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DECISÃO INSTRUTÓRIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
Sumário
I- A decisão instrutória deve ser devidamente fundamento, nomeadamente esclarecer os motivos que levaram a determinada indiciação, por referência a concretos meios de prova, colhidos em inquérito e instrução, e, no caso de não pronúncia, deve, também, especificar os factos considerados suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados. II- O artigo 412, nº 3 e 4 do CPP não se aplica ao recurso da decisão instrutória. III- Contudo, tal não obsta, a que, em sede de recurso da decisão instrutória, o recorrente possa impugnar os factos considerados suficientemente indiciados e não indiciados e solicite ao Tribunal de recurso a sua reapreciação. IV- Também em sede de instrução a prova é apreciada de acordo com a livre convicção e segundo as regras da experiência, nos termos do artigo 127 do CPP.
Texto Integral
I- Relatório:
Acordam em conferência, os Juízes, da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
No âmbito da instrução 89/21.9PTCSC.L1, do Juízo de Instrução Criminal de Cascais - Juiz 1, decidiu-se:
- Não pronunciar para submeter a julgamento, o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio por negligencia grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 2 do Código Penal, conjugado com o artigo 15.º do mesmo diploma, ou por qualquer outro.
Inconformada com essa decisão veio a assistente interpor o presente recurso.
Apresenta as seguintes conclusões: “A. O Tribunal a quo concluiu pela não pronúncia do Arguido "pela prática de um crime de homicídio por negligencia grosseira, previsto e punido pelo artigo 137, nº 2 do Código Penal, conjugado com o artigo 15 do mesmo diploma, ou por qualquer outro". B. A Assistente, ora Recorrente, não se conforma com o referido despacho, entendendo que se encontram reunidos indícios suficientes da prática do crime, impondo-se a revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que conclua pela pronuncia do Arguido. C. O Tribunal a quo considerou suficientemente indiciados os detalhes do equipamento e das condições em que ocorreu o acidente, incluindo a visibilidade, o percurso da vítima e o equipamento que ela utilizava. No entanto, não considerou suficientemente indiciados dois pontos: a inexistência de qualquer obstrução do campo de visão do Arguido e a capacidade do Arguido de avistar o ciclista, factos constantes dos Pontos C e D da decisão recorrida. D. Contudo, o Tribunal entendeu que, dadas as circunstâncias específicas, não era possível concluir que o Arguido estava perfeitamente capaz de avistar o ciclista. E. Porém, resultou suficientemente indiciado que o local estava bem iluminado e que o ciclista estava equipado com dispositivos refletores e uma luz vermelha intermitente na traseira da bicicleta (cfr. Pontos 3 a 6, 8 e 10 a 12 dos factos suficientemente indiciados). F. Através das conclusões do Relatório de Peritagem Técnico-Científica elaborado pela ..., resultou indiciado que, no momento da mudança de via pelo ciclista, havia visibilidade entre este e o Arguido, do mesmo modo que havia tempo e espaço suficientes para o Arguido adotar as medidas necessárias a fim de evitar a colisão (cfr. fls. 339 e dos autos). G. No entanto, o Tribunal a quo não considerou as conclusões do sobredito Relatório, culpabilizando, sem mais, o ciclista, não obstante resultar evidente que o Arguido estava capaz de se aperceber da presença do ciclista, devendo, desse modo, ajustar a sua velocidade para evitar o acidente, evidências que não foram tidas em conta, apesar de ter ficado suficientemente indiciado que o Arguido circulava em excesso de velocidade e, como tal, com falta de precaução (cfr. fls. 339 e ss, dos autos e Ponto 16 da decisão recorrida). H. Assim, dadas as circunstâncias dos autos, como a distância entre o ciclista e o veículo da testemunha, as boas condições atmosféricas e a iluminação adequada da via, o Arguido não tinha razão para não avistar o ciclista, não fosse a desatenção e o excesso de velocidade com que circulava. I. A acrescer, os faróis do veículo da testemunha iluminavam adicionalmente o ciclista, e as posições relativas dos veículos e velocípede indiciam que o Arguido tinha as condições de visibilidade necessárias para poder evitar o acidente (cfr. Relatório de Peritagem Técnico-Científica junto aos autos com o requerimento apresentado pela Assistente em 16.012024, a fls. 339 e ss, dos autos). J. Havendo visibilidade, a capacidade de reação do Arguido para evitar o acidente seria uma realidade, caso o Arguido seguisse, como devia, atento e dentro do limite de velocidade permitida no local, que é de 50 km/h (cfr. Relatório de Peritagem Técnico-Científica junto aos autos com o requerimento apresentado pela Assistente em 16.012024, a fls. 339 e ss. dos autos). K. Acresce que, o ciclista estava equipado com uma variedade de elementos refletores e seguia todas as normas de segurança para ciclismo noturno. Aliás a descrição minuciosa do equipamento do ciclista, desde o casaco e calções até ao capacete e sapatilhas, destaca a presença de elementos refletores em cada peça. L. Os vídeos disponíveis online (em acesso público) da empresa ... demonstram a eficácia das barras refletoras usadas na roupa do ciclista, mostrando sua visibilidade e a falta de relevância da cor da indumentária para a visibilidade à distância (cfr. vídeos junto aos autos com o requerimento apresentado pela Assistente em 16.01.2024). M. De resto, a própria testemunha BB que circulava na mesma via imediatamente atrás do velocípede, avistou o ciclista sem dificuldade e pode conformar a sua condução à velocidade de circulação deste sem criar qualquer risco (cfr. depoimento gravado no dia 12/01 /2024, de 00:00 a 00:20:09 da gravação 202401). N. A respeito da inexistência de qualquer obstrução do campo de visão do Arguido e da possibilidade deste em avistar o ciclista deve atender-se aos seguintes elementos probatórios: • As conclusões do Relatório de Peritagem Técnico-Científica elaborado pela ... (fls. 339 e ss. dos autos) que revelou que, no momento em que o ciclista iniciou a mudança de faixa de tráfego, havia visibilidade mútua entre ele e o Arguido, o que significa que este poderia ver o ciclista à sua frente, enquanto o ciclista, olhando para trás, também poderia visualizar o veículo. Além disso, o relatório conclui que ambos os veículos estavam na mesma direção, em filas diferentes, e que havia tempo e espaço suficientes para evitar a colisão, indicando a possibilidade de uma açao preventiva por parte do Arguido; • CC, testemunha ouvida no dia 26.01.2024, com depoimento gravado de 00:00 a 00:48:41 da gravação 20240126103806-4658079-2871337 que abordou a metodologia utilizada na análise do acidente, destacando a avaliação das velocidades pré-impacto e a determinação dos trajetos mais prováveis de cada veículo, enfatizando, ainda, a importância de considerar fatores como iluminação e vestuário do ciclista e discutindo a distância de visibilidade entre os condutores. Destacou que, geometricamente, não havia obstáculos à visibilidade mútua e que o veículo ligeiro provavelmente teria iluminado o ciclista sendo que a análise detalhada desses fatores contribui para uma compreensão mais precisa da dinâmica do acidente (cfr. minutos 00:1 1:15 a 00:17:20 da gravação); • BB, testemunha ouvida no dia 12.01-2024, com depoimento gravado de 00:00 a 00:20:09 da gravação 20240112105643-4658079-2871337 que relatou que estava a uma distância aproximada de dois a três metros do ciclista quando avistou a bicicleta e começou a abrandar sua velocidade, mantendo-se atrás dele. Ressaltou ainda que vinha com tempo e que percebeu a presença da bicicleta na via. (cfr. minutos 00:12:50 a 00:1 5:21 da gravação 20240112105643-4658079-2871337); • DD, testemunha ouvida no dia 12,012024, com depoimento gravado de 00:00 a 00:19:58 da gravação 20240112103553-4658079-2871337, que destaca os refletores presentes na roupa e nos acessórios do ciclista, explicando que são visíveis a longas distancias, até 500 metros, Menciona os refletores nos calções, capacete e outros itens, enfatizando sua eficácia em aumentar a visibilidade do ciclista na estrada, Além disso, destaca a visibilidade da luz traseira da bicicleta a cerca de 1 km e dos refletores a 250 metros, destacando sua importância para a segurança (cfr, minutos a 00:06:13 a 00:07:30, 00:09:20 a 00:11:10, 00:18:01 a 00:18:54 de 20240112103553-4658079-2871337, O. Deve assim concluir-se que o Arguido estava plenamente capaz de avistar o ciclista, pois: a) não havia obstrução do seu campo de visão; b) a bicicleta estava equipada com várias luzes e refletores, e a vestimenta do ciclista também possuía numerosos elementos refletores (cfr. pontos 3 a 8 dos factos suficientemente indiciados); c) as condições de iluminação e de estado da via eram boas, e o veículo da testemunha iluminava o ciclista (cfr. pontos 10 a 12 dos factos suficientemente indiciados), pelo que, sempre deverá a decisão proferida relativamente aos factos constantes dos pontos C. e D. ser revogada e, em consequência, ser tal factualidade julgada como suficientemente indiciada. P. Relativamente ao posicionamento e ao comportamento do ciclista, o Tribunal a quo considerou suficientemente indiciado no Ponto 17 que o ciclista, EE, circulava na via à direita da ..., seguido pela testemunha BB, enquanto o Arguido, AA, circulava na via da esquerda, realizando uma ultrapassagem ao veículo da testemunha, em velocidade superior ao limite permitido, pelo menos a 72 km/h, quando colidiu com o ciclista. Q. Esta factualidade resultou do artigo 148 do requerimento de abertura de instrução. Porém, aquilo que a Assistente pretendia escrever e que resultou suficientemente indicado era que, no momento do embate, o ciclista encontrava se a circular na via da esquerda, junto à linha central da faixa de rodagem, conforme atesta o Relatório de Peritagem Técnico-científica junto aos autos a fls. 339 e nas conclusões constantes do ponto 2. do seu capítulo 8.0. R. A este respeito, a fundamentação da decisão recorrida cita apenas as declarações da Testemunha BB, bem como o Relatório Técnico de Acidente de Viação, elaborado pela Brigada de Investigação de Acidentes de Viação, da Divisão de Transito de Lisboa, cujas conclusões transcreve quase integralmente, as quais se baseiam tal-qualmente neste mesmo depoimento, o qual se mostra incompatível com as evidências físicas do acidente. S. Apesar de o Tribunal a quo ter considerado credível o depoimento da testemunha BB, sobretudo devido à sua experiência como agente da PSP, as suas declarações apresentaram contradições, sendo incompatíveis com as evidências físicas do acidente e com a análise técnico-científica realizada. T. Acresce que, embora inicialmente esta testemunha tenha afirmado com firmeza que o ciclista não fez qualquer sinalização, após a sua confrontação com as declarações prestado no inquérito acabou por confirmar que o ciclista, antes de mudar de via, olhou para trás e fez a sinalética, o que compromete a objetividade do depoimento. U. A este respeito, o Tribunal a quo destacou que o depoimento da testemunha BB foi influenciado pela intensidade do evento que testemunhou, o que é comum devido aos mecanismos de proteção do cérebro humano. Contudo, tal implica também necessariamente que o relato da testemunha não representa um retrato fiel ou frio da realidade dos acontecimentos, circunstância que não pode ser descurada na valoração deste depoimento, V. Neste âmbito, impõe-se trazer à colação a análise e reconstituição computacional do acidente, vertidas no ponto 2, do capítulo 8. do Relatório de Peritagem Técnico-Científica, que contradiz o depoimento da testemunha BB já que, segundo o relatório de peritagem técnico-científica, o contato entre o velocípede e o veículo RU ocorreu na segunda fila. a cerca de 0,7 metros da linha central ou 2,3 metros da linha limite da segunda fila. Nesse momento, o veículo RU estava a uma velocidade de 72 km/h e o velocípede a 27,5 km/h, conforme determinado por modelos computacionais biomecânicos. W. A este respeito, o depoimento da testemunha CC, especialista responsável pelo Relatório de Peritagem Técnico-Científicam explicou cientificamente as conclusões do relatório, demonstrando que EE não realizou movimentos abruptos ou imprudentes e agiu de acordo com as normas de comportamento esperadas de ciclistas ao mudarem de faixa. X. Mais, o sobredito Relatório contradiz as declarações da testemunha e as conclusões do Relatório Técnico de Acidente de Viação da Divisão de Transito de Lisboa, mostrando que estas não correspondem aos indícios físicos do acidente registados no local. Y.Em resumo, i) o depoimento de BB indica que o ciclista realizou a sinalização adequada, ii) o testemunho de CC e as evidências físicas do acidente sugerem que o ciclista não fez uma mudança de faixa abrupta e agiu de acordo com as normas esperadas, e iii) o comportamento do ciclista, ao mudar de direção na rotunda, foi gradual e conforme o esperado, antes de ser abalroado pelo Arguido. Z. É importante notar que o próprio Relatório Técnico de Acidente de Viação, elaborado pela Brigada de Investigação de Acidentes de Viação, da Divisão de Trânsito de Lisboa, reconhece que o estudo da velocidade não foi efetuado por falta de elementos concretos para esse efeito, nomeadamente por não existir qualquer rasto de pneus ou fricção no pavimento, mas sim totalmente sustentado nas declarações da testemunha BB (cfr. fls. 86 e seguintes dos autos). AA. As declarações da testemunha FF confirmam que apenas foi realizado um estudo comparativo, que não atendeu às evidências físicas do acidente, desconsiderando, em especial a projeção do corpo do ciclista, a massa e o peso próprio condutor e do veículo (cfr. declarações gravadas no dia 12.01 .2024, de 00:00 a 00: 15:37 da gravação). BB. Resultaram assim desprovidas de sentido as conclusões vertidas no Relatório Técnico de Acidente de Viação, elaborado pela Brigada de Investigação de Acidentes de Viação, da Divisão de Trânsito de Lisboa, contrariamente à fidedignidade e à exatidão daquelas que resultam do Relatório de Peritagem Técnico-Científica junto aos autos a fls. 339. e ss., o qual recorre a modelos computacionais para análise e reprodução do acidente. CC. Através da explicação e da análise rigorosa do sinistro realizada pela ..., resulta suficientemente indiciado que o ciclista agiu com o cuidado e prudência que lhe eram exigíveis, como utente vulnerável que era, ficando também comprovada a inexistência de qualquer mudança de direção imprevisível e brusca da parte deste. DD. Encontra-se assim suficientemente indiciado que o ciclista, no momento do embate encontrava-se na segunda fila à direita encostado à linha central em posição longitudinal com a via não atravessado e teria sido, inclusivamente, possível ao veículo do Arguido passar pelo ciclista sem lhe embater (cfr. Relatório de fls. 339 e seguintes). EE. Razão pela qual se deixa, desde já, impugnado o teor do ponto 17. dos factos suficientemente indiciados, cuja redação deverá ser corrigida, através do seguinte desdobramento, devendo considerar-se como suficientemente indiciados os seguintes factos: 17. «Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido circulava na via da esquerda.»; 17.A «Por pretender mudar de direção na rotunda, EE aproximou-se gradualmente do eixo da faixa de rodagem, passou para a via da esquerda e permaneceu no lado direito desta via, encostado à linha central, em posição longitudinal com a via.»; 17.B «O Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efetuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE, quando este já se encontrava nesta via, do lado direito, junto à linha central.». FF. Conclusão que é também sustentada pela prova indiciária constante dos autos, nomeadamente pelos danos no veículo e no velocípede que demonstram que o impacto se iniciou na roda traseira deste e que o impulso maior ocorreu sobre o lado esquerdo do eixo da roda, tratando-se de um embate de tipologia de colisão em cadeia (cfr. Relatório de Peritagem Técnico-Científica a fls. 339 e ss). GG. Assim, quanto ao posicionamento e ao comportamento da vítima, mal andou o Tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão com o entendimento de que a vítima não foi diligente, atribuindo-lhe a causa do acidente, pois não resulta dos autos qualquer indício de que o ciclista não tenha atuado com prudência. HH. Quanto ao tempo médio de reação, o Tribunal a quo considerou no Ponto E como não suficientemente indiciado que "o Arguido teve um tempo de reação de, aproximadamente, 1,74 segundos, o qual resulta da posição geométrica em relação ao ponto de embate, tratando-se de um lapso de tempo de reação que permitia ao Arguido desviar o veículo ou travar o mesmo, uma vez que o tempo de reação do condutor a qualquer obstáculo é de cerca de 1 segundo". II. - O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nas declarações do Arguido durante o inquérito, o qual afirmou estar a reduzir a velocidade quando sentiu o embate, e nas declarações da testemunha FF, autor do Relatório Técnico de Acidentes de Viação, elaborado pela Brigada de Investigação de Acidentes de Viação, da Divisão de Trânsito de Lisboa, que explicou que calculou a velocidade do veículo do Arguido com base numa análise meramente comparativa que apenas incidiu no tipo de veículos envolvidos no sinistro e no tempo que o Arguido demorou a imobilizar o veículo, que o próprio admitiu não ter elementos suficientes para calcular. JJ. São as seguintes as provas indiciárias nos autos que impõem decisão diversa da decisão recorrida: •As conclusões vertidas no Relatório de Peritagem Técnico-Cientffica elaborado pela ... (fls. 339 e ss. dos autos), indicam expressamente que o Arguido teve um tempo de reação de aproximadamente 174 segundos, o qual é notoriamente superior ao tempo médio de reação abstratamente reconhecido para condutor de I segundo, • CC, testemunha ouvida no dia 26.01.2024, com depoimento gravado de 00:00 a da gravação 20240126103806_4658079_2871337, esclareceu que o tempo de reação é um tempo que é determinado a partir de um determinado estímulo até à existência de uma reação, que é a distância entre a perceção e a reação, explicando que o processo para determinar a velocidade do veículo através da simulação computacional por multicorpo é iterativo e dinâmico, calculando o comportamento dos intervenientes ao longo da distancia percorrida. tratando-se de uma abordagem mais precisa. Explicou ainda que a diferença entre a velocidade do velocípede e a do veículo do Arguido é o que resulta na projeção da distância de 43 metros, concluindo que mesmo com o Arguido a circular a 72 km/h, existiam condições de evitabilidade do acidente (cfr. minutos 00:28:15 a 00:43:00 da gravação 20240126103806-4658079-2871337) KK. Sendo o tempo médio de reação de aproximadamente Is e tendo ficado demonstrado que o tempo de reaçao do Arguido foi de I ,74s, facilmente deveria o Tribunal a quo ter concluído que existia tempo suficiente para que o Arguido reduzisse a velocidade a que circulava (72km/h) e, dessa forma, impedir que o acidente se consumasse ou, em última instância, a consumar-se, que o mesmo não provocasse a morte de EE. LL. Em face do exposto, deverá a decisão proferida sobre a matéria de facto consente do Ponto E ser revogada e substituída por outra que considere como suficientemente indiciada a respetiva factualidade. MM. No que concerne, em especial, à velocidade do veículo conduzido pelo Arguido e à sua direta relação com a morte do ciclista EE, os factos constantes dos Pontos B., F., G., H., I., J., K., L. e M. impõem decisão inversa, devendo ser dados como suficientemente indiciados; NN. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto aos factos acima mencionados nas declarações da testemunha BB e no entendimento de que a vítima, por conduzir um velocípede, não cumpriu com a diligência que lhe era exigível de se fazer identificar melhor na via rodoviária, especialmente na realização de uma manobra de mudança de faixa. OO. O Tribunal a quo desconsiderou totalmente a análise técnico-científica realizada e, consequentemente, absteve-se de abordar de forma crítica o fator crucial para a morte do ciclista — a velocidade de circulação do Arguido, de 72 km/hora, num local cujo limite máximo era de 50 km/hora. PP. A este propósito, são os seguintes os meios de prova indiciária existentes nos autos que impõem distinta decisão: . Das conclusões do Relatório de Peritagem Técnico-Científica elaborado pela ... (fls. 339 e ss. dos autos), constata-se que existiam condições para o Arguido ter evitado o embate com o velocípede, assim como a velocidade de 72 km/hora a que circulava contribuiu significativamente para os danos corporais produzidos no ciclista. . CC, testemunha ouvida no dia 26.01 .2024, com depoimento gravado de 00:00 a 00:48:41, da gravação 20240126103806-4658079-2871337, que explicou a forma como foi calculada a velocidade e o impacto resultante da colisão e corroborou as conclusões do Relatório de Peritagem Técnico-Científica relativamente às condições de evitabilidade do acidente pelo Arguido (cfr. minutos 00:38:54 a 00:43:00 da gravação 20240126103806-4658079-2871337) . CC, testemunha ouvida no dia 26.01 2024, com depoimento gravado de 00:00 a 00:20: 03 da gravação 202401261 12930_4658079_2871337, esclareceu que ultrapassar o patamar dos 50 km/hora traduz-se num incremento da probabilidade de ocorrência do dano morte, concluindo que, o dano morte do ciclista que ocorreu nos autos não ocorreria se o Arguido circulasse dentro do limite de velocidade permitido (cfr. minutos 00:00 a 00:03:00 da gravação 202401261 12930_4658079_287133). QQ. Mal andou o Tribunal a quo ao optar por desconsiderar as provas indiciárias acima indicadas, bem como ao não aplicar as normas do Código da Estrada relativas aos utilizadores vulneráveis, atendendo, ao invés, à infundada falta de diligência atribuída ao condutor do velocípede, olvidando-se do suficientemente indiciado facto de o Arguido circular em excesso de velocidade, em violação grosseira do dever objetivo de cuidado a que estava adstrito. RR. Confrontados as declarações das testemunhas, bem como as conclusões constantes do Relatório de Peritagem Técnico-Científica, conclui-se que, contrariamente ao que resulta da decisão do Tribunal a quo relativamente aos factos constantes do Ponto H., se o Arguido circulasse dentro do limite de velocidade de 50km/h imposto no local, a diferença de velocidades de circulação dos veículos seria suficiente para não provocar a morte da vítima em caso de colisão. SS. E daqui resulta também evidente que se o Arguido circulava a uma velocidade de 72km/h (conforme ficou suficientemente indiciado nos pontos 16 e 27 do despacho de não pronúncia ora em crise), e, como tal, em excesso de velocidade, tal comportamento traduz-se numa violação grosseira do dever objetivo de cuidado a que estava obrigado por força do Código da Estrada, no exercício da condução. Em suma, deverá a decisão a quo ser revogada e, consequentemente, serem os factos constantes dos Pontos B., F., G., I., J., K., L. e M., ser dados como suficientemente indiciados e corrigido o teor do Ponto 17., devendo ser aditados os Pontos 17-A e 17-B. com a redação acima sugerida. UU. Na aplicação do Direito, incompreensivelmente, o Tribunal a quo entendeu que, da insuficiência dos elementos indiciários dos autos, não era possível concluir que o Arguido tinha violado o dever de cuidado que lhe era exigível e que, mesmo circulando em excesso de velocidade, devido à conduta e à indumentária do ciclista, não era possível concluir que o Arguido pudesse e devesse ver o ciclista e, consequentemente, adequar a marcha, decidindo, por isso, não pronunciar o Arguido. VV. Resulta, porém, dos elementos probatórios recolhidos nos autos, nos termos acima expostos, que o Arguido violou de forma grosseira os deveres de cuidado a que estava obrigado na prática da condução de um veículo ligeiro. WW. O crime do homicídio por negligência está previsto no artigo 137º do Código Penal, cujos elementos objetivos são a conduta humana de ação ou omissão que consubstancie a violação de um dever objetivo de cuidado, traduzido na verificação do resultado típico morte, com inexistência de causas de justificação. XX. A jurisprudência entende que a negligência se verifica sempre que o agente, ao atuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos, não tomando as precauções adequadas a evitá-las (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-10-2019, proferido no âmbito do Processo n.0 58/16.0PTCBR.Cl, disponível para consulta em www.dqsi.pt e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-05-2018, proferido no âmbito do Processo n.º 20/15.OGTPNF,P2, disponível para consulta em www.dgsi.pt). YY. Os condutores estão obrigados a abster-se de praticar quaisquer aios suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança, bem como a não colocar em perigo os utilizadores vulneráveis, nos termos do disposto no artigo 11º, nºs 2 e 3, do Código da Estrada. ZZ. O Código da Estrada define utilizadores vulneráveis no seu artigo 1º, al. q), nos quais se incluem os velocípedes. AAA. No âmbito da condução de veículos, os condutores estão obrigados a ter em especial atenção os utilizadores vulneráveis, nos termos do disposto no artigo 24, nº 1, do Código da Estrada, devendo adequar a velocidade atendendo à presença daqueles, de forma a puder executar manobras e parar o veículo em condições de segurança. BBB. Os tribunais têm seguido, a este respeito, uma jurisprudência uniforme no sentido de que existindo uma violação das normas estradais e se o evento produzido foi do tipo tutelado pela lei com a norma violada, se deve presumir a negligência, tendo subjacente a violação de um dever objetivo de cuidado (cfr. 0 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-05-2018, proferido no âmbito do Processo 20/15.0GTPNF.P2, disponível para consulta em www.dgsi.pt). CCC. Atenta a factualidade dada como suficientemente indiciada nos autos, o sinistro deveu-se à negligência do Arguido, condutor do veículo automóvel em excesso de velocidade, causador do abalroamento do ciclista e, consequentemente. da produção do resultado típico verificado. DDD. Não resulta dos factos suficientemente indiciados, nem da prova indiciária existente nos autos, que o ciclista tenha atuado com falta de cuidado ou tenha contribuído com a sua conduta para a produção do acidente — bem pelo contrário, conforme acima referenciado. EEE. O artigo 27º do Código da Estrada, prevê os limites de velocidade estabelecidos, pelo que, viola a referida norma quem conduzir numa velocidade acima dos limites lá previstos. FFF. Resultou suficientemente indiciado sob o Ponto 16. que o veículo do Arguido circulava a 72 km/h num local onde o limite máximo de velocidade era de 50 km/h, encontrando-se, assim, o Arguido a conduzir em excesso de velocidade. GGG. Relativamente aos deveres dos condutores de veículos a motor impõem-se deveres acrescidos em relação aos utilizadores vulneráveis, nomeadamente, adotar uma condução diligente, não colocando em perigo os utilizadores vulneráveis, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 3, do Código da Estrada. HHH. A jurisprudência tem entendido que a condução desatenta é uma forma de violação da regra geral de que os condutores devem abster-se, durante a condução, da prática de atos suscetíveis de prejudicar a condução com segurança, nos termos do disposto no artigo 11º nº do Código da Estrada e que, sendo objetivamente previsível a verificação do resultado e tendo o Arguido omitido no exercício da condução o cuidado objetivamente exigível e de que era capaz, sem que tenha sequer previsto o resultado, está verificada a violação do dever objetivo de cuidado e as normas (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09-10-2019, proferido no âmbito do Processo n.0 58/16,0PTCBR.CI, disponível para consulta em www.dgsi.pt), III. A jurisprudência tem ainda entendido que a violação pelo condutor de veículos a motor das normas que proíbem transitar na via em excesso de velocidade excessiva apresenta um grau de gravidade incomparavelmente superior em relação ao utilizador vulnerável, não podendo excluir-se a responsabilidade desse condutor pelo acidente e pelo resultado produzido quando a conduta culposa que adotou contribua de forma determinante para produção do resultado, ainda que verificada a infração pelo utilizador vulnerável de uma norma (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-03-2021, proferido no âmbito do Processo n.0 417/16.9T9MAl.Pl SI, disponível para consulta em www.dgsi.pt); JJJ. Nos presentes autos, o ciclista atuou com a diligência devida, mas ainda que assim não tivesse procedido, devido à ausência de atenção e prudência do Arguido, em violação do dever objetivo de cuidado a que se encontrava adstrito, era objetivamente previsível a verificação do resultado morte, em caso de colisão com um utilizador vulnerável — como sucedeu, KKK. E mal andou o Tribunal a quo ao entender o contrário, nomeadamente, que é aos utilizadores vulneráveis, por o serem, que se impõem deveres adicionais de diligência para com os restantes utilizadores da via, que não sejam vulneráveis, e rido aos condutores de veículos a motor em relação aos utilizadores vulneráveis. LLL. Proferindo, assim, uma decisão contra legem ao disposto no artigo 11, nº3 do Código da Estrada. MMM. A incriminação da conduta típica do homicídio por negligência ocorre por conjugação das disposições dos artigos 137º e 15º do Código Penal, NNN. Na delimitação conceitual da negligência, o Código Penal não prevê, no disposto no seu artigo 15º a definição de negligência grosseira, para efeitos do disposto nº2 do artigo 137º do Código Penal. OOO. A doutrina dominante entende que a negligência grosseira é caracterizada por uma atitude especialmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, implicando envolvendo uma intensificação da negligência não apenas em termos de culpa, mas também no tipo de ilícito cometido, traduzindo-se numa profunda ausência de cuidado elementar, desrespeitando as mais evidentes regras de cuidado em relação aos outros. PPP. A jurisprudência tem entendido que a negligência grosseira prevista no nº 2 do artigo 137º do Código Penal visa abarcar as situações em que o agente se comporta com elevado grau de imprudência, omitindo de forma flagrante os mais elementares cuidados a que estava obrigado, considerando, no exercício da condução de veículos, as situações em que o condutor pratica contraordenações classificadas como graves ou muito graves pelo Código da Estrada (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/07/2008, proferido no âmbito do Processo n.0 46/04. OGTLRA.CI, disponível para consulta em www.dgsi.pt). QQQ. Ficou suficientemente indiciado nos autos que o Arguido circulava a 72 km/hora, num local cujo limite máximo era de 50 km/hora, circulando, assim, em excesso de velocidade superior em 20 km/hora do limite máximo permitido para o local — infração classificada como contraordenação grave, nos termos do artigo nos termos do disposto no artigo 145º nº 1, do Código da Estrada. RRR. O Arguido, devido à desatenção com que conduzia e à velocidade a que circulava, violou ainda outras normas de direito rodoviário, nomeadamente, as disposições dos artigos 3º nº 2, 11 nº2 2 e 3, 18º, nº 1, 24, nº 1, 25, nº1 1, alíneas c), e) e h), 27, nº 1, e 38, nº 2, alínea a), do Código da Estrada. SSS. Tratando-se de contraordenações classificadas como graves, nos termos do disposto no artigo 145º, nº 1 do Código da Estrada. TTT. A violação dos deveres de cuidado e de diligência elementares pelo Arguido, através do excesso de velocidade imprimido na condução adotada excedem as delimitações da negligência simples, consubstanciando negligência grosseira. UUU. Em face do exposto, a conduta praticada pelo Arguido preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo disposto no artigo 137, nº1 e 2, do Código Penal. VVV. Conforme acima se evidenciou, o Arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, conduzindo em excesso de velocidade e bem sabendo que, com a sua conduta, podia provocar a morte de alguém, o que se verificou, mas confiando levianamente que tal não viria a concretizar-se. WWW. O Arguido sabia igualmente que tal conduta era proibida por lei e penalmente punida e tendo capacidade de determinação, ainda assim, prosseguiu em praticar a conduta acima descrita. XXX. De todo o exposto resulta indubitavelmente que a morte do ciclista EE se deveu à conduta negligente do Arguido, pela violação dos deveres previstos nos artigos 3º, nº2 11, nºs 2 e 3 e 24, nº 1, todos do Código da Estrada, mostrando-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo disposto no artigo 137, nº 1 3 2, do Código Penal”.
O recurso foi admitido por despacho datado 24.4.2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeitos devolutivos.
O MP respondeu ao recurso.
Apresenta as seguintes conclusões: “1. A assistente GG interpôs recurso da decisão de não pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p.p. no artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal proferida nos presentes autos. 2. A apreciação da prova que o tribunal a quo efetuou em face do princípio da livre apreciação da prova é lógica e está devidamente suportada em face da prova indiciária produzida, e que não é contrária às regras da experiência comum, não se vislumbrando qualquer erro nessa mesma apreciação. 3. A matéria de facto considerada como indiciariamente apurada na decisão recorrida não ofende as regras da experiência comum, antes se apresenta como possível, quer em função da prova produzida, quer à luz das regras da lógica. 4. No nosso ordenamento jurídico vigora, como se sabe, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, de acordo com o qual, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. 5. Como bem analisou a Mm.ª Juiz de Instrução a versão do assistente não pode vingar na medida em que dos elementos carreados nos autos não é possível concluir pela suficiência de indícios no sentido de que o arguido poderia ter evitado a produção do acidente porque estava em condições de avistar o ciclista EE e que estava em condições de percecionar atempadamente a sua mudança de direção à esquerda, pois que o depoimento de BB que seguia na sua viatura atrás do ciclista foi muito impressiva a esse respeito referindo que a sinalética do ciclista para a mudança de direção à esquerda foi praticamente imperceptível, o que é corroborado pelo relatório elaborado pela equipa de investigação de acidente de viação da PSP junto aos autos, pelo que outro despacho não poderia ter lugar que não fosse de não pronúncia, tal como veio a ocorrer, não padecendo o mesmo de qualquer censura”.
*
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.mª Senhora Procuradora Geral Adjunta, emitiu parecer acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público em 1ª Instância.
Foi cumprido o artigo 417, nº2 do CPP e a assistente veio responder ao parecer.
Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência.
* Da decisão recorrida:
É o seguinte o teor da decisão recorrida: “Declara-se encerrada a instrução. *** O Tribunal é o competente. O processo apresenta-se válido e regular, não havendo nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à prolação de decisão instrutória. *** Os presentes autos de inquérito tiveram início com a participação de acidente, elaborado pela PSP, na qual se relatam factos, em abstracto, susceptíveis de integrar a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 15.º e 137.º do Código Penal. No inquérito foi ouvida a testemunha BB. Foi recolhida prova documental, nomeadamente: participação de acidente (fls. 4 e 5); talão de pesquisa de álcool no sangue do condutor AA (fls. 11); relatório da autópsia médico-legal (fls. 59 a 61); exame toxicológico da vitima mortal (fls. 60-v e 61); relatórios de inspecção judiciária e fotográficos e análise ao acidente (fls. 188 a 196); relatório fotográfico complementar (fls. 197 a 202); relatório técnico de acidente de viação (fls. 67 a 98); registos do relógio da marca ... utilizado pela vítima mortal (fls. 137 a 145) e fotografias do equipamento/imagens do equipamento usado pelo ciclista (fls. 147 a 156). AA foi constituído arguido e interrogado nessa qualidade (fls. 51 e 52). * Analisados e ponderados os elementos probatórios recolhidos, o Ministério Público concluiu que existiu negligência por parte do condutor do velocípede (a vítima mortal) e inexistirem factos integradores de um qualquer tipo de crime praticado pelo arguido e, por conseguinte, proferiu despacho de arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. * Inconformada, GG, viúva da vítima mortal, constitui-se assistente e requereu a abertura de instrução, nos termos vertidos no requerimento de abertura de instrução de fls. 207 e seguintes, cujo teor se dá como reproduzido para todos os efeitos legais, alegando, em síntese, que: - o Ministério Público não procedeu a uma correcta análise dos elementos probatórios recolhidos durante o inquérito (nomeadamente a propósito da velocidade a que circulava o arguido); - que existe prova indiciária suficiente nos autos que permite submeter o arguido a julgamento pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punido pelos artigo 137.º, n.º 2 e 15.º do Código Penal, decorrente da violação das normas constantes dos artigos 11.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 24.º, n.º 1, 27.º e 38.º do Código da Estrada. * Foi aberta a instrução e produzida prova testemunhal, tendo sido ouvidas 6 testemunhas indicadas pela Assistente (HH, II, DD, BB, FF e CC). Foi ainda junta prova documental, nomeadamente fotografias (do veículo do arguido após o embate, fotografias do equipamento utilizado pelo ciclista/vítima mortal do embate), uns vídeos e um relatório de peritagem técnico-científica de acidente rodoviário. * Não se vislumbrando qualquer outro acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, efectuou-se debate instrutório, nos termos do disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º do Cód. de Proc. Penal. Em sede de debate instrutório, atendendo à prova produzida na instrução, foi requerida pela Assistente uma alteração não substancial dos factos. Comunicada a alteração não substancial dos factos, ao abrigo do disposto no artigo 303.º do Cód. de Proc. Penal, o Ministério Público e a Defesa do Arguido disseram nada ter a opor, não tendo sido requerido prazo para preparação da defesa. * Há, agora que, nos termos do disposto no artigo 308.º do Cód. de Proc. Penal proferir decisão instrutória. *** De harmonia acordo com o disposto no art. 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão final proferida em sede de inquérito (acusação ou arquivamento do inquérito), em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. Nesta fase processual pretende-se formular um juízo seguro acerca da suficiência ou insuficiência de indícios da prática de factos subsumíveis a um ou mais tipos de ilícito criminal, dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, por força daqueles factos, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. art.º 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal). “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.” Assim, quando “da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação.” haverá lugar à prolação de despacho de pronúncia (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 3.ª Edição, Verbo 2009, páginas 182 e 183). Por outro lado, quando se verifique (i) a inadmissibilidade legal do procedimento criminal; (ii) um vício do processo, nulidade ou excepção que determine a devolução do processo para a fase de inquérito; (iii) a inexistência de factos, a sua não punibilidade ou irresponsabilidade do arguido ou (iv) a insuficiência da prova para a pronuncia, haverá lugar a um despacho de não pronúncia. Para pronunciar há que fazer uma análise de toda a prova produzida durante o inquérito e a instrução, à luz do princípio da presunção de inocência. Para tanto há que sujeitar a prova indiciária a uma análise objetiva, racional e lógica, conjugada com as regras da experiência. *** Apreciando os factos em análise e a prova recolhida no inquérito e na instrução: Dos factos suficientemente indiciados: 1. No dia ... de ... de 2021, EE saiu da sua residência quando eram cerca das 21h30m para, tal como era habitual na sua rotina, praticar ciclismo. 2. Era um ciclista experiente, já que praticava diariamente a actividade de ciclismo, tendo já algumas rotas fixas, as quais bem conhecia. 3. À data dos factos, EE envergava roupa desportiva adequada à prática daquela actividade, designadamente, um casaco e uns calções, ambos da marca “...”, marca de roupa para ciclistas profissionais, de cor preta com barras reflectoras nas costas, barras reflectoras verticais no bolso traseiro, bem como uma barra reflectora horizontal em toda a borda inferior do casado. 4. No que respeita aos calções, também estes apresentavam uma barra reflectora na bainha, ao nível da coxa. 5. EE utilizava, ainda, um capacete da marca ..., modelo para ciclismo profissional “...”, com uma barra horizontal reflectora a zona traseira, da nuca. 6. Também as sapatilhas utilizadas por EE eram de marca e modelo destinados ao ciclismo profissional, de cor amarelo néon, com barras horizontais reflectoras na zona traseira e nos velcros fixadores das sapatilhas. 7. O relógio utilizado pelo EE era um relógio desportivo, da marca ..., modelo ..., com GPS integrado, bússola e altímetro, cujas funcionalidades registam em tempo real o percurso realizado e, simultaneamente, medem diversos aspectos físicos do utilizador (frequência cardíaca, velocidade, esforço, etc). 8. O velocípede por aquele utilizado era da marca ..., modelo ..., o qual se encontrava equipada com dois faróis de luz, um dianteiro da marca e modelo ..., de 1600 lumens e operado por bateria; e um farol traseiro, composto por luz vermelha intermitente, este que era um dispositivo fixo à bicicleta por aparafusamento, operado, também, a bateria. 9. No dia ... de ... de 2021, EE realizou a sua rota habitual, cujo percurso se estendia ao longo da ..., junto ao ..., no ..., no sentido nascente para poente. 10. O trajecto era composto por uma “recta em patamar, com dois sentidos de transito separados fisicamente por placa centrar sobrelevada e raia, datada de duas vias de trânsito em cada sentido, ladeada por passeios e bermas pavimentadas em ambos os lados, com passadeiras reguladas por sinalização semafórica mediante controlo de velocidade e zona de inversão de marcha”, o qual era percorrido por EE, no momento em que ocorreu o acidente, à velocidade de, aproximadamente, 28 km/h. 11. A artéria encontrava-se com a iluminação pública ligada, com “visibilidade suficiente em toda a sua largura e extensão, sem obstáculos naturais”, o trânsito era escasso e circulava de forma regular. 12. No que respeita às condições atmosféricas aquele período do dia, estava uma noite de bom tempo, encontrava-se o pavimento seco, limpo e “em estado regular de conservação, sem anomalias visíveis”. 13. Naquela mesma via e, imediatamente atrás do velocípede, circulava BB, no veículo automóvel de matrícula ..-BF-.., a uma velocidade de cerca de 50 km/hora. 14. Ao avistar o velocípede, a testemunha BB conformou a sua velocidade de circulação à velocidade adoptada por EE, de cerca de 27,5 km/h e manteve-se na sua retaguarda. 15. Circulava, ainda, na via mais à esquerda, o Arguido, AA, num veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-RU-.., marca …, modelo …, de cor …, em aproximação e ultrapassagem ao veículo automóvel que seguia imediatamente atrás de EE. 16. O arguido encontrava-se a circular a uma velocidade superior ao limite de velocidade legalmente permitido para o local, i.e. 50km/hora, concretamente, a pelo menos, 72 km/h. 17. Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efectuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE. 18. O arguido abalroou a vítima, embatendo com a zona direita, lateral e dianteira, do seu veículo automóvel, na parte traseira do velocípede conduzido pela vítima. 19. Em acto continuo, EE foi projectado no ar, embateu no pára-brisas do veículo do Arguido e foi seguidamente projectado para a frente, caindo no solo junto à berma da via do lado direito, a cerca de 50 metros do local de embate. 20. Em consequência da referida colisão, a vítima sofreu lesões extensas e graves que lhe provocaram a morte no próprio local do acidente, tendo ficado caído junto do lancil do passeio norte. 21. O embate da bicicleta no solo deixou um sulco no pavimento, alguns metros depois da colisão – coordenadas 29:30m;00:10m. 22. Em consequência do acidente descrito, a vítima sofreu lesões várias, desde logo, fracturas ao nível dos ossos do crânio e da cervical, que provocaram a sua morte declarada cerca das 22h37m. 23. O capacete da vítima ficou destruído e partido em duas partes. 24. O velocípede da vítima sofreu danos na parte traseira, em especial na roda traseira, local onde sofreu o embate do veículo do Arguido. 25. Entre o velocípede e o veículo da testemunha distavam cerca de 20 metros. 26. Inexistiam quaisquer marcas de travagem na via onde ocorreu o embate. 27. O embate entre o veículo ..-RU-.. e o velocípede ocorreu na 2.ª fila, aproximadamente a 0,7 m da linha central ou 2,3 m da linha limite da 2.ª fila. No momento em que ambos os veículos embateram, encontrava-se o veículo ..-RU-.. a circular a 72 km/h e o velocípede a 27,5 km/h. Dos factos não suficientemente indiciados: A. Foi accionado o semáforo de controlo de velocidade que se encontra instalado naquela artéria, que apresentava a luz amarela no momento prévio ao acidente. B. O acidente teve como causa directa a velocidade imprimida pelo arguido ao veículo ..-RU-... C. Inexistia qualquer “obstrução” do campo de visão do Arguido. D. O arguido estava perfeitamente capaz de avistar o velocípede. E. O arguido teve um tempo de reacção de, aproximadamente, 1,74 segundos, o qual resulta da posição geométrica em relação ao ponto de embate, tratando-se de um lapso de tempo de reacção que permitia ao Arguido desviar o veículo ou travar o mesmo, uma vez que o tempo de reacção do condutor a qualquer obstáculo é de cerca de 1 segundo. F. O Arguido devido à velocidade imprimida ao seu veículo foi incapaz de impedir ou evitar que o facto se consumasse. G. A morte de EE foi causada apenas pela velocidade empregue pelo Arguido na sua condução, em grave violação dos limites legalmente permitidos para o local (50 km/h). H. Caso o arguido circulasse dentro do limite de velocidade de 50 km/h imposto no local, a diferença de velocidades de circulação dos veículos (velocípede da vítima – 28 km/h e a velocidade de 50 km/h) seria suficiente para não provocar a morte no caso de colisão. I. O Arguido violou grosseiramente o dever objectivo de cuidado a que estava obrigado por força do Código da Estrada, no exercício da condução. J. O resultado é, assim, objectivamente imputável à conduta adoptada pelo arguido, contrária aos deveres estradais que impendem sobre qualquer condutor. K. A morte da vítima foi assim resultado directo da conduta do Arguido, que omitiu os deveres e diligencias lhe era objectivamente exigido, bem como tinha a capacidade de prever que a condução em excesso de velocidade é idónea a causar eventuais e graves danos a utilizadores vulneráveis. L. O Arguido é imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitiam reconhecer o dever de cuidados que lhe era objectivamente exigido, bem como tinha a capacidade de prever que a condução em excesso de velocidade é idónea a causar eventuais e graves danos a utilizadores vulneráveis. M. O arguido agiu sempre livremente, voluntariamente e conscientemente, mesmo sabendo que a sua conduta era punível por lei. * Consigna-se que não fez constar da matéria indiciariamente provada ou não provada a matéria conclusiva, repetitiva, ou de Direito incluída na “estrutura acusatória” do RAI. * Da motivação: Em sede de Instrução, foram ouvidas as testemunhas indicadas pela Assistente, entre as quais HH, II e DD. A primeira testemunha, HH, amigo e vizinho da vítima mortal, explicou ter jantado em casa de EE no dia do acidente e que aquele se estava a preparar para ir andar de bicicleta, porque se encontrava a treinar para uma prova ironman em … e que usava equipamento de ciclismo (que não conseguiu concretizar). II, amigo da vítima mortal e também praticante de ciclismo, esclareceu que treinava, por vezes, com a vítima e descreveu-a como sendo um ciclista experiente, descreveu o tipo de equipamentos que usava e a forma extremamente cautelosa como o EE se comportava na estrada quando praticavam ciclismo juntos e como assinalava e realizava as manobras, nomeadamente de mudança de faixa. DD amigo da vítima mortal e também praticante de ciclismo, esclareceu que treinava por vezes com a vítima e descreveu-a como sendo um ciclista muito consciente, muito cauteloso, muito respeitador, descreveu ainda o tipo de equipamentos que EE usava e a forma como os ciclistas assinalam e realizam as manobras, nomeadamente de mudança de faixa. Da conjugação do depoimento destas três testemunhas com os elementos fotográficos relativos ao equipamento usado pelo ciclista no dia do acidente (fls. 137, 147, 151 a 152, 198 a 202, 262 a 287) e os elementos ínsitos na participação de acidente relativos às circunstâncias de tempo em que ocorreu o acidente (fls. 4 a 5-v) e no relatório de inspecção judiciária (fls. 188 a 202) decorrem indiciariamente demonstrados os factos relativos às circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o acidente (aqui se incluindo as condições atmosféricas que se faziam sentir, o tipo de via, as condições da via e o trânsito verificado na altura), bem como o percurso que a vítima se encontrava a realizar e ainda o equipamento que utilizava (bicicleta e relógio e capacete) e o vestuário que trajava. As lesões sofridas pela vítima mortal decorrem do relatório da autópsia médico-legal (fls. 59 a 61), no qual se admite que as lesões apresentadas pelo ciclista fossem devidas ao acidente de viação sofrido e que tais lesões traumáticas constituam a casa adequada de morte. Foi ainda considerada a declaração de óbito (fls. 8). Os danos sofridos pelo veículo do arguido, pelo velocípede e no capacete encontram-se documentados nos autos (fls. 198, 200 e 201). No que se refere à dinâmica do acidente, decorre da prova produzida em sede de inquérito e de instrução o seguinte: No inquérito foi ouvida a testemunha BB, agente da PSP, que explicou que seguia a caminho do trabalho, a uns 40/50 km/h, 15/20m atrás do ciclista, de cuja presença só se apercebeu através da iluminação pública existente na via, atendendo à roupa escura usada pelo ciclista, mais referiu que viu o ciclista efectuar uma ligeira sinalética com a mão esquerda, que foi quase imperceptível, mas que o declarante apenas a viu por seguir com atenção atrás do ciclista, e, praticamente em simultâneo, este deslocou-se da via da direita para a via da esquerda, e que, ao mesmo tempo o veículo ..-RU-.. se encontrava a ultrapassá-lo e assim que o ciclista passou para aquela via, foi de imediato embatido por aquela viatura automóvel. A mesma testemunha referiu ainda que o ciclista não olhou para trás no sentido de se inteirar da possibilidade de fazer a manobra sem causar perigo para ele ou para outros. O arguido prestou declarações em sede de inquérito, nas quais indicou que se encontrava a reduzir a velocidade uma vez que se aproximava de uns semáforos de velocidade que se encontravam colocados no ilhéu separador de sentidos de trânsito e que se encontrava a reduzir a marcha do veículo para suspender a marcha, se necessário, junto do semáforo que ainda estava a alguma distancia quando sentiu um embate na sua viatura. O relatório técnico de acidente de viação elaborado no inquérito pela Brigada de Investigação de Acidentes de Viação, da Divisão de Trânsito de …(fls. 188 a 202) conclui que a principal causa do acidente é a “falha humana por parte do ciclista que, por distracção, incúria ou vontade própria, não tomou o devido cuidado e atenção ao efectuar a manobra de mudança de direcção para a via da esquerda e sem cumprir com o que é exigido quanto ao modo como esta deve ser executada, que obriga à CEDÊNCIA DE PASSAGEM A TODOS OS VEÍCULOS que transitem na via em que vai entrar, via esta onde circulava o condutor da viatura automóvel ..-RU-.. a curta distância e detinha a prioridade de passagem.” Já em sede de instrução foi ouvida a única testemunha presencial do acidente, BB, agente da PSP, que seguia atrás do ciclista. Esta testemunha prestou um depoimento que mereceu credibilidade ao Tribunal, que o percepcionou como espontâneo, fazendo um relato objectivo, narrando e respondendo apenas sobre o que se recordava. Entendeu o Tribunal o depoimento como sincero, concatenando não só o facto de a testemunha ser agente da PSP e, por causa das suas funções estar habituado a lidar com diversas ocorrências e a assistir a situações complexas, como a dos autos, mas igualmente pela forma ainda bastante afectada e sentida que revelou ao relatar o que presenciou. A testemunha relatou o acidente nos mesmos moldes em que já o tinha feito em sede de inquérito, reforçando que a forma como o ciclista assinalou a mudança de direcção e a forma como se assegurou de que podia mudar de faixa (que relatou como olhou meio segundo e que possivelmente só foi suficiente para ver as luzes do carro que a própria testemunha conduzia) foi quase imperceptível e realizado quando ia à sua frente, a meio da faixa, pelo que apenas foi por si percepcionado porque vinha com bastante atenção ao ciclista. Reforçou que a visibilidade do ciclista era reduzida, atendendo à roupa escura que vestia e que nem se apercebeu que trouxesse um reflector na traseira da bicicleta (apesar de, confrontado com as fotografias do acidente admitir como possível que trouxesse, mas não se recordasse do mesmo, o que também já havia dito em sede de inquérito). Já a testemunha FF (agente da PSP, da esquadra de trânsito, afecto à investigação de acidentes desde 2006, que elaborou o relatório de inspecção judiciária) foi ouvido acerca do relatório por si elaborado, tendo explicado a forma como elaborou o relatório e, nomeadamente, como calculou a velocidade a que seguiria o veículo conduzido pelo arguido, com base no tempo que a viatura demorou a imobilizar-se, tendo em conta que o tipo de veículos envolvidos no acidente, nomeadamente, um automóvel e uma bicicleta e não a projecção do corpo/a massa do corpo do ciclista, ultrapassando tais factores a sua área de conhecimento. Finalmente, foi ouvida a testemunha CC, que elaborou, a pedido da Assistente, um relatório de peritagem técnico-científica de acidente rodoviário, junto aos autos. A testemunha explicou a forma como realizou o estudo, os elementos a que teve acesso e que consultou e a forma como chegou às conclusões que verteu no relatório e como depois realizou o modelo computacional de reconstituição do acidente, também junto aos autos. Ora, da conjugação do depoimento das três primeiras testemunhas, que o tribunal entendeu como credível e sincero, decorre que aquelas testemunhas não presenciaram o acidente, limitando-se o seu conhecimento às rotinas e dinâmicas da vitima mortal quando praticava ciclismo, o que, não obstante ser apto a convencer o Tribunal de que EE era um ciclista experiente e cauteloso, não permite afastar ou pôr em causa o relato da única testemunha (presencial) do acidente, até porque, de acordo com as regras da experiência comum, é credível que, mesmo as pessoas mais diligentes e cautelosas possam ter momentos em que usam menos do que a sua cautela/diligência habitual. Assim, o Tribunal considerou indiciariamente provados os factos elencados no que respeita à dinâmica do acidente conjugando as declarações de arguido, da testemunha BB e do vertido no relatório realizado pelo investigador da PSP. O Tribunal considerou ainda as conclusões técnicas do relatório elaborado pela testemunha CC no que respeita às velocidades impressas e dados métricos do acidente. Por outro lado, quanto aos factos não suficientemente indiciados, desde logo, quanto à cor do semáforo, o arguido referiu que o semáforo apresentava a luz amarela no momento prévio ao acidente, tendo a testemunha BB referido que, tanto quanto se lembrava, o semáforo se encontrava com a luz verde, pelo que não foi possível apurar, mesmo num juízo indiciário, qual a cor que apresentava o semáforo de velocidade perto do local do acidente. Já quanto às causas do acidente (e, consequentemente da morte do ciclista), condições de visibilidade e possibilidades de reacção do arguido (cujos factos o Tribunal entende não se encontrarem suficientemente indiciados), da análise conjugada da prova produzida em sede de inquérito, considerando nomeadamente o depoimento da testemunha BB, as declarações do arguido e o relatório técnico de acidente de viação extrai-se que, atendendo à indumentária, equipamentos e bicicleta escuros utilizados pelo ciclista, sendo de noite e estando o veículo do arguido a circular na faixa da esquerda com um veículo à sua direita, entre si e o velocípede até que este mudou de faixa, não é possível concluir que o arguido estava, assim, perfeitamente capaz de avistar o velocípede. Acresce ainda que, dos referidos elementos e, especialmente do depoimento da única testemunha do acidente decorre que o ciclista não empreendeu a diligência necessária que lhe era imposta considerando as concretas condições em que circulava. Isto é, não obstante o vestuário e equipamento que o arguido empregava fosse equipamento e vestuário adequado à prática de ciclismo e ter até alguns elementos reflectores/de sinalização, atendendo a que circulava à noite e a indumentária era essencialmente escura, não era suficiente para que os restantes utilizadores da via o identificassem imediatamente. Isto mesmo foi corroborado pelo próprio condutor que seguia atrás do ciclista em sede de instrução, quando referiu não o ter avistado com facilidade, nem sequer se recordando de ver o reflector traseiro da bicicleta, mesmo tendo seguido durante algum tempo atrás do ciclista. Também as declarações do arguido, de que não viu o ciclista até embater nele levam a concluir que a forma como se apresentava não era suficiente para garantir que era visto pelos restantes utilizadores da via, inviabilizando ou praticamente inviabilizando que o arguido se apercebesse da presença da vítima enquanto seguia na faixa da direita e mesmo quando mudou para a faixa em que circulava o arguido e assim, lhe permitisse evitar o embate. O depoimento da testemunha BB também se revela determinante para afastar a conclusão de que apenas a velocidade em excesso a que o arguido indiciariamente seguiria foi a única causa do embate, na medida em que até a testemunha, que seguiu algum tempo atrás do ciclista e vinha com atenção a este, ficou surpreendida com a mudança de direcção do ciclista, atendendo à sua insuficiente sinalização da manobra. In casu, atendendo a que a vítima conduzia um velocípede sem motor, à noite, numa estrada nacional, era exigida até para sua protecção toda a precaução, prudência e diligência ao efectuar uma mudança de faixa, sendo exigível que verificasse estarem reunidas todas as condições, nomeadamente, verificar de forma segura que podia ingressar na faixa que pretendia, sem que nenhum veículo circulasse nessa faixa/a uma distância que pusesse em causa a sua manobra. ** Aqui chegados, em face da prova produzida no inquérito e na instrução, importa apurar se os factos indiciariamente provados são suficientes para submeter o arguido a julgamento. *** Do crime de homicídio por negligência: O crime de homicídio é, pela sua própria natureza, um crime de resultado (a morte de outrem) que pode ser cometido de forma dolosa ou de forma negligente. Prescreve o artigo 137.º do Código Penal que, “1 - Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2- Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.” São assim elementos constitutivos do crime de homicídio negligente: a existência de uma conduta humana (activa ou omissiva), através da qual se infringe um dever objectivo de cuidado, a possibilidade de imputação objectiva do resultado (morte) à conduta contrária ao dever e, ainda, que o agente seja imputável e com as faculdades, conhecimento e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido. “O facto negligente integra um tipo de ilícito (a violação do cuidado a que, segundo as circunstâncias, o agente está obrigado) e um tipo de culpa (a violação do cuidado que o agente, segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais, está em condições de prestar).” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-02-2016, proferido no processo n.º 235/14.9GAPTL-A.G1, Relatado por Dolores Sousa e Silva). Assim, o agente será incriminado sempre que de acordo com as regras da experiência comum e as circunstâncias do caso, seja legítimo concluir que ele devia e podia ter previsto o resultado da sua conduta. No caso sub judice, a conduta do arguido tem de ser aferida à luz das normas que regulam a circulação rodoviária, mais concretamente o Código da Estrada, cujas norma foram gizadas no pressuposto de que a condução de veículos automóveis é uma actividade socialmente valiosa, porém, perigosa pelo que se exige um especial comportamento para quem a exerce com vista a evitar a criação de situações de risco. Com efeito preceitua o artigo 3.º, n.º 2 do Código da Estrada um dever geral de diligência e de cuidado imposto a quem é utilizador das vias públicas, ali se estabelecendo que as pessoas se devem abster de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes da via. Esta regra dirige-se não só à acção mas também à inteligência: neste sentido, o condutor deve proceder com o objectivo de nunca comprometer com qualquer manobra a segurança do trânsito, prevendo os perigos resultantes da manobra que efectua, mas também os perigos decorrentes da demais circulação rodoviária que ao redor de si se processa ou pode processar, ao que acresce ainda o dever de prevenir, até onde é possível e de acordo com as regras de experiência daquilo que pode acontecer no quotidiano rodoviário, o comportamento imperfeito dos outros utentes da via. Desde logo, resulta do disposto no artigo 11.º, n.º 2 do Código da Estrada que os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança. Do artigo 18.º, n.º 1 do Cód. da Estrada resulta que o condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis. Além destes, um dos deveres que impende sobre todos os condutores é o de adequar a velocidade que imprimem aos seus veículos às características e estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, por forma a que possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível á sua frente (art. 24.º n.º1 do Código da Estrada). O artigo 38.º do Código da Estrada determina que: “1 - O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário. 2 - O condutor deve, especialmente, certificar-se de que: a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança; b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam; c) Nenhum condutor que siga na mesma via ou na que se situa imediatamente à esquerda iniciou manobra para o ultrapassar; d) O condutor que o antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo; e) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade. (…).” Tais regras visam salvaguardar que todos os condutores possam parar ou diminuir a sua marcha no espaço livre e visível à sua frente sempre que tal se mostre necessário para evitar a verificação de acidentes e prevenir quaisquer riscos de lesão da integridade de pessoas ou danos em coisas. Por outro lado, também relevam, no caso concreto os artigos 35.º, n.º 1 do Cód. da Estrada ao reger que o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito. E ainda o artigo 44.º, n.º 1 do mesmo diploma, onde se determina que o condutor que pretenda mudar de direcção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efectuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação. Ora, no caso concreto, em face da factualidade suficientemente indiciada (considerando os elementos produzidos na fase de inquérito e alguns deles confirmados em sede de instrução), não é possível concluir, mesmo num juízo de indiciação que o arguido tenha violado o dever de cuidado que lhe era exigível nas concretas condições e circunstâncias em que ocorreu o acidente. Pelo contrário, da prova produzida resulta que a vítima circulava na faixa da direita e procedeu a uma mudança de via para a faixa da esquerda, provavelmente para depois inverter o sentido de marcha numa zona existente para o efeito, não atentando, como podia e devia, aos veículos que se aproximavam/circulavam na faixa para onde ia transitar, nomeadamente ao veículo conduzido pelo arguido. Ou seja, dos elementos constantes dos autos, decorre que, na origem do acidente esteve o desrespeito, pelo ciclista, das normas estradais e das necessárias regras de prudência, de atenção e de cuidado, ocorrendo o acidente precisamente porquanto a vítima muda para a faixa de rodagem em que seguia o arguido, sem acautelar estarem reunidas todas as condições de segurança que se lhe impunham. Na verdade, mesmo seguindo o arguido acima da velocidade indicada para o local, sendo de noite, circulando o ciclista de preto e tendo assinalado a sua mudança de faixa de rodagem de forma insuficiente, não é possível concluir que o arguido pudesse (e devesse) ver o ciclista antecipadamente e adequar a sua marcha ao ciclista, não sendo possível demonstrar a culpa do arguido, imprescindível à responsabilidade criminal (nullum crimen sine culpa). Assim, afigura-se existir insuficiência de elementos probatórios que permitam fazer um juízo de prognose favorável à condenação do arguido, caso este fosse submetido a julgamento. E, por conseguinte, resulta que, em sede de instrução não foram produzidas provas suficientes que invalidem os fundamentos invocados no despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, nem foram colhidos indícios suficientes que permitam imputar ao arguido a prática do crime de homicídio por negligência em causa. * Em face do exposto, decide-se não pronunciar para submeter a julgamento, o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio por negligencia grosseira, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 2 do Código Penal, conjugado com o artigo 15.º do mesmo diploma, ou por qualquer outro. Sem custas. Registe e notifique”.
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II- Fundamentação:
É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…), sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente - cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
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Na situação concreta a única questão a decidir é a da existência de indícios suficientes, para pronunciar o arguido pela prática de um crime de homicídio negligente, p.p.p artigo 137, nº 2 do CPP. Apreciando:
Desde logo cumpre referir que na situação concreta os autos foram arquivados, tendo a assistente requerido a abertura de instrução, pelo que a indiciação terá sempre por referência os factos alegados no RAI (requerimento de abertura de instrução), que, fixam o objeto do processo.
Insurge-se a recorrente contra a apreciação dos indícios suficientes efetuado pelo Tribunal recorrido, pretendendo em primeiro lugar que a redação do ponto 17 (que constava do RAI) seja corrigida e aditados dois novos factos, nos seguintes termos:
“17. «Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido circulava na via da esquerda.» (sendo a redação dada pelo Tribunal recorrido a facto 17 a seguinte: “Consta de tal facto que: “ Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efectuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE”); 17.A «Por pretender mudar de direção na rotunda, EE aproximou-se gradualmente do eixo da faixa de rodagem, passou para a via da esquerda e permaneceu no lado direito desta via, encostado à linha central, em posição longitudinal com a via.»; 17.B. «O Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efetuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE, quando este já se encontrava nesta via, do lado direito, junto à linha central.»”.
Pretendendo ainda a recorrente que os factos B., F., G. I., J., K., L. e M., considerados não suficientemente indiciados, passem a ser considerados suficientemente indiciados.
Impugna, assim, a recorrente, determinados factos, dados como suficientemente indiciados e outros factos dados como não indiciados.
O artigo 412, nº 3 do CPP prevê o recurso da matéria de facto. Tal refere-se ao erro de julgamento que tem como pressuposto que a prova produzida, analisada e valorada pelo Tribunal, nunca poderia levar à fixação da matéria de facto, ou a parte dela, que consta da decisão.
Para que estejamos perante um erro de julgamento necessário se torna que o recorrente consiga demonstrar que a conclusão a que o Tribunal chegou sobre a matéria de facto assente, em face das provas produzidas não é plausível, ou, pelo menos é duvidosa.
Como se extrai do artigo 412 do CPP, quando o recurso tem por objeto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar, sob pena de rejeição:
a) Indicação individualizada dos pontos de facto constantes da decisão recorrida que considera incorretamente julgados;
b) Indicação das provas que impõem decisão diversa, identificando o meio de prova ou o meio de obtenção de prova que imponham decisão diversa, com menção concreta, quanto à prova gravada, do início e termo da gravação, e a citação do ponto concreto da gravação, que fundamente a impugnação (neste sentido Pereira Madeira em anotação ao CPP, pág. 1391; e
c) A indicação das provas que pretende que sejam renovadas.
Tais exigências facilmente se compreendem se tivermos em conta que o julgamento da matéria de facto em primeira instância é realizado segundo o princípio da imediação.
Tal princípio pressupõe um contacto direto e pessoal entre o Julgador e as pessoas que perante o mesmo prestam depoimento ou declarações, permitindo uma maior perceção sobre o facto objeto de julgamento.
Assim, é compreensível que em sede de recurso se exija ao recorrente que cumpra as formalidades elencadas no citado artigo.
Acresce que a decisão do Tribunal há de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», Vol. I, 1974, pág. 204.
Concluir-se por erro de julgamento implica que o Tribunal apreciou erradamente a prova, sem atentar à prova produzida, violando as regras da experiência.
Nos termos do artigo 308, nº 1 do CPP : “1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
O despacho de pronúncia deve ser devidamente fundamento, nos termos do artigo 205º da CRP, nomeadamente esclarecer os motivos que levaram a determinada indiciação, por referência a concretos meios de prova, colhidos em inquérito e instrução, e, no caso de não pronúncia, deve especificar os factos considerados suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, o que, facilmente se compreende se tivermos em conta, os princípios gerais do processo penal, sem prejuízo da discussão sobre se a decisão de não pronúncia possui força de caso julgado.
Contudo, não obstante tal, o mecanismo do artigo 412 do CPP não se aplica à decisão instrutória, mas apenas à decisão final, à sentença/acórdão, referindo-se o mencionado artigo concretamente à matéria de facto.
Neste sentido acórdão do TRE de 25.10.2022 (in base de dados do ECLI): “I. Os vícios do artigo 410.º do CPP e a invocação do erro de julgamento quanto à matéria de facto (artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP) são meios previstos pela Lei para questionar a matéria de facto acolhida na sentença, não tendo aplicação à decisão instrutória (artigo 307.º do CPP). II. A versão apresentada pelo recorrente, embora plausível, não se sobrepõe à encontrada pelo Tribunal e que foi devidamente fundamentada, de acordo com a sua livre convicção de forma lógica, racional e em conformidade com as regras da experiência, tudo ao abrigo do artigo 127.º do CPP”.
No entanto, tal não obsta a que a parte possa questionar a apreciação efetuada pelo Tribunal a quo sobre a indiciação, em sede de decisão instrutória, e que solicite ao tribunal superior, através do competente recurso, tal apreciação, atenta a prova produzida em sede de inquérito e de instrução, tendo em conta, nomeadamente o direito ao recurso consagrado na CRP e a circunstância do Tribunal da Relação conhecer de facto e de direito.
Acresce que, à decisão instrutória, aplicam-se os princípios da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127 do CPP, e do in “dubio pro reo”.
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Vejamos, então, se a apreciação feita pelo Tribunal a quo em relação aos factos suficientemente/ insuficientemente indiciados foi a correta, tendo em conta os princípios aludidos, ou se, pelo contrário, viola as regras da experiência.
O Tribunal a quo valorou essencialmente o depoimento da testemunha BB no que tange à dinâmica do acidente.
Do auto de participação que deu origem aos presentes autos consta que segundo a testemunha BB, agente da PSP os factos ocorreram da seguinte forma: “Na ...) ao deslocar-me para o meu local de trabalho, visualizei um ciclista na via da direita, verifiquei que o mesmo mudou de via para o lado esquerdo, momento em que uma viatura (ligeiro de passageiros) de cor escura surge atropelando o ciclista, projectando o mesmo para o solo. De imediato e dentro dos limites de segurança parei a minha viatura e prestei auxílio. De salientar que a viatura ultrapassou a minha desconhecendo a velocidade da mesma.”
Do mesmo auto consta que o arguido descreveu os factos da seguinte forma: “Vinha pela ... sentido ..., circulando pela esquerda, próximo ao sinal, uma bicicleta colidiu com a minha viatura”.
Em inquérito quando interrogado o arguido prestou as seguintes declarações:
“Que vem aos autos na qualidade de Arguido e é de sua livre e espontânea vontade que pretende prestar o seu esclarecimento sobre os factos de que vem acusado. O Arguido informa que no dia ...-...-2021, por volta das 22H00, circulava na ..., em ..., na direcção de nascente para poente, deslocando-se em direcção da sua residência no ..., após ter saído do seu turno de serviço no supermercado "..." que sita no espaço da ..., em .... O Arguido seguia o seu trajecto pela via mais à esquerda, em local onde aquela avenida apresenta duas vias de circulação para cada sentido de marcha, uma vez que circulava uma outra viatura automóvel pela via mais à direita. Naquela altura, apesar do arguido não saber a que velocidade circulava, tem a noção que o fazia dentro dos limites regulamentares, bem como informa que havia pouco trânsito a circular naquele local. Informa que já era horário nocturno, encontrando-se a artéria com iluminação pública, em que se encontrava a reduzia a velocidade uma vez que se aproximava de uns semáforos de velocidade que se encontram colocados a sentidos de trânsito, junto do local que apresenta uma rotunda de inversão de marcha entre a ... (sentido de nascente para poente) e a ... (sentido de poente para nascente). Neste momento, o Arguido julga que o semáforo ali colocado estaria a ostentar a luz amarela, enquanto se encontrava a circular do lado esquerdo, a ultrapassar um veículo que circulava mais devagar, na mesma artéria e sentido, pela via da direita. Praticamente em simultâneo, em que o Arguido se encontrava a reduzir a marcha do veículo, para suspender a marcha, se necessário, junto do semáforo que ainda estava a alguma distância, sentiu um embate na sua viatura automóvel que lhe partiu o vidro do pára-brisas anterior, desconhecendo o que poderia ter causado tal situação. Inicialmente, ainda pensou que pudesse ter sido a viatura que circulava ao seu lado, no entanto, só quando saiu do interior do seu veículo é que se apercebeu de um ciclista caído no chão junto da berma do passeio norte da faixa de rodagem. De imediato o Arguido apercebeu-se que o condutor da viatura que seguia a seu lado, que era um Agente Policial, também imobilizou o veículo e se inteirou da gravidade da situação, tendo dito para o Arguido accionar os meios de socorro via 112. No entanto, já ali se encontrava um outro condutor que afirmou que já o havia feito, pelo que ali ficaram a aguardar. Perguntado ao Arguido, sobre o que possa ter estado na origem do acidente, este informa que o ciclista se encontrava vestido de preto, sem materiais efectivamente reflectores ou luzes que o tornasse mais visível para os demais condutores àquela hora nocturna, e, quando o ciclista efectuou a mudança de via, não tomou o devido cuidado para efectuar essa manobra em segurança. Cumulativamente, não terá observado a aproximação da viatura conduzida pelo arguido, que em momento algum se apercebeu do ciclista antes do embate. Caso o ciclista, tivesse tido o cuidado de olhar para trás, não teria certamente efectuado a manobra, pois teria verificado a aproximação do seu veículo e certamente se manteria na via da direita até o poder fazer em segurança”
Em sede de inquérito foi a testemunha BB inquirida, tendo prestado as seguintes declarações: “A testemunha informa que na altura, circulava pela via mais à direita, em local onde aquela avenida apresenta duas vias de circulação para cada sentido de marcha. Naquela altura, o declarante circulava a uma velocidade entre os 40/50 Km/h, sendo que circulava a cerca de 15/20 metros atrás da bicicleta, que ali seguia na mesma via e sentido, bem como informa que havia pouco trânsito a circular naquele local. A testemunha, informa que naquela altura já era noite e só através da iluminação pública é que se apercebeu da circulação do ciclista naquele local, uma vez que este vestia uma indumentária escura e não se recorda de lhe ter visto qualquer dispositivo luminoso a alertar da sua presença, pelo que não se fazia acompanhar de tais luzes de presença ou as mesma estariam a emitir uma luz muito fraca. No entanto, como o declarante seguia numa marcha reduzida, manteve-se atrás do ciclista, até a altura que se aproximaram do ilhéu separador de sentidos de trânsito, junto do local que apresenta uma rotunda de inversão de marcha entre a ... (sentido de nascente para poente) e a ... (sentido de poente para nascente). Neste momento, a testemunha reparou que o ciclista efectuou uma ligeira sinalética com a mão esquerda, que foi quase imperceptível, mas que o declarante apenas a viu por seguir com atenção atrás do ciclista, e, praticamente em simultâneo, este deslocou-se da via da direita para a via da esquerda, presumindo a testemunha que aquele indivíduo pretenderia dirigir-se para a citada rotunda, e deste modo, inverter o seu sentido de marcha. No entanto assim que o ciclista mudou de via, fê-lo na mesma altura que o veículo ..-RU-.. circulava na mesma artéria e sentido, pela via da esquerda, a ultrapassar o veículo da testemunha. Praticamente em simultâneo, o ciclista e o veículo ..-RU-.., convergiram para o mesmo ponto, pelo que, assim que o ciclista passou para aquela via, foi de imediato embatido por aquela viatura automóvel. Perguntado, a testemunha informa que desconhece se os semáforos que ali se encontram colocados a alguns metros para poente do local onde ocorreu o acidente, se estariam a funcionar, no entanto julga que o condutor do veículo ..-RU-.. circulava dentro de uma velocidade regular para aquele local. Contudo, devido à forma repentina e pouco perceptível com que o ciclista mudou de via e com uma visibilidade insuficiente em horário nocturno, o condutor do veículo automóvel só se terá apercebido do ciclista no preciso momento que este se atravessou à sua frente, pelo que não teve tempo de esboçar qualquer travagem ou evasão, e colidiu de forma violenta na traseira da bicicleta, que fez projectar o ciclista no ar, indo cair de forma aparatosa junto da berma do passeio norte da faixa de rodagem. De imediato a testemunha apercebeu-se da gravidade da situação e imobilizou o seu veículo e sinalizou o local de modo a proteger o ciclista e os demais condutores, que ali passavam, tendo de seguida procurado se inteirar do estado de saúde do ciclista. Por testa altura, parou um outro condutor que accionou de imediato os meios de socorro para o local. Perguntado à testemunha, sobre o que possa ter estado na origem do acidente, este informa que o ciclista e a bicicleta apresentavam uma indumentária escura, sem materiais efectivamente reflectores ou luzes que o tomasse mais visível para os demais condutores àquela hora nocturna, e, quando efectuou a mudança de direcção, não tomou o devido cuidado em apresentar uma sinalética forte e inequívoca em termos visuais, da sua intenção de efectuar a manobra de mudança de via. Cumulativamente, não olhou para trás no sentido de se inteirar da possibilidade de fazer a manobra sem causar perigo para 49 ele ou para outros, o que com a aproximação da viatura ..-RU-.. a ultrapassá-los, foi um conjunto de 50 situações que culminou com o resultado grave que se veio a verificar. Caso o ciclista, tivesse tido o cuidado de olhar para trás, não teria certamente efectuado a manobra, pois teria verificado as luzes do outro veículo a aproximar-se da sua posição, e certamente se manteria na via da direita até o poder fazer em segurança”.
Do relatório técnico de acidente de viação, realizado em sede de inquérito, consta como causa principal ou eficiente do acidente: “Falha humana por parte da ciclista que, por distração, incúria ou vontade própria, não tomou o devido cuidado e atenção ao efetuar a manobra de mudança de direção para a via da esquerda e sem cumprir com o que é exigido quanto ao modo como esta deve ser executada, que obriga à CEDÊNCIA DE PASSAGEM A TODOS OS VEÍCULOS que transitem na via em que vai entrar, via esta onde circulava o condutor da viatura automóvel ..-RU-.. a curta distância e detinha a prioridade de passagem.”
Consta ainda do mesmo relatório no que respeita à apreciação sobre a forma como se produziu o acidente, o seguinte: “-No dia ... de ... de 2021, pelas 22H00 0 condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-RU-.. marca …, modelo …, de cor … e, o velocípede de cor preto, circulavam pela ..., em ..., no sentido de nascente para poente, artéria com duas vias de circulação no mesmo sentido, em local onde a artéria apresente um separador físico junto do eixo rodoviário a separar os sentidos de trânsito; -Nesta altura, em horário noturno, a artéria encontrava-se com a iluminação pública ligada, o trânsito era escasso e circulava forma regular; - O velocípede circulava pela via mais à direita, circulando atrás deste um veículo automóvel, em aproximação do local onde existe uma zona que permite a inversão do sentido de marcha (onde a ... e a ... se unem); - Por esta altura, o ciclista iniciou a deslocação do velocípede da via da direita para a via da esquerda, presumivelmente para pretender inverter a sua marcha na zona própria para o efeito, e assim prosseguir com a sua marcha em direção a nascente, pelo que mudou de direção para a esquerda; - O condutor do veículo ligeiro ..-RU-.., seguia a sua circulação pela via da esquerda, em aproximação e ultrapassagem ao veículo automóvel que seguia imediatamente atrás do ciclista; - O ciclista ao efetuar a sua mudança para a esquerda, provavelmente tendo em conta à viatura que circulava atrás de si, teve um momento de distração, onde não se muniu da atenção, cuidado e dever de diligência que se requeria para efetuar a manobra em segurança, não tendo deste modo observado a circulação e aproximação do veículo ligeiro ..-RU-.. àquele local; - O ciclista circulava pela ..., com uma bicicleta preta, trajando roupa escura, ambos e sem material refletor e dispositivos luminosos necessários para a sua visibilidade em ambiente noturno; - O condutor do veículo ligeiro ao efetuar a ultrapassagem ao outro veículo que seguia do seu lado direito, pretendia passar normalmente pelo mesmo e seguir o seu trajecto pela mesma artéria (de forma rectilínea), com destino a poente; - Quando o ciclista passou a linha separadora de sentido de trânsito, da direita para a esquerda, para efetuar a manobra de mudança de direção para via da esquerda, cruzando-se à frente da viatura de matrícula ..-RU-.. de forma repentina e inesperada, provocando o embate entre zona anterior do lado direito do automóvel e a roda posterior da bicicleta; - Em ato contínuo, devido ao embate, o ciclista foi projetado no ar, caindo ao solo junto à berma da via do lado direito, bem como a bicicleta, que ficou caída a cerca de 3 metros mais à frente do ciclista; - Quando 'o condutor da viatura ..-RU-.. sentiu o impacto no seu veículo, (desconhecendo qual a sua origem), suspendeu a marcha do veículo a 30 metros do local do embate; - Em consequência do embate, o ciclista ficou caído junto do lancil do passeio norte, conforme indicado no croqui elaborado, com ferimentos muito graves que lhe provocaram a MORTE no local do acidente; - O condutor da viatura ..-RU-.. permaneceu no local, tendo ficado ILESO quanto a ferimentos; - Do embate, ainda resultaram danos de grande consideração na bicicleta e danos na viatura ..-..-UT a nível do capot, tejadilho, para-choques e para-brisas anteriores, sob o lado.”
Consta ainda do relatório no que tange ao ponto de conflito que: “Pelo que foi possível apurar, atendendo aos vestígios recolhidos na altura, às declarações do condutor da viatura ..-RU-..e testemunha, o PC ocorreu no interior da via mais à esquerda, no sentido de nascente para poente, na zona que antecede a rotunda de inversão de marcha na ... (via e sentido de circulação do automobilista e do ciclista”.
Em sede de instrução foi reinquirida a testemunha BB que prestou depoimento idêntico ao prestado em sede de instrução e outras testemunhas, não presenciais do acidente.
Neste depoimento mencionou que se deslocava para o serviço, na sua viatura, circulando no local do acidente, na via mais à direita, quando se apercebeu de um ciclista, que circulava à sua frente e que passou da faixa da direita para a esquerda, sem que nada o fizesse prever, colidindo com a viatura que circulava pela esquerda.
Foi ainda perentório ao afirmar que ficou surpreendido com a manobra do ciclista.
A testemunha foi ainda confrontada com o depoimento prestado em sede de inquérito, para que esclarecesse se o ciclista tinha efetuado, ou não, sinal de mudança de via.
Mencionou ainda que circulava a cerca de dois, três metros do ciclista e que o tinha avistado inicialmente a cerca de 30/40 metros.
Pela assistente em sede instrução foi junto “um relatório de Peritagem Técnico Científica de acidente de viação” que concluiu: Depois de realizados os trabalhos de reconstituição do acidente foi determinada a dinâmica mais plausível para a descrição da forma como ocorreu o acidente. A coexistência na mesma via de circulação de veículos com velocidades de construção muito diferentes (velocípede e veículo ligeiro) requer maior cuidado e prevenção por parte dos seus condutores. Neste acidente estudado, conclui-se que existiam condições para o condutor do veículo RU ter evitado o embate com o velocípede, assim como a velocidade apresentada pelo veículo RU (72km/h) teve forte impacto nas consequências finais em termos de produção de danos corporais no ciclista”.
O subscritor do relatório foi inquirido em instrução, prestando os devidos esclarecimentos.
Pretende a recorrente a alteração do facto 17, o aditamento de mais dois factos e que os factos B., F., G., I., J., K., L. e M. sejam considerados suficientemente indiciados.
Como mencionado apesar do artigo 412, nº3 do CPP não se aplicar ao recurso da matéria considerada suficientemente indiciada há que apreciar se as provas produzidas foram devidamente valoradas.
Desde logo, o ponto 17, considerado suficientemente indiciado, tem a seguinte redação: “Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efectuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE”.
Lendo a fundamentação da decisão instrutória consta da mesma que: “Assim, o Tribunal considerou indiciariamente provados os factos elencados no que respeita à dinâmica do acidente conjugando as declarações de arguido, da testemunha BB e do vertido no relatório realizado pelo investigador da PSP”.
Acresce que o Tribunal a quo considerou também suficientemente indiciado no ponto 27 que: “O embate entre o veículo ..-RU-.. e o velocípede ocorreu na 2.ª fila, aproximadamente a 0,7 m da linha central ou 2,3 m da linha limite da 2.ª fila. No momento em que ambos os veículos embateram, encontrava-se o veículo ..-RU-.. a circular a 72 km/h e o velocípede a 27,5 km/h”.
Do relatório da PSP, valorado pelo Tribunal a quo, consta que: “O PC ocorreu no interior da via mais à esquerda, no sentido de nascente para poente, na zona que antecede a rotunda de inversão de marcha na ... (via e sentido de circulação do automobilista e do ciclista”.
A testemunha BB, que circulava atrás da vítima, cujo depoimento também foi valorado no que respeita à dinâmica do acidente, mencionou que: “reparou que o ciclista efectuou uma ligeira sinalética com a mão esquerda, que foi quase imperceptível, mas que o declarante apenas a viu por seguir com atenção atrás do ciclista, e, praticamente em simultâneo, este deslocou-se da via da direita para a via da esquerda, presumindo a testemunha que aquele individuo pretenderia dirigir-se para a citada rotunda, e deste modo, inverter o seu sentido de marcha”.
Assim, facilmente se extrai que a matéria levada ao ponto 17 dos factos suficientemente indiciados, padece de lapso, sendo manifesto que se o ciclista circulasse pela via mais à direita e o arguido pela via mais à esquerda o acidente não teria ocorrido. Certamente que a Senhora Juiz a quo incorreu em vício de raciocínio, quiçá influenciada por um lapso que já vinha do RAI (visto que a matéria em causa reproduz o alegado nessa peça processual), não existindo dúvidas que o acidente ocorreu na via da esquerda.
Contudo, pretende o recorrente que tal facto seja alterado nos seguintes termos (com a adição de mais dois factos, comunicados ao arguido em sede de debate instrutório): “17. Cerca das 22 horas, enquanto EE se encontrava a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, o Arguido circulava na via da esquerda. 17.A «Por pretender mudar de direção na rotunda, EE aproximou-se gradualmente do eixo da faixa de rodagem, passou para a via da esquerda e permaneceu no lado direito desta via, encostado à linha central, em posição longitudinal com a via.; 17.B. O Arguido, que se encontrava a circular na via da esquerda, enquanto efetuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha, embateu no velocípede conduzido por EE, quando este já se encontrava nesta via, do lado direito, junto à linha central.”
Ora, tendo em conta a prova produzida, e a que já aludimos, nomeadamente o depoimento da única testemunha presencial do acidente e do relatório efetuado pela PSP, tidos em conta pelo Tribunal a quo, apenas se pode considerar suficientemente indiciado que:
“Cerca das 22 horas, o EE encontrava-se a circular na via à direita da ..., no sentido nascente/poente, seguido, atrás, pela testemunha BB, altura em que mudou para a via da esquerda, tendo sido embatido pela viatura conduzida pelo arguido que efetuava uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha”
Na verdade, tal resulta claramente do depoimento da única testemunha presencial do acidente que logo após o mesmo e ainda no local referiu que: “ao deslocar-me para o meu local de trabalho, visualizei um ciclista na via da direita, verifiquei que o mesmo mudou de via para o lado esquerdo, momento em que uma viatura (ligeiro de passageiros) de cor escura surge atropelando o ciclista, projectando o mesmo para o solo”.
Mais tarde, quando prestou depoimento em inquérito esclareceu que: “Neste momento, a testemunha reparou que o ciclista efectuou uma ligeira sinalética com a mão esquerda, que foi quase imperceptível, mas que o declarante apenas a viu por seguir com atenção atrás do ciclista, e, praticamente em simultâneo, este deslocou-se da via da direita para a via da esquerda, presumindo a testemunha que aquele indivíduo pretenderia dirigir-se para a citada rotunda, e deste modo, inverter o seu sentido de marcha. No entanto assim que o ciclista mudou de via, fê-lo na mesma altura que o veículo ..-RU-.. circulava na mesma artéria e sentido, pela via da esquerda, a ultrapassar o veículo da testemunha”.
Ouvida em sede de instrução esta testemunha prestou idêntico depoimento.
Por seu turno as restantes testemunhas inquiridas em instrução não assistiram aos factos, depondo apenas sobre os hábitos da vítima.
Tenta a recorrente descredibilizar o depoimento da testemunha BB, na parte que considera ser-lhe desfavorável, alegando que as suas declarações apresentaram contradições, sendo incompatíveis com as evidências físicas do acidente e com a análise técnico-científica realizada.
Ora, com todo o respeito, analisando os depoimentos prestados pela testemunha, quer em fase de inquérito, quer em fase de instrução, mostram-se credíveis, não tendo a testemunha qualquer interesse na causa, esclarecendo de forma clara a dinâmica do acidente, sendo perfeitamente normal que, à data da inquirição em sede de instrução, já não se recordasse de alguns pormenores, nomeadamente se a vítima tinha efetuado a sinalética de mudança de direção, o que de forma alguma lhe tira credibilidade, muito pelo contrário.
Pretende a recorrente em defesa da sua tese, nomeadamente para a inclusão dos factos não indiciados nos suficientemente indiciados, fazer tábua rasa de toda a prova produzida em inquérito, estribando as suas conclusões no relatório que junta e que apelida de “Relatório de Peritagem Técnico Científica de acidente de viação”.
Desde logo, tal relatório não integra o conceito de prova pericial a que alude o artigo 151 do CPP.
De facto, dispõe o artigo 151 do CPP que: “A prova pericial tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”.
Não ignoramos o contributo dos relatórios efetuados no âmbito de acidentes de viação e que, nomeadamente recorrendo a elementos técnicos, tendo em conta os vestígios recolhidos, permitem apurar a velocidade aproximada, a que circulavam as viaturas intervenientes no acidente.
Aliás, contributo esse que o Tribunal a quo acolheu, do relatório junto pela assistente, no que tange à velocidade a que circularia a viatura do arguido aquando do acidente, não obstante o relatório da PSP ter concluído que não era possível determinar a velocidade face à inexistência de rastos de travagem no local.
Contudo, a dinâmica de um acidente não exige especiais conhecimento técnicos ou científicos, na medida em que a mesma pode ser percecionada por qualquer cidadão comum, que presencie a sua ocorrência, como sucedeu no caso em análise.
Resulta, ainda, do artigo 152 do CPP que: “A perícia é realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não for possível ou conveniente, por perito nomeado de entre pessoas constantes de listas de peritos existentes em cada comarca, ou, na sua falta ou impossibilidade de resposta em tempo útil, por pessoa de honorabilidade e de reconhecida competência na matéria em causa”.
Na situação concreta o relatório junto pela assistente não foi realizado nos termos do citado artigo.
Tal relatório tem a força probatória de um documento sujeito à livre apreciação do Tribunal e deve ser analisado em conjugação com a demais prova produzida.
Também o mencionado relatório, e com todo o respeito, não pode ignorar os elementos de prova colhidos em inquérito, inclusive o depoimento da única testemunha que presenciou o acidente.
Acresce que consta do início do relatório que: “O estudo realizado e apresentado neste relatório envolveu várias fases distintas, a primeira baseada na avaliação da documentação disponibilizada pelo requerente, a segunda baseada na avaliação ao local de acidente e danos do velocípede, posteriormente foi efetuado um enquadramento dos danos e vestígios referentes à envolvente do acidente, terminando com a realização de reconstituição científica computacional da dinâmica do acidente. Todas as análises e resultados obtidos neste estudo sobre o acidente são apresentados neste relatório onde se descreve a forma plausível as dinâmicas admissíveis de como ocorreu do acidente” (sublinhado nosso).
E conclui o relatório que: “Depois de realizados os trabalhos de reconstituição do acidente foi determinada a dinâmica mais plausível para a descrição da forma como ocorreu o acidente. A coexistência na mesma via de circulação de veículos com velocidades de construção muito diferentes (velocípede e veículo ligeiro) requer maior cuidado e prevenção por parte dos seus condutores. Neste acidente estudado, conclui-se que existiam condições para o condutor do veículo RU ter evitado o embate com o velocípede, assim como a velocidade apresentada pelo veículo RU (72km/h) teve forte impacto nas consequências finais em termos de produção de danos corporais no ciclista” (sublinhado nosso).
Ora, é caso para dizer, como referido no acórdão supracitado, que a versão do relatório sobre a dinâmica do acidente embora plausível, não se sobrepõe à encontrada pelo Tribunal e que foi devidamente fundamentada com base no depoimento de uma testemunha presencial e de um outro relatório realizado pela PSP.
O artigo 127 do CPP aplica-se à fase da instrução.
Assim, também os indícios suficientes devem ser apreciados de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência, nos termos do art.º 127º do CP.
Tal não significa livre arbítrio, encontrando-se o juiz vinculado a critérios objetivos de raciocínio e às regras da lógica, tendo sempre presente as regras da experiência, impondo a lei que se extraia das provas um convencimento lógico.
“A experiência comum são regras consistentes em realizações empíricas fundadas sobre aquilo que ocorre; têm origem na observação de factos que se repetem de forma rotineira, e que permitem a formulação de uma regra (máxima) potencialmente aplicável em idênticas situações. Decorrem daqui regras que fazem parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade” (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo Ed., págs. 182 a 188).
“O princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto – arbitrária da prova produzida” (prof. Figueiredo Dias Direito Processual Penal, I Volume, pag. 203)
A prova tem de ser apreciada de forma racional e objetiva de acordo com as regras da experiência.
“O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” (ac. da RC de 1.10.2008 em que é Relator Simões Barroso, in base de dados do igfej).
Na situação concreta o Tribunal a quo, no que tange aos factos dados como suficientes indiciados e não indiciados, valorou a prova documental, nomeadamente os relatórios, e testemunhal, produzida em sede de inquérito e de instrução.
São meios de prova válidos e, como tal, nada obsta à sua valoração.
Lida a decisão recorrida e apreciada a prova produzida, não se suscitam quaisquer dúvidas quanto ao raciocínio lógico-indutivo tido pelo Tribunal a quo, raciocínio esse que cumpriu integralmente o disposto nos artigos 127 do Código de Processo Penal.
Da valoração efetuada pelo Tribunal a quo não se vislumbra qualquer violação das regras da experiência, nomeadamente quando se dá como não suficientemente indiciado que: “C Inexistia qualquer “obstrução” do campo de visão do Arguido. D. O arguido estava perfeitamente capaz de avistar o velocípede”.
Na verdade, resultando da prova produzida que o acidente ocorreu à noite, que o ciclista, apesar das barras refletoras, trajava de escura e circulava à frente da viatura conduzida pela testemunha BB, é perfeitamente plausível que o arguido não o tivesse avistado, o que resulta do depoimento da mencionada testemunha e do relatório técnico da PSP.
O Tribunal a quo fez uma análise crítica da prova e concluiu nos termos que constam da decisão.
Apreciada a totalidade da prova, e, em especial, o depoimento da testemunha BB e o relatório da PSP, que corroboram a versão do arguido, nenhuma censura merce a factualidade considerada suficientemente indiciada (com a correção mencionada) e não indiciada.
*
Contudo, vejamos ainda, atentos os pontos considerados suficientemente indiciados, se é possível extrair a conclusão que a conduta do arguido também contribuiu para o resultado morte.
De acordo com o artigo 137 do CP:
“1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos”
E segundo o art.º 15º do CP:
“Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz”.
Deste modo, excluído o dolo, nem por isso se torna impossível um juízo de censura ao agente, pois tal juízo pode ter lugar com base na negligência.
É possível censurar a realização de um tipo legal de crime a um agente, na medida em que este omitiu aqueles deveres de diligência, a que segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos pessoais, era obrigado, e que em consequência disso não previu- como podia- aquela realização do crime (negligência inconsciente), ou, tendo-a previsto, confiou em que ela não teria lugar (negligência consciente).
Existe, portanto, negligência sempre que uma conduta em si, sem os necessários cuidados e cautelas, seja adequada a produzir um evento. É um nexo de causalidade adequada que vem a fixar objetivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência. Cuidados e cautelas que não têm necessariamente a sua fonte num preceito legal, mas simplesmente na sua adequação a evitarem um resultado.
No entanto, a omissão do dever objetivo de cuidado, não justifica, só por si, a punição a título de negligência. O elemento constitutivo do tipo de culpa negligente é traduzido pelo art.º 15º do C.P., na parte em que considera que age com negligência, apenas aquele que não proceda “com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que era capaz”. E esta capacidade de cumprimento do dever objetivo de cuidado, é o mais autêntico elemento configurador da censurabilidade da negligência e, assim, do conteúdo de culpa, ou seja, o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever - ser jurídico penal.
Tal como refere o Prof. Figueiredo Dias “Está aqui verdadeiramente em causa um critério subjetivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem coma as qualidades e capacidades do agente. Se fosse esperara dele que respondesse às exigências do cuidado objetivamente imposto e devido- mas só nessas condições- é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respetiva punição”.
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Atenta a matéria considerada suficientemente indiciada, concluímos que a conduta da vítima, não obstante o trágico acidente, é causal do acidente.
De acordo com o artigo 44 do CE:
“1- O condutor que pretenda mudar de direção para a esquerda deve aproximar-se, com a necessária antecedência e o mais possível, do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afeta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e efetuar a manobra de modo a entrar na via que pretende tomar pelo lado destinado ao seu sentido de circulação”.
Acresce que dispõe ainda o artigo 35.º, n.º 1 do Cód. da Estrada que: “1 - O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito”.
Na situação concreta resulta suficientemente indiciado que a vítima violou os dois preceitos aludidos, os quais foram causa do acidente.
Contudo, e não obstante o exposto, cumpre apreciar se, mesmo assim, a conduta do arguido não terá contribuído para o acidente, violando um dever objetivo de cuidado ao não adotar uma velocidade mais adequada.
O Tribunal a quo deu como suficiente indiciado que o arguido circulava a uma velocidade superior em cerca de 20 Km/ hora, à permitida no local, violando, assim o arguido o disposto no artigo 27 do CE.
Acrescenta ainda o artigo 38 do mesmo diploma que:
“1 - O condutor de veículo não deve iniciar a ultrapassagem sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir com veículo que transite no mesmo sentido ou em sentido contrário.
2 - O condutor deve, especialmente, certificar-se de que:
a) A faixa de rodagem se encontra livre na extensão e largura necessárias à realização da manobra com segurança;
b) Pode retomar a direita sem perigo para aqueles que aí transitam;
c) Nenhum condutor que siga na mesma via ou na que se situa imediatamente à esquerda iniciou manobra para o ultrapassar;
d) O condutor que o antecede na mesma via não assinalou a intenção de ultrapassar um terceiro veículo ou de contornar um obstáculo;
e) Na ultrapassagem de velocípedes ou à passagem de peões que circulem ou se encontrem na berma, guarda a distância lateral mínima de 1,5 m e abranda a velocidade”.
Na situação concreta inexistem indícios de que a vítima já se encontrava na faixa da esquerda, quando o arguido iniciou a ultrapassagem à viatura da testemunha BB.
Pelo contrário, encontra-se suficientemente indiciado que o acidente ocorreu porque a vítima mudou da via da direita para a da esquerda quando o arguido se encontrava, precisamente, a realizar a manobra de ultrapassagem.
Assim, inexistem indícios suficientes que nos permitam concluir que a velocidade a que o arguido circulava também contribuiu para o acidente.
Não podemos ignorar a dinâmica dos acidentes de viação, nomeadamente o tempo de reação dos intervenientes, sendo que, na situação concreta, o arguido certamente não estaria à espera, nem seria expectável, que um ciclista mudasse de via, no preciso momento em que efetuava uma manobra de ultrapassagem, sem se certificar, previamente, que o podia fazer em segurança.
Naquelas circunstâncias, ao arguido não era exigível outro tipo de cuidado, sob pena de cairmos em responsabilidade objetiva.
Em termos de padrões de normalidade, um condutor prudente, circulando nas concretas circunstâncias em que o fazia o arguido, mesmo que circulasse a 50 Km/h, não podia prever, nem imaginar o comportamento da vítima, nem evitar o acidente.
Como se refere no ac. da RG de 29.4.2019 (in base de dados do igfej):
“I-No caso particular dos acidentes de viação é essencial determinar o processo causal da verificação do sinistro: a conduta concreta de cada um dos intervenientes e a influência dela na sua produção. II - Para se concluir que o arguido omitiu o dever de cuidado na circulação automóvel, e que essa omissão foi a causa adequada do resultado verificado, importa saber se o arguido tinha condições de prever a presença do peão na faixa de rodagem e, em caso afirmativo, rodear-se dos cuidados necessários para evitar o embate na vítima, designadamente, travando no espaço livre e visível à sua frente ou desviando a trajectória do veículo que tripulava”.
Na situação concreta não era expectável, atentos os indícios, que a vítima, precisamente quando o arguido se encontrava a efetuar uma manobra de ultrapassagem, realizasse a manobra de mudança de via, sendo esta a única causa do acidente.
Também não ignoramos o artigo 11 do CE quando refere no seu nº 3 que: “O condutor de um veículo não pode pôr em perigo os utilizadores vulneráveis”. Contudo, como mencionado, não foi a conduta do arguido, ao que tudo indicia, que colocou em perigo o ciclista.
É certo que consta dos factos suficientemente indiciados que: “Entre o velocípede e o veículo da testemunha distavam cerca de 20 metros”.
Tal poderia sugerir que, já depois de efetuada a manobra de ultrapassagem, entre a vítima e o arguido existia uma distância de cerca de 20 metro, e que este, necessariamente, teria de se aperceber da vítima, e adequar a sua velocidade, evitando desta forma o embate.
Acontece que o Tribunal a quo também considerou fortemente indiciado no ponto 17 (apesar dos reparos que tal ponto nos mereceu), que o acidente ocorreu quando o arguido efetuava “uma ultrapassagem ao veículo automóvel da testemunha”.
Assim, conjugando os factos considerados suficientemente indiciados, a fundamentação do Tribunal recorrido e o depoimento da testemunha BB, conclui-se que tal distância respeita ao momento em que a testemunha se apercebeu da vítima e não ao momento em que a mesma mudou de via, mencionando a testemunha que nessa altura estaria a cerca de 2 metros de distância.
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Refere o art.º 286º, nº 1 do CPP “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
De acordo com o artigo 308º, nº1 do mesmo diploma: “ Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronúncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Por sua vez o art.º 283º, nº 2 refere que: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Assim, sendo este o entendimento legal em que deve assentar a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, do mesmo resulta que o despacho de pronúncia só deve ser proferido quando se torna possível formular um juízo de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Apesar de não se exigir um juízo de certeza idêntico ao da condenação é, no entanto, pressuposto da pronúncia, que a prova existente em inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade elevada de condenação.
Aliás, sobre a noção de indícios suficientes, muitas têm sido as interpretações e posições dadas quer pela Doutrina, quer pela Jurisprudência.
Assim, há quem defenda, embora minoritariamente, que a acusação e a pronúncia bastam-se com uma mera probabilidade de condenação em julgamento, tal posição tem como fundamento, nomeadamente, o artigo 311, nº 2, al.a) do CPP, argumentando que só é possível rejeitar a acusação quando manifestamente infundada (neste sentido acórdão do TRL, de 14MAR1990, in BMJ, nº 395, página 656).
Outros defendem que existem indícios suficientes, e como tal deve ser proferida acusação e despacho de pronúncia, quando em julgamento seja maior a probabilidade de condenação do que de absolvição.
Tal tese é conhecida pela tese “da probabilidade predominante”.
Neste sentido temos o Professor Germano Marques da Silva quando refere “probabilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa”.
Já o Professor Figueiredo Dias fala que a condenação deve ser altamente provável quando refere que: “Os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” (Direito Processual Penal, Volume 1, 1974, pág. 133).
Finalmente há, ainda quem defensa a chamada “teoria da probabilidade qualificada”, exigindo-se, quer para a acusação, quer para a pronúncia um juízo de prognose de quase certeza na futura condenação.
Neste sentido Luís Osório, mencionando que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fizerem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado” (in Comentário ao Código de Processo Penal Português, volume IV, página 441) e ac. do TRC de 9.3.2016 : “indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado (…) os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação (…). Na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final” (in base de dados do igfej).
Não obstante, as várias interpretações surgidas, é posição dominante que em sede de instrução também devem ser tidos em conta os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Também nós perfilhamos da posição que quando a possibilidade de futura condenação é mais provável do que a possibilidade de absolvição deve o arguido ser pronunciado.
Assim, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade elevada que se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas ainda, que em julgamento será ultrapassada a barreira do in dúbio pro reo.
Impõe-se uma análise cuidada caso a caso, de acordo com o artigo 308 do CPP e os princípios constitucionalmente consagrados, inclusive o da presunção da inocência, devendo existir uma articulação entre os mesmos.
E aqui chegados não podemos deixar ainda de citar o Prof. Castanheira Neves (in Processo Criminal, Sumários, p. 39) que a este respeito escreveu: “na apreciação da suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final - só que a instrução (…) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.
Ora, tendo em conta o exposto, bem andou o Tribunal ao quo ao não pronunciar o arguido, inexistindo índicos suficientes que a conduta do arguido tenha contribuído para o acidente, e como tal inexistem indícios que o permitam submeter a julgamento.
III) Dispositivo:
Termos em que, e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar total provimento ao recurso interposto, confirmando-se na integra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº 9, do Regulamento das custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
Notifique.
Lisboa, 21 de novembro de 2024
Ana Paula Guedes
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Rosa Maria Cardoso Saraiva