NULIDADE DE SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário

(art.º 663º, n.º 7, do CPC):
I. A nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1 al. b), do CPC, abrange apenas a absoluta falta de fundamentação da decisão e não a fundamentação alegadamente errada, incompleta ou insuficiente.
II. A entrega ou tradição da coisa legitimadora do direito de retenção consagrado no art.º 755º, n.º 1, al. d), do CC, importa uma detenção lícita da coisa objecto do contrato promessa por parte de quem o pretende exercer, não sendo necessária, para tal, a posse,
III. Em tal tradição, o promitente adquirente deve passar a ter uma relação material com a coisa, revelada em actos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo que tem sobre a mesma, que fica na sua disponibilidade, renunciando, simultaneamente, o promitente vendedor do poder que tinha sobre ela.
IV. O direito de retenção protege o promitente-comprador fiel, ainda que este não seja consumidor, perante o incumprimento culposo do promitente-vendedor, não havendo fundamento para a aplicação da jurisprudência uniformizada no AUJ n.º 4/2014, que contempla os casos especiais em que o incumprimento resulta de uma opção lícita do administrador de insolvência.

Texto Integral

I.
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa instaurada por A …, SA., contra B … e C …, onde o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº. …/… - ES, da Freguesia de …, foi penhorado, tendo tal sido registado a 22-10-2021, D … deduziu o presente incidente de reclamação de créditos, pedindo que se reconheça que é titular, sobre os executados, de um crédito no valor de € 150.000,00, em relação ao qual tem direito de retenção sobre o imóvel penhorado no processo principal.
Em síntese, alega que:
- celebrou, com os executados/reclamados, contrato promessa de compra e venda do imóvel penhorado, tendo-lhes entregue sinal;
- os executados/reclamados deram-lhe a posse e as chaves do imóvel, que passou a utilizar e usufruir, constituindo a sua residência fixa e permanente, tendo celebrado com as entidades públicas e privadas contratos de fornecimento de água, eletricidade, gás, telefone e serviços de internet;
- os executados/reclamados não compareceram para outorga da escritura pública de compra e venda e não tinham consigo os documentos necessários à celebração da mesma, inviabilizando o negócio;
- a recusa dos executados/reclamados equivale a incumprimento definitivo do aludido contrato promessa, tendo, por isso, o direito a ser indemnizada em valor correspondente ao dobro do sinal entregue, ou seja, € 150.000,00.
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Por requerimento junto a 28-01-2022 E …, S.A., reclamou um crédito sobre os executados/reclamados, objecto da execução n.º …/…, que corre termos no Juízo de Execução de Lisboa – Juiz …, alegando que o mesmo está garantido pela penhora aí realizada e registada a 22-10-2021.
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A exequente, A …, SA., a 14-02-2022, apresentou contestação onde pugnou pela não verificação do direito de retenção e pela improcedência da reclamação deduzida por D ….
Alegou, em síntese, que:
- o contrato promessa de compra e venda e respetivos aditamentos invocados pela reclamante referida carecem de validade, por não ter reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes e certificação pelo notário da existência da respetiva licença de utilização ou de construção;
- o contrato promessa tem natureza meramente obrigacional, não podendo ser oposto a terceiros;
- não existe incumprimento definitivo por partes dos promitentes vendedores;
- a credora reclamante não comprovou o pagamento do sinal;
- a credora reclamante não faz prova suficiente de que frui e usufrui da fracção de modo a que ocorra a tradição do bem penhorado;
- o direito de retenção invocado não existe.
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A 01-03-2022, a reclamante D … respondeu reiterando o alegado e peticionado no requerimento inicial.
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A 12-02-2023, foi proferida decisão onde, além do mais, se declarou o crédito reclamado por E …, S.A., verificado e reconhecido e que o mesmo está garantido por penhora registada em 22-10-2021, realizada no âmbito da execução …/…, que corre termos no Juízo de Execução de Lisboa – Juiz ….
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Na sequência da realização, a 19-09-2023, da audiência final, a 17-11-2023 foi proferida sentença onde, além do mais que não releva para a economia da presente decisão, se decidiu nos seguintes termos:
1) Julgou-se reconhecido o crédito reclamado por D …;
2) Determinou-se que os créditos reclamados e o exequendo seriam pagos da seguinte forma, no que respeita ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº. …/… - ES, da Freguesia de …, penhorado no processo principal:
a) em primeiro lugar, o crédito reclamado por D …;
b) em segundo lugar, o crédito do exequente banco A …, S.A.;
c) em terceiro lugar, o crédito reclamado pela E …, S.A..
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Inconformada, a exequente/reclamada, A …, SA., a 08-01-2024, interpôs recurso da decisão mencionada, que culminou com as seguintes conclusões (transcrição):
A) Vem o presente recurso interposto da sentença proferida, notificada à ora Recorrente em 21/11/2023, a qual reconheceu o crédito reclamado garantido por direito de retenção da Credora D ….
B) E, em consequência, graduou o seu crédito em primeiro lugar, pelo produto da venda do imóvel penhorado nos autos principais, prédio urbano destinado a habitação, com a arrecadação nº … e espaço de estacionamento fechado nº …, sito na Rua Comandante …, Lote …/…, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo … da Freguesia de …, Concelho de Lisboa e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número ….
C) O ora Recorrente não se conforma com o teor da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, considerando que a decisão ora recorrida não acolhe devidamente a especificada matéria e o âmbito jurídico da mesma, sendo certo que enferma de erro de julgamento manifesto resultante quer da qualificação jurídica dos factos, quer da desconsideração por parte do M. Juiz de factos que, por si só, implicariam necessariamente decisão diversa da proferida, conforme infra melhor se demonstrará.
D) Sobre o direito de retenção dispõe o artigo 754.º do CC que “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
E) Estatui o artigo. 755 nº. 1, al. f) do CC que goza do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º do CC”.
F) Os requisitos acima enunciados têm caráter cumulativo, sendo que na ausência do preenchimento de um dos requisitos, não se verifica o direito de retenção.
G) No caso sub judice, não se verifica nem a existência do crédito nem da tradição da coisa, pelo que, não estão preenchidos os requisitos para a existência do direito de retenção.
H) Em primeiro lugar, quanto aos factos provados 11. e 12., respeitante ao pagamento do montante global € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento, bastaria uma análise rigorosa e criteriosa à prova documental – cópia dos cheques – para rapidamente concluir o seguinte:
iii) O cheque de € 50.000,00 não é titulado pela Credora Reclamante mas sim por uma sociedade;
iv) O cheque de € 25.000,00 é titulado por um terceiro e nem está passado à ordem dos promitentes vendedores e Executados;
I) Face à cabal prova documental junta aos autos, no que respeita à inexistência do pagamento não se compreende como pode o Tribunal a quo, concluir que o valor constante dos cheques, foi pago a título de sinal e princípio de pagamento do contrato-promessa de compra e venda do imóvel penhorado nos autos.
J) Note-se que, não se põe em causa, que os cheques juntos aos autos tiveram na base de um pagamento.
K) Contudo, dos mesmos não se pode concluir que, ambos foram emitidos à ordem dos Executados/ Promitentes – Vendedores e a que título foram emitidos, nomeadamente, se foram imputados ao pagamento do sinal e reforço do mesmo.
L) Acresce que, também não se compreende, como pode o Tribunal a quo, formar a sua convicção do pagamento do sinal e reforço do pagamento, atentas as evidências ora expostas nas cópias dos cheques, com base nas declarações da testemunha, Sr. H …, quando este apenas declara que esteve presente na celebração do alegado contrato.
M) Em momento algum, justificou o motivo pelo qual os cheques não eram titulados pela Credora e por que razão não estavam ambos os cheques à ordem dos Executados/Promitentes-Vendedores.
N) Termos em que, nunca o Tribunal a quo, poderia ter dado como provado o pagamento de € 75.000,00, a título de sinal, sem fundamentar a razão pela qual os cheques não eram titulados pela Credora nem se encontravam ambos emitidos à ordem dos Exequentes.
O) Por outro lado, quanto à tradição do imóvel, facto dado como provado no ponto 13. e 14. da sentença recorrida, mais uma vez, o Tribunal a quo, com o devido respeito, baseou-se numa análise superficial e pouco rigorosa dos dados e provas que se encontravam juntos aos autos.
P) Quanto a esta temática, tem sido unanimemente entendido na Jurisprudência que, a tradição exigida para que se constitua o direito de retenção, nos termos do artigo 755.º, n.º 1. al. f) do Código Civil, é a detenção material licita da coisa (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo N.º 1012/15.5T8VRL-AW.G1, de 16-05-2019, disponível em www.dgsi.pt).
Q) E, conforme se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/02/2016, disponível em www.dgsi.pt, a traditio configura-se como o poder de facto sobre a coisa que o promitente vendedor conferiu ao promitente-comprador, passando este a ter uma relação material com a coisa, revelada em atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo que tem sobre a mesma, que fica na sua disponibilidade, renunciando, simultaneamente, o promitente-vendedor do poder que tinha sobre ela.
R) Ora, conforme invocado pela Recorrente, em sede de impugnação dos créditos, a aqui Credora não logrou provar a sua fruição e gozo, através de atos materiais que demonstrem a sua relação com o bem imóvel, i.e, faturas-recibo de despesas de água, eletricidade, IMI, televisão, internet, atualizados à data da reclamação de créditos.
S) Veja-se que, a Credora, apenas juntou aos autos, comprovativos de faturas referentes ao ano de 2012 e uma fatura de água relativamente a três meses do ano 2021.
T) Mas mais, o douto Tribunal a quo, não se podia olvidar do facto de inclusive – facto notório relevante para a boa decisão da causa – a carta remetida para a morada do imóvel objeto do alegado contrato-promessa, ter vindo devolvida em 04/10/2023, com a indicação “objeto não reclamado, conforme consta da plataforma Citius, com a Ref.ª ….
U) Este facto, por si só, deveria ter sido tomado em consideração pelo douto Tribunal a quo, sendo um indício crucial em como a Credora Reclamante não habita o imóvel em questão.
V) Além disso, bastaria o Tribunal a quo, oficiosamente, ter requerido a tomada de declarações por parte da Sra. Agente de Execução, para concluir que, a Credora Reclamante não habita no imóvel, sendo este ocupado por terceiro.
W) Tome-se em consideração que, o fiel depositário do imóvel, não era a Credora Reclamante, mas sim o Sr. F …, conforme consta do requerimento da Sra. Agente de Execução, datado de 22/03/2023, com a Ref.ª Citius ….
X) Pela Sra. Agente de Execução, é ainda referido nesse mesmo requerimento que “Encontravam-se ainda a habitar o imóvel, mais duas pessoas, estudantes, segundo informação dada à signatária na altura, que ocupavam, cada um, o seu quarto, no imóvel, tendo sido necessário, solicitar que desocupassem os quartos para se poder fotografar os mesmos.
Y) O que comprova que este imóvel está a ser ocupado a título de locação, destinando-se o mesmo a fins lucrativos e não para habitação própria e permanente da Credora.
Z) Aliás, o próprio Tribunal a quo, deu como facto não provado, que a credora reclamante nenhuma prova apresentou de que celebrou contratos de fornecimento de telefone e serviços de internet.
AA) O acórdão uniformizador nº 4/2019, veio a adotar “um conceito restrito de “consumidor” que incorpore as notas tipológicas consagradas no art.º 2º, nº 1 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31/07).
BB) Dispõe o art.º 2.º, nº 1, deste diploma, ‘’Considera-se consumidor todo aquele e a quem, sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”. (sublinhados nossos).
CC) Concluindo-se que, na esteira deste Acórdão, goza de direito de retenção, o promitente-comprador que destine o bem a uso particular, i.e., maioritariamente para habitação própria e permanente.
DD) Como refere Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias (Almedina, 2015, 2ª edição-pág. 376) o artigo 755º, nº 1, f), do Código Civil é “...materialmente uma norma de tutela do consumidor” e que “...embora a letra da lei não faça essa precisão, o recurso aos outros elementos hermenêuticos permite reconstruir a ratio - que é, claro, o aspeto decisivo - e restringir, nessa medida, o alcance da norma: o direito de retenção do art.º 755º n. º 1, al. f) só beneficia o consumidor”.
EE) Sendo inequívoco que a celebração do alegado contrato-promessa alegado pela Credora teria como finalidade o seu uso profissional (venda, revenda e arrendamento) e não pessoal.
FF) Pelo que, por esse mesmo motivo, a Recorrente nunca deteria os bens, para efeitos da traditio.
GG) Termos em que, entende o Recorrente, que não resulta provado o pagamento do sinal e reforço do alegado contrato, o que determina a inexistência do pagamento e o direito ao sinal em dobro, nos termos do artigo 442.º do CC.
HH) E, por outro lado, além da inexistência do crédito, não se verifica a existência de direito de retenção, quer seja pela ausência da traditio e/ou a ausência da qualidade de consumidor da Credora.
II) Termos em que, com devido respeito, que é muito, a fundamentação da sentença não é assim suficiente à luz da produção de toda a prova junto dos autos.
JJ) A falta de fundamentação gera a nulidade da sentença conforme o art.º 615º nº 1 al. b) do CPC.
KK) A sentença não fundamenta as razões de facto e de direito.
LL) A douta sentença a quo, violou assim as normas citadas nestas alegações, sendo nula.
MM) Devendo a sentença recorrida ser revogada e em consequência determinar-se o não reconhecimento do crédito e do direito de retenção sobre a quantia que a Reclamante alega ter pago.
No termo da peça processual em referência conclui-se pela procedência do recurso e pela revogação da sentença impugnada, declarando-se a mesma nula e a não existência do crédito reclamado bem como a não existência do direito de retenção alegados pela reclamante D ….
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Não foi apresentada resposta.
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A 01-07-2024, o recurso foi admitido, como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo (sem cumprimento do disposto no art.º 617º, n.º 1, do CPC), o que não foi alterado neste Tribunal,
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II.
1.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635º, n.º 4, 636º e 639º, n.º 1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art.º 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, no caso, atendendo às conclusões transcritas, a intervenção deste Tribunal de recurso é circunscrita às seguintes questões, considerando a sua dependência:
1) Nulidade da decisão impugnada prevista no art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC;
2) Impugnação da decisão da matéria de facto: saber se o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e valoração da prova constante dos autos quanto aos pontos da matéria de facto que o recorrente refere;
3)Saber se existe, ou não, fundamento para o reconhecimento do direito de crédito e direito de retenção invocados pela reclamante D ….
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2.
Afere-se da decisão impugnada que nela foram tidos como provados os seguintes factos:
1. O exequente intentou ação executiva para pagamento de quantia certa contra os executados/reclamados, no valor de € 310.280,54, munido de “Contrato de compra e venda e empréstimo com hipoteca”, celebrado em 9.04.2001.
2. No processo de execução, foi penhorado o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa , sob o nº. …/… - ES, da Freguesia de … (auto de penhora do processo de execução e certidão do registo predial).
3. Atento o constante do registo predial, a penhora dos autos a que este processo está apenso foi registada em 1.02.2011 e a da reclamante E …, S.A. foi registada em 22.10.2021.
4. Consta do registo predial hipoteca em favor do exequente, registada em 20.03.2001.
5. A reclamante D …, como “promitente compradora” celebrou, em 3.06. 2011, com os executados B … e C …, como “promitentes vendedores”, o “Contrato promessa de compra e venda”, pelo qual estes declararam que “prometem vender” e a reclamante declarou que “prometer comprar” o prédio urbano destinado a habitação, com a arrecadação nº … e espaço de estacionamento fechado nº …, sito na Rua …, Lote …./…/…, inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo … da Freguesia de …, Concelho de Lisboa e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … (documento que se dá por integralmente reproduzido).
6. A reclamante e os executados, em 4.06.2011 e em 28.06.2011, celebraram dois aditamentos ao referido contrato, designados, respetivamente, "Aditamento ao contrato promessa de compra e venda " e "Aditamento 2 ao contrato promessa de compra e venda" (documentos que se dão por integralmente reproduzidos). 7
7. No "Aditamento ao contrato promessa de compra e venda" consta que “o preço global acordado para a venda é de € 425.0000 quatrocentos e vinte e cinco mi euros” (Cláusula Quinta).
8. No "Aditamento 2 ao contrato promessa de compra e venda" os executados declaram que no dia 28 de junho de 2011 "entregam a posse e as chaves do imóvel à Segunda Contraente", a ora reclamante (Cláusula Sexta nº. 2).
9. No "Aditamento 2 ao contrato promessa de compra e venda" consta que “na data da assinatura deste contrato será entregue a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de sinal e princípio de pagamento do preço”, que “na data da entrega das chaves do imóvel (…) será entregue a quantia de e 25.000,00 (vinte e cinco mil euros)” e que “a parte restante do preço , ou seja, € 350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros) será paga no ato da celebração da escritura de compra e venda”(Cláusula Quinta, als. a), b) e c)).
10. Do contrato promessa e dos seus aditamentos consta “As partes declaram que prescindem do reconhecimento notarial previsto no artigo 410 n.º 3 do Código Civil e nenhuma poderá alegar a falta desta formalidade para não cumprir o aditamento que estão a celebrar”.
11. A reclamante entregou aos ora executados, aquando da celebração do contrato promessa, em 3.06.2011, a quantia de € 50.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento.
12. Os promitentes vendedores (executados) entregaram as chaves e o referido prédio à promitente compradora, em 28.06.2011, contra a entrega de € 25.000,00 a título de reforço do sinal.
13. Deste modo, a reclamante, com o consentimento das contra partes, que lhe entregaram o imóvel, e todas as suas chaves, desde o dia 28 de junho de 2011, passou residir no mesmo.
14. A reclamante celebrou com as competentes entidades contratos de fornecimentos de eletricidade, água e gás relativos ao imóvel.
15. Na data acordada para a outorga da escritura pública de compra e venda, no dia 28.12.2011, os promitentes-vendedores (executados) não compareceram, embora previamente e devidamente notificados, pela ora Reclamante, no Cartório Notarial de G …, sito na Alameda …, Rotunda …, nº …-…, Zona Norte do Parque das Nações, Moscavide-Loures.
16. Do instrumento redigido pelo cartório notarial em 28.12.2011 consta que que " verificou-se a falta de comparência dos outorgantes C … e marido B …, pelo que não se realizou a escritura acima mencionada” (documento que se dá por integralmente reproduzido).
17. Embora tendo comparecido, à marcação agendada para o dia 4.09.2012, os referidos promitentes vendedores, ora executados não tinham consigo e/ou enviado, previamente, ao referido Cartório Notarial os documentos do banco A …, S.A. referentes ao distrate da hipoteca em favor deste.
18. Do instrumento redigido pelo cartório notarial em 1.09.2012 consta que " não se realizou a escritura acima mencionada, por não estarem reunidas as condições necessárias, designadamente, não se encontrava presente o representante do Banco A …, S.A. na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, nem foram mencionados termos de cancelamentos exibidos pelos promitentes compradores." (documento que se dá por integralmente reproduzido).
19. Nada data marcada para o dia 23.10.2013, os promitentes vendedores, ora executados, não compareceram.
20. Do certificado redigido pelo cartório notarial em 23.10.2013 consta que "não se encontrando os vendedores presentes no Cartório à hora marcada nem nos quarenta e cinco minutos posteriores, pelo que a escritura não foi celebrada por falta de comparência destes” (documento que se dá por integralmente reproduzido).
21. O crédito da reclamante E …, S.A. está garantido pela penhora registada em 22.10.2021, na execução com o nº. …/…, que corre termos no Juízo de Execução de Lisboa – Juiz … (certidão do registo predial).
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Na mesma decisão, foi dada como não provada a seguinte factualidade:
a) A credora reclamante celebrou com as competentes entidades contratos de fornecimento de telefone e serviços de internet.
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2.
- Nulidade da decisão impugnada prevista no art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC.
A sentença – e, por força do disposto no art.º 613º, n.º 3, do CPC, os despachos judiciais – pode padecer de duas causas distintas de vícios: por conter erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, tendo, como consequência, a sua revogação pelo tribunal superior; por sofrer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o decisor ter ficado aquém ou ter ido além do que lhe cabia decidir (thema decidendum), sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art.º 615º do CPC. Nas primeiras situações referidas, ocorrem vícios do acto de julgamento; nas segundas situações mencionadas, verificam-se vícios formais, externos ao acto de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites.
Uma das causas de nulidade da sentença ocorre quando nela não se especifiquem os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão (art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC).
De acordo com o disposto no art.º 607º, n.ºs 2 e 3, do CPC, que define as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença, esta “começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos de facto”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O art.º 607º, n.º  4, do CPC, determina que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Por fim, no art.º 607º, n.º  5, do CPC, refere-se que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Por força do disposto no art.º 154º do CPC, as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido são sempre fundamentadas, em concretização do determinado no art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O dever de fundamentação referido tem por finalidade “impor ao juiz a verificação e controlo crítico da lógica da decisão e permitir às partes o recurso desta com perfeito conhecimento da situação e colocar a instância de recurso em posição de exprimir, com maior certeza, um juízo concordante ou divergente” (ac. STJ de 05-03-2015, processo n.º  7331/10.0TBOER.L1.S1; ac. TRL de 21-03-2024, processo n.º  1019/23.9T8ALM-B.L1-2, ambos acessíveis em dgsi.pt).
A nulidade em referência abrange apenas a absoluta falta de fundamentação da decisão e não a fundamentação alegadamente errada, incompleta ou insuficiente (cf., no mesmo sentido, a título de exemplo o Ac. STJ de 03-03-2021, processo n.º  3157/17.8T8VFX.L1.S1, acessível em dgsi.pt. Veja-se, também: Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, 3ª ed., 2024, Livraria Almedina, p. 793, nota 10; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 221; Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332);
A falta absoluta de fundamentação pode respeitar apenas aos fundamentos de facto da decisão ou apenas aos seus fundamentos de direito (cf. o ac. STJ de 15-05-2019, processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1, acessível em dgsi.pt), além de poder incidir sobre ambos.
Como assumido no ac. TRL de 07-12-2021 (processo n.º 8513/09.2YYLSB-B.L2-7, acessível em dgsi.pt), integra a falta de fundamentação, geradora da nulidade da decisão, “a situação de ausência de fundamentação de facto, por falta de especificação dos factos provados e não provados, bem como por omissão de qualquer apreciação crítica da aprova produzida, e sua subsunção ao direito aplicado, impedindo, assim, a sua sindicância”.
A recorrente invoca que a sentença objecto do presente recurso padece da nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC, por não especificar os seus fundamentos de facto e de direito.
Da decisão em referência alcança-se, sob o item II, o elenco dos factos tidos como provados e não provado, a motivação de tal, com enunciação dos meios de prova ponderados e sentido em que foram valorados.
Na mesma decisão também se encontram, sob o item III, os fundamentos jurídicos do dispositivo, com expressa enunciação do raciocínio lógico que conduziu a este último.
Do que acaba de se referir resulta que a decisão em análise contém a referência e explicitação dos seus fundamentos de facto e de direito, sendo os mesmos apreensíveis pelas partes.
Entende-se, pelo exposto, que a decisão em referência não padece de absoluta falta de fundamentação e, por isso, que a nulidade prevista no art.º 615º, n.º 1, al. b), do CPC, não ocorre.
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3.
- Impugnação da decisão da matéria de facto: saber se o Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação e valoração da prova constante dos autos quanto aos pontos da matéria de facto que o recorrente refere.
Sobre a modificabilidade da decisão de facto pela Relação, refere-se, no acórdão do TRG de 09-11-2023, processo n.º 2984/22.9T8GMR.G1 (acessível em dgsi.pt), nos termos seguintes:
“Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º  4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º  2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º  1 e 376.º, n.º  1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º  2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º  1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
(…)
Lê-se no n.º  2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O atual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.º s 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua atuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos fatores de imediação e da oralidade.
Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art.º 607.º, n.º  5) ou da aquisição processual (art.º 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efetiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º  44, págs. 29 e segs.).
(…)
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º  329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º  1, do CPC, que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º  2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º  1, do art.º 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º  1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.º s 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º  3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a «censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não» possa «assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).
De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo o recorrente observado o disposto no art.º 640º, n.º 1, do CPC, importa referir que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como referido no acórdão do TRG de 07-12-2023 (processo n.º 573/20.1T8CHV.G1, acessível em dgsi.pt) o “nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no art.º 607º, n.º 4, do CPC que, por imposição constitucional (art.º 205º, n.º 1, da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão”.
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Os pontos da matéria de facto que a recorrente impugna e identifica nas conclusões do recurso são os seguintes:
11. A reclamante entregou aos ora executados, aquando da celebração do contrato promessa, em 3.06.2011, a quantia de € 50.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento.
12. Os promitentes vendedores (executados) entregaram as chaves e o referido prédio à promitente compradora, em 28.06.2011, contra a entrega de € 25.000,00 a título de reforço do sinal.
13. Deste modo, a reclamante, com o consentimento das contra partes, que lhe entregaram o imóvel, e todas as suas chaves, desde o dia 28 de junho de 2011, passou residir no mesmo.
14. A reclamante celebrou com as competentes entidades contratos de fornecimentos de eletricidade, água e gás relativos ao imóvel.
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Passando ao conhecimento da impugnação da matéria de facto atinente aos factos constantes dos pontos 11 e 12.
Na decisão impugnada, refere-se, a propósito da matéria de facto mencionada, que, no juízo de prova, tiveram-se em consideração as cópias dos cheques juntas pela credora, conjugadas com as declarações das testemunhas H … e I …, da mediadora imobiliária …-…, que tratou do contrato promessa, sendo que a   primeira testemunha (H …) referiu ter assistido à entrega do cheque de € 25.000,00 de reforço do sinal.
Alega a recorrente, no que respeita aos dois cheques mencionados na decisão impugnada, que um deles é titulado por uma sociedade e outro também é titulado por um terceiro e não está emitido à ordem dos promitentes vendedores e executados, o que evidencia a inexistência dos pagamentos dos valores referidos no pontos da matéria de facto acima identificados ou, pelo menos, que os mesmos cheques não foram emitidos à ordem dos executados nem a que título, designadamente, se para pagamento do sinal e do seu reforço.
Mais alega a recorrente que o depoimento da testemunha H …, que referiu que esteve presente na celebração do alegado contrato, não pode servir para fundar o juízo de demonstração da matéria em referência.
Atentando nos dois documentos invocados na decisão impugnada, juntos com a petição inicial, constata-se que um dos cheques, com o valor de € 50.000,00, respeita a conta titulada na J …, SA., por C. Med. Estom. Dra. D …, e nele consta a data de 03-06-2011 e o executado, B … como seu beneficiário.
Também se afere que outro dos cheques, com o valor de € 25 000,00, respeita a conta titulada na J …, SA., por L … e nele consta a data de 28-06-2011, encontrando-se por preencher no que respeita à identificação do seu beneficiário.
Procedeu-se à audição integral dos depoimentos tomados na audiência final, realizada a 19-09-2023, que se reconduzem aos prestados pelas duas testemunhas mencionadas.
Tal como referido na decisão impugnada, a testemunha H … referiu que, na qualidade de colaborador da mediadora imobiliária …-… (assumiu ser seu gerente), assistiu à entrega do cheque no montante de € 25.000,00 a título de reforço do sinal anteriormente pago pela reclamante D …, no valor de € 50.000,00.
A mesma testemunha referiu que, na data da entrega do aludido cheque no montante de € 25.000,00, a reclamante D … recebeu as chaves do imóvel prometido vender da promitente vendedora, que apelidou de C ….
Questionada a propósito do titular da conta a que respeita o cheque no montante de € 25.000,00 acima mencionado, L …, a testemunha referiu que, na data da sua entrega pela reclamante aos promitentes vendedores, o mesmo era companheiro daquela.
A testemunha também afirmou que, desde a entrega das chaves do imóvel à reclamante, passou a ver a mesma todas as semanas a sair do prédio onde o imóvel prometido comprar e vender se situa e a dirigir-se, ao início da manhã, para o estabelecimento de café situado próximo, que também frequenta, tendo esclarecido que o aludido prédio se situa ao lado das instalações da sociedade mediadora imobiliária para a qual labora (é gerente).
O teor dos acordos celebrados entre a reclamante D … e os executados, referidos nos pontos 5 a 10, não questionados pela recorrente, e o teor dos dois documentos acima mencionados, atinentes aos cheques mencionados, conjugados com o depoimento da testemunha H … apontam, face a critérios de normalidade, para que tais cheques tenham sido entregues aos promitentes vendedores, por parte da reclamante, para pagamento dos valores referidos nos acordos mencionados.
Na verdade, constata-se a correspondência entre os valores fixados nos acordos e os valores dos cheques mencionados, sendo as datas destes muito próxima ou coincidente com as datas de liquidação dos valores previstas em tais acordos.
A evidência referida mostra-se reforçada fortemente pelo depoimento da testemunha H … que, além de reportar ter assistido à entrega de um cheque no momento do reforço do sinal (no valor de € 25.000,00), referiu ter presenciado a entrega das chaves do imóvel à reclamante pelos promitentes vendedores e que, após tal, passou a ver a mesma a sair do prédio onde o imóvel se situa com frequência.
Não se encontrando motivo para colocar em causa a isenção da testemunha mencionada, entende-se que o seu depoimento reforça sobremaneira o juízo de evidenciação da factualidade em referência.
Por outro lado, face à alegação da recorrente, no sentido de os cheques mencionados estarem assinados por terceiros, que não a reclamante e promitente compradora, importa reter que o cheque no valor de € 50.000,00 se mostra emitido por uma sociedade cuja designação corresponde ao nome da primeira e o cheque no valor de € 25. 000,00 se encontra emitido por pessoa que, segundo referido pela testemunha H …, era companheiro da reclamante, sendo tal do seu conhecimento por o ter contactado pessoalmente (como mencionado pela testemunha).
Considerando a proximidade da reclamante com os subscritores dos dois cheques referidos, entende-se que a sua utilização para pagamento dos valores constantes dos acordos acima referidos mostra-se conforme com critérios de normalidade, não se vislumbrando, por isso, motivo para colocar em causa a evidenciação da matéria de facto em referência.
Entende-se, face ao referido, que não se pode concluir que a prova produzida em audiência e a constante dos autos aponte em sentido diverso da matéria vertida nos pontos 11 e 12, antes se entende que aponta para a ocorrência da factualidade aí mencionada.
No que respeita à matéria vertida no ponto 13 da matéria provada, afere-se da decisão recorrida que o juízo de prova formulado sobre o mesmo teve em consideração o depoimento da testemunha H …, que referiu  “ter assistido à entrega da chave do imóvel à credora D …, acrescentando que ainda hoje vê a credora semanalmente, a sair do prédio, uma vez que é nesse mesmo prédio que se encontram as instalações da mediadora imobiliária”, bem como que, “dos documentos juntos pela credora, como sejam as faturas, documentos bancários e das Finanças, consta a morada do imóvel, pelo que esta reside no mesmo, o que significa que lhe foi entregue.”
Alega a recorrente que o juízo de prova assumido na decisão impugnada se mostra comprometido por a carta remetida para a morada do imóvel objeto do alegado contrato-promessa ter vindo devolvida em 04-10-2023, com a indicação “objeto não reclamado”, conforme consta da plataforma Citius, com a Ref.ª …, F … ter sido nomeado fiel depositário do aludido imóvel e que nele se encontram a habitar mais duas pessoas, estudantes,  que ocupavam, cada um, o seu quarto conforme consta do requerimento da Sra. Agente de Execução, datado de 22-03-2023, com a Ref.ª Citius …, o que aponta para que a reclamante não habite tal imóvel.
A falta de reclamação, por parte da reclamante, de correspondência referida pela recorrente (comprovada no expediente junto aos autos de execução a 14-03-2023) não se mostra, por si só, idónea, face a critérios de normalidade, a evidenciar a ausência de habitação, por parte da primeira, na respectiva morada. Na verdade, a simples ausência da reclamante no destino na altura da entrega da correspondência pelo distribuidor postal associada a alguma impossibilidade de proceder ao seu levantamento no prazo por este concedido para o efeito, ou o seu esquecimento, podem dar causa a tal falta de reclamação.
A nomeação de F … como fiel depositário do imóvel em causa, penhorado nos autos principais, alegada pela recorrente (que se afere pelo auto de diligência junto com o requerimento inicial), também não se mostra idónea, face a critérios de normalidade, a evidenciar a ausência de habitação, por parte da reclamante, no mesmo imóvel, considerando que, como parece resultar de documento de identificação junto com o requerimento inicial, tal pessoa será filha da credora reclamante e, nessa qualidade, poderá residir com a mesma (para o que também aponta a certidão elaborada pelo Chefe de Finanças de Lisboa – 6, emitida a 21-12-2021, junta com o requerimento inicial) , tendo essa circunstância conduzido à nomeação referida.
A circunstância de residirem dois estudantes no imóvel em referência também não se mostra evidenciadora, face a critérios de normalidade, da ausência de habitação do mesmo por parte da reclamante, tanto mais que se desconhece a sua identidade, o tipo de relacionamento que mantêm com a mesma e a que título residem no imóvel.
Como acima já se referiu a propósito do depoimento da testemunha H …, a mesma mencionou que, desde a entrega das chaves do imóvel à reclamante, passou a ver a mesma todas as semanas a sair do prédio onde o imóvel prometido comprar e vender se situa e a dirigir-se, ao início da manhã, para o estabelecimento de café situado próximo, que também frequenta, tendo esclarecido que o aludido prédio se situa ao lado das instalações da sociedade mediadora imobiliária para a qual labora.
O circunstancialismo referido pela testemunha aponta para que a reclamante pernoite no imóvel em causa nos autos e que nele habite, dispondo de acesso ao mesmo livremente, desde que recebeu as chaves do imóvel, face a critérios de normalidade.
Em reforço dessa evidenciação encontram-se os documentos juntos aos autos com o requerimento inicial, onde consta a morada do imóvel como a da reclamante, emitidos por EPAL (emitido em 23-05-2012), IMTT, IP (datado de 11-08-2012), M …, SA. (referente ao período de 19-04-2012 e 19-05-2012) e N …, SA..
Entende-se, face ao referido, que não se pode concluir que a prova produzida em audiência e a constante dos autos aponte em sentido diverso da matéria vertida no ponto 13, antes se entende que aponta para a ocorrência da factualidade aí mencionada.
No que tange à factualidade vertida no ponto 14, refere-se na decisão impugnada que se tem a mesma como demonstrada pelas “faturas juntas pela credora reclamante, com as entidades EPAL, M …, S.A. e Gold Energy, de que consta a morada em causa”, ou seja, a respeitante ao imóvel mencionado no ponto 5 da matéria de facto provada.
Os elementos documentais invocados na decisão recorrida apontam, face a critérios de normalidade, com segurança, para a ocorrência da matéria dada como provada, não se vislumbrando elementos probatórios que coloquem em causa tal evidenciação.
Face ao referido, entende-se que não se pode concluir que a prova produzida em audiência e a constante dos autos aponte em sentido diverso da matéria vertida no ponto 14, antes se entende que aponta para a ocorrência da factualidade aí mencionada.
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4.
A recorrente alega, no pressuposto da ausência de prova do pagamento de sinal e seu reforço, que a reclamante não demonstrou a existência de um crédito, a seu favor, nos termos do art.º 442º do CC, por força do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda que invoca e, por via disso, conclui pela improcedência da reclamação, com a consequente revogação da sentença impugnada.
Considerando a improcedência da impugnação da matéria de facto a que acima se fez referência, designadamente, em relação aos factos vertidos nos pontos 11 e 12 da matéria dada como provada na decisão impugnada (respeitante, precisamente, a pagamento do sinal e do seu reforço), forçoso se mostra concluir pelo comprometimento do conhecimento da argumentação mencionada.
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A recorrente invoca, também, que o direito de retenção invocado pela recorrente e reconhecido na sentença impugnada não existe por, no caso dos autos, não ter ocorrido a traditio do imóvel prometido vender e comprar.
De acordo com o disposto no art.º 755º, n.º 1, al. f), do CC, o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, tem direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º do mesmo código.
Os requisitos ou pressupostos da existência do direito de retenção reconhecido na norma em referência, são os seguintes:
a) A existência de promessa de transmissão ou de constituição de um direito real;
b) A entrega ou tradição da coisa objecto do contrato-promessa.
c) A titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Está em causa a verificação do segundo requisito referido.
A entrega ou tradição da coisa legitimadora do direito de retenção em referência importa uma detenção lícita da coisa objecto do contrato promessa por parte de quem o pretende exercer, não sendo necessária, para tal, a posse (cf. acórdão TRL de 25-08-2023, processo n.º 679/11.8TYLSB-B.L1-1, acessível em dgsi.pt).
Conforme se refere no acórdão do STJ de 16-02-2016, processo n.º  135/12.7TBMSF.G1.S1 (acessível em dgsi.pt), “a “traditio” configura-se como o poder de facto sobre a coisa que o promitente vendedor conferiu ao promitente comprador, passando este a ter uma relação material com a coisa, revelada em actos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo que tem sobre a mesma, que fica na sua disponibilidade, renunciando, simultaneamente, o promitente vendedor do poder que tinha sobre ela.
A tradição basta-se com este poder de facto e não necessita de ser tão enérgica como na aquisição originária, porque está em causa apenas a transferência do poder do promitente-vendedor para o promitente comprador, e não a aquisição de um direito novo.
O conceito legal de tradição do imóvel é, assim, o principal requisito ou elemento constitutivo do direito de retenção, excluindo-se este direito em todos os casos em que se verifique que, afinal, o promitente comprador não deu ao imóvel uso real, permanente e efectivo, afectando-o à satisfação dos seus interesses e necessidades de forma que se justificasse a tutela reforçada da confiança na estabilidade da sua posição jurídica.”
Revertendo ao caso dos autos, considerando os factos provados, entende-se estar verificado o pressuposto da tradição da coisa prometida.
Na verdade, como se afere dos pontos 12 e 13 da matéria de facto provada, os promitentes vendedores (executados) entregaram as chaves e o referido prédio à promitente compradora (a reclamante) em 28-06-2011, contra a entrega de € 25.000,00 a título de reforço do sinal, e que esta, com o consentimento daqueles, que lhe entregaram o imóvel e todas as suas chaves, desde tal data, passou residir no mesmo.
A factualidade mencionada evidencia que a reclamante entrou no uso, gozo e fruição do imóvel, exercendo domínio material sobre o mesmo e que a sua recepção, além de decorrer de acordo com os promitentes vendedores, importou a renúncia, pelos promitentes vendedores, do exercício desse domínio ou poder.
Pelo referido, entende-se que a tradição do imóvel, efectuada a favor da reclamante, preenche o requisito em referência, sendo, por isso, idónea à constituição, na esfera jurídica da reclamante, do direito de retenção previsto no art.º 755º, nº 1, al. f) do CC.
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A recorrente alega, ainda, que o direito de retenção invocado pela recorrente e reconhecido na sentença impugnada não existe por, no caso dos autos, a mesma, promitente compradora, não ter a qualidade de consumidora, defendendo a aplicação da fórmula jurisprudencial consagrada no AUJ n.º 4/2019.
O acórdão mencionado pela recorrente foi proferido a propósito da questão de saber se, num contrato promessa com eficácia meramente obrigacional, o promitente-comprador que, tendo entregue o sinal e obtido a tradição da coisa objecto do contrato-prometido, goza ou não do direito de retenção sobre ela no caso de o administrador de insolvência optar por não cumprir o contrato promessa, conforme lhe é permitido pelo art.º 102º do CIRE
No aresto referido (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, de 20-03-2014, publicado no DR, I, de 19-05-2014),  o STJ firmou Jurisprudência nos seguintes termos : “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com “traditio”, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil”.
Do acórdão mencionado resulta que, no âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o promitente comprador apenas beneficia do direito de retenção previsto no art.º 755º nº 1, al. f), do CC, se tiver a qualidade de consumidor, nele se recusando tal direito a favor dos promitentes compradores que não tenham tal qualidade, assim interpretando restrictivamente tal preceito.
De acordo com o entendimento adoptado no aludido acórdão, se tiver havido tradição da coisa e o promitente comprador for um consumidor, o direito à restituição do sinal em duplicado será um crédito garantido pelo direito de retenção do art.º 755º, nº 1, al. f), do CC. Se o promitente comprador foi um profissional, o seu direito à restituição do sinal em duplicado será só um crédito comum.
Defende a recorrente que a interpretação perfilhada no AUJ n.º  4/2014 deve ser aplicada em situação alheia à recusa de cumprimento por parte do administrador de insolvência, como a dos autos, no sentido de que o direito de retenção consagrado no aludido art.º 755º, n.º 1, al, f), do CC, só deve ser reconhecido quando o retentor for um consumidor e o imóvel prometido adquirir se destinar a sua habitação própria e permanente.
Como refere Ana Taveira da Fonseca (Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 1ª ed., Dezembro de 2018, p. 1011 e ss., nota II), “nada autoriza, de acordo com o direito constituído, a que se proceda a uma interpretação restrictiva do art.º 755º, n.º 1, al. f), pois este foi pensado para proteger qualquer promitente-adquirente titular de um crédito resultante do não cumprimento imputável à contraparte de um contrato-promessa. A circunstância de, no AUJ n.º 04/2014, se determinar que, caso o administrador da insolvência recuse o cumprimento do contrato-promessa, o direito de retenção só pode ser reconhecido ao promitente-adquirente que seja um consumir não é determinante para esse efeito, porque estamos perante um caso especial, em que o inadimplemento se funda num ato lícito do administrador da insolvência”.
Pelo motivo acima referido, entende-se que a fórmula jurisprudencial consagrada no AUJ n.º 4/2014 não tem aplicação no caso dos autos, assistindo, pois, à reclamante, o direito de retenção reconhecido na sentença impugnada.
Ainda que assim se não entendesse e se perfilhasse a posição defendida pela recorrente, sempre o direito de retenção haveria de ser reconhecido à reclamante, posto que, atenta a matéria de facto dada como provada, no sentido de que, na sequência da tradição do imóvel, a mesma passou a nele residir, dele fazendo a sua habitação própria e permanente (ponto 11 da matéria de facto), sempre a mesma haveria de preencher a qualidade de consumira necessária para tal reconhecimento, de acordo com tal posição, tanto mais que, não sendo o conceito de consumidor unívoco, pode-se assentar que o AUJ o adoptou no seu sentido de utilizador final, o que apenas permite excluir do seu âmbito aquele que adquire com escopo de revenda. Neste sentido, veja-se o acórdão do STJ de 03-10-2017, processo n.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1 (acessível em dgsi.pt).
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Uma nota final.
A reclamante deveria ter apresentado requerimento conforme previsto no art.º 792.º, n.º  1, do CPC, posto que, como reconhece no art.º 82º da petição inicial, não dispõe de título executivo e, nessa sequência, deveria ter sido determinado o cumprimento do disposto no art.º 792.º, n.º  2, do CPC, no sentido de os executados serem notificados para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre a existência do crédito reclamado, o que não foi feito, tendo os mesmos sido notificados nos termos do art.º 789.º, n.º  2, do CPC.
Não obstante, entende-se que o referido configura uma nulidade processual (art.º 195º, n.º 1, do CPC), que deveria ter sido arguida, sendo insusceptível de conhecimento oficioso (arts. 196º e 197º do CPC).
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A decisão impugnada deve, pelo exposto, ser mantida.
Conclui-se, assim, pela improcedência do recurso
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5.
Considerando a improcedência da apelação, a recorrente deverá suportar as custas do recurso (art.º 527º, n.º 1 e 2 do CPC).
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III.
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o Colectivo desta 2ª Secção em julgar o recurso interposto pela embargada improcedente e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
Notifique.

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Lisboa, 21-11-2024,
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Caetano Besteiro
Higina Castelo
Laurinda Gemas