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PROVA POR PRESUNÇÃO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Sumário
I - O conhecimento, por um sujeito, de determinada realidade constitui um facto psicológico que, naturalmente, é insusceptível de prova directa. Assim, o facto pode ser verbalizado pelo próprio sujeito, revelando-se por essa via, ou pode ser demonstrado por prova indirecta, isto é, por via do apuramento de factos materiais de onde se infere, por presunção, à luz de regras de experiência, a sua realidade. II - Para se dar por provado o facto desconhecido, em resultado de uma presunção judicial, há-de identificar-se um nexo lógico entre o facto conhecido e esse desconhecido, segundo uma máxima de experiência e à luz de um juízo de probabilidade qualificada.
Texto Integral
PROC. N.º 394/21.4T8STS-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7
REL. N.º 917
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Lina Castro Baptista
Anabela Dias da Silva
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO
AA e mulher BB intentaram a presente acção de impugnação da resolução em benefício da MASSA INSOLVENTE DE CC de um negócio consubstanciado por um contrato de compra e venda celebrado em 04 fevereiro de 2020, entre estes e o ora insolvente, relativo a duas fracções de um prédio urbano (habitação, garagem e arrumos).
Alegam que tal resolução lhes foi declarada por cartas onde o AI invocou dois fundamentos incompatíveis: por um lado a simulação do negócio; por outro, a venda dos imóveis abaixo do preço real das fracções e correspondente prejuízo para os credores. Por isso, invocaram a nulidade da própria resolução.
Subsidiariamente, para a eventualidade de proceder a resolução de negócio, pediram a condenação da Massa Insolvente a reconhecer que o preço efetivamente pago ao insolvente, pela aquisição das duas frações autónomas em causa, foi de 174.179,12€ e que pagaram o Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis no e o Imposto de Selo, no valor global de 5.446,90€. Consequentemente, pediram a condenação da Massa insolvente a pagar-lhes esses valores, num total de 179.626,02€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 04 fevereiro de 2020. Pedem, ainda, que lhes seja reconhecido o direito de retenção sobre as identificadas frações autónomas até reembolso por parte da Ré, com prevalência sobre os demais credores, do seu invocado crédito no montante global de 179.626,02€.
A Massa Insolvente deduziu contestação, pugnando pela validade da resolução de negócio operada extrajudicialmente pelo AI e pela improcedência dos pedidos subsidiários formulados pelos autores.
O processo foi saneado e fixados o objecto do litígio e os temas de prova.
Realizou-se o julgamento, no termo do qual foi proferida sentença que concluiu pela improcedência da acção, reconhecendo que a resolução do negócio em causa se mantinha válida e eficaz. Mais julgou parcialmente procedente o pedido subsidiário, sob o seguinte dispositivo: - “Julga-se parcialmente procedente o pedido subsidiário formulado pelos autores: - reconhecendo-se que o preço pago pelos Autores ao insolvente pela aquisição daquelas frações ascendeu ao montante de €174.179,12€ (pago através da assunção e posterior liquidação de dívida hipotecária ao Banco 1..., SA e ainda pela extinção do crédito hipotecário do comprador, ora autor), e que, na sequência daquele contrato de compra e venda, os autores pagaram o Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis e Imposto de Selo, respeitante à aquisição das duas referidas frações autónomas, no valor global de 5.446,90€, e - condenando-se a Massa Insolvente a restituir aos autores a quantia de € 174.179,12, e até ao limite do produto que vier a ser obtido com a liquidação das frações AD e AI no processo de insolvência, absolvendo-se a massa insolvente do demais peticionado.”
Desta decisão foi interposto recurso pelos autores, que o terminaram com as seguintes conclusões:
“1-O Recorrente marido adquiriu ao Insolvente, por escritura celebrada em 04.02.2020, pelo preço global de 174.179,12€, a fracção autónoma designada pelas letras “AD” correspondente a uma habitação do tipo T4 (transformada em T3), no 5º andar frente, com entrada pelo nº ...8, e na cave uma garagem dupla designada pelas letras “AD-1” e um arrumo individual designado por “AD-2” com o valor patrimonial de 129.788,05€, pelo preço de 170.179,12€ e a fracção “AI” corresponde a uma garagem na cave com entrada pelo nº ...0, com o valor patrimonial de 4.009,25€, pelo preço de 4.000,00€ (artigos 4, 5 e 7 dos Factos Provados).
2-O Sr. Administrador de Insolvência na sua carta de resolução enviada aos Recorrentes alega como fundamento para resolução da compra e venda das duas fracções, por um lado a “simulação negocial”, criando apenas uma aparência de venda, sugerindo que não existiu pagamento de preço pelo Recorrente e, por outro lado, admitindo o pagamento do preço mas por um valor inferior ao valor real das fracções, pretende a resolução dos negócios por os mesmos se traduzirem, na sua versão, num prejuízo para os credores.
3-Para tanto referiu na sua carta resolutiva que “…. observamos que V. Exª não teve intenção de adquirir as ditas fracções, tendo em conta o valor do mercado destas à data da escritura e os bens terem sido negociados por um valor abaixo do preço real na ordem dos 130.000,00€ a 150.000,00€, tendo por isso o negócio sido simulado, criando apenas uma aparência de venda com vista à dissipação de bens e fuga aos credores”.
4-Na referida carta resolutiva, o Administrador de Insolvência invoca dois fundamentos incompatíveis e inconciliáveis, por um lado afirma que o negócio é simulado, que não existiu, que não foi a vontade das partes celebrá-lo que o Autores e, por outro lado, afirma que afinal existiu, mas que o preço pago terá sido baixo e inferior ao valor do mercado das fracções, com vista à dissipação de bens e fuga aos credores.
5-Ora, a resolução dos negócios efectuados pela insolvente deve ser feita de forma inequívoca.
6-A invocação de supostos vícios incompatíveis, gera a nulidade da própria resolução.
7-Invocando duas situações incompatíveis, entre si, ou seja a simulação do negócio, que não houve intenção de adquirir as ditas fracções e por outro já reconhece que houve pagamento de preço, mas que os imóveis foram vendidos abaixo do valor do mercado.
8- A notificação da resolução de negócio feita pelo Administrador em benefício da massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 123 nº 1 do C.I.R.E deveria ser clara e inequívoca, o que não aconteceu no presente caso.
9- Deveria tal carta enviada pelo Administrador aos Recorrentes ter sido declarada nula, por violação do estatuído no artigo 123 nº 1 do CIRE.
10-A declaração de resolução efetuada pelo Administrador de Insolvência e a sentença recorrida violam o disposto no artigo 123º do CIRE, por incompatibilidade dos factos aí elencados.
II) DOS FACTOS PROVADOS
11-Na sentença recorrida, foi dada entre outros, como provada a seguinte factualidade:
ARTIGOS 32º e 33º DOS FACTOS PROVADOS 32. Os ora Autores conheciam a situação de insolvência do ora Insolvente, sendo conhecedores das dificuldades financeiras do insolvente vividas desde 2010 e que motivaram os elevados empréstimos concedidos ao insolvente pelo autor marido entre 2010 a 2014 e que culminaram com a escritura de confissão de dívida, bem sabendo que o insolvente não procedeu ao pagamento daquela dívida de € 97.000,00 que deveria ser paga até 23.10.2015 (cfr. escritura de confissão de dívida) por falta de meios financeiros para tal, sabendo que o devedor também tinha dívidas ao condomínio, encontrando-se já registada penhora sobre a fração “AD” datada de 15.03.2019. 33. Os Autores conheciam a existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros, para além da dívida que o insolvente tinha perante os Autores, sabendo que o insolvente se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas.
12-Entendem os Recorrentes que a factualidade constante do mencionado artigo 32 nomeadamente “ Os Autores conheciam a situação de insolvência do ora insolvente, …. sabendo que o devedor também tinha dívidas ao condomínio” e a factualidade do artigo 33 que “Os Autores conheciam a existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros.... sabendo que o insolvente encontrava-se impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas”, não poderia ter sido como provada.
13-A meritíssima juíza do tribunal a quo, para fundamentar a resposta à matéria de facto elencada sob os referidos itens 32 e 33 acerca da situação de insolvência, do conhecimento de outras dívidas perante terceiros e que o Insolvente se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas, baseia-se unicamente através de indícios e regras de experiência (errados) e não de qualquer prova directa.
14-Alega nomeadamente no artigo 32 da matéria de Factos Provados, que o facto de existir na fracção “AD” uma penhora registada datada de 15.03.2019 a favor do condomínio, é um dos indícios que o Insolvente à data não conseguia cumprir com as suas obrigações.
15 - Ora, à data da celebração da escritura pública dos imóveis adquiridos pelo Recorrente marido, para além da dívida existente junto ao credor Banco 2... S.A, decorrente de aval prestado em livrança, subscrita pela sociedade A... S.A., e de um crédito de 1.586,34€ junto da B... S.A, ambas reclamadas no processo de insolvência, o insolvente não era devedor de mais nenhuma quantia.
16- Pelo menos nada foi alegado, nem provado (documentalmente ou testemunhal) acerca de uma suposta dívida de condomínio do ora Insolvente à data da celebração da escritura das duas supra referidas fracções autónomas.
17- Não se pode dar por provado, que os Recorrentes conheciam da existência de dívidas do insolvente perante terceiros, e que este estava num incumprimento generalizado.
18- O facto de encontrar-se registada uma penhora a favor do condomínio, não significa que na data da celebração da escritura o Insolvente tinha alguma dívida perante o referido condomínio.
19- Poderia a referida execução de onde emana aquela penhora ter sido objecto de embargos por parte do Insolvente e este não reconhecer a dívida e não ser devedor de qualquer quantia.
20- Mais, o montante do crédito constante do registo da aludida penhora a favor do condomínio não era de modo algum significativo, já que o mesmo, a existir (o que não se sabe), de acordo com o registo da penhora, quantificava-se em 1.483,00€.
21- Nenhuma das partes ouvidas em audiência de julgamento, foi abordado a existência ou não de tal dívida de condomínio à data da celebração da escritura publica de compra e venda das duas fracções autónomas por parte do recorrente marido.
22- A escritura pública de compra e venda, limita-se a referir a existência de “Penhora que incide apenas sobre o prédio um a favor da Administração de Condomínio Rua ... registada pela Ap....7, de 2019/03/15. Outra questão é saber se a quantia em causa constante no auto de penhora é devida, se a mesma foi contestada, ou se já se encontrava paga.
23- Nenhuma prova foi apresentada nos autos ou prestada em audiência de julgamento, da existência dessa dívida à data da celebração do negócio entre Recorrente marido e Insolvente.
24- Foi firmemente negado pelo Recorrente marido no seu depoimento em declarações de parte, que desconhecia da existência de outras dívidas, para tanto basta ouvir o seu depoimento, (na sessão da audiência de julgamento do dia 15.06.2023 com início às 09.59, depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação), minuto 00:20.41 a 00:22.23 e 00:22.35 a 00:23.27 e 00:28:34 a 00:28:59 e
25- Pelo Depoimento do insolvente CC (na sessão da audiência de julgamento do dia 15.06.2023 com início às 11.04, depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação), minuto 00:17:21 a00:17:39 e 00:21:01 a 00:22:48.
26- Nenhuma prova foi feita em audiência de julgamento que levasse a considerar que o Recorrente marido, à data da celebração da escritura pública de compra e venda daqueles dois imóveis, tinha conhecimento da situação de insolvência do ora Insolvente.
27- De acordo com o estipulado no artigo 3º nº 1 do C.I.R.E, “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
28- Mesmo se os Recorrentes tivessem conhecimento da existência da dívida de 1.483,00€ do ora Insolvente junto da administração de condomínio do prédio, atento o reduzido montante, tal não significava de modo algum que os Recorrentes tivessem conhecimento da situação de insolvência do Insolvente.
29- O facto do Insolvente dever ao Recorrente marido a referida quantia de 97.000,00€ que este tinha emprestado ao longo dos anos, bem como daquele não ter cumprido com os prazos de restituição previamente acordado com o Recorrente marido, de modo algum indicia que aquele estava numa situação de incumprimento generalizado, e que existia outros credores que o Recorrente tinham obrigação de saber.
30- O Recorrente marido desconhecia da existência de outras dívidas do ora Insolvente, para além das suas.
31- Para além dos dois créditos (Banco 2... e B...), reclamando no âmbito do processo de insolvência, mais nenhuma dívida existia do Insolvente perante terceiros.
32- Sendo que, para o Recorrente marido o único credor que este conhecia do Insolvente era o próprio Recorrente quanto aos valores dos empréstimos concedidos.
33-À data da celebração da escritura de compra e venda, não havia um incumprimento generalizado por parte do ora Insolvente, porquanto com os empréstimos concedidos pelo Recorrente marido o Insolvente pagava as suas dívidas a terceiros, ficando somente a dever ao aqui Recorrente.
34- Nenhuma prova testemunhal ou documental indicia que o Recorrente marido tinha conhecimento da existência de dívidas perante outros credores.
35- Tal factualidade é essencial para apurar a existência ou não da má fé do adquirente.
36- O ónus da prova quanto a este elemento constitutivo competia à Recorrida massa insolvente.
37- Não pode o Tribunal “a quo”, dar como provado, por falta de qualquer elemento de prova, que à data da celebração da escritura pública o os Recorrentes tinham conhecimento da situação de insolvência do ora Insolvente e que este tinha dívidas ao condomínio.
38- Assim, a matéria constante nos citados artigos 32 e 33 dos “Factos provados”, deverá ser dada como não provada, devendo ser dada como não provado que “Os Autores conheciam a situação de insolvência do ora insolvente, sabendo que o devedor também tinha dívidas ao condomínio” e que “Os Autores conheciam a existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros, sabendo que o insolvente encontrava-se impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas
III) DIREITO
39- Tendo em conta, as requeridas alterações das matérias de Factos Provados, resulta que o Recorrente marido (por inerência também a Recorrente mulher) não tinha conhecimento de quaisquer outras dívidas do Insolvente perante terceiros, para além do seu crédito de 97.000,00€
40-Assim, não obstante a factualidade dada como provada no artigo 27 dos Factos Provados, que os valores de mercado de 2020 das duas fracções ascende a cerca de 250.000,00€, daí não poderá ser apurado que com a celebração daquele negócio tenha sido prejudicial à massa insolvente.
41-Os valores de mercado dos imóveis, atribuídos pelas perícias, são extremamente relativos. Não será de descurar o facto de o negócio firmado entre Recorrente marido e o Insolvente ter sido celebrado no início da pandemia do vírus Covid 19, com as pessoas a ficarem receosas nos investimentos.
42- Ora, o preço acordado entre o Recorrente e o Insolvente, para a venda daquelas duas fracções foi o que consta efectivamente na escritura, ou seja a quantia global de 174.179,12€ .
43- Conforme é expressamente referido pelos intervenientes na referida escritura de compra e venda, foi considerado como pagamento a quantia de 97.000,00€ pela extinção da dívida do insolvente ao Recorrente marido do mesmo montante, garantido por hipoteca sobre aquelas duas fracções autónomas e registada na Conservatória do Registo Predial pela Ap....6 de 2014/11.05.
44- De acordo com o relatado no depoimento do Recorrente marido, este considerou que a venda do imóvel não foi por um preço manifestamente baixo, porquanto não foram considerados os juros da quantia emprestada de 97.000,00€ desde pelo menos 2010, conforme se pode ouvir no depoimento deste, quando questionado se o valor de 174.000,00€ não era um valor baixo à data da celebração da escritura.
45- Os empréstimos concedidos pelo Recorrente marido ao Insolvente ao longo dos anos, e constantes da escritura de hipoteca previam juros remuneratórios à taxa de 3,5% ao ano, acrescido de uma sobretaxa de 4% em caso de mora e a título de cláusula penal.
46- Se tivessem sido aplicado juros à referida taxa global de 7,5% (3,5 juro remuneratório + 4% de mora) ao valor de 97.000,00€ acresceria a título de juros, contados desde 23.10.2015 (data prevista do pagamento e referida na escritura de confissão de dívida junta aos autos como Doc. 14 da Petição Inicial) a 04.02.2020 (data da celebração da escritura de compra e venda) a quantia de 31.172,88€.
47- Mais, contabilizando somente os juros desde a entrega de cada uma das quantias mutuadas até à data da escritura de confissão de dívida e constituição de hipoteca (23.10.2015), estes contabilizariam a quantia de 9.775,00€.
48-A ausência de qualquer referência ao valor dos juros na escritura de compra e venda para quantificação do preço efectivamente entregue, somente não foi referida devido as consequências fiscais tanto para o comprador como para o vendedor, já que acresceria valores aos impostos de IMT, Imposto selo, bem como de IRS.
49- Sendo no entanto certo que tais montantes a título de juros foram tidos em conta para a quantificação do preço e celebração do negócio de compra e venda.
50- Conforme se pode aferir do depoimento do Recorrente marido, este no seu depoimento referiu que o valor da venda dos imóveis não foi abaixo do valor do mercado, correspondia a um preço justo face ao que o Insolvente lhe devia. Vide Depoimento de parte do Recorrente marido AA, (na sessão da audiência de julgamento do dia 15.06.2023 com início às 09.59, depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação) minuto 00:07:24 a 00:09.02
51- Os valores dos dois imóveis foram negociados entre Recorrente marido e Insolvente, tendo em conta estas situações, o facto de o Insolvente pretender emigrar, o montante que devia ao Recorrente, bem como o estado de necessidade deste de celebrar a escritura o mais rápido possível bem como a possibilidade desse permanecer na habitação até 31 de Julho de 2020, etc…
52- Da celebração da referida escritura de compra e venda não resultou um claro e desproporcionado desequilíbrio das prestações em confronto.
53- Não basta um mero excesso, deve haver uma desproporcionalidade tal que favoreça manifestamente uma parte em detrimento da outra, e que de acordo com um critério de normalidade, de razoabilidade e à luz de um contraente médio, excedem, de forma ostensiva e gritante, as obrigações assumidas pelas demais partes no negócio em concreto.
54- Não existe uma manifesta desproporção entre o que foi pago pelo comprador e o valor dos imóveis vendidos pelo Insolvente. A aquisição dos imóveis não foi feita por um valor irrisório, nem foi concretizada pela metade do seu valor ou inferior.
55- Não houve assim um excesso manifesto entre as obrigações assumidas pelo insolvente e pela Recorrente marido (artigo 121.º/1, alínea h).
56- Para se concretizar a resolução em benefício da massa insolvente, a mesma depende do preenchimento de determinados requisitos legais, gerais ou específicos - consagrados nos artigos 120.º e 121.º do CIRE.
57- “A resolução em benefício da massa insolvente pode assumir duas modalidades:
i)- uma, a resolução condicional, cujos pressupostos gerais, previstos no art. 120º, consistem na prejudicialidade do ato para a massa insolvente e na má fé do terceiro beneficiado, sendo que, no âmbito desta a prejudicialidade do ato para a massa se resume também iuris et de iure quando tal ato consubstancie qualquer dos tipos previstos no nº1 do artigo 121º ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos ali contemplados (art. 120º, nº3), e a má fé de terceiro também se presume juris tantum, s termos do artigo 120º nº4, podendo ser ilidida por prova em contrário, nomeadamente pela não verificação de qualquer das circunstâncias previstas no nº5, art 120º, de cujo conhecimento, por parte do terceiro, decorre a existência de má fé.
ii) outra, a resolução incondicional, quando o ato visado se traduza em quaisquer s atos constantes da tipologia enunciada nas diversas alíneas do nº1 do art. 121º, os quais se presumem prejudiciais à massa insolvente, sem admissão de prova em contrário (presunção iuris et de jure), nos termos do nº3 do art. 120º, não se exigindo quaisquer outros requisitos, designadamente o da má fé, salvo o ressalvado no nº2 do art. 121º.”
58- Sendo o acto praticado fora dos prazos contemplados no artigo 121º, esses concretos actos implicam a verificação do requisito da má-fé do terceiro.
59- Verifica-se que não houve má fé por parte do Recorrente marido, porquanto este desconhecia a existência de outras dívidas, bem como a situação de insolvência do Insolvente à data.
60- Ora, a resolução condicional depende sempre da má-fé de terceiro, ou seja, daquele com quem o acto foi celebrado, neste caso, o ora Recorrente marido.
61- A presunção estabelecida no nº4 do art. 120.º fica arredada, pois a má fé apenas se presume quando verificadas cumulativamente dois requisitos: “… quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o Insolvente (…)”
62 -Recorrente marido não é “pessoa especialmente relacionada com a Insolvente”, tendo em consideração o disposto acerca do conceito, nos termos do art. 49.º, nº1 do CIRE. Com efeito, este (bem como a sua mulher) não têm qualquer relação de parentesco ou equivalente com o Insolvente.
63- Assim, para haver a alegada má fé dos Recorrentes, estes teriam que ser conhecedores de qualquer uma das circunstâncias enumeradas no nº 5 do art.120.º do CIRE. Certo é que os ora Recorrentes desconheciam de todo a situação do Insolvente, ou que o mesmo se encontrava em situação iminente de insolvência.
64- Assim nunca poderia a resolução ser efectuada ao abrigo do disposto nos artigos 120 nº3 e 121 nº 1 h) e 125 nº 5 a) todos do C.I.R.E.
65- Não existe matéria de facto provada que nos leve a concluir, que tenha havido má fé por parte do Recorrente marido na celebração da escritura de compra e venda das fracções constante dos autos, nem factualidade provada de onde resulte que as obrigações assumidas no negócio pelo insolvente excederam manifestamente as da contraparte.
66-É assim ilícita a resolução em benefício da Massa Insolvente praticada pelo Sr. Administrador de Insolvência, pelo que o Tribunal "a quo" ao decidir de outro modo violou o disposto nos 120 nº3 e 121 nº 1 h) e 125 nº 5 a) todos do C.I.R.E e artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.
67- Não se mostram verificados os pressupostos legais para a massa insolvente efectuar a resolução do negócio em seu benefício.
68- A sentença proferida viola o disposto nos artigos 120 nº3 e 121 nº 1 h) e 125 nº 5 a) todos do C.I.R.E e dos artigos 342nº1 e 350 nº2 ambos do Código Civil.
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A ré ofereceu resposta ao recurso, pronunciando-se pelo acerto da sentença recorrida.
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O recurso foi recebido e apreciado nesta Relação, tendo-se decidido pela procedência da impugnação da resolução deste negócio, por não se ter por verificada a razão invocada para essa resolução: a simulação do negócio invocada pelo Sr. administrador da insolvência.
Concluiu-se ainda que ficava prejudicada a apreciação de todas as restantes questões suscitadas no presente recurso.
Do acórdão foi interposto recurso para o STJ que concluiu pela eficácia da declaração de resolução do negócio em benefício da massa por referência a outros eventuais fundamentos – que não só o da sua nulidade, por simulação – designadamente os das als. a) e b) do nº 5 do art. 120º do CIRE, isto é, a ocorrência de má fé dos autores, inerente ao conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente.
Necessário se torna, para a apreciação quanto à ocorrência de tais requisitos, recuperar a sindicância, em sede de recurso, do juízo de comprovação sobre os factos dados por provados sob os pontos 32º e 33º da sentença da 1ª instância, tal como fora pretendido pelos apelantes e foifora dado por prejudicado em face da solução do acórdão.
Foi isso, com efeito, que foi determinado no acórdão do STJ, a que cabe dar cumprimento.
É o que se passará a fazer de imediato.
2- FUNDAMENTAÇÃO
Como decorre do exposto, cumprirá decidir sobre se se deve alterar a decisão de comprovação quanto aos factos ajuizados positivamente sob os itens 32º e 33º e, subsequentemente, decidir sobre se ficam por evidenciar os pressupostos da resolução do negócio, conforme o acórdão do STJ admitiu ter sido declarado pelo A.I. e como fora reconhecido na sentença recorrida: ter o negócio resultado em prejuízo dos credores, por desproporção entre o valor das fracções e o valor pago pelos ora apelantes; verificar-se a má fé dos apelantes, por conhecerem a situação de insolvência do vendedor, com a sua incapacidade de cumprimento de obrigações.
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Para a decisão que antecede, é essencial ter presente a decisão da matéria de facto que integra a sentença em crise:
“Factos Provados:
1. O presente processo de insolvência teve início a 11 de fevereiro de 2021, tendo sido proferida sentença de insolvência de CC a 24 de março de 2021.
2. Por cartas datadas de 06 e 08 de agosto de 2021, e tendo como assunto “Declaração de resolução de negócio insolvência de CC, Proc. nº 394/21.4T8STS do Juízo do Comércio de Santo Tirso- Juíz 7”, o Exmº Sr. Administrador de Insolvência em benefício da Massa Insolvente de CC comunicou a cada um dos Autores a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o autor AA (casado com a autora BB, em regime de comunhão de adquiridos) e o ora insolvente por escritura publica, a 04 Fevereiro de 2020, no Primeiro Cartório de Competência Especializado de Matosinhos, respeitante às frações “AD” e “AI”, com inscrição matricial ...92 descritas na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18 da freguesia ....
3. Os aqui Autores receberam essas cartas a 9 de agosto de 2021.
4. A fração autónoma designada pelas letras “AD” corresponde a uma habitação do tipo T4 (apesar de transformada em T3), no 5º andar frente, com entrada pelo nº ...8, e na cave uma garagem dupla designada pelas letras “AD-1” e um arrumo individual designado por “AD-2” com o valor patrimonial de 129.788,05€, e adquirida pelos Autores pelo preço de 170.179,12€.
5. E a fração “AI” corresponde a uma garagem na cave com entrada pelo nº ...0, com o valor patrimonial de 4.009,25€, adquirida pelos Autores pelo preço de 4.000,00€.
6. Ambas as frações fazem parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na rua ..., ... e Rua ..., ..., da freguesia da cidade ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18 da freguesia ... e inscrito na matriz urbana respetiva no artigo ...92.
7. Por escritura de compra e venda celebrada a 04.02.2020, foram aquelas frações vendidas pelo insolvente ao aqui autor (casado com a ora autora), pelo preço global de € 174.179,12
8. Este preço fora pago através da assunção de dívida hipotecária de € 77.169,12 ao Banco 1..., SA e ainda pela extinção de dívida ao comprador (ora autor), garantida por hipoteca registada pela Ap....6 de 2014/11/05, que naquela data ascendia a € 97.000,00.
9. As frações foram vendidas oneradas com hipotecas voluntárias que incidiam sobre as mesmas, registadas a favor do Banco 3..., SA pelas Ap. ...8 e ...9 de 2003/06/06 e Ap. ...3 de 2003/10/10, com a hipoteca voluntária a favor do ora autor e comprador e com a penhora que incidia sobre a fração “AD” a favor da Administração de Condomínio R. Prof. ... pela Ap....7 de 2019/03/15.
10. O pagamento da quantia de 76.893,77€ ao Banco 1... SA foi efetuado e pago pelo Autor marido em 02 de março de 2020 por transferência bancária da quantia de 76,893,77€ para a conta do Insolvente com o IBAN ...16, depois sendo afeto à liquidação do crédito hipotecário do Banco 1... SA.
11. Quantia esta de 76.893,77€ (49.925,06€ +26.968,71€) correspondente ao montante em dívida por parte do Insolvente junto do Banco 1... SA, à data de 03 março de 2020.
12. No dia 3.03.2020, o credor hipotecário emitiu os respetivos títulos de distrates de cancelamento de hipoteca daquelas duas frações autónomas, para efeito de cancelamento dos dois ónus hipotecários na Conservatória do Registo Predial.
13. No que respeita à quantia de 97.000,00€, a mesma foi considerada liquidada e paga pela extinção da dívida do insolvente e mulher DD, do mesmo montante que aqueles tinham perante o Autor marido reconhecido ser devedores, por escritura de confissão de dívida e hipoteca celebrada a 5.11.2014.
14. Com efeito, a 05 novembro de 2014, no Cartório Notarial da Drª EE, o ora insolvente e sua esposa DD confessaram-se devedores ao ora autor da quantia de € 97.000,00, ali constando “que dele receberam por empréstimo e se obrigam a pagar até ao dia 23 de outubro de 2015”.
15. Para garantia daquela dívida, o ora insolvente constituiu a favor do ora autor hipoteca sobre as referidas frações “AD” e “AI”, sendo o montante máximo assegurado pela hipoteca de € 122.705,00.
16. Os Autores despenderam, ainda, aquando da aquisição de cada uma daquelas frações, a título de Imposto Municipal sobre Transmissão de Imóveis a quantia de 4.053,40€ e a título de Imposto de Selo a quantia de 1.393,50€.
17. No dia da outorga da escritura de compra e venda o Insolvente e o seu cônjuge obrigaram-se a desocupar a fração autónoma destinada a habitação até ao dia 31 de julho de 2020.
18. Tal prazo de entrega da referida fração autónoma foi fixado tendo em conta o final do ano letivo escolar, altura em que o Insolvente e toda a sua família pensavam emigrar para a Guiné Equatorial.
19. Mais ficou convencionado que caso o Insolvente e respetivo cônjuge não entregassem ao Autor marido a mencionada fração autónoma ficariam aqueles obrigados a pagar a este a quantia de 750,00€ por cada mês de atraso na entrega da mesma.
20. Entretanto surgiu a pandemia do Covid-19, e o insolvente e sua família não emigraram, tendo continuado a ocupar a fração em causa nos autos.
21. Desde pelo menos julho de 2020, os Autores (por intermédio do Autor marido) arrogam-se e atuam perante terceiros como legítimos donos daquelas duas frações autónomas.
22. Nessa medida, a 15 de Julho de 2020 (no mês em que era prevista a saída do insolvente e família da fração), o Autor marido comunicou à administração do condomínio de que fazem parte aquelas duas frações autónomas designadas pelas letras “AD” e “AI”, que a partir do mês de Agosto de 2020 seria este o responsável pelo pagamento das quotizações de condomínio daquelas duas frações autónomas.
23. Tendo desde então o Autor marido pago o valor das quotizações de condomínio destas duas frações autónomas, ou por transferência bancária ou por pagamento via multibanco.
24. Por carta datada de 15.07.2020, o autor enviou comunicação a Eng. FF, com o assunto “Utilização de Garagem AI”, comunicando que a partir de 4.02.2020 era o novo proprietário da fração e “caso V.Ex. queira continuar a usufruir da referida fração agradeço que me seja comunicado. Para assim podermos chegar a um acordo, desta sua utilização.”, carta que veio devolvida pelos CTT. Nessa sequência, o autor enviou nova carta com igual teor, agora por correio registado a 10.11.2020.
25. No relatório pericial junto aos presentes autos, os Srs. Peritos avaliam as frações AD e AI, efetuando uma pesquisa de mercado a valores atuais, concluindo que o valor de mercado em dezembro de 2022 das Frações é de:
- AD: € 315.000,00; - AI: € 9.400,00.
- Total: € 324.400,00.
26. Aplicando a “atualização de valores com Base no IPC” disponível no Portal do INE com o Fator de Atualização arredondado à 5.ª casa decimal, os Srs. Peritos concluem que os valores das Frações em fevereiro de 2020 ascendem a:
- AD: € 275.500,00; - AI: € 8.220,00;
- Total: € 283.720,00.
27. Tendo por base os valores de mercado de 2020 (e já não seguindo aquele método de retroagir o valor de mercado de 2022 ao ano de 2020, com base no índice de preços do INE), o valor de mercado daquelas frações ascende a cerca de € 250.000,00.
28. Não obstante ter sido fixado o prazo até 31 de julho de 2020 para o devedor e família desocuparem o apartamento “AD” alienado, os devedores continuaram ali a residir até aos dias de hoje, sem qualquer título e sem procederem ao pagamento de qualquer quantia aos ora autores, como contrapartida.
29. Em 05 julho de 2022, já na pendência da presente ação, os Autores intentaram contra o Insolvente e sua mulher DD, ação de processo comum a correr seus termos sob o nº 979/22.1T8PVZ no Juízo Central da Póvoa de Varzim, Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, formulando os seguintes pedidos:
“A) Declararem-se os Autores donos e legítimos proprietários da fração autónoma designada pelas letras “AD” corresponde a uma habitação do tipo T4, no 5º andar frente, com entrada pelo nº ...8, e na cave uma garagem dupla designada pelas letras “AD-1” e um arrumo individual designado por “AD-2”, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na rua ..., ... e Rua ..., ..., da freguesia da cidade ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18 da freguesia ... e inscrito na matriz urbana respetiva no artigo ...92, condenando os Réus ao reconhecimento de tal direito de propriedade, abstendo-se de, por qualquer forma, praticar atos ofensivos deste.
B) Condenar-se os Réus a restituírem de imediato aos Autores a referida fração autónoma designada pelas letras “AD” que ilicitamente ocupam, entregando-lhes livre de pessoas e bens.
-C)Abster-se de praticar quaisquer atos que perturbem, dificultem ou ofendam o direito de propriedade e a posse dos AA. sobre a mencionada fração autónoma designada pelas letras “AD”;
-D) Condenar os Réus a pagarem aos Autores a quantia de 16.500,00€, pela ocupação indevida da ocupação do imóvel, desde Agosto de 2020 até a presente data.
-E)Bem como da quantia de 750,00€ por cada mês ou fração de mês de ocupação da fração em causa até efetiva desocupação da mesma por cada mês de aquelas que se vencerem após essa data até efetiva desocupação e entrega do arrendado.”
30. Não foram apreendidos quaisquer bens no processo de insolvência, sendo que estas frações alienadas pelo insolvente a 04.02.2020 eram o único património propriedade do insolvente.
31. No processo de insolvência foram reconhecidos os seguintes créditos comuns:
- crédito de B... S.A. no valor de € 1 586,34, com data de constituição de 14/07/2019 e de incumprimento de 01/08/2019;
- crédito de Banco 2... S.A. no valor de € 2 267 025,73 (decorrente de Aval prestado em Livrança subscrita pela sociedade “A..., SA”), com data de constituição de 26/05/2008 e de incumprimento de 27/01/2014;
- €102,00, proveniente de custas nos autos n.º ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – J7.
32. - NÃO PROVADO, como infra se decidiu, transitando a matéria para o rol dos factos não provados.
33. NÃO PROVADO, transitando a matéria para o rol dos factos não provados.
34. O Banco 2... S.A. já vinha reclamando o seu crédito em processo executivo desde 2014, processo n.º ..., crédito no valor de €2.267.025,73 (decorrente de Aval prestado em Livrança subscrita pela sociedade “A..., SA”).
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Factos Não Provados:
- Autor e insolvente apesar de declararem na escritura que compram e vendem as frações “AD” e “AI” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18, não quiseram vender, nem comprar aquelas frações, apenas visando criar a aparência de um negócio de compra e venda.
- O autor não procedeu ao pagamento do preço daquelas frações indicado na escritura de compra e venda.
- O valor de mercado da fração “AD” à data de 04.02.2020 é de €350.000,00. - O valor de mercado da fração “AI” à data de 04.02.2020 é de € 20.000,00.
- Os ora Autores conheciam a situação de insolvência do ora Insolvente, sendo conhecedores das dificuldades financeiras do insolvente vividas desde 2010 e que motivaram os elevados empréstimos concedidos ao insolvente pelo autor marido entre 2010 a 2014 e que culminaram com a escritura de confissão de dívida, bem sabendo que o insolvente não procedeu ao pagamento daquela dívida de € 97.000,00 que deveria ser paga até 23.10.2015 (cfr. escritura de confissão de dívida) por falta de meios financeiros para tal, sabendo que o devedor também tinha dívidas ao condomínio, encontrando-se já registada penhora sobre a fração “AD” datada de 15.03.2019 (facto aditado neste segmento da sentença, como infra determinado).
- Os Autores conheciam a existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros, para além da dívida que o insolvente tinha perante os Autores, sabendo que o insolvente se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas facto aditado neste segmento da sentença, como infra determinado).
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É útil ter presente o texto das comunicações remetidas pelo A.I., para resolução do negócio em causa, de 06 e 08 de Agosto de 2021, recebidas pelos apelantes no dia 9 seguinte. “(…) 4- Dos elementos que dispomos, e face às declarações que nos foram prestadas pelo insolvente, observamos que V. Exa não teve intenção de adquirir as ditas frações, tendo em conta o valor de mercado destas à data da Escritura e os bens terem sido negociados por um valor abaixo do preço real na ordem dos 130.000,00€ a 150.000,00€, tendo por isso o negócio sido simulado, criando apenas uma aparência de venda, com vista à dissipação de bens e fuga aos credores. 5- Deste modo, conclui-se que há factos concludentes que levam a duvidar de que se verificou a transação do mesmo para V. Exa; na verdade, apesar da venda das frações, pelo insolvente, estas continuam a ser o seu domicílio e habitação própria, situação deveras estanha uma vez que não possui contrato de arrendamento, não paga renda periódica, nem comprovou existência de acordo negocial entre as partes, que lhe permita habitá-las. 6- Portanto, não podendo V. Exa deixar de ter conhecimento das responsabilidades do insolvente para com terceiros, sabia que com a aquisição para V. Exa. dos bens imóveis, registados ou possuídos em nome e pelo insolvente, através da escritura, iria prejudicar os restantes credores do mesmo. 7- Em conclusão, A alienação dos bens imóveis do insolvente em favor de V. Exª., praticada menos de 2 anos antes do início do processo de insolvência, pela venda da fração "AD" e fração "Al", referenciadas em 1 e 2, também do seu conhecimento, constitui um acto prejudicial à massa insolvente, na medida em que frustra ou impossibilita a satisfação dos credores reclamantes do Processo. Além de que era do perfeito conhecimento de V. Exa, por ser seu credor hipotecário, que, à data, aquele já tinha obrigações comerciais para com outros credores, além dos das referidas acções, decorrentes de actos cambiários e outros, e que com tais vendas o insolvente ficaria na situação de não poder cumprir as suas obrigações para com terceiros. 8 – Pelos motivos vindos a expor e tendo em consideração o disposto nos arts. 120, 121, 123, 124 e 126 do Código de Insolvência e na qualidade de administrador da insolvência, Declaramos resolvida a venda das frações "AD" e "AI" do artigo ...18/19971029 - AD e ...18/19971029 Al da Freguesia ... e concelho ..., já referido nos nºs. 1 e 2 deste documento, e constante da AP. ...22 de 2020-02-04, cuja identificação consta de Registo da Conservatória do Registo Predial da Maia. Nestes termos deve V. Exa providenciar e proceder à anulação da referida AP. ...22, no prazo máximo de 15 dias, sob pena de nos vermos forçados a recorrer aos competentes procedimentos legais. (…)”
A análise da relevância deste acto exige igualmente a compreensão do seu contexto, em relação ao que o tribunal a quo deu por provada a seguinte factualidade:
1. O presente processo de insolvência teve início a 11 de fevereiro de 2021, tendo sido proferida sentença de insolvência de CC a 24 de março de 2021.
2. A 5 novembro de 2014, no Cartório Notarial (…) o ora insolvente e sua esposa DD confessaram-se devedores ao ora autor da quantia de € 97.000,00, ali constando “que dele receberam por empréstimo e se obrigam a pagar até ao dia 23 de outubro de 2015, garantindo-o por hipoteca sobre as referidas fracções AD e AI.
3. Por escritura de compra e venda celebrada a 04.02.2020, foram aquelas frações vendidas pelo insolvente ao aqui autor (casado com a ora autora), pelo preço global de €174.179,12.
4. Este preço foi pago através da assunção de dívida hipotecária de € 77.169,12 ao Banco 1..., SA e ainda pela extinção de dívida ao comprador (ora autor), garantida por hipoteca registada pela Ap....6 de 2014/11/05, que naquela data ascendia a € 97.000,00.
Na sentença recorrida, o tribunal reconheceu expressamente que não ficou demonstrada a simulação do negócio.
Porém, concluiu que “…este contrato de compra e venda constitui um ato oneroso, no qual as obrigações assumidas pelo insolvente (transferência da propriedade das frações que valiam, pelo menos, €250.000,00) excedem manifestamente a obrigação do comprador, ora autor, de pagar o preço de € 174.179,12, através da extinção do crédito hipotecário do Banco 1... e extinção do seu próprio crédito hipotecário sobre o vendedor/ insolvente – art. 120.º, n.º 3, CIRE”, bem como que “… face ao valor de mercado das frações (muito superior ao preço de venda das frações) seria de concluir que se encontra preenchido o requisito da prejudicialidade do negócio, já que este negócio diminuiu a possibilidade de satisfação dos credores, diminuindo a garantia patrimonial dos credores.”
Verifica-se, assim, que a resolução foi tida por justificada em razão da diferença entre a obrigação satisfeita pelo comprador e o valor das fracções, ou seja, em razão da diferença entre o preço do negócio e o valor comercial das fracções. E isso a relevar em duas vertentes: por um lado, a da perda provocada à massa insolvente; por outro, o excesso manifesto da obrigação do insolvente alienante em relação à prestação dos adquirentes, ora apelantes.
Aliás, a este propósito, o acórdão do STJ a que se dá cumprimento, deixou claro que “…é de afastar o regime da resolução incondicional que incide sobre certos atos legalmente previstos e cuja verificação dispensa quaisquer outros requisitos. Com efeito, com esse enquadramento seria equacionável o disposto no artigo 121.º /1(h) do CIRE, no qual se prescreve: “1 - São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos: (…) h) Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte. Sucede que, como vem reconhecido pelas instâncias, a venda em causa teve lugar uns dias antes do início do referenciado prazo de um ano. Faltaria, pois, em qualquer caso, o requisito temporal para se aceitar estarmos perante uma resolução incondicional. Consequentemente, no caso em apreço, tratando-se de uma resolução condicional, não são dispensáveis os demais requisitos exigidos por lei. A este propósito, o artigo 120º/4 CIRE estabelece: “Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, a qual se presume quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data. Muito embora, neste âmbito, no caso dos autos, se verifique o requisito temporal (ato praticado nos dois anos anteriores), a verdade é que não está em causa qualquer das situações a que se refere a parte final deste preceito. Não se deteta o menor indício desse fundamento, que pudesse também ser ponderado à luz do artigo 49º do CIRE. Por conseguinte, não é possível presumir a má fé. Importará, então verificar a utilidade da pretensão recursória dos AA. neste âmbito, à luz dos dispositivos que regulam a má-fé não presumida. A este propósito o artigo 120º/5 CIRE preceitua: “5 - Entende-se por má fé o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) Do início do processo de insolvência. Antes de avançarmos, ainda que, como se disse, perfuntoriamente, e sem prejuízo do que a ulterior apreciação impuser em função da eventual alteração dos factos em presença e se for caso disso, cumpre ter em mente o quadro normativo implicado na leitura jurídica dos factos que, na ampliação da revista (conclusões formuladas a título subsidiário e motivadas no artigo 636º/2 CPC7) os AA. afirmam estarem no cerne da matéria de facto por eles questionada (conclusões 17ª e seguintes). A primeira instância entendeu que o normativo aqui pertinente é o da alínea a) que exige o conhecimento da situação de insolvência (“de facto”, leia-se), mas no tratamento da questão não afasta expressamente a al. b) que faz a dupla exigência do caráter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava em situação de insolvência iminente. Aliás, debruça-se expressamente sobre essa matéria, embora sem curar de a qualificar nos termos da al. b) do citado normativo.”
É, então, no âmbito deste enquadramento jurídico que cabe sindicar o juízo de comprovação da factualidade descrita nos pontos 32º e 33º da sentença, isto é, que “32. Os ora Autores conheciam a situação de insolvência do ora Insolvente, sendo conhecedores das dificuldades financeiras do insolvente vividas desde 2010 e que motivaram os elevados empréstimos concedidos ao insolvente pelo autor marido entre 2010 a 2014 e que culminaram com a escritura de confissão de dívida, bem sabendo que o insolvente não procedeu ao pagamento daquela dívida de € 97.000,00 que deveria ser paga até 23.10.2015 (cfr. escritura de confissão de dívida) por falta de meios financeiros para tal, sabendo que o devedor também tinha dívidas ao condomínio, encontrando-se já registada penhora sobre a fração “AD” datada de 15.03.2019. 33. Os Autores conheciam a existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros, para além da dívida que o insolvente tinha perante os Autores, sabendo que o insolvente se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas”.
Escalpelizando o conjunto de factos assim descritos, temos os seguintes:
1 - Os ora Autores conheciam a situação de insolvência porque:
a) Eram conhecedores das dificuldades financeiras vividas desde 2010, que foram o motivo dos empréstimos concedidos ao insolvente pelo autor marido entre 2010 a 2014;
b) Essa dificuldades foram a causa da escritura de confissão de dívida;
c) O insolvente não pagou os 97.000,00€ de dívida confessada no prazo acordado – 23/10/2015, por não ter meios;
d) sabiam que o devedor também tinha dívidas ao condomínio, encontrando-se já registada penhora sobre a fração “AD” datada de 15.03.2019.
e) sabiam da existência de outras dívidas do insolvente perante terceiros e que o insolvente se encontrava impossibilitado de cumprir pontualmente as suas dívidas.
Quanto a outras dívidas, o que se provou foi apenas o constante do ponto 31º dos factos provados:
- crédito de B... S.A. no valor de € 1 586,34, com data de constituição de 14/07/2019 e de incumprimento de 01/08/2019;
- crédito de Banco 2... S.A. no valor de € 2 267 025,73 (decorrente de Aval prestado em Livrança subscrita pela sociedade “A..., SA”), com data de constituição de 26/05/2008 e de incumprimento de 27/01/2014;
- € 102,00, proveniente de custas nos autos n.º ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – J7.
Atentemos na motivação do tribunal para dar como provado o teor daqueles pontos 32º e 33º: “Ora, se o autor marido emprestou tanto dinheiro ao insolvente desde 2010 a 2014, necessariamente era conhecedor das dificuldades financeiras sentidas pelo ora insolvente, ainda que não sabendo exatamente quais os concretos credores do insolvente, daí não poder o Tribunal acreditar que o autor (e também autora, por serem casados, e decorrer das regras da experiência a partilha desses temas entre os cônjuges, sendo o autor marido o responsável pelos negócios: empréstimos, liquidação do empréstimo, compra de frações) não conhecesse a situação de insolvência do vendedor. Repare-se que para pedir tanto dinheiro ao autor, o ora insolvente já alegava dificuldades e necessidades de dinheiro para pagar dívidas, pelo que os autores sabiam que o ora insolvente já tinha dívidas perante terceiros! E se nem sequer fora capaz de restituir qualquer quantia dos elevados empréstimos, entre 2015 a 2020, necessariamente se encontrava em situação de incapacidade de cumprir pontualmente as suas dívidas, o que era conhecido pelos autores. Os autores também não podiam ignorar que o insolvente em fevereiro de 2020 já nem sequer tinha capacidade para pagar uma dívida reduzida como é a despesa mensal de condomínio. Repare-se que os autores tinham conhecimento (por constar do registo predial da fração AD e ter sido mencionado na escritura pública de compra e venda) que desde março de 2019 (quase um ano antes) pendia penhora sobre a fração “AD” (habitação do insolvente) a favor da Administração do Condomínio. Se a penhora data de março de 2019, significa que muito antes já se verificaria esse incumprimento do insolvente junto do condomínio, atento o tempo que normalmente media entre o incumprimento, instauração da execução e concretização de penhora. Se o vendedor não fora capaz sequer de liquidar o condomínio devido e de extinguir aquela penhora (aliado ao incumprimento dos empréstimos concedidos pelo autor, incumprimento que remontava há mais de quatro anos, e conhecimento de que pelo menos desde 2010 o devedor sentia dificuldades financeiras e que motivaram os empréstimos, nunca tendo o devedor reembolsado essas quantias), decorre das regras da experiência que o devedor se encontrava já numa situação de insolvência, se encontrava incapaz de cumprir pontualmente as suas dívidas, factos que eram do conhecimento dos autores, tanto mais que o autor marido é médico e até um homem de negócios (tendo presente estes empréstimos) e por isso tinha necessariamente capacidade para retirar esta ilação da situação de insolvência do vendedor. Também não podemos deixar de atentar na manifesta coincidência da escritura de confissão de divida e hipoteca a favor do autor datar de 2014, numa altura em que já estava em incumprimento o elevado crédito do ora insolvente junto do Banco 2... e até já se encontrava em curso processo executivo. Apontam as regras da experiência no sentido de que o autor efetivamente exigiu a redução a escritura daquela confissão de dívida e hipoteca precisamente por ter necessidade de acautelar a sua situação patrimonial, dado que já teria conhecimento daquele incumprimento junto do Banco 2.... De notar que a matéria em causa relativa à má fé dos autores (conhecimento da situação de insolvência do devedor ou da iminência da insolvência e prejudicialidade do negócio), pela manifesta dificuldade de prova direta, pode resultar demonstrada a partir de factos que a façam presumir, ou seja, através de factos que, segundo a experiência comum, possam constituir indícios seguros da sua existência ou verificação, o que sucede in casu. Embora da prova testemunhal produzida não resulte confirmada a factualidade questionada, afirmando o autor que desconhecia a dívida do ora insolvente junto do Banco 2..., existem indícios seguros e objetivos que, apoiados nas regras de experiência comum, permitem consolidar o juízo afirmativo relativo ao conhecimento da situação de insolvência do vendedor, ou pelo menos, iminência da insolvência e prejudicialidade do negócio, vazado nos factos provados. Nomeadamente, se se considerar que os autores tinham conhecimento que o vendedor desde 2010 apresentava sérias dificuldades financeiras (e que ia relatando ao autor à medida que pedia novos empréstimos), que em 2014 confessa-se devedor ao autor de € 97.000,00 decorrente desses empréstimos e que se obriga a pagar até 23.10.2015, mas nada cumpre até fevereiro de 2020, sabendo os autores que o vendedor nem sequer tem capacidade para pagar a dívida de condomínio há mais de um ano (face à penhora que remonta a março de 2019 sobre a fração “AD”), ponderando que desde 2014 o devedor se encontrava em incumprimento junto do Banco 2... por um crédito superior a dois milhões, sendo que o próprio devedor insolvente no seu depoimento referiu que o autor “sabia que ele estava com dificuldades”, “que estava com a corda ao pescoço” e daí ter sido acordado um valor reduzido para as frações, abaixo do valor de mercado, forçando o autor essa negociação. Todo este circunstancialismo, aliado ao preço pelo qual as frações foram alienadas – muito inferior ao seu valor de mercado e próximo do valor patrimonial do imóvel, quando é do conhecimento comum que este, por regra, fica bastante aquém do valor real dos imóveis – consente que se conclua com segurança que os autores eram conhecedores da situação económica do ora insolvente e da sua incapacidade para solver as dívidas que contraíra, aproveitando esse conhecimento para agir em posição de supremacia sobre o vendedor – sem qualquer cedência na discussão do preço, e pressionando para a fixação de um preço muito inferior ao valor de mercado -, acabando, deste modo, por concretizar um negócio para si extremamente vantajoso em termos económicos e que, não fora a situação em que se encontrava o insolvente, certamente não teria sido concluído nos termos em que o foi.”
*
Perante este excerto da fundamentação, verificam-se serem as seguintes as razões da convicção do tribunal:
- Se entre 2010 e 2014 o insolvente recorreu a sucessivos empréstimos do autor marido, este sabia necessariamente das suas carências financeiras, o que haveria de ser conhecido também da mulher da autora mulher;
- Se aquele invocava a necessidade de dinheiro para satisfazer dívidas perante terceiros, estes sabiam que ele tinha dívidas;
- Se o insolvente não conseguiu restituir qualquer valor do capital mutuado, entre 2015 e 2020, os autores teriam de perceber que ele se encontrava em situação de incapacidade de cumprir pontualmente as suas dívidas;
- A existência de uma penhora sobre a habitação do vendedor desde março de 2019, a favor da administração do condomínio, que os AA. conheceram necessariamente quando fizeram a aquisição da fracção, por a penhora estar registada, teve de os fazer perceber que a incapacidade do vendedor para satisfazer dívidas já se arrastava há algum tempo, tal como em relação ao seu próprio capital. Acresce que “o autor marido é médico e até um homem de negócios (tendo presente estes empréstimos) e por isso tinha necessariamente capacidade para retirar esta ilação da situação de insolvência do vendedor.”
- O contexto em que foi celebrada a escritura de confissão de dívida e hipoteca a favor dos autores, pois que isso ocorreu quando já estava em incumprimento o elevado crédito do insolvente junto do Banco 2... e já se encontrava em curso processo executivo. A escritura e hipoteca compreendem-se nessa altura por os autores terem sentido a necessidade de acautelarem o seu crédito perante a reivindicação do crédito pelo Banco 2...;
- O depoimento do próprio insolvente, afirmando que o autor “sabia que ele estava com dificuldades”, “que estava com a corda ao pescoço”;
- O valor do negócio, por ter sido praticado um preço muito inferior ao valor do mercado;
- Actuação em posição de supremacia sobre o vendedor – sem qualquer cedência na discussão do preço, e pressionando para a fixação de um preço muito inferior ao valor de mercado.
A isto, opõem os apelantes que, ao tempo da aquisição dos imóveis, apenas existia uma dívida para com a B..., além daquela ao Banco 2..., e que o facto de haver uma penhora registada a favor do condomínio não significa que a dívida ainda existisse nesse momento, ao que acresce o reduzido valor que a penhora poderia garantir, de apenas 1.483,00€. Além disso, essa obrigação poderia estar a ser contestada, por o insolvente não a admitir. Em qualquer caso, nenhuma prova foi feita sobre a questão. E alegam que, em consonância com isso, em declarações de parte, o autor marido afirmou desconhecer a existência de outras dívidas, tal como alegou desconhecer que o Banco 2... intentara a execução à época em que foi feita a escritura de confissão de dívida. De resto, os valores que lhe ia emprestando eram destinados, segundo o que lhe dizia CC, a pequenas despesas, como o colégio dos filhos e outras obrigações familiares. Mais invocam o depoimento do insolvente, que afirmou apenas ter dívidas pequenas, designadamente à B..., afirmando também jamais ter contado ao autor a sua existência ou o valor da dívida ao Banco 2....
Ouvidas tais declarações, o autor explicou que CC lhe ia pedindo verbas pequenas, de 2.000,00€ ou 3.000,00€, para responder a “dificuldades momentâneas” (min. 2’25’’ e min. 22’50’’ das declarações). Só depois de 2010 é que começou a pedir valores superiores. Ele exigiu, para isso, garantias e em 2014 acabaram por fazer a hipoteca. (min. 31’ das declarações). Então, chegaram a prever prazos de pagamento, que nunca foram cumpridos, mas – afirmou o autor – nunca o “apertou muito” pois estava garantido com a hipoteca.
Narrou, depois, as circunstâncias em que acordaram o negócio das fracções. Contou que pagou 76.893,77€ ao Banco 1... (transferindo esse valor para a conta de CC, para este liquidar o valor do empréstimo ainda em dívida e obter o distrate da hipoteca do apartamento e garagem), com isso se conseguindo o distrate das fracções. Mais referiu que a dívida de empréstimos era de 97.000,00€, mas que estavam previstos juros de 3,5% ou de 4%, como ficou a constar da escritura de confissão de dívida. Assim, na escritura de compra ficou a constar o preço dos 97.000,00€ mais o valor pago ao Banco 1... (min. 8’), mas que naquela época o valor já devia ser acrescido de 15%, a título de juros, o que também foi ponderado no negócio.
Ao minuto 21, o autor declarou expressamente não saber, ao tempo da compra, da existência de dívidas do ora insolvente, designadamente para com o Banco 2.... Sabe, hoje, dessa dívida e do pedido de insolvência feito pelo Banco 2... (“por isso é que estamos aqui”), mas ainda agora desconhece qual seja o montante em causa.
É certo que, ao minuto 26´47´´, o autor declarou saber, em 2014, que o ora insolvente tinha uma dívida para com o banco, de um pouco mais do que os seus 97.000,00€, mas que em princípio a poderia pagar. Esta dívida, admitimos nós, seria a relativa ao empréstimo do Banco 1..., para compra do apartamento, que motivava a hipoteca das fracções em causa e que veio a ser alvo do distrate contra o pagamento dos cerca de 76.000,00€, e não a do Banco 2..., à qual não calhava a descrição de ser “pouco mais” do que os 97.000,00€ a si devidos.
Por sua vez, depondo como testemunha, CC narrou que tinha dificuldades e foi pedindo dinheiro ao autor. Tinha falta de liquidez, referiu, tal como referiu que tinha esperança de pagar o que ia pedindo, perante a perspectiva de diferentes negócios, mas as oportunidades iam-se gorando. Foi-lhe pedindo 4 mil, 5 mil ou 10 mil euros, sendo que um dos últimos pedidos foi de 15 mil euros. Isso servia para pagar pequenas dívidas e despesas da família, taios como o colégio dos 3 filhos. Da última vez que pediu, o autor disse-lhe que emprestava mas queria uma garantia. Foi quando fez a segunda hipoteca, pois a primeira era da compra do apartamento. A ideia foi a de que ele próprio continuaria a pagar o empréstimo do apartamento e a hipoteca do banco não seria executada. E ele continuaria a viver lá. E mais tarde haveria de pagar a dívida ao autor.
Depois, em Fevereiro de 2019, como ia trabalhar para a Guiné, onde lhe fora prometido um bom emprego, propôs ao autor que comprasse o apartamento, pagando o valor em dívida ao banco e, pelo menos, liquidando a sua. Entende-se, das suas declarações, que não conseguiu que o autor pagasse mais. Mas pediu-lhe para que a família pudesse continuar a morar no apartamento até ao fim do ano lectivo, pois que só depois disso haveria de ir ter consigo à Guiné. Foi isso que combinaram e executaram. Depois, foi para África, mas verificou que, contrariamente ao que lhe fora prometido, não podia trazer para Portugal o dinheiro que ali ganhasse. Por isso, voltou para Portugal.
Referiu ainda que, na confissão de dívida de 2014, já se incluíam os juros devidos até então (13´50’’), e que exigiu que a família ficasse no apartamento até Julho por o autor ter “forçado um bocado as negociações”. Explicou que o autor pretendia saber como seria compensada a permanência da família de CC no apartamento, desde a data da escritura da venda até ao final do ano lectivo, i. é, durante cerca de seis meses; respondeu-lhe a testemunha que, como o autor forçara as negociações, conseguindo um preço inferior ao valor do mercado, essa ocupação ficaria sem contrapartida, o que acabou por ser aceite pelo autor.
Mas, depois, a testemunha também admitiu que, considerando os juros e o valor dos impostos devidos pela venda, que foi o próprio autor a pagar, o preço total acabou por ser apenas pouco inferior ao valor de mercado, contando que um seu vizinho vendera o seu apartamento por 205.000,00€. Mas – continuou - também houve quem tivesse vendido antes por 150.000,00€ (min. 27’). De resto, a si próprio, só lhe ofereceram 150.000,00€ (descontando o valor da hipoteca) – min.30’. Por isso, 179.000,00€, mais o valor de impostos, não lhe pareceu um valor muito baixo. Acresce que, ao tempo, antes da pandemia, o mercado imobiliário estava parado e, no seu prédio, houve quem tenha demorado quatro ou cinco anos até conseguir vender.
Negou ter falado ao autor da dívida para com o Banco 2..., afirmando que, por si, jamais soube o autor dessa dívida. Assim, só saberia da dívida inerente ao empréstimo do apartamento, perante o Banco 1.... Ele sabia das suas dificuldades para pagar as prestações do apartamento e que, se deixasse de as pagar, o Banco 1... acabaria por executar e o próprio autor ficaria sem a sua garantia. Foi por isso que acabaram por fazer o negócio.
São, então estes os elementos a ponderar: as circunstâncias dos empréstimos, da celebração da escritura de confissão de dívida e da hipoteca e do negócio das fracções, descritas na sentença recorrida, a par do teor das declarações de parte do autor e do depoimento de CC, das quais – impõe-se reconhecer – não resulta o conhecimento, pelos autores, da existência de um quadro composto por uma diversidade de dívidas que afligiriam o ora insolvente, incluindo a existente perante o Banco 2....
Em qualquer caso, o que importa verificar é se os autores estavam de má fé, ao adquirirem as fracções em questão, sendo que essa má fé consiste no conhecimento, à data do acto, de que o devedor se encontrava em situação de insolvência ou do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente (als. a) e b) do nº 5 do art. 120º do CIRE).
A definição de insolvência é dada pelo nº 1 do art. 3º do CIRE: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Nas circunstâncias dos autos, devemos ter por adquirido, quer que CC se encontrava em situação de insolvência, à data da venda das fracções, quer que o negócio foi prejudicial para a massa insolvente, por ter representado a alienação de património do devedor por valor inferior àquele que era o valor de mercado. É o que resulta do ponto 27 dos factos provados, quanto ao valor de mercado da fracção, e do ponto 31, designadamente quanto à responsabilidade perante o Banco 2..., que o ora insolvente claramente não tinha meios ou património para satisfazer. Perante e a ausência de controvérsia em relação a qualquer destes pressupostos, dispensa-se aqui qualquer consideração complementar.
Assim, o que permanece em discussão é exclusivamente o conhecimento, pelos autores, de tal situação de insolvência.
O conhecimento, por um sujeito, de determinada realidade constitui um facto psicológico que, naturalmente, é insusceptível de prova directa. Assim, o facto pode ser verbalizado pelo próprio sujeito, revelando-se por essa via, ou pode ser demonstrado por prova indirecta, isto é, por via do apuramento de factos materiais de onde se infere, por presunção, à luz de regras de experiência, a sua realidade. Estaremos, então, perante presunções judiciais, tal como definidas no art. 349º do C. Civil.
É pertinente citar, a este propósito, o seguinte excerto do Ac. do STJ, de 17/1/2023 (proc. nº 286/09.5TBSTS.P1.S1, em dgsi.pt): “Considerando a noção da presunção judicial, (…), questiona-se o nexo lógico da presunção e que se traduz no elemento de ligação entre o facto conhecido (facto base) e o facto desconhecido, e esse liame decorre do reconhecimento de uma máxima da experiência. Ora, as máximas da experiência comum que possibilitam o raciocínio inferencial assumem carácter geral e seguem um padrão de normalidade para o raciocínio inferencial, atentas as particularidades do caso concreto.
Com inegável pertinência, afirma Luís Filipe de Sousa, ao discorrer sobre as presunções judiciais, que “o nexo lógico não é um facto, mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima da experiência, tida por aplicável ao caso, segundo a qual, perante a ocorrência de um facto, gera-se uma probabilidade qualificada que se tenha produzido outro” (Direito Probatório Material, 2020, pág. 69).”
E mais se acrescenta neste acórdão: “… quanto maior for a quantidade de factos-base (“presunção polibásica”) menor é o risco de se obter uma conclusão errada e, por conseguinte, maior a fiabilidade da presunção.”
Na sentença recorrida foi entendido que os factos conhecidos que supra se elencaram eram suficientes para se concluir pelo conhecimento dos autores quanto à situação de insolvência, ou pelo menos de insolvência iminente, do devedor. Importa, todavia, sindicar o processo lógico que terminou por estabelecer, com base num juízo de probabilidade qualificada, uma tal conclusão.
Começa a sentença por presumir que, se o autor emprestava sucessivamente dinheiro a CC e se este lhe dizia que precisava dele para satisfazer dívidas, então o autor (e a sua mulher) sabiam que ele tinha tais dívidas e que não as podia satisfazer. Sabiam, pois, que estava em situação de insolvência.
Todavia, não cremos que entre o facto conhecido e a conclusão se possa estabelecer a conexão lógica necessária. As dívidas invocadas, segundo descrito pelo autor e por CC (em termos congruentes e que nenhum outro meio de prova contrariou) eram dívidas correntes, inerentes ao suporte da família, as quais aqueles empréstimos tendiam a eliminar. Em suma, e apesar do valor crescente dos empréstimos, não se pode concluir que o insolvente mantivesse um qualquer conjunto de dívidas que ficassem por satisfazer. Pelo contrário, eram as dívidas surgidas que iam sendo liquidadas com o dinheiro obtido por empréstimo do autor. Acresce que, no âmbito da própria insolvência, também não vieram a ser identificadas quaisquer dívidas que afligissem a existência do devedor. Com efeito, apenas foram reclamados o crédito do Banco 2..., um da B..., de valor não muito relevante, além de uma outro de custas judiciais, de 102,00€. Quanto à hipotética dívida ao condomínio, infra se analisará a questão.
Inexiste, pois, qualquer conjunto de dívidas que pudessem ser conhecidas pelos autores, levando a que os mesmos percebessem que o devedor tinha um conjunto diversificado de credores a que não conseguia satisfazer.
Mais considerou o tribunal que a ausência de pagamento, ao autor, de qualquer capital para liquidar o valor dos empréstimos obtidos, valor esse consolidado na escritura de confissão de dívida em 2014, teria de fazer induzir a percepção de que CC se encontrava em situação de incapacidade de cumprir pontualmente as suas dívidas.
Todavia, este conclusão está prejudicada pela circunstância de não serem conhecidas quaisquer dívidas, que CC não pudesse satisfazer. De resto, após 2014,, CC não pediu mais dinheiro ao autor. E o negócio do apartamento foi feito para que CC pagasse os dois empréstimos que, então, não tinha meios financeiros para satisfazer e iriam gerar problemas: o empréstimo do Banco 1..., para aquisição do apartamento e a dívida para com o autor. Ou seja, quanto a essas dívidas, CC conseguiu satisfazê-las, pro via do negócio em questão, o que exclui a sua aptidão para sustentarem a identificação, pelos autores, da situação de insolvência ou de insolvência iminente.
Considerou também o tribunal recorrido que, confrontando-se com o registo da penhora da fracção, de 15/3/2019, tendente à cobrança de uma dívida perante o condomínio, os AA. se aperceberam necessariamente da incapacidade de CC para satisfazer as suas dívidas, quando lhe adquiriram a fracção.
É certo que as fracções foram vendidas quando se encontrava inscrita tal penhora. É isso que consta da escritura de venda. Porém, também é certo que o tribunal deu por provado que o autor passou a suportar as despesas de condomínio após a aquisição. Mas nada se sabe quanto a eventuais débitos ao condomínio em momento anterior, qual a sua origem, se foram alvo d econtestação pelo devedor, se persistiram ou foram pagas ou anuladas, sendo certo que não foi reclamado qualquer crédito, na insolvência, a esse título. Por outro lado, nenhum meio de prova produzido se referiu a tal dívida. Ora, como bem alegam os apelantes, a penhora pode ter sido registada no âmbito de uma efectiva discussão sobre se CC era ou não devedor dos valores pretendidos pelo condomínio. Da existência do registo da penhora e sem mais, não se pode inferir que CC era devedor do valor que a penhora tenderia a assegurar. E isso tanto mais que, repete-se, nem nenhuma dívida sobreveio, a esse propósito, ao processo de insolvência.
Pelo exposto, rejeitamos também que, a propósito do conhecimento de tal penhora, se possa inferir que os AA. conheciam a incapacidade de CC para satisfazer dívidas que efectivamente tivesse.
A isto, de resto, nada acrescenta a invocação da experiência negocial do autor marido, neste tipo de negócios, porquanto o que se verifica é quer que não se revelavam outras dívidas que, existindo, pudessem ser conhecidas por ele, permitindo-lhe a percepção de uma situação de insolvência ou de insolvência iminente do devedor.
Na sentença recorrida, também se atribui significado à circunstância de a escritura de confissão de dívida e hipoteca a favor do autor ter ocorrido a 05 novembro de 2014, quando já estava em incumprimento o elevado crédito do insolvente junto do Banco 2... e já se encontrava em curso processo executivo.
Como se referiu supra, o autor negou saber dessa dívida e desse processo executivo. Paralelamente, CC afirmou que janais o informou dessa matéria. Ambos, de forma congruente, afirmaram que a exigência da escritura de confissão da dívida e hipoteca se deveu ao avolumar da dívida perante o autor e em face de mais um pedido de dinheiro, até mais elevado que os anteriores. O qual, de resto, foi o último, mas ao qual o autor só anuiu perante a confissão da dívida e hipoteca do imóvel.
Nestas circunstâncias, para sustentar a ilação do tribunal, resta a superveniência da escritura em relação ao início do processo executivo pelo Banco 2.... Mas essa mera relação cronológica, desacompanhada de qualquer outro facto, afigura-se-nos insuficiente para concluir que o autor se preveniu com a escritura de confissão de dívida e com a hipoteca em função do processo executivo intentado pelo Banco 2....
Os três factos seguintes referem-se ao valor e circunstâncias do negócio de aquisição das fracções, pelo autor. O tribunal levou em conta que o preço foi inferior ao valor do mercado, que o autor impôs esse preço por saber das dificuldades do devedor e que ele estava “com a corda ao pescoço, como foi declarado pelo próprio CC.
Todavia, do depoimento de CC, que se afigurou isento e convincente, resulta que, na sua percepção ao tempo, o preço praticado nem foi tão abaixo do valor do mercado quanto se possa pensar pois, nessa época, o mercado imobiliário estava muito parado e outros apartamentos no local demoraram 4 ou 5 anos para serem vendidos. Por outro lado, não só o autor, mas também outros, sabiam que ele estava em dificuldades para fazer face aos seus encargos, designadamente às prestações do apartamento e às despesas da família, o que a todos, incluindo ao autor, levava a que pressionassem para baixar o preço.
Referiu que a melhor oferta que conseguiu, de um outro amigo, foi de 150.000,00€, ou seja, inferior à oferta do autor. Afirmou também que outro vizinho vendera o seu próprio apartamento por 150.000,00 embora houvesse outros que venderam por 205.000,00€. Mas, mais importante do que isso, esclareceu que a decisão da venda lhe permitia fazer frente à sua incapacidade para pagar as prestações do empréstimo para habitação contraído junto do Banco 1... (o que o autor pagou com cerca de 76.000,00€), pagar ao próprio autor e seguir a sua vida, na Guiné, onde lhe tinham prometido um bom emprego. Ora o negócio celebrado com o autor permitiu garantir a continuidade da habitação da família, até ao fim do ano lectivo, sem custos, sendo que nessa altura já ele haveria de ter conseguido, na Guiné, condições para ter lá a sua família consigo. Este projecto acabou por se frustrar, como ele explicou no seu depoimento, mas estas foram as circunstâncias em que se formou a sua vontade de vender e em que foram acordadas as condições do negócio. De resto, de forma coerente, o autor explicou que fez o negócio porquanto, se não adquirisse o apartamento, pagando ao Banco 1... o crédito para habitação, CC não o iria fazer e isso iria fazer perigar a possibilidade de recuperar os valores que lhe emprestara.
Estas circunstâncias e condições surgem como perfeitamente credíveis e razoáveis, o que, ao mesmo tempo, é de ordem a excluir que se estabeleça uma relação de conexão entre elas e a percepção, pelo autor, de que o devedor se encontrava em dificuldades financeiras de cariz mais amplo, às quais não poderia fazer frente, mesmo com a transacção do único bem que apresentava. E isso tanto mais quanto se pondere que já se excluiu que o autor soubesse da dívida ao Banco 2..., ao que acresce que também não se apurou, mesmo em sede da insolvência, que o devedor estivesse “com a corda ao pescoço” em função de ter muitas e vultuosas outras dívidas, e não apenas em função das dificuldades para prover às despesas de habitação e a outras do seu agregado familiar.
Na ponderação de tudo o que vem de se expor, cumpre concluir que os factos considerados na sentença recorrida, para deles se inferir o conhecimento, pelos autores, da situação de insolvência de CC, nas condições descritas no ponto 32º dos factos provados, bem como que conheciam a existência de outras dívidas sabendo da incapacidade do mesmo para as cumprir pontualmente, como descrito no ponto 33º, não permitem tais ilações.
Discordamos, em suma, das conclusões que o tribunal extraiu e enunciou nesses pontos, em função da factualidade descrita.
Consequentemente, deve dar-se por não provada a matéria descrita nos pontos 32º e 33º dos factos provados. Disso mesmo se dará conta no lugar próprio, com referência a esta decisão, transitando essa factualidade para o rol dos factos não provados.
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As alterações operadas na identificação da factualidade dada por provada, dando-se por não provado que os AA. conhecessem a situação de insolvência de CC, bem como a existência de outras dívidas e sabendo da incapacidade do mesmo para as cumprir pontualmente, têm necessárias consequências na decisão da pretensão deduzida nesta acção.
Com efeito, decidiu-se na sentença recorrida: “Consequentemente, a resolução do negócio de compra e venda da fração “AD” e “AI” deve manter-se válida e eficaz, tratando-se de ato prejudicial à massa, presumindo-se essa prejudicialidade nos termos do art. 120.º, n.º 3, e 121.º, n.º 1 h), CIRE e estando demonstrada a má fé dos autores adquirentes, nos termos do art. 120.º, n.º 5, a), CIRE.”
Como acima se afirmou, não está já em discussão a prejudicialidade do negócio em relação à massa. Com tal pressuposto, e por considerar verificada a má fé dos autores/compradores das fracções em questão, o tribunal teve por verificados os requisitos de legitimidade da resolução do negócio em benefício da massa insolvente, reconhecendo-a como válida e eficaz, com o que rejeitou a impugnação oferecida por tais autores.
Essa má fé dos compradores é pressuposto da resolução do negócio, como bem afirmou o tribunal recorrido.
Acontece, porém, que, com os fundamentos acima expostos, acabámos por concluir pela não verificação de tal má fé dos autores, quer por não se ter demonstrado que eles conheciam a situação de insolvência do devedor (al. a) do nº 5 do art. 120º do CIRE), quer por não se ter demonstrado que conheciam, pelo menos que essa situação era iminente (al. b) do nº 5 do art. 120º do CIRE).
Por consequência, não podemos reconhecer a presença de tal pressuposto necessário à possibilidade de resolução do negócio em questão.
Resta, por conseguinte, conceder provimento à apelação dos autores e revogar a sentença recorrida, a substituir por outra que, julgando provada e procedente a presente acção de impugnação de negócio em benefício da massa insolvente de CC, tem por ilegítima a declarada resolução do contrato de compra e venda celebrado em 04 fevereiro de 2020, relativo às fracções de um prédio urbano do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na rua ..., ... e Rua ..., ..., da freguesia da cidade ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18 da freguesia ... e inscrito na matriz urbana respetiva no artigo ...92, descritas sob as letras AD” correspondente a uma habitação do tipo T4 (transformada em T3), no 5º andar frente, com entrada pelo nº ...8, e na cave uma garagem dupla designada pelas letras “AD-1” e um arrumo individual designado por “AD-2”, e a fracção “AI” corresponde a uma garagem na cave, com entrada pelo nº ...0, declarando que se mantém o direito de propriedade dos autores sob as mesmas fracções.
Prejudicada fica a apreciação dos pedidos que haviam sido feitos apenas a título subsidiário.
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder provimento ao recurso sob apreciação, em consequência do que, revogando a decisão recorrida, a substituem por outra nos termos da qual julgam provada e procedente a presente acção de impugnação de negócio em benefício da MASSA INSOLVENTE de CC, declarando ilegítima a resolução do contrato de compra e venda celebrado em 04 fevereiro de 2020, relativo às fracções de um prédio urbano sito na rua ..., ... e Rua ..., ..., da freguesia da cidade ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº ...18 da freguesia ... e inscrito na matriz urbana respetiva no artigo ...92, descritas sob as letras AD” correspondente a uma habitação do tipo T4 (transformada em T3), no 5º andar frente, com entrada pelo nº ...8, e, na cave, uma garagem dupla designada pelas letras “AD-1” e um arrumo individual designado por “AD-2”, e a fracção “AI” corresponde a uma garagem na cave, com entrada pelo nº ...0, declarando ainda que se mantém o direito de propriedade dos autores sob as mesmas fracções.
Declaram prejudicada a apreciação dos pedidos que haviam sido feitos apenas a título subsidiário.
Custas pela recorrida.
Porto, 19/11/2024
Rui Moreira
Lina Castro Baptista
Anabela Dias da Silva