demonstram inequivocamente a oposição expressa do Recorrente ao acto concreto de arrendamento de um bem comum não partilhado pelo outro ex-cônjuge, não têm interesse para a decisão da causa?!
14- Efetivamente, da sentença proferida emerge evidente a posição do Tribunal a quo segundo a qual: para a validade do contrato de arrendamento de bem imóvel comum não partilhado, será bastante o consentimento escrito do ex-cônjuge, não aferindo se o consentimento prestado cumpre os requisitos que a lei impõe para o mesmo, centrando a sua análise ao processo nos factos que sustentam essa posição, ignorando todos os demais.
15- Ora, andou mal o Tribunal a quo, ao não considerar que, o que releva para efeitos de decisão, é que no caso concreto estamos perante um bem pertencente a um património comum não partilhado e, como tal, o regime do consentimento deverá ser igual ao exigido para os cônjuges, tendo em vista a garantia do cumprimento das mesmas finalidades.
16- Segundo o disposto na lei, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
17- Cessando a comunhão de bens com a dissolução do casamento, o património comum subsiste até à respetiva partilha.
18- Contudo, resulta da análise da legislação, que a mesma é omissa em matéria de regulação da administração dos bens que integram o património comum durante esse estado de indivisão, sendo contudo, possível retirar do espírito do sistema um princípio geral aplicável à administração do património comum do casal durante esse período intermédio entre a cessação dos efeitos patrimoniais do casamento e a partilha do património comum.
19- Assim, durante esse período, cada um dos cônjuges terá legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal. Os restantes atos de administração só poderão ser praticados com o consentimento de ambos os cônjuges.
20- a questão que se impõe é aferir se o ato de arrendar um imóvel comum não partilhado é ao abrigo da lei um ato de administração ordinária.
21- Segundo o artigo 1682.º - A, n.º 1 al. a) do CC: “Carece de consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens: a) A alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns”.
22- Acresce que, à luz da doutrina e jurisprudência dominante, o vertido no referido artigo é independente da circunstância de o artigo 1024 n.º 1 do Código Civil, na medida em que, em termos práticos, ao se arrendar um imóvel, existe um despojamento de direitos relativos ao gozo do imóvel que não é compaginável com a qualidade de um ato de administração ordinária podendo mesmo, segundo a melhor doutrina, em termos práticos, poder ser equiparado quase a um ato de disposição;
23- Ora, se a lei assim o define para uma relação entre cônjuges, mais se impõe o mesmo regime quando estamos perante ex-cônjuges com património comum não partilhado, de acordo com os princípios da razoabilidade e da proteção de um património que é comum e que por isso pertence a ambos de igual forma;
24- Efetivamente, veja-se o disposto no Acórdão do Tribunal da relação de lisboa, em que: “dissolvido o casamento por divórcio, por sentença transitada em julgado, põe-se a questão de saber qual a natureza jurídica do património comum até à partilha, face ao preceituado nos artigos 1688.º, 1689, 1788.º e 1789.º, todos do Código Civil:
a) - Uns entendem que continua a manter-se a estrutura inicial de comunhão de mão comum, por força da imutabilidade do regime de bens, passando à situação de indivisão que não se confunde com a figura da compropriedade;
b) - Outros consideram que o património comum degenera em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha, enquanto negócio certificativo, de carácter declarativo, destinado a tornar certa uma situação anterior, com a concretização em bens certos e determinados, aplicando-se as regras da compropriedade.
c) Outros consideram que pós a extinção do casamento, os bens comuns do casal mantêm-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha, judicial (inventário) ou extrajudicialmente, não sendo a simples extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento.”
- Refere ainda o referido acórdão que “Quer se considere que, após o trânsito em julgado da sentença de divórcio, passou a existir um regime de compropriedade (ou qualquer outro a que este seja aplicável) quer se considere que com a extinção do casamento, os bens comuns do casal se mantêm nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha, o contrato só será válido se celebrado termos referidos nas conclusões anteriores”, ou seja, se for dado consentimento e por escrito.
25- Efetivamente, entende o Recorrente na senda do vertido no acórdão supramencionado que, para que um contrato de arrendamento que versa sobre bem comum não partilhado seja válido, independentemente do regime aplicável, é obrigatório o consentimento!
26- Mas ao consentimento exigido, impõe-se a aplicação analógica e por maioria de razão, do preceituado no artigo 1684.º do Código Civil., que refere expressamente que o mesmo tem de ser especial para cada um dos atos concretos a realizar.
27- E ser especial é ter de ser conferido especificamente para o arrendamento em causa devendo ainda revestir a forma escrita.
28- Veja-se que, se a lei impõe estas exigências para os cônjuges, mais se justificam tais exigências quando estamos perante uma situação de divórcio sem partilha dos bens comuns.
29- Na verdade, é necessário garantir que o cônjuge / ex-cônjuge que consente na prática do ato possa refletir sobre o consentimento que presta e ter conhecimento concreto das consequências patrimoniais desse mesmo consentimento e da concreta oneração do bem que integra o património comum não partilhado do ex-casal – exigências que assumem especial relevância quando estamos a falar de ex-cônjuges com bens comuns não partilhados.
30- Não se bastando para tal, uma mera autorização ou consentimento de caracter genérico, conforme é mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.07.2019 e que remete para o entendimento de Antunes Varela (in “Direito da Família”, 1987, página 380) em que o consentimento: “tem de ser outorgado caso por caso. Precisa de ser especialmente referido ao ato singular, concreto, que o outro cônjuge pretende realizar”.
31- Tal entendimento tem subjacente a mesma ratio legis e como tal, tem de ser aplicado por maioria de razão, à situação da oneração por ex-cônjuges de bens comuns não partilhados.
32- Ora, resulta provado dos documentos juntos aos autos que a Recorrida celebrou o contrato de arrendamento no dia 29 de dezembro, logo após a oposição manifesta e expressa do Recorrente através de comunicação remetida a 21 de dezembro, agindo aquela como bem entendeu, fazendo tábua rasa da referida comunicação, atuando como o imóvel fosse sua propriedade exclusiva.
33- A minuta remetida ao Recorrente nada tinha que ver com o contrato celebrado, sendo que a omissão dos elementos essenciais de qualquer contrato de arrendamento, bem como das cláusulas que no entendimento do Recorrente eram fundamentais, impediu o Recorrente de ponderar e refletir adequadamente sobre o ato a consentir, levando a que o mesmo não tenha tido conhecimento concreto das inerentes consequências patrimoniais, o que de forma alguma se pode aceitar, atendendo à evidente contrariedade com o espírito da lei subjacente à temática em causa;
34- Veja-se que a Recorrida alega no artigo 14.º da sua contestação, factos não verdadeiros, e cuja falsidade se apura facilmente pelo confronto entre o doc. 3 e o doc. 5 da petição inicial – factos não atendidos e considerados pelo Tribunal a quo.
35- Assim, entende o Recorrente que, o Tribunal a quo, deveria ter aplicado de forma analógica o vertido no artigo 1684.º do Código Civil, em matéria de consentimento para alienação de bens comuns.
36- Pois que, apenas existiu uma mera autorização de caracter genérico para colocar o imóvel em causa no mercado de arrendamento, no quadro de um alegado acordo de repartição da administração dos bens comuns do casal após a sua separação, divórcio.
37- Na verdade, e conforme já anteriormente mencionado, o consentimento exigido para o acto concreto em si, ou seja, para arrendar o imóvel em causa, àquelas pessoas, por aquele valor e naquelas condições é absolutamente inexistente, e absolutamente desconhecidas do Recorrente, até à data da junção aos autos do contrato de arrendamento pela Recorrida.
38- Efetivamente, findos os articulados, foi proferido pelo Tribunal a quo, despacho a ordenar: “Ao abrigo do artigo 6.º do CPC, notifique a Ré para juntar cópia do contrato de arrendamento celebrado relativamente ao imóvel identificado na PI.”, tendo a Ré cumprido a referida notificação e junto ao processo o contrato de arrendamento celebrado;
39- Nessa sequência e, atendendo a que só nessa altura o Recorrente e o Tribunal tiveram conhecimento da identificação dos Arrendatários, face ao pedido de anulabilidade do Autor, e face à impossibilidade de uma decisão de procedência do pedido alcançar o seu efeito útil, atendendo à preterição de um litisconsórcio necessário passivo, o que se traduz numa exceção dilatória passível de sanação e de conhecimento oficioso, deveria o Tribunal a quo, ter proferido despacho pré-saneador, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 590.º do Código Processo civil, “…. visando providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º.”
40- Ora, tendo o Autor peticionado a anulabilidade do contrato de arrendamento celebrado e, independentemente da procedência ou improcedência da ação, andou mal o Tribunal a quo ao afirmar no saneador-sentença que, “Não existem quaisquer outras nulidades, exceções ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.”, quando na verdade, existem!
41- Na verdade, no âmbito de uma ação de apreciação da invalidade de um contrato de arrendamento, existe sempre preterição de litisconsórcio, sanável por via do incidente de intervenção principal provocada, quando no processo não figura(m) como Parte(s) o(s) Arrendatário(s).
42- Entende o Recorrente que, estamos perante uma omissão de acto processual cuja relevância anulatória está dependente do reconhecimento de que a irregularidade cometida influi diretamente no exame ou na decisão da causa, tal como estabelece o disposto no artigo 195.º, n.º 1 “in fine” do CPC.
43- A verdade é que, considerando que o Tribunal a quo andou mal na determinação dos factos provados e não provados, assim como na interpretação e aplicação da lei aos referidos factos, devendo ter considerado a ação procedente por provada, teria que para tal, ter dado ao Recorrente a oportunidade de sanar a ilegitimidade passiva, o que não fez!
Ora, em face de toda a argumentação alegada, entende o Recorrente que andou mal o Tribunal a quo, na apreciação e valoração de toda a factologia e respetiva prova carreada nos autos, na aplicação da lei ao caso concreto e ainda na condução da marcha do processo, pelo que deverá o presente recurso ser considerado procedente, e em consequência, ser revogado o despacho saneador-sentença, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
O que se requer”.
6- A Ré respondeu pugnando pela confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
A- Definição do seu objeto
O objeto dos recursos, como é sabido, é delimitado em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)].
Assim, considerando este critério, o objeto deste recurso cinge-se a saber se:
a) A decisão sobre a matéria de facto devia ter incluído os factos referidos pelo Apelante;
b) O mesmo não deu o seu assentimento para o concreto contrato de arrendamento celebrado;
c) Foi preterido o litisconsórcio necessário passivo e, nesse caso, se o Apelante deveria ter sido convidado a suprir essa exceção.
B.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. Autor e Ré foram casados entre si, tendo, nessa qualidade, adquirido a fração autónoma designada pela letra “AU”, correspondente a um apartamento do Tipo T1, no terceiro andar esquerdo, sita na Rua ..., na freguesia ..., Concelho ... e Distrito do Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º ...54, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...34.º, com licença de utilização emitida em 21/09/2005 pela Câmara Municipal ..., com o número ...17/05.
2. Sucede, porém, que, Autor e Ré, cessaram a coabitação em 15 de novembro de 2017, data a partir da qual se separaram de facto.
3. Não obstante o antedito, o casamento de ambos apenas foi dissolvido por sentença datada de 07.11.2022, no âmbito do processo n.º ..., que correu termos no Juízo de Família e Menores de Cascais, na qual foi decretado o divórcio por mútuo consentimento de ambos.
4. Contudo, até à presente data, não foi ainda realizada a partilha dos bens comuns de ambos.
5. Na acta da audiência final do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que correu termos sob o n.º ..., datada de 07-11-2022, ficou a constar expressamente o seguinte “Nesta sede, pelo Sr. AA foi dito que autoriza a Sr.ª BB, a arrendar a verba n.º 2 da relação de bens, ora junta”, correspondendo esta verba ao imóvel identificado em 1.
De entre as questões colocadas e já enunciadas, suscita o Apelante a questão da preterição do litisconsórcio necessário passivo, porquanto, tratando-se de uma ação destinada, entre o mais, a declarar a invalidade do contrato de arrendamento celebrado pela Ré, deviam estar também em juízo aqueles que nesse contrato figuram como arrendatários.
E, tem razão.
Na verdade, embora, face ao prescrito nos artigos 1688.º, 1689.º, 1788.º e 1789.º, do Código Civil, seja controvertida na doutrina e jurisprudência a natureza jurídica do património comum dos ex-cônjuges até à partilha [“a)- Uns entendem que continua a manter-se a estrutura inicial de comunhão de mão comum, por força da imutabilidade do regime de bens, passando à situação de indivisão que não se confunde com a figura da compropriedade; b)- Outros consideram que o património comum degenera em comunhão ou compropriedade do tipo romano, podendo então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha, enquanto negócio certificativo, de carácter declarativo, destinado a tornar certa uma situação anterior, com a concretização em bens certos e determinados, aplicando-se as regras da compropriedade. c) Outros consideram que pós a extinção do casamento, os bens comuns do casal mantêm-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha, judicial (inventário) ou extrajudicialmente, não sendo a simples extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento”[1]], bem como, nessa decorrência, tendo em conta o disposto nos artigos 1024.º, n.º 2, 1682.º-A, n.º 1, al. a), e 1684.º, do Código Civil, o regime a aplicar à administração desse património e a consequência da sua inobservância quando, como ocorre na situação presente, está em causa o arrendamento de um imóvel comum para fins habitacionais apenas por um dos ex-cônjuges [“nulidade, anulabilidade, nulidade de regime misto ou simples ineficácia ou mesmo inoponibilidade ou invocabilidade do vício apenas pelos consortes que não deram o consentimento”, podendo variar também em função do tipo de intervenção do consorte no ato[2]], certo é que estamos sempre perante uma patologia que pode vir a afetar, no mínimo, a eficácia do contrato. Ou seja, o contrato pode vir a não produzir todos os seus efeitos.
E, quando assim é, sendo invocada tal patologia em sede jurisdicional, a mesma não pode deixar de se repercutir na forma como o litígio se desenvolve, em relação aos seus intervenientes. Designadamente, exigindo que na ação estejam presentes todos os interessados. Isto para que a resolução do litígio possa ter um efeito útil, regulando, definitivamente e de modo uniforme, a situação concreta em relação a todos eles.
O artigo 33.º, n.º 2, do CPC, é claro a este propósito. É obrigatória a intervenção de todos os interessados “quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”.
“A decisão produz o seu efeito útil normal - esclarece o n.º 3 - sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
Como salientam, no entanto, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3], esta norma (n.º 3) “não trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças - ou outras providências - inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.
A pedra de toque do litisconsórcio necessário, pois, é a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou, ainda, nas ações de simples apreciação de facto, apreciando e existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar”.
Tem sido esta a razão porque, quando está em causa a validade ou eficácia de um negócio jurídico outorgado por várias partes que podem vir a ser afetadas por algum dos correspondentes vícios, tem sido imposto o litisconsórcio necessário de modo a envolve-las a todas elas no resultado da ação em que é travada essa discussão[4].
Como refere Paulo Pimenta[5], “numa ação destinada a obter a declaração de nulidade de um negócio jurídico, visto que o negócio, a ser nulo (ou válido), há-de sê-lo para todos os contraentes, é obrigatória a presença de todos eles, atenta a natureza da questão jurídica que se discute nos autos, sob pena de os contraentes ausentes da lide não ficarem vinculados à decisão a proferir, a qual, por isso, não teria a virtualidade de regular de modo definitivo a questão submetida a juízo”.
Ora, é, justamente, por isso que também no caso presente devem estar em juízo aqueles que figuram como arrendatários no contrato de arrendamento celebrado pela Ré.
Com efeito, como vimos, o A. pretende que seja declarado nulo esse contrato, ou, subsidiariamente, a anulabilidade do mesmo. Logo, para que esses arrendatários fiquem também vinculados ao que aqui for decidido e que essa decisão seja uniforme para todos os intervenientes nesse contrato, a presença daqueles não pode deixar de ser exigida.
É certo que o A. – que vem suscitar agora esta questão – já devia ter providenciado anteriormente por essa intervenção. Nesta matéria, vigora o princípio do dispositivo. É às partes, e não ao juiz, que cabe “chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária” – artigo 316.º, n.º 1 do CPC. Isto pressupondo naturalmente que esse mesmo interessado, de forma espontânea, não requereu antes a sua própria intervenção – artigo 311.º do CPC.
Mas, se não ocorrer nenhuma destas hipóteses, o juiz está também obrigado a convidar as partes a suprir tal falta.
Como decorre do disposto no artigo 6.º, n.º 2, do CPC, o juiz deve providenciar “oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”. E, se o não fizer antes, deve fazê-lo logo que findos os articulados – artigo 590.º, n.º 2, al. a), do CPC.
Do que estamos a tratar, assim, em relação ao tribunal, é de um poder vinculado. De uma manifestação do dever de cooperação tendente à realização da finalidade última do processo, que é a justa composição do litígio (artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). E porque assim é, ou seja, porque o tribunal só prossegue esse objetivo, é que está vinculado a tudo fazer, dentro dos poderes que a lei lhe confere, para prevenir resultados que fiquem aquém ou contrariem aquela finalidade. Mesmo que para isso tenha de exercer uma função assistencial. Não em benefício de uma das partes ou mesmo de ambas, mas tão só da realização da justiça.
Ora, no caso, esse convite não ocorreu e, pelo contrário, findos os articulados e realizada a audiência prévia sem êxito conciliatório, entendeu-se, ainda que de forma tabelar, que as partes eram legitimas, o que, em relação à Ré, já o vimos, não sucede.
Como tal, pois, esta ilegitimidade, porque é passível de ser sanada, deve dar lugar à revogação da sentença recorrida para que no Tribunal recorrido se proceda ao convite já assinalado e, depois, consoante as circunstâncias, se decida, ou não, do mérito da causa.
Mérito no qual, se for caso disso, não podem deixar de ponderar-se todas as circunstâncias alegadas pelo A. tendentes à interpretação da sua declaração negocial emitida em sede de audiência de julgamento da ação de divórcio, a respeito do arrendamento em questão, e de levar em consideração também as exigências legais, a propósito do assentimento, contidas nos pertinentes preceitos legais já indicados.
Por ora, porém, fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas no presente recurso, o qual, sendo de julgar procedente, implica a revogação da sentença recorrida.
Pelas razões expostas, acorda-se em julgar procedente o presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e determina-se que se enderece às partes o convite supra assinalado.
Porto, 19/11/2024
João Diogo Rodrigues;
Anabela Andrade Miranda;
Anabela Dias da Silva.
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[1] Síntese feita no Ac. RLx de 04/06/2013, Processo n.º 3134/10.0TBMTJ.L1-7, consultável em www.dgsi.pt.
[2] Nuno Alonso Paixão, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, UCP Editora, pág. 386.
No sentido de confirmar esta divergência, inclusive para o regime da compropriedade, podem consultar-se ainda o Ac, STJ de 30/01/2001, Processo n.º 01A2110, Ac RLx de 04/06/2013, Processo n.º 3134/10.0TBMTJ.L1-7, Ac. 02/07/2019, Processo n.º 2171/18.0T8ALM.L1-7, Ac RLx de 10/10/2019, Processo n.º 616/19.1YLPRT.L1-2, consultáveis em wwww.dgsi.pt.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4ª edição, págs. 99 e 100.
[4] Neste sentido, por exemplo, Ac. STJ de 22/10/2015, Processo n.º 2394/11.3TBVCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Processo Civil Declarativo, 3ª Edição, Almedina, pág. 89.