CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
INVALIDEZ ABSOLUTA
CLÁUSULA CONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA
Sumário

I - As cláusulas de um contrato de seguro do ramo Vida, destinado garantir o pagamento do mútuo em caso de invalidez absoluta e permanente, devem, ser interpretadas de acordo com a teleologia do contrato.
II - O segmento da cláusula que define invalidez absoluta e permanente como comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada, deve ser interpretado como incapacidade irrecuperável de exercer actividade remunerada compatível com a sua formação e com nível remuneratório semelhante, sob pena de se esvaziar a finalidade do seguro, e incorrer em nulidade por violação dos princípios da boa fé e da proporcionalidade.
III - A cláusula de um contrato de seguro do Ramo Vida, segundo a qual se verifica a invalidez absoluta e definitiva quando se verifique comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada, contempla a situação em que segurada apresenta uma Incapacidade Permanente para o Trabalho de 100%, determinada por uma doença do foro oncológico de que resultou acentuado desfiguramento do rosto (dismorfia facial) e uma efectiva incapacidade para o exercício da sua actividade profissional, com forte vertente interpessoal.

Texto Integral

Apelação n.º 3195/21.6T8VFR.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Relatora: Marcia Portela
1.ª Adjunta: Anabela Andrade Miranda
2.ª Adjunta: Anabela Dias da Silva
1. Relatório
AA instaurou a presente acção declarativa comum, contra Companhia de Seguros A..., S.A., peticionando:
a) Seja a R. condenada a pagar-lhe a quantia de € 70.356,76, acrescida dos jutos legais vincendos até efectivo e integral pagamento;
b) Seja declarado nulo o artigo 3.º, ponto 2, das condições gerais da apólice, na parte respeitante à exigência de “com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de uma terceira pessoa”;
c) Seja declarado nulo o artigo 3.º, ponto 2, das condições gerais de apólice, na parte respeitante à exigência de “possuir a pessoa segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada

Alega, para tanto e em síntese, que é portadora, desde 2016, de incapacidade decorrente de carcinoma no nariz, que determinou a realização de cirurgia que a desfigurou e lhe dificultou a função respiratória, bem como a afectou psiquicamente, pelo que se encontra incapacitada para exercer qualquer profissão compatível com as suas habilitações e conhecimentos, o que participou à seguradora que, todavia, declinou a responsabilidade.

E ainda que os critérios exigidos no ponto 2 do artigo 3.º das condições gerais da apólice e utilizados pela R. para declinar a responsabilidade, nomeadamente a “impossibilidade de subsistência funcional da A. sem o apoio permanente de uma terceira pessoa” e “possuir comprovada incapacidade irrecuperável para exercer
qualquer actividade remunerada”, são atentatórios da boa fé e, por isso, nulos.
Contestou a R., pugnando pela improcedência da acção, porquanto, em suma, a A. não demonstra sofrer de uma incapacidade de mais de 75% de acordo com a TNI, e mantém autonomia e capacidade de trabalho, não estando totalmente incapaz de exercer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões. Não necessita de ajuda de terceira pessoa para tarefas básicas diárias. Assim, a a factualidade alegada pela A. não se subsume ao conceito de invalidez absoluta e definitiva constante do artigo 3.º, ponto 2, das condições gerais da apólice, que não ofende a boa fé.
Respondeu a A., pugnando pela procedência da acção, uma vez que se encontra numa situação de incapacidade absoluta e definitiva.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foi identificado o objecto do litígio e a enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a R. do pedido.
Inconformada, apelou a A., apresentado as seguintes conclusões:
A)
A sentença ora posta em crise padece de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º nº 1/d, do CPC, já que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questão essencial de que deveria apreciar.

B)
Ao ignorar da aplicabilidade aos presentes autos da bonificação prevista na Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do DL nº 352/2007, de 23 de outubro, nomeadamente das instruções gerais inseridas no seu Anexo I, no seu ponto 5, alínea b), omitiu o Tribunal a quo questão essencial para efeitos de cumprimento de uma das condições da cobertura de invalidez Absoluta e Definitiva, nomeadamente, a da incapacidade ser definitiva e de pelo menos de 75% (cláusula 3ª, nº 2, das condições gerais do contrato de seguro em causa).

C)
Sendo que, no seu decurso e como sua consequência, o Tribunal a quo ao desrespeitar o ponto 5, alínea b), das instruções gerais (Anexo I) da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do DL nº 352/2007, de 23 de outubro, violou também os princípios da justa reparação e da igualdade, previstos, respetivamente, nos arts. 59º, nº 1, alínea f), e, 13º da Constituição da República Portuguesa, padecendo também a sentença de inconstitucionalidade.

D)
Vem também a Autora e ora recorrente, impugnar matéria de facto, nomeadamente os constantes do Facto provado sob o nº 25) “As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão”;
E do facto não provado “A Autora encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade renumerada”.
Considerando ambos incorretamente julgados.

E)
Decidiu o Tribunal a quo da forma que decidiu, unicamente, com base no teor do relatório de psiquiatria em que se conclui que “Do ponto de vista psiquiátrico será de admitir a capacidade da examinanda para o trabalho dentro das suas capacidades técnicas”.

F)
Não obstante o descrito, efetivamente, da conclusão derivada do relatório de psiquiatria em termos de admitir que a Autora mantenha capacidade para o trabalho dentro das suas capacidades técnicas, é uma situação meramente hipotética, que tanto pode se concretizar como pode não se concretizar, daí a expressão “será de admitir”, e, por outro lado, em termos meramente psiquiátricos. Para se aferir em concreto da capacidade ou não, deveria o Tribunal a quo ter apurado de todas as consequências para a Autora e não meramente psiquiátricas;
- Em nenhum momento, o Tribunal a quo confrontou as conclusões do relatório de psiquiatria, com outros meios de prova existentes, nem sequer ouviu o perito responsável pela sua elaboração;
- A matéria de facto ora posta em crise não se coaduna com prova produzida nos autos, conforme resulta dos excertos de prova testemunhal, através do testemunho prestado por BB (Sessão do dia 05.02.2024, com início às 14:04 e fim às 14:14, disponível na aplicação informática “Habilus Média Studio”):
“(…) e depois desta situação? (advogado)
…é uma pessoa totalmente diferente, fechada, é uma mulher isolada…(testemunha)
E profissional? (Advogado)
Ela está muito desfigurada…ela também cansa-se muito, constantemente tem de colocar gotas nos olhos, andar sempre a beber água…atualmente, está a precisar de ajuda de familiares, não tem condições económicas…(testemunha).”
E mesmo do depoimento de parte da Autora, (Sessão do dia 05.02.2024, com início às 14:44 e fim às 15:09, disponível na aplicação informática “Habilus Média Studio”):
“(…) O que fazia? (Juiz)
…era consultora financeira, fazia estudos de viabilidade financeira…dava formação…para os estudos tinha de contactar com muita gente…depois de apresentar os projetos às empresas, tinha de reunir com as equipas de arquitetos, tinha de deslocar para dar formação aos recursos humanos dos clientes, também tinha de acompanhar se tudo estava a correr bem…tinha de supervisionar para garantir que os procedimentos estavam a ser seguidos…estava sempre em deslocações…contactos com clientes, entidades promotoras, o trabalho era todo feito nas instalações dos clientes…(Autora)
Seria capaz de arranjar trabalho idêntico? (Juiz)
Eu não consigo pelos requisitos que exigem…excelente capacidade de relacionamento interpessoal…boa apresentação…excelente capacidade de lidar com o stress…
Era exigível esse contacto pessoal com as pessoas? (Juiz)
Não há outra forma de o fazer, tenho mesmo de ir lá, estar com elas, explicar como são feitos os procedimentos, ver e conferir os documentos, que são das empresas, que estão lá, eu não tenho outra forma de acesso…(Autora).

Temos aqui um relatório do IGML que nos acaba por dizer que do ponto de vista psiquiátrico mantém capacidade para exercer trabalho dentro das suas capacidades técnicas? (Juiz)
Não tem conhecimento da minha profissão…o Sr. Dr. do IML nem me perguntou o que eu fazia…como é que ele sabe que eu estou capaz…ele não perguntou o dia a dia do meu trabalho…ele desconhece o que um contabilista faz e o que é exigido a um contabilista…agora nem metade do rendimento tenho e com despesas…a invalidez não cobre as despesas…(Autora).”o descrito em 18º e 19º do presente requerimento, para os quais se remete em conformidade.
- Existem ainda outros meios probatórios constantes do processo de que resulta de que a decisão a proferir sobre a matéria de facto impugnada deveria ser diversa da recorrida, nomeadamente:
Centro Médico ...
Declaração 01/02/2022: "(...) é portadora de uma Reação Depressiva Prolongada (Neurose traumática), na sequência das sequelas físicas e psicológicas provocadas pela cirurgia oncológica a que foi submetida. Pelo exposto e dadas as características da sua profissão, é consultora financeira, que a obriga ao contacto diário com o público, sou do parecer que se encontra total e permanentemente incapaz de desempenhar a sua profissão (...)."

G)
O Tribunal a quo atuou de forma discricionária, arbitrária, desrespeitando o Princípio da livre apreciação motivada das provas, previsto no artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil.

H)
A decisão a proferir sobre a motivação de facto impugnada, deve consistir, nomeadamente:
- A matéria de facto dada como provada no ponto 25) “As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão” deve ser considerada como matéria não provada;
- E o único facto dado como não provado “A Autora encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade renumerada”, deve ser considerado como facto provado.

I)
A cláusula contratual geral inserida nas condições gerais da apólice - “possuir a pessoa segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada.”, deve ser habilmente interpretada, tendo em consideração cada situação em concreto, de forma a enquadrar como atividade habitual, tendo em consideração as aptidões necessárias, habilitações literárias, exigências específicas da profissão em concreto, em comparação com a atividade desenvolvida antes do evento, e não uma e qualquer atividade remunerada seja ela qual for, desfasada da realidade da sinistrada.

J)
O Tribunal a quo interpretou de forma lata tal cláusula contratual geral e aplicou-a de forma descontextualizada da realidade profissional da Autora e das exigências inerentes à mesma atentas as específicas lesões e sequelas sofridas, interpretação esta violadora do princípio geral da boa-fé, e nesse sentido, com tal alcance, esta mesma cláusula contratual deve ser declarada nula (artigo 294º do Código Civil) e assim excluída, por força da aplicação dos arts. 227º e 762º, nº 2 do Código Civil e arts. 16º e 17º da LCCG.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser admitido e procedente, devendo ser alterada a sentença que absolveu o Réu do pedido, por outra, que, efetivamente, condene o Réu no pedido.
Fazendo, como sempre, a habitual e sã justiça,
Contra-alegou a R., assim concluindo:
1 - Na perícia efectuada pelo INML e no esclarecimento ficou provado que a Recorrente é portadora de sequelas que determinaram uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 68,596% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais e é portadora de sequelas que determinaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 37,158 pontos de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades
em Direito Civil;

2 - A prova pericial, que tem por objecto “a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos,
quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”, é livremente apreciada pelo tribunal, como decorre do artigo 389.º do Código Civil.

3 - Os factos de que a perícia se ocupa reconduzem-se a um universo de ciência ou tecnicidade, reclamando a sua conscienciosa indagação conhecimentos de natureza técnico/científica que, por regra, escapam ao domínio do julgador. Daí que a perícia, realizada por quem deva estar habilitado com os conhecimentos técnicos necessários à indagação de tais factos, constitua instrumento de primordial importância para a aquisição da realidade cuja verificação/existência é questionada.

4 - Não significa isso, contudo, que os juízos emitidos no relatório pericial seja vinculativo para o juiz, pois a prova pericial não tem natureza tabelar, sendo livremente sindicável pelo tribunal - em conformidade com o critério comum ao direito probatório material -, que, no exercício dessa tarefa, ponderará a lógica do raciocínio desenvolvido e a coerência das premissas que conduziram ao resultado traduzido no relatório.

5 - Dada a natureza técnica das questões submetidas à indagação pericial, é, todavia, natural que o grau de convencimento do resultado alcançado através desse meio de prova assuma para o julgador particular acuidade.

6 - Assim, salvo a existência de outro juízo concludente que justifique a preterição do referido meio probatório, é o juízo técnico/científico por ele transmitido que deve prevalecer.

7 -O tribunal não tem fundamento para questionar as conclusões do relatório pericial quanto às sequelas diagnosticadas à Apelante e aos concretos coeficientes de incapacidade a cada uma delas atribuídos.

8 - Seguindo o raciocínio da Apelante e por aplicação do factor de correcção de 1,5 então esta estaria afectada de incapacidade superior a 100,00 % .

9 - Na verdade, a doença de que a Apelante foi vitima não é de trabalho e o trabalho de economista desempenhado é compatível com a actual imagem, não se aplicando, desta forma, o disposto na referida alª b) do nº 5 das instruções da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais cuja interpretação da Recorrente é errada, salvo o devido respeito;

10 - Segundo o n.º 5, alínea b) das instruções gerais Tabela Nacional de Incapacidades por
Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais, constantes do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, “Na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser
observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número:
[…]
b) A incapacidade é igualmente corrigida, até ao limite da unidade, mediante a multiplicação pelo factor 1.5, quando a lesão implicar alteração visível do aspecto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afecte, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho; não é cumulável com a alínea anterior”. …///….

11 - Como bem refere a douta sentença “a quo”, que se transcreve
“a Autora não logrou demonstrar, como lhe competia (art.º 342.º, n.º 1, do CC), a situação de invalidez absoluta e definitiva.
Por outro lado, ficou demonstrado que as sequelas físicas e psiquiátricas da Autora não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão.

12 - A douta sentença “a quo” não padece de qualquer nulidade nem de nenhuma inconstitucionalidade.

13 - A Apelante pretende ver dado como não provado o facto 25 dos factos dados como provados: “25 . As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão” e O Facto não provado “A Autora encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade remunerada” seja dado como provado.

14 - Para tanto a Apelante recorre ao depoimento da sua Irmão e ao seu depoimento de parte.

15 - A Apelante discorda das respostas, mas, dessa forma, está a invadir o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 607º, nº5 do C.P.C.

16 - No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 607º, nº4 C.P.C. - sem embargo, naturalmente, do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 607º, nº 4, do CPC

17 - A essas regras de apreciação não escapa a prova testemunhal, como expressamente se dispõe no art. 396° do Código Civil, sendo que, dada a sua reconhecida falibilidade, se impõe uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória.

18 - Importam aqui, sobremaneira, as relações pessoais e de total interesse da A. e da sua Irmã.

19 - Ainda deve ser apontado que a prova produzida deve ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência - princípio da aquisição processual (art. 413° do Código de Processo Civil), o que tudo foi observado no julgamento de 1ª instância.

20 - Finalmente, não pode esquecer-se que, no âmbito e aplicação dessa valoração das provas no seu conjunto, poderá o julgador lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, isto é, o juiz, no seu prudente arbítrio, poderá deduzir de certo facto conhecido um facto desconhecido, porque a experiência ensina que aquele é normalmente indício deste - art. 351° Código Civil (ob. cit., III, 249).

21 - A fundamentação do julgamento da matéria de facto foi douta e detalhadamente efectuada pelo Mmo. Juíz “a quo”, a fls …., resultando a convicção assumida do conjunto dos meios de prova.

22 - Não é licito tirar ilações globais de pequenas partes de depoimentos, existindo outros meios de prova como a documental, aptos a formar prudente convicção de julgamento, como, aliás, aconteceu.

23 - Ao contrário do que a Apelante defende, não ocorreu por parte do Tribunal “a quo”, qualquer actuação discricionária ou arbitrária pelo que deve manter-se como provado o ponto 25) “As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão” e deve manter-se como o não provado “A Autora encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade remunerada”.

24 - A sentença “a quo” analisou e ponderou todos os aspectos da clausula 3ª das Condições Gerais do contratado, e relativamente ao segmento da clausula “possuir comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada”, não a considerou abusiva, e esta não ofende a boa fé negocial, nem se revela desproporcional, não se achando, por isso, afectada de qualquer invalidade.

25 - Com efeito, quanto ao estatuído na 1ª parte do ponto 2º do artº 3º das Condições Gerais nele
se apontam os critérios a atender para o reconhecimento dessa situação de invalidez, cujo conceito é fixado a montante desse procedimento, na 2ª parte do artº 3º das referidas Condições.

26 - E ainda quanto à interpretação do referido artº 3º, a Recorrente pretende interpretá-lo sem olhar aos requisitos estabelecidos nos artº 236º Cód. Civil e apetece citar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2022 in www.dgsi.pt, “I - A interpretação das cláusulas contratuais de um contrato de seguro deve ser efectuada de acordo com o disposto nos arts. 236.º a 238.º do CC, tendo também em conta o disposto no DL n.º 446/85, de 25-10, em relação às cláusulas contratuais gerais e, em geral, os princípios da boa fé contratual. II - Na interpretação das cláusulas gerais de um contrato de seguro deve seguir-se a doutrina da impressão do declaratário; e, se forem ambíguas, esgotadas todas as hipóteses, prevalece o sentido mais favorável ao segurado (art. 11.º, n.º 2, do citado DL n.º 446/85)”.

27 - Sendo o risco coberto, para além da morte, a invalidez absoluta definitiva, mesmo não havendo especificação do conceito dessa invalidez, o declaratário médio e medianamente sagaz, não pode deixar de entender que a mesma se refere a todo e qualquer trabalho que não apenas ao trabalho habitual do segurado.

28 - Apelante esquece no âmbito dos negócios formais como é o contrato de seguro, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha no texto do documento o mínimo de correspondência, ainda que de forma imperfeita; todavia, tal sentido poderá, nos termos do nº 2 do art. 238º CC, ser válido se corresponder à vontade real dos declarantes e a isso se não opuserem razões determinantes de forma.

29 - A douta sentença contém fundamentação de Direito e de Facto sólidas que este recurso não abala, de forma alguma e improcedem todas as conclusões da Apelante.

Nestes termos e nos doutamente supridos por Vs. Exas. deve ser negado provimento ao presente Recurso, confirmando-se integralmente a douta Sentença Recorrida para se fazer
J U S T I Ç A !

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. A A.nasceu em ../../1972;
2. A R. celebrou com o Banco 1..., S.A., na qualidade de tomador, e a Autora, como aderente e pessoa segura, um contrato de seguro de vida temporário anual renovável,
para garantia de dois créditos hipotecários através de apólice n.º ...:
- certificado ... – adesão na data de 20.07.2007, com as coberturas de morte ou invalidez absoluta e definitiva e o capital seguro igual ao capital em dívida ao do empréstimo no montante de € 15.000,00, tendo como beneficiário único e irrevogável o Banco 1...;
- certificado ... – adesão na data de 20.07.2007, com as coberturas de morte ou invalidez absoluta e definitiva e o capital seguro igual ao capital em dívida ao do empréstimo no montante de € 80.264,00, tendo como beneficiário único e irrevogável o Banco 1...;
3. De acordo com o artigo 3.º, ponto 2, das condições gerais da apólice:
“Invalidez Absoluta e Definitiva: No caso de Invalidez Absoluta e Definitiva da Pessoa Segura, a A..., nos termos previstos nas condições do Contrato, garante o pagamento do Capital Seguro ao beneficiário.
Considera-se existir Invalidez Absoluta e Definitiva quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:
- Possuir a Pessoa Segura/Aderente uma incapacidade funcional irrecuperável superior a 75% (Tabela Nacional de Incapacidades – TNI, em vigor à data do sinistro) com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de uma terceira pessoa;
- Possuir a Pessoa Segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.”;
4. Em 2016, foi detectado na A. um carcinoma no nariz que determinou que a 07.07.2016 tenha sofrido intervenção cirúrgica no IPO ... para remoção do mesmo;
5. Posteriormente foi submetida a radioterapia;
6. Destas intervenções resultou ter ficado sem as cartilagens do nariz por remoção
do septo nasal e ter ficado sem respiração pelo nariz, com perda do olfacto e paladar e sem salivar.
7. Tem que beber água constantemente dada a falta de salivação;
8. Ficou com o rosto desfigurado;
9. Mediante carta datada de 22.07.2021, a A. participou ao Banco 1... o sinistro, conforme carta junta como doc. 5 com a p.i. e aqui dada por integralmente reproduzida;
10. Mediante carta datada de 13.09.2021, a R. comunicou ao Banco 1... que, tendo recebido a participação de 29.07.2021, declinava a responsabilidade, conforme carta junta como doc. 7 com a p.i. e aqui dada por integralmente reproduzida;
11. Mediante carta datada de 17.09.2021, o Banco 1... comunicou à A. a posição assumida pela Ré, conforme carta junta como doc. 7 com a p.i. e aqui dada por integralmente reproduzida;
12. A R. não solicitou documento complementar sobre o sucedido, nem análise por um médico seu;
13. A A. era uma pessoa saudável, alegre, jovial, profissionalmente activa, competente no seu trabalho e de boa aparência;
14. A A., licenciada em contabilidade, trabalhava na empresa “B..., Ld.ª”, como consultora financeira;
15. No exercício dessas funções, elaborava estudos de viabilidade financeira para projectos candidatos a financiamento comunitário e, aprovados os projectos, dava formação aos recursos humanos dos promotores dos projectos, tendo, posteriormente, a responsabilidade de acompanhar e supervisionar os trabalhos realizados pelos promotores para garantir a boa execução dos mesmos;
16. Essas funções por si exercidas exigem conhecimentos de elevado grau, não só da legislação nacional como comunitária, e um conhecimento aprofundado da
contabilidade pública e empresarial;
17. O seu sucesso no desempenho dessas funções decorria da sua formação académica e profissional, equilíbrio psíquico, personalidade e boa aparência física;
18. A doença e os tratamentos a que teve de submeter-se desfiguraram a A. no seu rosto e levaram-na a um afastamento do convívio humano;
19. A A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam;
20. O facto de respirar apenas pela boca e ter deixado de salivar em resultado da radioterapia, faz com que os tecidos sequem, se colem e a bloqueiem, forçando a uma contínua necessidade de humidificação e à perda de voz por curtos momentos;
21. Em virtude da doença, a A. é portadora de sequelas que determinaram uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 68,596% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais;
22. A A. é portadora de sequelas que determinaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 37,158 pontos de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil;
23. A perda de acuidade visual - que incapacita a Autora, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais em 8% (Capítulo V, 2.1) e em 2 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação da Incapacidades Permanentes em Direito Civil (Cap. II Sa0103) - não é definitiva, já que a A. poderá ser submetida a cirurgia à catarata que ainda apresenta;
24. Todas as demais sequelas e correspondentes incapacidades de que a A. é portadora consolidaram-se definitivamente do ponto de vista médico-legal em 2019;
25. As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão;
26. A A. não necessita de auxílio de terceira pessoa para quaisquer actos;
27. A A. ficou na situação de desempregada à procura de novo emprego desde 15.04.2019;
28. E, ficou reformada por invalidez relativa desde 3 de Fevereiro de 2022;
29. Relativamente ao certificado ..., o montante em dívida ao Banco 1..., em 20.07.2021, era de € 8.628,29, e relativamente ao certificado ..., o montante em dívida à data da participação do sinistro ao Banco 1..., em 20.07.2021, era de € 61.728,47.
Matéria não provada:
Com relevo para a decisão, nenhuns outros factos ficaram demonstrados, nomeadamente não ficou provado que:
- A A. encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade renumerada.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
─ nulidade da sentença por omissão de pronúncia e inconstitucionalidade da sentença;
─ impugnação da matéria de facto;
─ nulidade da cláusula contratual geral inserida nas condições gerais da apólice que faz depender o conceito de invalidez absoluta e definitiva da incapacidade de desenvolver qualquer actividade remunerada;
─ se da matéria de facto provada resultam preenchidos os pressupostos de
depende o preenchimento da cláusula geral das condições gerais do seguro que define o conceito de invalidez absoluta e definitiva.
3.1. Da nulidade da sentença e inconstitucionalidade
Arguiu a apelante a nulidade da sentença recorrida por o Tribunal ter ignorado a aplicabilidade aos presentes autos da bonificação prevista no ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do Decreto-Lei n.º nº 352/2007, de 23 de Outubro.

Nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC, a sentença é nula, designadamente, quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.

Este artigo tem de ser equacionado com o artigo 608.º, n.º 2, CPC, 1.ª parte, CPC, que impõe que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham posto à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Por «questões» entende-se os pedidos deduzidos, toda as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cumpre [ao juiz] conhecer (art.660-2) (Lebre de Freitas, Montalvão Machado, e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2ª edição, pg. 704).

Nas palavras do acórdão do STJ, de 2005.01.13, Oliveira Barros, www.dgsi.pt.jstj, proc. 04B4251,

… a omissão de pronúncia prevenida no art. 668º, nº 1º, al. d) [actual artigo 615.º, n.º 1, alínea d)], diz respeito às questões a que alude o nº 2 do art. 660º [actual artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte]
Trata-se aí do dever de conhecer por forma completa do objecto do processo.
Definido este pelo(s) pedido(s) deduzido(s) e respectiva(s) causa(s) de pedir, terão, por conseguinte, de ser apreciadas todas as pretensões processuais das partes - pedidos, excepções, reconvenção -, e todos os factos em que assentam.
Bem assim deverão ser apreciados os pressupostos processuais desse conhecimento – sejam eles os gerais, sejam os específicos de qualquer acto processual, quando objecto de controvérsia das partes.
Como tudo melhor elucidado, com menção da pertinente doutrina, em Ac.STJ de 11/1/2000, BMJ 493/387-7.

Na síntese do acórdão do STJ, de 2011.02.08, Moreira Alves, www.dgsi.pt.jstj, proc. 842/04.8TBTMR.C1.S1,

Por outro lado, como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do Art.º 668 nº1 d) [actual artigo 615.º, n.º 1, alínea d)] do C.P.C.., daí que, se na sua apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.

Ora, uma das questões que cabia ao Tribunal apreciar era a da quantificação da incapacidade para efeitos da cláusula 3.ª, n.º 2, das condições gerais do contrato de seguro, o que a sentença recorrida fez, como resulta do ponto 21 da matéria de facto provada. A não aplicação da bonificação prevista no ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, não integra, por isso, uma questão para efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC, mas tão só um dos componentes da quantificação da incapacidade, cuja omissão integra erro de julgamento, e não nulidade de sentença.

Termos em que improcede a alegada nulidade da sentença.

Arguiu ainda a apelante a inconstitucionalidade da sentença por violação dos princípios da justa reparação e da igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 59.º, n.º 1, alínea f), e, 13.º, CRP, com o mesmo fundamento: ter o Tribunal ignorado a aplicabilidade aos presentes autos da bonificação prevista no ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do Decreto-Lei n.º nº 352/2007, de 23 de Outubro.
Como se sublinhou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 391/2015, Cura Mariano,
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com caráter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, para que seja validamente suscitada a questão da inconstitucionalidade de uma norma não basta o apelo a normas ou princípios constitucionais, sendo necessária a indicação das concretas razões que justifiquem a sua sindicância em sede constitucional e legitimem a sua desaplicação por inconstitucionalidade.
O que basta para, em necessidade de outros considerandos, julgam improcedente a inconstitucionalidade invocada.
3.2. Da impugnação da matéria de facto
É o seguinte o teor dos pontos da matéria de facto impugnados:
Ponto 25 da matéria de facto provada
As sequelas físicas e psiquiátricas da A. não a impedem de efectuar as tarefas inerentes à sua profissão;
Ponto único da matéria de facto não provada
- A A. encontra-se incapaz de exercer qualquer actividade renumerada.
Pretende a apelante que o ponto 25 da matéria de facto provada seja considerado não provado e que o ponto único da matéria de facto provada seja revertido para provado.
Está em causa a interpretação de um segmento da cláusula 3.ª, n.º 2 das condições gerais do seguro do Ramo Vida, acoplado a dois contratos de mútuo com hipoteca, destinados a garantir o capital seguro em caso de morte ou invalidez absoluta e definitiva da pessoa segura. Segmento este que é do seguinte teor seguinte:
Possuir a Pessoa Segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.
Apreciando:
Na síntese do acórdão do STJ, de 28.09.2023, Manuel Capelo, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 344/18.5T8AVR.P1.S1,
É entendimento pacífico da jurisprudência do STJ que as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado apenas na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova.
No caso concreto, a prova deve incidir sobre a situação concreta da apelante para depois subsumir esses elementos à clausula contratual devidamente interpretada.
Nessa medida, o facto único não provado jamais poderia ser revertido para provado.
Já o ponto 25 da matéria de facto provada, contrariamente ao que possa parecer à primeira vista, não é impeditivo de que se venha a considerar preenchido o segmento da cláusula em apreço e, a final, a conclusão de que a apelante está impedida de angariar proventos para liquidar os empréstimos garantidos pelo seguro contratado com a apelada.
Na verdade, este ponto da matéria de facto não afirma a capacidade da apelante para o exercício da sua profissão, ou outra, como veremos mais adiante, pois o exercício de uma profissão exige muito mais do que a capacidade de executar tarefas inerentes essa profissão. O que importa apurar ─ e será feito no ponto 3.4., ─ é saber se a apelante, nas suas circunstâncias actuais, na sequência da grave doença que a afectou, pode continuar a exercer a sua profissão como anteriormente ou sem prejuízo significativo.
Nessa conformidade e com este alcance, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto relativamente ao ponto 25 da matéria de facto provada e ponto único da matéria de facto não provada.

*
A apelante suscitou a questão da não consideração da bonificação prevista no ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro. Em sede de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), CPC, e de alegada inconstitucionalidade da sentença. Entendemos, porém, que a sede própria para essa consideração é a reapreciação do ponto 21 da matéria de facto provada, que versa precisamente a quantificação da incapacidade de que a apelante ficou a padecer. No fundo, a majoração em causa é um dos componentes da quantificação da incapacidade, incidindo sobre a percentagem que consta do ponto 21 da matéria de facto.
A diversidade de enquadramento jurídico na equação da questão não impede que se convole a arguição de nulidade e inconstitucionalidade da sentença em impugnação do ponto 21 da matéria de facto provada.
É o seguinte o seu teor:
Em virtude da doença, a A. é portadora de sequelas que determinaram uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 68,596% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais
O ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, na versão do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, dispõe o seguinte:
Na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número:
(…)
b) A incapacidade é igualmente corrigida, até ao limite da unidade, mediante a multiplicação pelo factor 1.5, quando a lesão implicar alteração visível do aspecto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afecte, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho; não é cumulável com a alínea anterior; (….).
A apelada, reconhecendo, embora, que a prova pericial é livremente apreciável pelo Tribunal (artigo 389.º CC), entende que não existe razão para preterir o juízo técnico-científico subjacente à perícia. E que, seguindo o raciocínio da apelante, por aplicação do factor de correcção de 1,5, ela estaria afectada de incapacidade superior a 100%.
Apreciando:
Recorre-se à prova pericial quando as questões controvertidas reclamam conhecimentos especias, de natureza técnica, científica ou outra, que transcendem os conhecimentos habituais dos julgadores. É o que resulta do artigo 388.º CC, nos termos do qual a prova pericial tem por objecto au percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser
objecto de inspecção judicial.
A circunstância de a perícia reclamar especiais conhecimentos não implica necessariamente uma adesão acrítica do Juiz, ou não fosse a prova pericial livremente apreciável pelo Tribunal (artigo 389.º CC). Significa, tão só, que o Tribunal só se deve afastar do juízo pericial se ponderosas razões, devidamente justificadas, o impuserem.
A bonificação de 1,5 que aqui se discute não foi considerada na fixação da incapacidade atribuída à apelante, não por se ter entendido que a apelante não cumpria os critérios enunciados no ponto 5, alínea b), das instruções gerais inseridas no anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, mas sim por o Sr. Perito defender que a aplicação do factor de bonificação 1,5 é algo meramente jurídico. Não sem acrescentar que nada obstava a que o mesmo fosse aplicado caso fosse esse o entendimento do Tribunal.

Ora, não sofre contestação que a lesão em causa implica alteração visível do aspecto físico da apelante, pois apresenta acentuado dimorfismo que desfigura gravemente o seu rosto. Tanto que o dano estético foi avaliado em seis numa escala crescente de sete. E também se afigura evidente que essa situação afecta de forma relevante o desempenho do seu posto de trabalho, como decorre dos seguintes pontos da matéria de facto provada:

8. Ficou com o rosto desfigurado;
3. A A. era uma pessoa saudável, alegre, jovial, profissionalmente activa, competente no seu trabalho e de boa aparência;
14. A A., licenciada em contabilidade, trabalhava na empresa “B..., Ld.ª”, como consultora financeira;
15. No exercício dessas funções, elaborava estudos de viabilidade financeira para projectos candidatos a financiamento comunitário e, aprovados os projectos, dava formação aos recursos humanos dos promotores dos projectos, tendo, posteriormente, a responsabilidade de acompanhar e supervisionar os trabalhos realizados pelos promotores para garantir a boa execução dos mesmos;
17. O seu sucesso no desempenho dessas funções decorria da sua formação académica e profissional, equilíbrio psíquico, personalidade e boa aparência física;
18. A doença e os tratamentos a que teve de submeter-se desfiguraram a A. no seu rosto e levaram-na a um afastamento do convívio humano;
19. A A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam;
Este quadro ajuda a compreender a pertinência da bonificação em apreço, pois a dismorfia é um plus que agrava a incapacidade quantificada através dos outros critérios. Uma pessoa com incapacidade para o trabalho de 68,596 % com dismorfia facial grave não está na mesma situação que uma pessoa com incapacidade para o trabalho de 68,596% com aparência normal.

Justifica-se, pois, plenamente a aplicação da bonificação em causa, não constituindo obstáculo que daí resulte ─ como resulta ─ uma incapacidade superior a 100%, pois tal situação foi expressamente contemplada pelo legislador ao estabelecer que a correcção se faz até ao limite da unidade.
Assim, o ponto 21 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
Em virtude da doença, a A. é portadora de sequelas que determinaram uma incapacidade permanente para o trabalho de 100% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais.
3.3. Da nulidade da cláusula contratual geral inserida nas condições gerais da apólice que faz depender o conceito de invalidez absoluta e definitiva da incapacidade de desenvolver qualquer actividade remunerada
Poder-se-ia questionar se, estando estabelecida uma capacidade permanente de 100%, fará sentido exigir cumulativamente o requisito de incapacidade para desenvolver qualquer actividade remunerada. Não deixaremos, no entanto, de enfrentar a questão.
Recorda-se o teor do segmento em causa (sublinhado):
Considera-se existir Invalidez Absoluta e Definitiva quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:
- Possuir a Pessoa Segura/Aderente uma incapacidade funcional irrecuperável superior a 75% (Tabela Nacional de Incapacidades – TNI, em vigor à data do sinistro) com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de uma terceira pessoa;
- Possuir a Pessoa Segura comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada.
Importa interpretar o alcance deste segmento, só sendo de recorrer ao instituto da nulidade se não se lograr uma interpretação que se acomode os princípios cuja violação acarretam a nulidade da cláusula nos termos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, que institui o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, designadamente o princípio da boa fé.
A interpretação das cláusulas contratuais obedece ao disposto nos artigos 10.º e 11.º do Decreto-Lei citado, do teor seguinte:
Artigo 10.º
(Princípio geral)
As cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.
Artigo 11.º
(Cláusulas ambíguas)
1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.
2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
3 - (…).
Aplicam-se, assim, as regras gerais de interpretação do negócio jurídico, consagradas nos artigos 236.º e ss., CC.
O artigo 236.º, n.º 1, CC, acolheu a teoria da impressão do destinatário (concepção objectivista), estabelecendo que o sentido da declaração negocial será «aquele que seja apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, a não ser que este, razoavelmente, não pudesse contar com tal sentido (Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, pg. 223. E será este o normativo aplicável, porquanto nada sabemos quanto à vontade real do declarante.
Como esclarece Vaz Serra, RLJ, 110/42, com particular pertinência para o caso vertente, este comportamento do declarante a que alude o artigo 236.º, n.º 1, CC, não é constituído somente pela textual declaração negocial por ele proferida, mas também pelas circunstâncias, a ele relativas, do caso concreto que, conhecidas ou devendo ser conhecidas pelo declaratário, possam esclarecer o sentido da declaração, sendo exemplos dessas circunstâncias atendíveis os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos do declarante (de linguagem e outros), os usos da prática, em matéria terminológica ou de outra natureza que possa interessar, os modos de conduta por que se prestou observância ao negócio concluído.
O contrato de seguro do ramo vida, celebrado entre apelante e apelada destinou-se a garantir dois contratos de mútuo com hipoteca, constituído sobretudo no interesse da instituição bancária, contraente com o poder negocial de impor a sua celebração como condição da concessão do empréstimo, mas também do mutuário, já que se verificando a morte ou incapacidade definitiva nos termos acordados, o montante em dívida será liquidado pela seguradora.
A pergunta que se impõe é a seguinte: se assim é, fará sentido exigir, para o accionamento do seguro, a “comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer actividade remunerada”, independentemente da sua natureza e do nível remuneratório? Em quaisquer condições, v.g., elevado grau de insalubridade ou outra actividade particularmente penosa para as circunstâncias pessoais?
A resposta não poderá de ser negativa, atendendo aos princípios da boa fé e da proporcionalidade, acolhidos no diploma que regula regime das cláusulas contratuais gerais.
Como se realça no acórdão do STJ, de 02.11.2023, Ana Resende, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 1132/20.4T8PDL.L1.S1.
A densificação do conceito relevante de invalidez absoluta e definitiva, no atendimento da formulação clausulada em contrato de seguro de vida caucionando empréstimo bancário, carece de linearidade, porquanto importa a ponderação de um conjunto de fatores diversificados, conforme a situação a analisar, na necessária consideração casuística, e cuja articulação não pode deixar de levar a concluir que o segurado impossibilitado de trabalhar, ficará de igualmente impossibilitado de solver as obrigações contraídas junto da entidade bancária, cuja a superação constitui a razão última para a celebração do contrato de seguro.
Pertinentes são igualmente as considerações tecidas no acórdão do STJ, de 27.02.2000, Ricardo Costa, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2, não sublinhado no original:
Não existindo uma definição legal, o percurso definidor desse conceito de invalidade permanente tem que considerar as condicionantes aludidas, assumindo natural destaque o interesse (e finalidade racional) do contrato de seguro e o contexto de coligação imposta com os contratos de financiamento. Logo, a nosso ver, não pode deixar de assentar, na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial. Depois, implica esse trilho precisar que esse estado deficitário, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), teve consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro. Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na “capacidade de ganho” do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro.
É relevante a invalidez, por isso, que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentadas no momento pré-sinistro. De facto, nela se encontram os requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro. Já não será assim, por exemplo, quando o sinistro provoca uma incapacidade elevada para o trabalho mas a subsequente reconversão profissional para outras tarefas na mesma entidade patronal não conduz a alteração remuneratória.
Atente-se na situação da apelante supra descrita e que aqui reiteramos por comodidade de exposição:
8. Ficou com o rosto desfigurado;
3. A A. era uma pessoa saudável, alegre, jovial, profissionalmente activa, competente no seu trabalho e de boa aparência;
14. A A., licenciada em contabilidade, trabalhava na empresa “B..., Ld.ª”, como consultora financeira;
15. No exercício dessas funções, elaborava estudos de viabilidade financeira para projectos candidatos a financiamento comunitário e, aprovados os projectos, dava formação aos recursos humanos dos promotores dos projectos, tendo, posteriormente, a responsabilidade de acompanhar e supervisionar os trabalhos realizados pelos promotores para garantir a boa execução dos mesmos;
17. O seu sucesso no desempenho dessas funções decorria da sua formação académica e profissional, equilíbrio psíquico, personalidade e boa aparência física;
18. A doença e os tratamentos a que teve de submeter-se desfiguraram a A. no seu rosto e levaram-na a um afastamento do convívio humano;
19. A A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam;
Face ao dramático quadro da apelante, não se vislumbra que actividade remunerada possa ela exercer, visto tratar-se de profissional diferenciada, com elevada qualificação, que implica necessariamente contacto com o público, sejam clientes, colegas, entidade patronal. É uma actividade exigente, que não pode ser compartimentada, em termos de a apelante exercer as tarefas que não impliquem contacto humano (que, aliás, não é fácil indicar quais sejam). Num mercado de trabalho tão exigente e competitivo, não se vê que entidade patronal esteja disposta a contratar uma trabalhadora com mais de 50 anos ─ a idade é um factor altamente limitativo ─ que apenas pode executar uma parte da sua habitual actividade, o que implicaria a contratação de outro trabalhador para colmatar as tarefas que a apelante não possa executar ou sobrecarregar os colegas de trabalho. Recorda-se que, entre as tarefas que a apelante executava, encontrava-se o acompanhamento e supervisão dos projectos.
E, admitindo que a apelante conseguisse uma colocação, coloca-se a questão da remuneração, factor especialmente relevante, atendendo à finalidade do seguro: que nível remuneratório conseguiria? Seria suficiente para cobrir as prestações do mútuo?
Ora, para escapar a um juízo de nulidade por força da aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, o segmento da cláusula em apreço no recurso tem de ser interpretado no sentido da incapacidade de exercer actividade remuneratória compatível com o seu estatuto laboral e nível remuneratório. Sob pena de esvaziamento da cláusula e o segurado estar a pagar um seguro que dificilmente poderá ser accionado.
A este propósito afigura-se pertinente convocar o acórdão do STJ, de 10.02.2022, Abrantes Geraldes, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 1681/18.4T8VFR.P1.S1, que tem a particularidade de incidir sobre a situação da apelante, no âmbito de um outro contrato, da mesma natureza, celebrado com a apelada, com uma cláusula homóloga mais benigna ou menos gravosa para a segurada: Uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
A matéria de facto provada é mais ou menos idêntica, com a diferença que o ponto da matéria de facto provada correspondente ao nosso ponto 25, ali assumiu o n.º 24 e a seguinte redacção: A A. está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público.
Ponderou-se neste acórdão o seguinte:
4. Na jurisprudência deste Supremo a apreciação dos requisitos do acionamento de contratos de seguro em situações de incapacidade resultante de estados de invalidez não é unívoca.
Contudo, para além de a redação dos clausulados contratuais divergirem na definição das condições que são necessárias para acionar cada um dos contratos de seguro apreciados nos arestos, também existe uma variação das coberturas que são invocadas, pois nuns casos está em causa a verificação de uma situação de incapacidade absoluta e definitiva e noutros, como no caso concreto, a situação de invalidez total e permanente.
Ora, ainda que possam parecer semelhantes os dois conceitos, cláusulas como esta destinam-se a cobrir realidades diversas, como se comprova também no caso concreto.
Na verdade, segundo o ponto 2. do art. 3º referente às Coberturas da apólice, a situação de incapacidade absoluta e definitiva, mais grave, é prevista como cobertura obrigatória e sujeita a um diverso condicionalismo:
Incapacidade funcional e irrecuperável igual ou superior a 75%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa”,
em cumulação com a
Comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada”.
Já no caso concreto está em causa uma cobertura complementar referente a incapacidade total e permanente que foi contratada facultativamente, sujeita a um diverso condicionalismo que não exige o estado de gravidade previsto para a primeira cobertura.
Após citar vária jurisprudência, continua aquele acórdão:
Uma cláusula de um contrato de seguro que, como a que estamos observando, se destina a cobrir situações de incapacidade que podem afetar segurados com diversos níveis de instrução, com diversas profissões ou com diversas aptidões não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sempre sob a perspetiva de um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º e 238º do CC e em função das regras da boa fé.
De outro modo, levando ao extremo uma interpretação literal do conceito de invalidez total e permanente previsto na al. A) do ponto 7. do art. 3º do contrato (“uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”), neste e na generalidade dos casos semelhantes, sempre se poderia concluir que qualquer sinistrado estaria apto a exercer alguma atividade, a não ser em casos muito limitados que se caracterizassem pela incapacidade absoluta decorrente de uma situação de paraplegia ou de outra sequela altamente incapacitante da mobilidade ou da utilização dos sentidos.
No caso concreto, ressalta, quanto à concreta segurada, a especificidade quer da atividade que exercia, quer das qualidades profissionais e pessoais que lhe eram exigidas e são exigíveis para o desempenho da mesma atividade, a par da gravidade das sequelas que já foram enunciadas em que, entre outros aspetos, se evidencia a dismorfia facial, com um relevo estético de grau 6 numa escala de 1 a 7, e cujos resultados são bem visíveis quando se comparam as fotografias correspondentes aos docs. nºs 10 e 11 juntos com a petição inicial.
É de notar ainda a habilitação específica que a A. detém, não apenas para ... numa área muito especializada, como também para ..., tudo associado à sua realização pessoal e profissional, o que esteve seguramente na base da sua contratação pela sociedade para quem trabalha, foi gravemente perturbada por um sinistro de todo imprevisto.
Em cada um dos referidos aspetos, que não podem ser facilmente separados, exercem uma forte influência negativa não apenas as sequelas físicas incapacitantes, como as de ordem estética muito graves e, não menos importantes, os efeitos de ordem psicológica que a situação criou na A. e que seguramente tenderão a agravar-se com uma solução que lhe recuse o acionamento do seguro, forçando-a a buscar uma outra atividade profissional ou a exigir da sua entidade patronal a atribuição de outras funções não ajustadas às suas reais aptidões profissionais.
Como é óbvio, num caso como este não se justifica exigir que a A. reconverta a sua atividade para uma qualquer outra indiferenciada. Por outro lado, para além de recusar a atribuição do capital garantido, a R. Seguradora não fez qualquer esforço no sentido de identificar alguma atividade alternativa que fosse exigível à A. neste quadro dramático para dar seguimento ao que emerge de um dos ponto da matéria de facto, ou seja, que a A. continua “apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público”. Acresce ainda que se apurou que, por causa da sua situação, “a A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam”.
Na linha do último acórdão do STJ, podemos concluir que a cláusula de um contrato de seguro do Ramo Vida, segundo a qual se verifica a invalidez absoluta e definitiva quando se verifique comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada, contempla a situação em que segurada apresenta uma Incapacidade Permanente para o Trabalho de 100%, determinada por uma doença do foro oncológico de que resultou acentuado desfiguramento do rosto (dismorfia facial) e uma efectiva incapacidade para exercer a sua actividade profissional, com forte vertente interpessoal.
Em síntese: interpretando o segmento da cláusula em apreço de acordo com o interesse subjacente à contratação do seguro, a situação da apelante preenche o conceito de invalidez absoluta e permanente.
Termos em que procede a apelação,
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, condenando a apelada pagar à apelante a quantia de € 70.356,76, acrescida de juros legais vincendos até efectivo e integral pagamento;
Custas pela apelante (artigo 527.º CPC).

Porto, 19 de Novembro de 2024
Márcia Portela
Anabela Miranda
Anabela Dias da Silva