I - O critério de rigor imposto pela decorrência dos princípios da autorresponsabilidade das partes e do dispositivo, que necessariamente têm de nortear o julgador na aplicação do artigo 640º, do Código de Processo Civil, impedem que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de indistinto e inconsequente inconformismo, pelo que deve ser rejeitada a admissibilidade de recurso genérico contra a decisão da matéria de facto.
II - Quando o Recorrente não indica quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente provados, não faz menção aos específicos meios probatórios que impunham decisão diversa, verificando-se também uma total ausência de referência à decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre os factos julgados provados em primeira instância, deve ser rejeitado o recurso da impugnação da decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto.
III - Para que o credor possa interpor execução para pagamento do crédito que reclamou no âmbito de um PEAP cujo acordo de pagamento foi homologado por sentença transitada em julgado, não estando o devedor a cumprir o pagamento das prestações acordadas no plano, terá de proceder previamente à interpelação prevista no artigo 218º, nº1, alínea a), do CIRE, provocando o renascimento do crédito originário.
IV - Provando-se que a Exequente, através de carta, invocando o incumprimento por parte dos Executados do acordo de pagamento homologado por sentença proferida no âmbito do processo especial para acordo de pagamento, interpela os Executados para efetuarem o pagamento da quantia total em dívida e não para porem fim à mora no cumprimento do plano de pagamentos, liquidando as prestações em atraso no prazo de 15 dias após a interpelação, há que concluir que a interpelação não foi bem feita e, nessa medida, não pode ter-se por eficaz para efeitos de purgar a mora de um crédito que está reestruturado num plano.
V - Aquela interpelação é uma verdadeira condição de exigibilidade da totalidade da dívida, cabendo ao credor, enquanto titular do crédito, interpelar com clareza e nos termos legalmente previstos o devedor, respeitando os limites previstos no artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE por forma a purgar a mora e não dirigir ao devedor uma interpelação exigindo-lhe um pagamento da totalidade da divida, arrogando-se um direito alicerçado numa disposição legal que não lhe confere o direito que se arroga, pretendendo dessa forma fazer renascer intempestivamente o crédito originário, “saltando” a etapa que o legislador consagrou no artigo 218º, nº1, al. a) do CIRE.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto – Juiz 1
Relatora: Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Manuel Fernandes
2º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro
Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
Por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa que A..., S.A. intentou contra AA e BB, vieram os Executados, em separado, deduzir embargos de executado, pedindo, a final, que a execução seja julgada extinta, com todas as consequências legais.
Alegaram, como fundamentos, a falta de título executivo, a ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir, a prescrição dos juros, o abuso do direito da exequente, para além de impugnarem o alegado incumprimento do Plano Especial Para Acordo de Pagamento que a Exequente lhes imputa, bem como a liquidação dos juros efetuada.
Em 02.01.2024, a Exequente / Embargada apresentou contestação aos embargos deduzidos pelo Embargante AA e em 24.01.2024 contestou os embargos apresentados pela Embargante BB, pugnando pela improcedência dos embargos, por não provados, e pelo prosseguimento da execução.
Em 05.02.2024, uma vez que os executados/embargantes tinham deduzido oposição à execução em separado, foi proferido despacho a determinar a incorporação do apenso B) (embargos deduzidos por BB) no apenso A), a fim de os embargos serem tramitados num único processo.
Em 14.03.2024, realizou-se audiência prévia, com observância das formalidades legais, no âmbito da qual o Tribunal a quo proferiu despacho a conceder prazo para a Exequente juntar aos autos o contrato de mútuo com hipoteca celebrado em 16.04.2010, após o que determinou a abertura de conclusão a fim de ser proferida decisão de mérito, porquanto considerou que, face à prova documental já junta aos autos e o alegado pelos Embargantes na petição dos embargos, os autos continham todos os elementos para ser conhecido o mérito da causa.
Em 17.05.2024, o Tribunal proferiu saneador-sentença nos termos do qual, julgando os embargos de executado deduzidos por AA e BB improcedentes, determinou o prosseguimento dos autos principais de execução
«I. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou os embargos de executado totalmente improcedentes, por não provados.
II. Sucede que, a sentença ignorou matéria factual constante de documentos, bem como deu matéria como provada que não tem qualquer consistência com a prova produzida;
III - A adensar o erro na apreciação da matéria de facto, resulta evidente falta de fundamentação que permita que se possa vislumbrar a linha de raciocínio a que o tribunal recorreu para proferir a decisão em crise;
IV - Acha-se assim, violado por erro de interpretação e de aplicação o constante dos artigos 154º, 615° do CPC e 205° da CRP;
V - Entende o Recorrente que os elementos probatórios existentes nos autos não permitem e não podiam ter permitido ao Tribunal chegar às conclusões que proferiu em sede de sentença;
VI - Uma análise global e critica de todos os elementos de prova impunham decisão diversa;
VII - Insurge-se desde logo o Recorrente quanto ao cumprimento do disposto no artigo 218º n° 1, al. a) do CIRE.
VIII – A exequente limita-se a aludir, de forma tabelar, ligeira e meramente conclusiva, no seu requerimento executivo que o Plano de Recuperação foi incumprido, sem fazer uma qualquer referência ou comprovar que os Devedores foram s regularmente interpelados, nos termos e para os efeitos do disposto na .al a) do n.º 1 do artigo 218.º do CIRE;
XI - O Exequente interpela os executados para que procedam ao pagamento da quantia de €72.154,32, correspondente ao montante previsto no plano de pagamento a titulo de capital (€38.889,39), acrescido de juros moratórios e imposto de selo sobre os juros (€31.985,32 + €1.279,41), calculados à taxa contratual, conforme prevê a al. a) do n° 1 do artigo 218º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas), no prazo de 20 dias a contar da recepção da comunicação.
X- O Exequente não interpela os executados para porem fim à mora no cumprimento do plano de recuperação no prazo de 15 dias, conforme disposto no aludido preceito.
XI- O Exequente tem que dar oportunidade ao executado de fazer cessar a mora, permitindo que liquide as prestações em atraso no prazo de 15 dias após a interpelação.
XII - Razão pela qual, resulta clarividente que o Exequente não deu cumprimento ao disposto no artigo 218, n° 1 al. a) do CIRE.
Acresce que,
XIII - Os valores que o exequente peticiona não são devidos na totalidade, uma vez que as prestações do mútuo incluíam juros remuneratórios e estes não podem ser exigidos se o exequente optou pelo vencimento imediato de todas as prestações em falta;
XIV- Os juros que a exequente eventualmente poderá reclamar, devidos desde a data da entrada nos presentes autos, deverão ser calculados à taxa legal, e já não à taxa prevista no contrato que serviu de fundamento/causa de pedir da execução.
XV- Formado/gerado o título executivo - qualquer que seja a sua natureza - apenas se poderá atender e (executar) aos juros de mora, à taxa legal (art.559º, n.º 1 do CC), da obrigação dele constante, e não aos juros convencionais.
XVI- E a lei estabelece claramente os juros a considerar para os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva - considerando abrangidos pelo título os juros de mora, à taxa legal, da obrigação que dele emerge (art.ºs 703º, n.º 1, d) e 2 do CPC).
XVII- Pelo que, estando em causa os juros moratórios legais, impõe-se desde logo a rectificação da taxa legal aplicável, de acordo a determinação da taxa anualmente fixada pelo governo.
Acresce que,
XVIII – A aceitar-se a eventual taxa de juro reclamada, facilmente se alcança que o valor a título de juros contados desde ascenderão a mais de €32.000,00, isto é, ascenderão a um valor superior ao capital em divida, e ao dobro do valor reclamado no PAEP, só pelo decurso de menos de 2Anos.
XIX- Aqui chegados, resulta clarividente que a quantia reclamada é exorbitante, usurária, e manifestamente desproporcional face ao dano real, permitindo-se, assim, a obtenção de um significativo ganho económico, manifestamente superior ao que decorreria do cumprimento do contrato pelo mutuário.
XX - Sem embargo, sempre se dirá que o art.º 334° do Código Civil, considera ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
XXI - Conclui-se, por conseguinte, que o exequente face ao título executivo tem direito aos juros moratórios peticionados, após a data de resolução, calculados à taxa legal dos juros civis, ou seja, 4% unicamente, devendo, deste modo, serem expurgados os juros remuneratórios das prestações vencidas após a resolução contratual e o vencimento antecipado da dívida total.
Sem prescindir,
XXII - Volvidos cerca de 4 anos após a cessão do crédito, sem nunca ter dado conhecimento de tal facto aos Devedores, veio a Exequente, à revelia de todos dos ditames da boa fé que norteiam os contratos, exigir, sem mais, o pagamento de uma quantia exorbitante, que sabia e sabe que os Executados não têm condições para o fazer, atento o esforço que têm vindo a fazer para cumprirem com o Plano de reestruturação do passivo.
XXIII – A actuação do banco que fica descrita configura uma actuação que se integra na figura do «venire contra factum proprium» e preenche, efectivamente, a previsão do mencionado artigo 334º do Código Civil.
XXIV - Com efeito, como se disse, a actuação da exequente, nunca dando conhecimento da sua existência, não indicando o modo e forma de pagamento aos devedores e não informando os executados de um eventual incumprimento, gerou nestes a crença e a confiança de que não estavam em incumprimento, não representando sequer a possibilidade de virem a ser alvo de uma cobrança judicial com vista à cobrança do crédito originário.
XV- Ora, gerada esta crença e confiança nos executados, tal estado não pode ser alterado posteriormente de forma unilateral e sem aviso prévio, por uma nova actuação do credor, de sinal contrário, que se traduziu, no caso dos autos, pela instauração de uma execução destinada a obter a totalidade da dívida por falta do mencionado pagamento.
XXVI- Tal confiança gerada implicava que este, antes de avançar para a acção executiva, tivesse exposto aos executados a situação real em que se encontrava a titularidade do crédito, dando-lhe oportunidade para liquidar as prestações em mora, mantendo o plano de recuperação aprovado e homologado.
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por acórdão que julgue os embargos totalmente procedentes, com as demais consequências legais.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente o Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pelo Recorrente nas suas alegações decorre que no presente recurso deverão ser apreciadas, por ordem lógica, as seguintes questões:
1ª Se o saneador-sentença recorrido padece das nulidades previstas nas alíneas b) e c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
2ª Se foi validamente deduzida e procede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3º Se a Exequente deu cumprimento ao disposto no artigo 218º, n° 1 al. a) do CIRE
4º Se a liquidação dos juros efetuada pela Exequente está correta
5º Se ocorre abuso do direito por parte da Exequente
Termos em que improcedem as conclusões da alegação de recurso no que respeita à questão da nulidade da decisão recorrida.
A oposição à execução mediante embargos de executado é o modo de que o executado dispõe para se libertar (total ou parcialmente) da execução contra si instaurada, seja com base em razões de natureza processual, seja aduzindo argumentos materiais (que contendam com a existência ou a subsistência da obrigação)[11], seja pela verificação de um vício de natureza formal que obsta ao prosseguimento da execução[12]. Constitui um incidente de natureza declarativa, enxertado e na dependência do processo executivo, correndo por apenso a este.
Assim, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, como decorre claramente do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 732.º do Código de Processo Civil, nos termos dos quais a procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte, além de aí se estabelecer que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.
Na petição inicial de oposição à execução os Embargantes/executados alegaram factos impeditivos e/ou extintivos do crédito exequendo, concretamente, no que à questão em apreço respeita, a falta de interpelação dos executados nos termos do disposto no artigo 218º, nº1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (abreviadamente CIRE).
Tal oposição assume especial relevância jurídica, especificando o artigo 731º do Código de Processo Civil que, “não se baseando a execução em sentença (…), além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”.
Diversamente do que acontece nos embargos à execução de sentença, a oposição à execução baseada em outro título, como sucede no caso concreto, pode fundar-se em qualquer causa que fosse lícito deduzir como defesa no processo de declaração, dado o executado não ter tido ocasião de, em ação declarativa prévia, se defender amplamente da pretensão do exequente/embargado.
Pode, pois, o executado alegar, como fundamento de embargos de executado, matéria de impugnação e de exceção (artigo 571º, n.º 2, do Código de Processo Civil), invocando todas as causas impeditivas ou extintivas do direito do exequente.
Quanto às regras que presidem à distribuição do ónus da prova nos embargos de executado cabe ao executado/embargante a prova dos fundamentos alegados (artigo 342º, n.º 1 do Código Civil), dado que estes são factos constitutivos da oposição deduzida. Mas, por outro lado, é ao embargado-exequente que incumbe fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito, ou seja, de que o título é válido e a relação jurídica material que lhe deu causa corresponde à realidade dos factos.
No caso, o Recorrente sustenta que a Exequente não pode lançar mão do título dado à execução para obter coercivamente contra o Embargante a satisfação de um crédito que está reestruturado num Plano ao qual a Exequente continua vinculada. Vale isto por dizer que o Recorrente invoca a inexigibilidade do crédito exequendo, porquanto não ocorreu a interpelação dos Executados conforme o impõe o artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE.
Por seu lado, na decisão recorrida foi explicitado que “Está fora de duvida, que a exequente interpelou os executados nos termos da missiva que lhes enviou, e que estes receberam, datada de 4.7.2024 (note-se que se trata de um manifesto lapso de escrita constante da decisão recorrida, devendo considerar-se como sendo 4.07.2023), nos termos e para os efeitos do art.º 218.º n.º 1 al a) do CIRE, pelo que assim sendo, ficou sem efeito o regime estatuído nesse plano de insolvência, renascendo o crédito inicial.”
Cabe, assim, decidir se, com base nos factos fixados em 1ª instância, é de concluir que a Embargada/Recorrida cumpriu a interpelação a que alude o artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE, como advoga a decisão recorrida, ou se, pelo contrário, não a cumpriu, pelo que a dívida em causa não poderá ser executada coercivamente, como defende o Embargante.
Com interesse para o conhecimento desta questão haverá que ter presente os seguintes factos que se mostram assentes nos autos:
- Os executados apresentaram-se em 29/01/2018 a um Processo Especial para Acordo de Pagamentos que correu termos sob o nº 347/18.0 T8STS no Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 2.
- O Banco 1... SA (banco cedente) apresentou nesse processo a sua reclamação de créditos, nos termos constantes do documento n.º 1 junto com a contestação aos embargos cujo teor se dá aqui por reproduzido.
- Em 08/04/2019 foi proferida sentença de homologação do plano de pagamentos, sentença essa que transitou em julgado em 3.7.2019, conforme certidão junta à petição de embargos e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
- Os Executados AA e BB, não efetuaram o pagamento das prestações acordadas no plano de pagamentos referido em 9.
- A exequente em 4.7.2023 enviou aos executados a CR com A/R que estes receberam conforme AR junto aos autos com a contestação apresentada, com o seguinte teor:
Assunto: Incumprimento do Plano apresentado no PEAP (Processo Especial de Acordo de Pagamentos) - contrato n.º ...... celebrado em 14/05/2012 // ...
Exmos. Senhores,
Pelo presente meio, em representação e na qualidade de mandatária da A... S. A. (cessionária de parte dos créditos do Banco 1... S.A.), remeter a V. Exa. a presente missiva, informando que, a mencionada cessão de créditos incluiu a transmissão, relativamente a cada um dos créditos, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes. Entre os créditos cedidos pelo Banco 1..., S.A. para a M/ Constituinte encontra-se o contrato n.° ...... celebrado em 14/05/2012 do qual é V. Exa. responsável.
Em 08/04/2019 foi proferida sentença de homologação do processo especial para acordo de pagamento que correu termos sob o processo n.º 347/18.08STS, no Juízo do Comércio do Santo Tirso, Juiz 7 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, transitada já em julgado em 03/07/2019, comprometendo-se V. Exa., perante os Credores, a cumprir plano de pagamentos.
Sucede que, o sobredito plano de pagamentos encontra-se atualmente em incumprimento pro V. Exas. Assim e tendo em conta os termos previstos no mencionado plano, não tendo sido efetuado qualquer pagamento, o montante atualmente em dívida é de € 72.154,32, correspondente ao montante previsto no plano de pagamento a título de capital (€ 38.889,59) acrescido de juros moratórios e imposto de selo sobre os juros (€ 31.985,32 + € 1.279,41), calculados à taxa contratual, conforme prevê a al. a) do n°. 1 do artigo 218.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Saliento que, ao montante acima indicado acrescerão ainda juros de mora, calculados nos termos estabelecidos até efetivo e integral pagamento.
Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 218.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deverão V. Exas. regularizar e proceder ao pagamento de Euros 72.154,32 (setenta e dois mil, cento e cinquenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos), no prazo máximo de 10 dias, a contar da receção da presente comunicação.
Findo este prazo, sem que V. Exas. procedam ao pagamento do montante em dívida, o plano de insolvência será considerado inequivocamente incumprido e consequentemente serão encetadas as diligências judiciais ao dispor na defesa dos legítimos interesses da ora Credora.
Ao dispor de V. Exas. para qualquer esclarecimento que entendam por conveniente.
Com os melhores cumprimentos,
(cfr. doc. n.º 2 junto com contestação).
Resulta desta factualidade que os Executados não cumpriram o acordo de pagamento aprovado e homologado no âmbito do processo especial para acordo de pagamento nº 347/18.08STS, do Juízo do Comércio do Santo Tirso, Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no qual o Banco 1... SA (banco cedente) reclamou o crédito em causa na execução.
O Processo Especial Para Acordo de Pagamento, abreviadamente PEAP, é um processo especial autónomo, regulado nos artigos 222º-A a 222º-J, aditados ao CIRE pelo D.L. 79/2017, de 30/06, que veio facultar às pessoas singulares um processo similar ao Processo Especial de Revitalização (abreviadamente PER, regulado nos artigos 17º-A a 17º-J do CIRE, com as alterações introduzidas pelo referido D.L.), este limitado às empresas.
Trata-se de um instrumento de pré-insolvência, que visa proporcionar ao devedor um acordo de pagamento com os seus credores, tendente a evitar a declaração de insolvência e os seus efeitos, através da reestruturação da dívida. Tem como pressupostos que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, não se exigindo, no entanto, a demonstração da suscetibilidade de recuperação.
No caso de o devedor entrar em incumprimento do acordo de pagamento, decorre do disposto no artigo 222º-F, nº10, do CIRE que é aplicável ao PEAP o disposto no nº1, do artigo 218º do citado diploma.
Preceitua o artigo 218º do CIRE:
«1 - Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito:
a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;
b) Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.
2 - A mora do devedor apenas tem os efeitos previstos na alínea a) do número anterior se disser respeito a créditos reconhecidos pela sentença de verificação de créditos ou por outra decisão judicial, ainda que não transitadas em julgado.
3 - Os efeitos previstos no n.º 1 podem ser associados pelo plano a acontecimentos de outro tipo desde que ocorridos dentro do período máximo de três anos contados da data da sentença homologatória.»
Decorre do disposto na alínea a), do nº1, deste artigo 218º, do CIRE que o desencadeamento das consequências que a lei liga à falta de pagamento pontual do que é devido está imperativamente condicionado à prévia interpelação pelo credor para o devedor cumprir, o que terá de suceder após verificada a falha relativamente ao prazo inicialmente previsto no plano homologado[13].
Se o plano de pagamento incluir alguma moratória ou perdão – como sucede com o PEAP dos Executados – essa moratória e/ou o perdão ficam sem efeito, salvo disposição expressa do plano em sentido diverso, quanto aos créditos relativamente aos quais o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor.
Por força dessa disposição legal dá-se um renascimento do crédito original, pois só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes[14].
Aquela interpelação serve para fazer cessar a moratória e/ou o perdão previsto no Plano, impondo o legislador que o credor interpele por escrito o devedor para cumprir no prazo de 15 dias.
Assim, para que o credor possa interpor execução para pagamento do crédito que reclamou no âmbito de um PEAP cujo acordo de pagamento foi homologado por sentença transitada em julgado terá de proceder à interpelação prevista no artigo 218º, nº1, alínea a), do CIRE, provocando o renascimento dos créditos originais.
Importa, por conseguinte, apreciar se a Recorrida efetuou ou não tal interpelação, porquanto compete à Exequente, nos termos do nº1, do artigo 342º, do Código Civil, a prova de ter efetuado aquela interpelação a que alude o artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE, enquanto verdadeira condição de exigibilidade do crédito exequendo.
No caso sub judice a decisão recorrida considerou que essa interpelação tinha sido efetuada através da carta registada com aviso de receção remetida pela Exequente aos Executados em 4 de julho de 2023.
No entanto, entendemos que nesta parte a decisão em crise não pode manter-se.
É certo que resultou provado que os Executados AA e BB não efetuaram o pagamento das prestações acordadas no plano de pagamentos referido em 9, estando, por conseguinte, constituídos em mora.
É também verdade que se provou que em 4 de julho de 2023 a Exequente enviou aos Executados a missiva que constitui o documento 2) junto com a contestação, acima transcrito.
No entanto, através dessa carta não é legítimo concluir que a Exequente interpelou validamente os Executados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE.
Analisado o conteúdo da mesma constata-se que a Exequente interpela os Executados para procederem ao pagamento integral da dívida (capital + juros) e não para cumprirem com as prestações em mora. A Exequente, através daquela missiva, invocando o incumprimento por parte dos Executados do plano de pagamentos homologado por sentença proferida no âmbito do processo especial para acordo de pagamento que correu termos sob o n.º 347/18.08STS, no Juízo do Comércio do Santo Tirso, Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, já transitada em julgado, interpela os Executados para que procedam ao pagamento da quantia de €72.154,32, correspondente ao montante previsto no plano de pagamento a título de capital (€38.889,39), acrescido de juros moratórios e imposto de selo sobre os juros (€31.985,32 + €1.278,41), calculados à taxa contratual. A Exequente nessa carta, não interpela os Executados para porem fim à mora no cumprimento do plano de pagamentos, antes considera desde logo o plano incumprido – incumprimento definitivo – e, em consequência, interpela os Executados para efetuarem o pagamento da quantia total em divida, pretendendo fazendo desde logo renascer o crédito originário.
Ora, embora naquela missiva a Exequente invoque o disposto na al. a) do nº1 do artigo 218º do CIRE, a verdade é que analisado o conteúdo dessa carta conclui-se que a interpelação efetuada não corresponde à prevista na disposição legal ali invocada. Em vez de a Exequente dirigir aos Executados uma interpelação tendo em vista dar-lhes a oportunidade de fazerem cessar a mora, permitindo-lhes que liquidem as prestações em atraso no prazo de 15 dias após a interpelação (que tem caráter receptício), a fim de purgar a mora, convertendo deste modo aquele incumprimento temporário num cumprimento definitivo, a Exequente, de modo precipitado, interpela os Executados exigindo-lhes a totalidade da dívida, pretendendo dessa forma fazer renascer intempestivamente o crédito originário, “saltando” a etapa que o legislador consagrou no artigo 218º, nº1, al. a) do CIRE. E nem se diga que os Executados têm obrigação de saber quais as prestações em falta pelo que, se quisessem, sempre poderiam ter colocado fim à mora perante o recebimento da carta de 4 de julho de 2023 e, nessa medida, devem considerar-se validamente interpelados. É que aquela interpelação é uma verdadeira condição de exigibilidade da totalidade da dívida, cabendo ao credor, enquanto titular do crédito, interpelar com clareza e nos termos legalmente previstos o devedor, respeitando os limites previstos no artigo 218º, nº1, al. a), do CIRE por forma a purgar a mora e não dirigir ao devedor uma interpelação exigindo-lhe um pagamento da totalidade da divida, arrogando-se um direito alicerçado numa disposição legal que não lhe confere o direito que se arroga.
Pelo exposto, concluímos que a interpelação em causa não foi bem feita e, nessa medida, não pode ter-se por eficaz para efeitos de purgar a mora de um crédito que está reestruturado num plano.
Sucede que, como vimos, essa interpelação por escrito constitui uma formalidade indispensável e necessária para o desencadeamento das consequências que a lei liga à falta de pagamento pontual do que é devido, designadamente para cessação dos efeitos da moratória e perdão que tenham atingido os créditos que o devedor não satisfez.
O mesmo é dizer que, sem essa interpelação eficaz do devedor para cumprir no prazo de 15 dias, os efeitos da moratória e do perdão previsto no PER não cessaram. Sem o cumprimento (ou a demonstração) dessa formalidade imperativa/necessária, está, portanto, vedado à credora instaurar execução com base no primitivo título executivo, visto – diversamente do propugnado no saneador-sentença recorrido – não ocorrer o renascimento do crédito nas condições originais e primitivas, anteriormente ao plano, antes continuando o crédito em causa vinculado ao acordo de pagamento homologado.
A Exequente não pode, consequentemente, lançar mão do título dado à execução para obter coercivamente contra os embargantes a satisfação de um crédito que está reestruturado num PEAP relativamente ao qual não comprovou a interpelação estabelecida no artigo 218.º, n.º 1, al. a), do CIRE, indispensável à cessação da moratória e perdão aí contemplados.
Concluindo:
- Os Executados não cumpriram o acordo de pagamento aprovado no âmbito do PEAP, devidamente homologado por decisão transitada em julgado;
- Não obstante o referido incumprimento das obrigações decorrentes do acordo de pagamento, a credora/Recorrida não logrou provar que interpelou eficazmente, por escrito, a sociedade devedora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 218º, n.º 1, al. a), do CIRE (aqui aplicável por remissão do artigo 222º-F, n.º 10, do citado diploma);
- Não se mostrando comprovada a efetivação dessa verdadeira interpelação admonitória, a moratória e o perdão do acordo de pagamento homologado não ficaram sem efeito;
- Consequentemente, a Embargada/credora não fica livre para exigir, querendo, a totalidade do valor em dívida (a repristinação do crédito originário) e, com base no primitivo título executivo, de recorrer aos meios coercivos para o efeito.
Nestes termos, é de concluir pela inexigibilidade do crédito exequendo, pelo que procede este fundamento da apelação.
Tal determina a procedência dos embargos de executado, com a consequente extinção da execução por falta de condição material da realização coativa da obrigação exequenda.
Como a apelação foi julgada procedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Embargada/recorrida.
Custas a cargo da Embargada/recorrida.