PEDIDO CÍVEL
MENOR
REPRESENTAÇÃO
Sumário

A representação do lesado que seja menor deve reger-se pelos preceitos da lei processual penal relativos à constituição de assistente.

Texto Integral

ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I

1. No processo n.º .../02.8GAVNH do Tribunal Judicial de Vinhais, após julgamento, em processo comum e perante tribunal colectivo, por acórdão de 7 de Julho de 2003, foi decidido, no que ora releva:
- condenar o arguido Francisco... pela prática de um crime continuado de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 2, do Código Penal [Em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP], na pena de 6 anos e 6 meses de prisão;
- absolver o arguido Francisco... da prática de um crime agravado de violação, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP, mas condená-lo pela prática de um outro crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do CP, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão;
- em cúmulo jurídico, condenar o arguido Francisco... na pena única de 8 anos de prisão;
- condenar o arguido a pagar ao ofendido Cláudio..., pelos danos não patrimoniais que sofreu, a indemnização de € 25 000,00, com juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido;
- condenar o arguido a pagar ao ofendido João..., pelos danos não patrimoniais que sofreu, a quantia de € 15 000,00.
2. Inconformado, o arguido Francisco... veio interpor recurso do acórdão, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«1) Da matéria dada como provada nos números 5 e 6 de fls. 457 verifica-se erro notório na apreciação da prova, pois tendo o menor Cláudio nascido a 29 de Novembro de 1987, tinha em princípios de 1997 a idade de nove anos e dois ou três meses, e o seu desenvolvimento físico não lhe permitia, como não permite a qualquer criança, a prática dos factos aí descritos.
«Há o vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.Penal.
«2) O tribunal a fls. 462 baseou-se para dar como provados os factos referidos nos n.ºs 5, 6 e 7 de fls. 457, nos relatórios médicos e outros e declarações do arguido. Há aqui contradição, pois se a prova dos relatórios lhe deixou dúvidas, nem é prova inequívoca, e também entendemos que não, também as declarações do arguido não podem servir para factos que ele não referiu, nomeadamente os alegadamente praticados até 12/09/2002.
«Há aqui contradição insanável da fundamentação, vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.Penal.
«3) A fls. 457, o tribunal deu como provados nos n.ºs 5, 6 e 7 actos que se terão passado nos princípios de 1997 e terminaram em 12/09/2002. Porém, não foi dado como provado factos concretos que inequivocamente tenham ocorrido entre essas datas. Apesar disso o tribunal condenou o arguido pela prática de um crime continuado, artigo 172.º, n.º 2, e 174.º do C.Penal Português.
«Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no n.º 1 do artigo 410.º do C.P.Penal, tendo também sido violado o artigo 172.º, n.º 2, do C.Penal.
«4) A realização da perícia de fls. 131 a 135 não foi notificada ao arguido, nem o relatório foi notificado em tempo de o arguido poder ter intervenção nela. Tal notificação impunha-se pois não se encontra referido no processo verificar-se qualquer das situações previstas no n.º 3 do artigo 154.º do C.P.Penal.
«Tal relatório teve influência na decisão recorrida, e por ter violado os artigos 154.º e 155.º do C.P.Penal, torna a decisão nula.
«5) a) Os relatórios que o tribunal teve em conta para fixar a matéria de facto, fls. 461, são a-científicos, “tutelados”, com realização não transparente. Falam de “abusos sexuais”, de história, mas não referem os actos concretos para que possam ser avaliados como crimes.
«Não são suficientes para dar como provados os factos concretos atribuídos ao arguido (não confessados) quer quanto ao menor Cláudio quer quanto ao menor João.... O próprio tribunal não os considera prova inequívoca.
«b) Não sendo essa prova inequívoca e baseando-se o tribunal nas declarações do arguido deu como provados factos que ele não admitiu, nomeadamente os relatados antes de Janeiro de 2002.
«c) Não considerando o tribunal os relatórios prova inequívoca, e dando crédito à testemunha João Rodrigues, o tribunal não explicou de modo que o normal cidadão possa perceber o motivo pelo qual acreditou em alguns factos e não noutros.
«Além disso, dada a evidente contradição existente entre o menor, a psicóloga Paula... e a mãe do menor João André, não se percebe objectivamente como é que o tribunal formou e firmou a sua convicção.
«Existe, assim, insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, para o tribunal poder dar como provados os factos não admitidos pelo arguido, violando o princípio da livre apreciação da prova, artigo 127.º do C.P.Penal
«6 – A Célia, mãe do menor Cláudio, rectificou a denúncia feita por Vítor....
«Não sabendo em que consistiu a rectificação, que factos denunciou, tal equivale à inexistência de queixa.
«Os factos atribuídos ao arguido dependem da queixa nos termos do n.º 1 do artigo 178.º do C.P.Penal, o que retira ao Ministério Público legitimidade para acusar, o que leva à falta de um pressuposto processual.
«7 – Mas mesmo que assim se não entenda, os factos ocorridos em princípios de 1997 e outros não são relatados até 12 de Setembro de 2002, relativos ao Cláudio, estão fora do prazo em que a queixa podia ser apresentada. O que leva à impossibilidade de acusação pelos factos ocorridos nessa data, o que leva à não existência do crime previsto pelo artigo 172.º, n.º 2, relativamente ao Cláudio.
«8 – O pedido de indemnização de fls. 144, é feito por Carlos..., que não é representante do menor, mas não é feito a favor do menor, não é o menor que o faz, nem se pede que essa obrigação o tenha como beneficiário. Ora o ofendido é o menor, e o pedido tem de ser feito pelo ofendido, representado por alguém. Como o mesmo não fez o pedido, não lhe pode ser atribuído, não é parte. Foi violado o artigo 74.º do C.P.Penal.
«9 – Dos factos provados só pode concluir-se que o arguido praticou um crime previsto no artigo 174.º do C.Penal na pessoa do Cláudio, e um crime previsto no n.º 1 do artigo 172.º do Cód. Penal.
«Ao condenar por outros crimes verifica-se a nulidade prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.Penal.
«10 – As penas aplicadas, atentas as circunstâncias e a personalidade do arguido, são elevadas, exageradamente.
«11) – Os montantes da indemnização atribuídos são inadequados às consequências dos factos, por serem muito elevados.»
Termina, pedindo que a decisão seja «revogada e substituída por outra que a expurgue dos vícios referidos, dê como provados somente os factos que o arguido confessou, com a respectiva qualificação jurídica, e pena e indemnização adequadas» e «que não admita o pedido de indemnização de Vítor... e Célia, absolvendo o arguido quanto a esse pedido» e, subsidiariamente, que se «dê como provado o crime do artigo 172.º, n.º 1, (João...) e 174.º (Cláudio), condenando o arguido em penas e indemnização adequadas».
3. Admitido o recurso e efectuadas as legais notificações, o Ministério Público apresentou resposta no sentido de ser negado provimento ao recurso.
4. Também o assistente Alberto..., na qualidade de legal representante do menor João... respondeu pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida.
5. Os autos foram remetidos a este tribunal já instruídos com a transcrição da prova produzida em audiência.
6. Na vista a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal [Em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP], o Ministério Público não emitiu parecer.
7. Efectuado exame preliminar, e não havendo questões a decidir em conferência, colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.


II

Cumpre decidir.
1. No caso, como foi observado o princípio geral de documentação de declarações orais, contido no artigo 363.º do CPP, este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
De acordo com as conclusões da motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, e 403.º, n.º 1, do CPP), o recorrente Francisco... impugna o acórdão quer sobre matéria de facto quer sobre matéria de direito e tanto no que respeita à acção penal como no que respeita à acção civil, trazendo à discussão, neste tribunal, as questões:
- de o acórdão enfermar de todos os vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP (conclusões 1.ª, 2.ª, 3.ª),
- de se verificar erro de julgamento na apreciação da prova (conclusão 5.ª), com a consequência de incorrecta qualificação jurídica dos factos (conclusão 9.ª),
- de se verificar a nulidade da decisão, por violação do disposto nos artigos 154.º e 155.º do CPP, em relação à perícia de fls. 131 a 135 (conclusão 4.ª),
- da falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal quanto aos factos relativos ao menor Cláudio (conclusão 6.ª),
- a não proceder a questão da falta de legitimidade do Ministério Público, antes enunciada, da falta de apresentação tempestiva da queixa quanto aos factos ocorridos em princípios de 1997 e outros (conclusão 7.ª),
- da não admissibilidade do pedido cível de que o tribunal veio a conhecer, condenando o recorrente em indemnização civil, por danos não patrimoniais, a favor do menor Cláudio... (conclusão 8.ª),
- das medidas concretas das penas serem exageradas (conclusão 10.ª),
- dos montantes indemnizatórios fixados serem muito elevados (conclusão 11.ª).
2. Vejamos, antes de mais, os factos que foram dados por provados no acórdão recorrido:
«1) No dia 12/09/2002, entre as 17h00 e as 18h00, em Vinhais, no lugar de..., o arguido abordou o menor Cláudio..., então com 14 anos de idade, convidando-o a ir a sua casa, para o que o aliciou por forma que não foi possível apurar;
«2) O menor acedeu ao convite e dirigiu-se a casa deste, onde entraram;
«3) Uma vez no interior da casa, o arguido acariciou com as mãos os órgãos sexuais do menor, o que excitou este, após o que, por forma não apurada, o convenceu a penetrar com o seu pénis o ânus do arguido, o que o menor fez;
«4) O menor permaneceu na casa do arguido durante cerca de 45 minutos, período em que decorreram os actos sexuais descritos;
«5) O menor é vizinho do arguido, sendo este amigo do avô daquele, e desde muito novo que passeava com o arguido e frequentava a sua casa;
«6) Por ocasião destas visitas e passeios, para o que o arguido o aliciava dizendo-lhe que o ensinaria a conduzir o seu automóvel, desde data indeterminada de 1997, o arguido, após o convencer a entrar em sua casa, acariciava, com as mãos, os órgãos sexuais do menor, o que excitava este, após o que, por forma não apurada, o convencia a penetrar com o seu pénis o ânus do arguido, o que o menor fazia;
«7) Estes factos ocorreram vezes cujo número não foi possível apurar com exactidão, mas superior a 50, tendo vindo a terminar em 12/09/2002, em consequência da queixa apresentada contra o arguido;
«8) O menor Cláudio... é uma criança com um desenvolvimento psico-emocional cerca de 4 anos inferior às crianças da sua idade, facto que o arguido conhecia e do qual se aproveitou para o aliciar;
«9) O arguido, em 12/12/2001, cerca das 11.00 horas, no Largo..., em Vinhais, depois de ter sido abordado pelo João..., então menor de 12 anos de idade, e quando este lhe pediu objectos da campanha eleitoral autárquica, sobretudo um cachecol, convidou-o a ir a sua casa, onde tinha o material publicitário, designadamente, os cachecóis, ao que o menor acedeu.
«10) Já no interior da residência, depois de travar com o menor João... conversa sobre outros assuntos, o arguido desapertou-lhe as calças e começou a acariciar-lhe o pénis, enquanto lhe foi exibindo revistas de mulheres nuas;
«11) Decorridos alguns momentos, o arguido retirou, então, as calças ao João..., agarrou-lhe o pénis com a mão e introduziu-o na sua boca, enquanto lho foi lambendo;
«12) O menor João... ainda tentou sair da casa, mas o arguido havia trancado a porta à chave;
«13) Em todas as situações descritas, o arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito de praticar os actos sexuais supra descritos com os referidos menores, cujas idades conhecia, desta forma pretendendo satisfazer os seus instintos sexuais;
«14) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
«15) O arguido é de condição social e económica muito modesta, como habilitações só tem o ensino primário, é considerado, pelos seus amigos, boa pessoa e bem comportado e tem mantido bom comportamento no estabelecimento prisional;
«16) Do seu CRC nada consta;
«17) O menor Cláudio... vive com os avós maternos, embora se encontre judicialmente entregue aos cuidados da mãe, sendo este agregado familiar de condição social e económica muito humilde;
«18) Sofre de debilidade mental simples, apresentando um quociente intelectual igual a 67, o que equivale a um atraso intelectual de cerca de 4 anos em relação à sua idade cronológica;
«19) Tem, no entanto, capacidade para distinguir entre factos reais e imaginados, bem como entre verdade e mentira;
«20) Os actos sexuais de que foi vítima provocaram no Cláudio... uma grande instabilidade emocional, que se traduz em sentimentos de insegurança e ansiedade, demonstrando fragilidade intensa no que diz respeito à adopção de respostas comportamentais e emocionais adaptativas;
«21) Passou a ser vítima de comentários depreciativos no meio social e escolar em que se insere, pelo que não quer frequentar a escola;
«22) Tornou-se agressivo com os familiares;
«23) O menor João... vive com os pais, sendo este agregado familiar de condição social e económica muito humilde;
«24) Sempre foi um jovem com dificuldades escolares, mas não apresenta défice intelectual;
«25) Os actos sexuais de que foi vítima provocaram no João... ansiedade e sintomatologia depressiva, caracterizada por sentimentos de tristeza e infelicidade, perda de interesse generalizado, irritabilidade, baixos níveis de auto-estima, auto-imagem, auto-conceito e auto-confiança, fadiga, alteração do padrão do sono, premonições negativas que acentuam o medo do futuro e auto-culpabilização por todos os acontecimentos externos negativos;
«26) Estas perturbações provocam-lhe um défice clinicamente significativo nos funcionamentos social e escolar;
«27) Passou a ser vítima de comentários depreciativos no meio social e escolar em que se insere, pelo que deixou de frequentar a escola e pretende sair de Vinhais.»
3. Passemos, agora, ao conhecimento das questões postas no recurso.
3.1. Por razões de precedência lógica, começamos por abordar as questões da falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal quanto aos factos relativos ao menor Cláudio... (conclusão 6.ª) e da extinção do direito de queixa em relação aos factos ocorridos mais de seis meses antes da apresentação da queixa (conclusão 7.ª)
3.1.1. Os crimes contra a autodeterminação sexual, salvo o tipo de lenocínio de menor (artigo 176.º do CP), são de natureza semi-pública, a não ser que se verifique o condicionalismo previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 178.º do CP (artigo 178.º, n.º 1, do CP).
Não obstante, o Ministério Público pode dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser (artigos 178.º, n.º 4, e 113.º, n.º 6, do CP).
Efectivamente, não resulta dos autos que o Ministério Público tenha dado início ao procedimento nos termos do n.º 4 do artigo 178.º
O processo, em relação aos factos de que foi vítima o menor Cláudio..., iniciou-se com a queixa apresentada, em 12 de Setembro de 2002, por Vítor..., avô do menor, consigo residente, no próprio dia em que teve conhecimento dos factos que o levaram a suspeitar de prática criminosa por parte do arguido, embora tivesse referido suspeitas de factos anteriores, declarando desejar procedimento criminal contra o denunciado.
A mãe do menor, ouvida em declarações no dia 25 de Setembro de 2002, expressou desejar procedimento criminal contra o recorrente e ratificou a queixa apresentada pelo seu pai. Embora, no auto, se tenha registado que a mãe do menor «rectifica a queixa», não há qualquer fundamento sério para sustentar que ela pretendeu «rectificar» fosse o que fosse, devendo-se a manifesto défice no domínio da língua (dela e do técnico de justiça que elaborou o auto) a utilização do verbo rectificar em vez do verbo ratificar.
Mas, ao avô do menor foi reconhecida, implicitamente ao menos, a qualidade de representante legal do menor, ao longo do processo e até ao momento em que requereu a sua constituição como assistente. Só, então, o tribunal averiguou ser a mãe do menor Cláudio - Célia... -, a representante legal do mesmo, por deter o exercício do poder paternal, conforme acção de regulação do exercício do poder paternal.
Na sequência de notificação que oficiosamente lhe foi feita, para o efeito, a mãe do menor veio ratificar todo o processado que ao menor diz respeito e constituir mandatário (justamente o mandatário anteriormente constituído pelo avô do menor).
Por despacho de 16 de Junho de 2003, foi julgado ratificado todo o processado.
O arguido foi notificado desse despacho e a ele não reagiu.
3.1.2. Nos termos do artigo 113.º, n.º 3, do CP, se o ofendido for menor de 16 anos o direito de queixa pertence ao representante legal.
É indiscutível que o direito de queixa quanto aos factos de que foi vítima o menor Cláudio pertence a sua mãe.
O exercício do direito de queixa por outrem (no caso, o avô) configura uma irregularidade de representação. Quem representou o menor, na apresentação da queixa, não é a pessoa que, segundo a lei, devia representá-lo.
A irregularidade da representação não torna o acto (a queixa) juridicamente inexistente. A queixa não é um acto inválido, mas apenas um acto inquinado de simples ineficácia que pode ser remediada ou suprida através de ratificação.
É aceite uniformemente que a ratificação opera retroactivamente ab initio. A ratificação pelo representante legal dos actos anteriormente praticados (quer se considere a ratificação que resulta das declarações de 25 de Setembro, quer se considere a ratificação efectuada na sequência da notificação) faz com que os actos anteriormente praticados passem a valer como se ele próprio (o representante legal) os tivesse praticado.
Com a ratificação da queixa (e de todo o processado) pelo representante legal do menor, ficou garantida a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal relativamente aos factos de que foi vítima o menor Cláudio... [A subsidiariedade das disposições de processo civil que se harmonizem com o processo penal (artigo 4.º do CPP) justifica a aplicação do regime que decorre do artigo 23.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sobre o suprimento da irregularidade da representação, cfr., na doutrina, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra Editora, 1948, anotação ao artigo 24.º, p. 65 e ss].
Isso mesmo foi reconhecido pelo despacho que «julgou ratificado todo o processado», contra o qual o recorrente não reagiu.
3.1.3. Ainda no âmbito do pressuposto processual da queixa, o recorrente levanta a questão da extinção do direito de queixa em relação aos factos de que foi vítima o menor Cláudio..., anteriores a 2002.
O artigo 115.º do CP estabelece o lapso de tempo para a extinção do direito de queixa (implicando o seu decurso - seis meses -, a caducidade do direito) e disciplina o seu cômputo, optando, entre os vários critérios possíveis para a sua fixação - o da data do crime, o da data do conhecimento do facto e o da data do conhecimento dos autores do facto - por uma combinação dos dois últimos.
O que releva, para efeitos da fixação do início do prazo, é a data em que o titular do direito ou o seu representante, no caso de o titular ser menor de 16 anos, tiverem conhecimento do facto e dos seus autores.
Da análise da queixa apresentada nos autos resulta, sem margem de dúvida, que os factos, na sua globalidade, só chegaram ao conhecimento do representante do menor [A ratificação da queixa pela representante legal faz com que a queixa passe a valer como se ela própria a tivesse apresentado (cfr. ponto 3.1.2.)], com a prática dos factos do dia 12 de Setembro de 2002, pelos quais foi apresentada queixa no mesmo dia, com referência, é certo, a suspeitas anteriores mas que só se consolidaram com os factos ocorridos nesse dia.
O prazo de extinção do direito de queixa só começou a correr, em relação a todos os factos de que foi vítima o menor Cláudio..., com o conhecimento dos factos do dia 12 de Setembro de 2002, não estando, por isso, extinto o direito de queixa em relação aos factos anteriores, ocorridos mais de seis meses antes desse dia 12 de Setembro.
3.2. Igualmente por razões de precedência lógica e porque a solução da questão se prende com a fundamentação explanada a propósito da ratificação do processado pela mãe do menor, passamos à questão suscitada da não admissibilidade do pedido cível, de que o tribunal veio a conhecer, condenando o recorrente em indemnização civil, por danos não patrimoniais, a favor do menor Cláudio... (conclusão 8.ª).
Pretende o recorrente que esse pedido cível não foi deduzido pelo menor, nem pelo seu representante, nem a seu favor, pelo que a sentença atribuiu uma indemnização a quem a não pede (ponto 6 da motivação).
3.2.1. O pedido cível, em causa, foi deduzido por Vítor..., «na qualidade de representante do menor Cláudio...» e nele, dando-se por reproduzidos os factos constantes da acusação, são articulados os danos morais sofridos pelo menor, em consequência desses factos, por eles sendo pedida a condenação do recorrente a pagar a quantia de € 25 000.
Notificado do pedido cível, o recorrente contestou o pedido, alegando que os valores pedidos são inadequados, por exorbitantes.
3.2.2. A dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, no próprio processo penal, está sujeito a regras e tramitação específicas, previstas nas normas próprias (artigos 71.º a 84.º do CPP), que impõem uma simplificação da tramitação do pedido, em comparação com a acção civil em separado, adequada às finalidades do princípio da adesão obrigatória.
Sobre legitimidade e poderes processuais, dispõe o artigo 74.º que o pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime (n.º 1) e que a sua intervenção processual se restringe à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.
A lei nada esclarece sobre a representação do lesado menor, devendo, por isso, a lacuna ser integrada, aplicando-se os preceitos da legislação processual penal que sejam análogos e só na falta de disposição análoga em processo penal é que o intérprete terá de se socorrer de preceitos do processo civil que se harmonizem com os princípios do processo penal (artigo 4.º do CPP).
No caso, devem ser aplicados os preceitos da legislação processual penal relativos à constituição de assistente, pela sua patente analogia, tendo-se em conta, designadamente, que ao lesado competem os direitos que a lei confere aos assistentes.
Ora, de acordo com o artigo 68.º, n.º 1, alínea d), pode constituir-se assistente, no caso de o ofendido ser menor de 16 anos, o representante legal.
Do mesmo modo, a lei penal, no caso de o ofendido ser menor de 16 anos, reconhece legitimidade para apresentar queixa ao representante legal (o exercício do direito de queixa pertence ao representante legal).
Assim, por via da analogia legis, reconhecemos que, no caso de o lesado ser menor de 16 anos, o representante legal (qualquer dos pais, competindo o exercício do poder paternal a ambos os pais) tem legitimidade para deduzir o pedido de indemnização civil, em representação do menor.
3.2.3. O pedido foi deduzido pelo avô do menor.
Porém, como antes vimos, a representante legal do menor veio ratificar todo o processado, constituindo mandatário o mesmo mandatário anteriormente constituído pelo avô do menor, a quem conferiu, «em seu nome pessoal e em representação do filho» poderes forenses gerias e especiais para ratificar, «nomeadamente o pedido civil apresentado» (procuração de fls. 352).
A irregularidade na representação foi suprida através da ratificação, que opera retroactivamente ab initio, como antes vimos.
O pedido foi deduzido em representação e a favor do menor.
Outro entendimento não é consentido quando se constata que o pedido é deduzido com a invocação (do representante) da qualidade de legal representante do menor e tendo por fundamento os danos sofridos pelo menor em consequência do comportamento criminoso do recorrente.
Por isso, não se vê fundamento sério para censurar a decisão enquanto, na procedência do pedido cível, condenou o recorrente a pagar ao menor Cláudio... o montante peticionado a título de indemnização por danos não patrimoniais.
3.3. O recorrente vem invocar a nulidade da decisão, por violação do disposto nos artigos 154.º e 155.º do CPP, em relação à perícia de fls. 131 a 135.
Refere-se o recorrente ao relatório de avaliação psicológica relativo ao menor Cláudio..., solicitado pelo Ministério Público numa fase inicial do inquérito (despacho de 16/09/2002).
3.3.1. O despacho que determina a perícia e indica o dia, hora e local da sua efectivação será notificado aos sujeitos processuais, com uma antecedência mínima de 3 dias sobre a data indicada para a realização da perícia (n.º 2 do artigo 154.º do CPP), ressalvando-se os casos de risco para as finalidades próprias do inquérito e de urgência ou de perigo na demora (n.º 3 do mesmo artigo 154.º).
Os sujeitos processuais têm a faculdade de designarem um consultor técnico da sua confiança para assistir à efectivação da perícia, o qual poderá propor a realização de certas diligências, fazer observações e apresentar objecções (n.ºs 1 e 2 do artigo 155.º do CPP).
O n.º 3 do artigo 155.º do CPP previne a hipótese de o consultor técnico ser designado após a efectivação da perícia.
Com a possibilidade de designação de consultores técnicos pretende assegurar-se um efectivo contraditório que «visa e permite que se faça uma espécie de fiscalização privada da perícia» [M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I volume, 2.ª edição, 1999, Editora Rei dos Livros, p. 804].
3.3.2. Compulsado o processo, verifica-se que, efectivamente, foi omitida a notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 154.º do CPP, nada indicando que o Ministério Público tenha omitido a notificação do recorrente por se verificar alguma das situações ressalvadas no n.º 3 daquele artigo.
Porém, o recorrente teve conhecimento da existência no processo dessa perícia quando foi notificado da acusação, uma vez que entre os meios de prova indicados pelo Ministério Público foi referida a perícia de fls. 131 a 135.
3.3.3. A perícia, enquanto meio de prova [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 1993, p. 153], realizada com omissão da notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 154.º do CPP, não conforma uma prova proibida. Nem é proibida por lei, nem foi obtida por métodos proibidos (cfr. artigos 125.º e 126.º do CPP). Não se verifica, portanto, a nulidade resultante da produção de prova proibida.
Por outro lado, a omissão da notificação a que se refere o n.º 2 do artigo 154.º não é cominada na lei como constitutiva de nulidade. Trata-se, por isso, de mera irregularidade (cfr. artigo 118.º do CPP), de que o recorrente teve conhecimento quando foi notificado da acusação e que não arguiu tempestivamente (artigo 123.º do CPP).
Se a tivesse arguido tempestivamente, a sua reparação conferia-lhe a possibilidade de nomear consultor técnico que poderia ser ouvido em audiência (artigo 350.º do CPP).
Não tendo arguido tempestivamente a irregularidade, já não está em tempo de reagir à decisão por ter valorado esse meio de prova que - repete-se - não conforma uma prova proibida ou uma prova obtida por métodos proibidos.
3.4. O recorrente aponta ao acórdão todos os vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP (conclusões 1, 2 e 3).
O vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - por o tribunal ter dado como provado nos n.ºs 5, 6 e 7 actos que se terão passado desde os princípios de 1997 até 12/09/2002 sem ter dado por provados factos concretos que inequivocamente tenham ocorrido entre essas datas (conclusão 3).
O vício da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º - contradição insanável da fundamentação - por o tribunal ter dado por provados os factos referidos nos n.ºs 5, 6 e 7, com base nos relatórios médicos e outros e declarações do recorrente, pretendendo que a contradição radica no facto de os relatórios não constituírem uma prova inequívoca dos factos e de ele próprio (o recorrente) não os ter referido (conclusão 2).
O vício da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º - erro notório na apreciação da prova - que situa na matéria de facto dada como provada nos n.º 5 e 6, por, em princípios de 1997, a idade do menor não lhe permitir a prática dos factos aí descritos (conclusão 1).
Verifica-se, assim, que o recorrente situa os vícios apenas na parte da decisão relativa ao menor Cláudio..., concretamente, nos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada, já que a matéria dada por provada no ponto 5, em si mesma, é inócua.
3.4.1. É jurisprudência uniformemente aceite que:
- a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP -, só se poderá afirmar quando os factos provados não permitirem num raciocínio lógico as ilações que deles tirou o tribunal a quo, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação;
- a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - vício da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP -, existe quando há oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre, ainda, quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados;
- o erro notório na apreciação da prova - vício da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP -, é aquele que é evidente, que é patente. Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida;
- estes vícios, como decorre do corpo do n.º 2 do artigo 410.º de CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que quer dizer que qualquer dos referidos vícios tem de resultar da análise da decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo.
3.4.2. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada radica, na perspectiva do recorrente, no facto de o acórdão omitir actos concretos ocorridos entre princípios de 1997 até 12/09/2002.
Não tem razão.
No ponto 6 da matéria de facto provada constam actos concretos consistentes em o recorrente acariciar com as mãos os órgãos sexuais do menor, excitando-o, e em o menor penetrar com o seu pénis o ânus do recorrente, ocorridos mais de 50 vezes, no período em causa, como foi dado por provado no ponto 7.
E nem se compreende que o recorrente venha invocar uma omissão de factos quando sustenta a verificação do erro notório na apreciação da prova, justamente, na impossibilidade psico-fisiológica de o menor os praticar, antes dos 12 anos.
O recorrente ao invocar o vício da contradição insanável da fundamentação está, afinal, a invocar um erro de julgamento da matéria de facto. Na verdade, pretende que não foi produzida uma prova consistente e credível que permitisse dar por assentes os factos que destaca, por os relatórios médicos e outros não constituírem prova bastante dos mesmos e ele próprio não os ter referido. Ou seja, o que o recorrente questiona é a suficiência da prova para dar tais factos por provados e, portanto, a forma como o tribunal apreciou a prova produzida e examinada em audiência.
Desconsiderando o quadro de funcionamento do vício da contradição insanável da fundamentação, o recorrente quer subsumir a esse vício matéria que só pode ser objecto de recurso da decisão em matéria de facto e que, aliás, também inclui na parte do seu recurso em que visa, justamente, a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
O erro notório na apreciação da prova verifica-se, segundo o recorrente, por o tribunal ter dado por provado, no ponto 6 da matéria de facto, actos que o menor Cláudio..., nascido em 29/11/1987, não poderia ter praticado a partir de princípios de 1997 (penetrar com o seu pénis o ânus do arguido), por só aos 12 anos ser atingido o desenvolvimento psico-fisiológico necessário para a prática desse acto.
Aceitando-se, em tese geral, que a prática dos actos descritos só ocorre, normalmente, com a puberdade, já não se aceita, como verdadeira, a afirmação, com carácter universal, da impossibilidade psico-fisiológica de uma criança, antes de atingir a puberdade, os praticar.
O grau de desenvolvimento fisiológico não é igual, na mesma idade, em todas as crianças e o desenvolvimento psíquico, no plano da expressão sexual, vai depender de uma criança ser, ou não, sujeita a práticas que afectem o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual.
Entendemos, por isso, que o ponto 6 da matéria de facto não encerra um erro notório na apreciação da prova, no sentido de conter factos que notoriamente estão errados, que não podiam ter acontecido.
Sempre se referirá, porém, que mesmo que o tribunal tivesse dado por provado que os actos descritos no ponto 6 só se iniciaram depois de o menor Cláudio atingir os 12 anos de idade, tal seria irrelevante em termos de qualificação jurídica da conduta do recorrente.
3.5. Já fora do quadro dos vícios da decisão, o recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, sustentando, em suma, que não foi produzida prova que permita concluir ter ele praticado os factos que foram dados por provados, relativos ao menor Cláudio..., à excepção dos que ele próprio (recorrente) confessou, e os factos que foram dados por provados em relação ao menor João... (conclusão 5).
Servem-lhe de argumentos: os relatórios não serem suficientes para dar por provados factos concretos, não ter admitido os factos que vieram a ser dados por provados, no que respeita ao menor Cláudio..., em toda a sua extensão, o acolhimento apenas parcial do depoimento da testemunha João Rodrigues, as contradições existentes entre as declarações do menor João..., da mãe e da psicóloga.
3.5.1. A convicção do tribunal formou-se com base no conjunto de toda a prova produzida e examinada em audiência, articuladamente compreendida, e com a apreensão directa pelo tribunal da compleição física do arguido e do ofendido João André, bem como das atitudes e formas de depor deles e de todos os intervenientes, mostrando-se explicitada no acórdão de modo exemplar.
Em relação aos factos que foram dados por provados de que foi vítima o menor Cláudio André, consta da motivação:
«... na ausência de declarações do menor, a conjugação das declarações do arguido, que admitiu ter tido relações de coito anal com o menor Cláudio (como admitiu que este “não era um rapaz como os outros”)), embora só as admitisse a partir de Janeiro de 2002 e por umas “30 ou 40 vezes”, sem que tenha havido qualquer explicação plausível para que esses só tenham começado naquela altura, com os depoimentos das testemunhas Vítor... e Irene..., avós deste menor, dos quais resulta que vivem perto do arguido que, desde criança, o menor acompanhava frequentemente com este, sendo visita assídua de sua casa, com os relatórios médicos e psicológicos, dos quais resulta que a história contada, quando foi ouvido para elaboração desses relatórios, pelo menor, é constante, consistente e plausível, tendo o menor referido à avó e ao psiquiatra que os abusos começaram quando tinha cerca de 10 anos de idade, com a constatação da psicóloga, Dr.ª Olívia..., de que em Fevereiro de 1997 o menor passou a apresentar uma alteração de comportamento compatível com o início dos abusos sexuais e, no caso concreto, só por esse facto explicáveis, permitem concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que os abusos sexuais perpetrados pelo arguido tiveram início nos princípios de 1997.»
Em relação aos factos que foram dados por provados de que foi vítima o menor João..., consta da motivação:
«(...) apesar de o arguido ter sempre negado tê-los praticado e de o menor em audiência, visivelmente constrangido, apesar de acompanhado pela psicóloga, Dr.ª Maria..., ter feito um depoimento muito pobre, a verdade é que dos relatórios médicos e psicológicos resulta que a história contada, quando foi ouvido para a elaboração desse relatórios médicos e psicológicos, é constante, consistente e plausível, sendo que também é coerente com o relato que o menor fez ao sargento da GNR João Rodrigues, a quem o menor se dirigiu no dia seguinte aos factos sofridos, o que só se explica num jovem da sua idade pela verificação efectiva dos mesmos, resulta provado, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido praticou esses factos.»
3.5.2. O recurso em matéria de facto perante as relações não se destina a um novo julgamento mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância [Germano Marques da Silva, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum Iustitiae, Maio de 1999, p. 21].
Como não pode deixar de ser. O tribunal de recurso não dispõe da relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão, que só o princípio da imediação, intrinsecamente ligado ao da oralidade, assegura.
Sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe, em face da transcrição da prova produzida em audiência e da análise das provas examinadas em audiência, averiguar se existe um erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por essa transcrição ou essa análise evidenciarem que as provas foram valoradas com violação das regras que regem a apreciação da prova.
Os meios de prova de que o tribunal dispôs e se serviu, para fundamentar a sua convicção têm, necessariamente, de ser apreciados numa compreensão conjugada que observe as regras da vida e da experiência. Os diversos meios de prova não valem por si sós, enquanto atomisticamente considerados, mas no significado que assumem quando articulados e relacionados com outros.
Nessa compreensão da apreciação dos diversos meios de prova, a análise que deles este tribunal fez, revela que o tribunal recorrido não apreciou arbitrariamente a prova.
A convicção do tribunal, expressa nos factos que deu por provados e que o recorrente considera incorrectamente julgados, não traduz uma mera impressão gerada no espírito dos julgadores pelos diversos meios de prova. Revela-se uma convicção racional, objectivada e motivada na compreensão relacionada dos diversos meios de prova.
3.6. Mantendo-se inalterada a matéria de facto constante do acórdão recorrido, nenhuma censura há a fazer à qualificação jurídica dos factos nele operada: um crime continuado de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do Código Penal [Em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP] (na pessoa do menor Cláudio...) e um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 2, do CP (na pessoa do menor João...).
Por isso, a questão da determinação das medidas concretas das penas, suscitada pelo recorrente (conclusão 10), tem de ser decidida no quadro da moldura penal correspondente - 3 a 10 anos de prisão.
As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP).
Logo, num primeiro momento, a medida da pena há-de ser dada pela medida de tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto «reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» [Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 72-73].
Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.
À culpa deve assinalar-se uma função de limite à medida da pena; a aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica.
O que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto - no facto que é expressão da personalidade - uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam [Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias,p. 14].
Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
No caso:
Os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada, pela frequência com que estão a ser conhecidas violações do bem jurídico em causa e pelos «sentimentos» que essas violações causam na comunidade, reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela do bem jurídico, assegurando a manutenção, apesar da violação da norma ocorrida, da confiança comunitária na prevalência do direito.
A culpa do recorrente é elevada. O recorrente expressou uma atitude contrária ao direito no plano de um bem jurídico que não requer especiais capacidades de elaboração ética porque se situa, com fortíssima coloração ética e, até, moral, ao nível das aprendizagens básicas decorrentes da educação e da experiência de vida.
As práticas, prolongadas no tempo, de abuso do menor Cláudio... e o abuso de um outro menor - João... -, são indicadores de uma personalidade que comporta desvios no plano sexual de dimensão pedófila, o que releva no plano das exigências de prevenção especial.
Para a determinação da medida da pena do crime continuado devem, ainda, ponderar-se as circunstâncias de as condutas parcelares que o integram terem sido em número elevado e de se terem prolongado por um período considerável de tempo.
Tudo ponderado, temos por justas e adequadas as penas parcelares fixadas na decisão recorrida, as quais, satisfazendo as exigências de prevenção, não ultrapassam a medida da culpa.
A pena única mostra-se, também, criteriosamente fixada, na ponderação conjunta dos factos e da personalidade do recorrente.
3.7. Resta abordar a questão dos montantes das indemnizações fixadas, que o recorrente tem por muito elevados (conclusão 11).
Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais terão de se ter em atenção os artigos 483.º, 496.º, n.o 1, 562.º e 566.º, n.os 1 e 2, do CC: quem viola ilicitamente os direitos de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação; na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito; a indemnização pelos danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso; quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação; a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reparação natural não seja possível, e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
O montante da indemnização deve ser calculado segundo critérios de equidade e deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida [Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1982, p. 474].
Esta indemnização, como nota Antunes Varela [Das Obrigações em Geral, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, Vol. I, p. 630], reveste uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
Tem sido decidido que a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, sendo mais que tempo de se acabar com miserabilismos indemnizatórios [Cfr., designadamente, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Julho de 1999, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III – 1999, p. 16 e ss].
São muito graves os danos não patrimoniais sofridos pelos menores, que foram dados por provados, a requerer compensação condigna.
A indemnização pelos danos não patrimoniais tem por finalidade compensar os desgostos, sofrimentos e humilhações já suportados e a suportar, no futuro, pelos menores, através de uma quantia em dinheiro que lhes permita um acréscimo de bem estar e o acesso a bens recreativos e culturais, enquanto naturais contrapontos das dores e angústias passadas e futuras.
Tudo ponderado, mas considerando, ainda, os valores que a jurisprudência tem vindo a fixar pela perda do direito à vida (a eliminação da vida de uma pessoa é inquestionavelmente a ofensa ilícita mais grave à sua personalidade), entendemos reduzir os montantes fixados na 1.ª instância para as quantias de € 17 500, quanto ao menor Cláudio..., e € 10 000, quanto ao menor João..., que constituem equilibrada compensação dos danos não patrimoniais que para eles resultaram das condutas do recorrente.

III


Pelos fundamentos expostos, acordamos em apenas conceder provimento ao recurso na questão relativa aos montantes devidos a título de indemnização por danos não patrimoniais, condenando o recorrente a pagar ao ofendido Cláudio... a quantia de € 17 500 (acrescida de juros nos termos fixados no acórdão) e a pagar ao ofendido João... a quantia de € 10 000, e em tudo o mais negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Por ter decaído parcialmente, vai o recorrente (a quem foi concedido apoio judiciário – cfr. fls. 507-508) condenado nas custas, com 8 UC de taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do CPP, 87.º, n.º 1alínea b), 89.º e 95.º, n.º 3, do CCJ).
Custas dos pedido cíveis na proporção do respectivo decaimento, com taxa de justiça de um quarto (artigo 18.º, n.º 3, do CCJ).
O recorrente vai, também, condenado no pagamento de honorários ao Exmº defensor nomeado em audiência, neste Tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à portaria nº 150/2002, de 14 de Fevereiro (a englobar nas custas).

Porto, 17 de Dezembro de 2003.
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas
José Casimiro O da Fonseca Guimarães