I - Para averiguar se o financiador do preço de aquisição de automóvel é, igualmente, alienante, há que apurar o tipo de contrato por este celebrado com o vendedor do bem e, ainda, o negócio que, além do mútuo, foi acordado entre si e o comprador/mutuário.
II – Constituem conclusões, não admissíveis nos factos dados como provados, dizer-se ter o financiador cumulado a posição de fornecedor e de financiador do bem, acrescentando-se ter este adquirido a propriedade, transferindo-a depois para o para o comprador.
III – Importa, isso sim, indicar a forma como o financiador adquiriu a propriedade, o modo como a alienou ao mutuário e se o bem passou pela sua posse.
IV - Verifica-se impossibilidade legal de constituição de reserva de propriedade a favor de quem não é titular de direito de propriedade e, sendo legalmente impossível a reserva de um direito de propriedade de que se não dispõe, uma estipulação nesse sentido é nula (nº1, do art.º 280.º, do CC).
V - Suspendendo a reserva de propriedade, apenas, os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá uma tal reserva ser estipulada nesse contrato, não sendo lícita estipulação do mutuante de reserva, para si, do direito de propriedade sobre o bem no contrato de mútuo que tenha por finalidade o financiamento da aquisição do bem, pese embora a conexão que possa existir entre contratos, pois que aquele dele não é titular.
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, seguindo de perto o sumário do acórdão destes autos proferido em 13.3.2023 e ainda o sumário do ac. desta secção de 8.1.2024:
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RELATÓRIO
AUTORA: MASSA INSOLVENTE DE AA, NIF ......, domiciliada na Rua ..., ... ..., Paredes, aqui representada pelo respetivo Administrador de Insolvência.
RÉU: Banco 1..., S.A., com sede na Avenida ..., ... Lisboa.
Por via da presente ação constitutiva, pretende a A. obter a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco 1..., S.A, a qual incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo ..., com a matrícula ..-SC-.., sendo ainda ordenado o cancelamento do respetivo registo junto da conservatória do registo automóvel e inscrita a respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor de Massa Insolvente de AA.
Para tanto alegou ter o insolvente adquirido a terceiro aquele veículo automóvel, beneficiando, para o feito, de mútuo do R. que, não obstante não ter intervindo na compra e venda, reservou para si a propriedade do bem, em contrariedade com o disposto no art. 409.º, n.º 1 CC.
Contestou o R. dizendo ter comprado o automóvel ao referido terceiro e tê-lo vendido depois ao devedor, concomitantemente com o financiamento, razão por que reservou a propriedade a seu favor.
O mutuário deixou de pagar as prestações de reembolso do empréstimo, pelo que o mutuante resolveu o negócio, pretendendo, em reconvenção, o reconhecimento dessa resolução e, nessa base, declarada a sua propriedade sobre o veículo, sendo a Autora condenada a restituí-lo ao Réu, com o cancelamento de todos os ónus eventualmente registados sobre a viatura.
Realizado um primeiro julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 23.10.2022, a qual julgou a ação improcedente e parcialmente procedente o pedido reconvencional, declarando válida a resolução contratual operada, reconhecendo o R. como proprietário do veículo automóvel e absolvendo a Autora da instância quanto ao demais peticionado.
Desta sentença recorreu a A., visando a revogação da mesma, tendo vindo a ser proferido acórdão por esta Relação (subscrito pela ora relatora e pela primeira adjunta), datado de 13.3.2023, o qual anulou a sentença por serem conclusivos alguns factos dados como provados e outros serem contraditórios entre si.
Foi realizado novo julgamento, tendo sido proferida sentença, datada de 1.4.2024, a qual julgou improcedente a ação e parcialmente procedente a reconvenção, decidindo declarar válida a resolução contratual operada; reconhecer a Ré como proprietária do veículo automóvel de marca “CITROEN”, modelo “...”, com a matrícula ..-SC-.., nos termos do disposto nos artigos 1316.º, al. a); 1317.º; 409.º do Código Civil. Absolveu a Autora da instância quanto ao demais peticionado.
Desta sentença recorre agora a A., visando a procedência da ação, com a declaração de nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do recorrido/ R. Banco 1..., S.A., que incide sobre a viatura de marca Citroen, modelo ..., com a matrícula ..-SC-.., e a improcedência da reconvenção.
Para tanto, alinhou os seguintes argumentos conclusivos:
A. Vem a apelante Recorrer da douta Sentença de 01/04/2024, com a referência Citius 94663849, a qual, decide designadamente o seguinte:
“Por tudo o que se deixou supra exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência, decido:
-absolver a Ré dos pedidos contra si formulados pela Autora; Mais julgo o pedido reconvencional parcialmente procedente, por provado e, em consequência, decido:
-declarar válida a resolução contratual operada;
-reconhecer a Ré como proprietária do veículo automóvel de marca “CITROEN”, modelo “...”, com a matrícula ..-SC-.., nos termos do disposto nos artigos 1316.º, al. a); 1317.º; e, 409.º do Código Civil.
-Absolver a Autora da instância quanto ao demais peticionado.”
B. Salvo o devido respeito, que é muito, a Recorrente não se pode resignar com a douta decisão recorrida, pois, é seu entendimento que a interpretação feita pelo tribunal a quo da matéria de facto e de direito com significância para a decisão se reputa como incorreta.
C. De forma sintética, a questão que importa apreciar é a validade da reserva de propriedade sobre o veículo apreendido para a Recorrente / Autora (Massa Insolvente) a favor do Recorrido / Réu, de marca Citroen e com a matrícula ..-SC-...
D. Para o efeito, salvo o devido respeito pela opinião contrária, o Tribunal a quo raciocina erradamente da seguinte forma: “Em face do exposto, atendendo às particularidades do caso “sub judice”, não tendo a Ré actuado apenas nas vestes de financiadora, entendemos que aquela cláusula de reserva de propriedade constituída e registada na Conservatória do registo Automóvel competente a favor da Ré sobre o veículo aqui em causa, é válida.”
E. Isto porque, considera o seguinte: “Em primeiro lugar mostra-se fulcral procedermos à qualificação jurídica do(s) contrato(s) aqui em causa. Parece-nos, sem dúvida, que se trata de contratos coligados, face ao disposto no art.4º, nº1, al.o), do DL. nº133/2009, de 02 de Junho.”
F. Acrescentando ainda o seguinte para suportar a sua decisão: “No caso concreto, a não ser assim, sufragando-se a posição de que a referida cláusula só deverá ser estabelecida a favor de quem, afinal, recebeu o montante total do preço – a fornecedora inicial, intermediária do financiamento, esvaziar-se-ía por completo a finalidade da mesma, já que a primitiva vendedora à aqui Ré, estará impedida de resolver o contrato e de fazer valer a reserva de propriedade, dado que esse contrato de compra e venda está integralmente cumprido.”
G. Comecemos primeiro com o facto dado como provado n.º 17 e que ao invés, deveria ter sido dado como não provado; e ainda dos factos dados como não provados que deveriam ao invés, serem dados como provados (factos dados como não provados 1,2 e 3): ora, como se vai melhor detalhar quanto à matéria de direito, as instituições de crédito têm por exclusivo objeto o exercício das atividades elencadas no artigo 4.º e na al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual; da simples leitura a estas disposições legais, constata-se que a compra para revenda de viaturas, compreendendo esta operação a perceção de uma remuneração pela intermediação, ou de uma margem de lucro com a venda do bem, não consta da sua lista de atividades; as instituições de crédito não são, nem podem ser, revendedoras de bens de consumo, nos termos em que esta operação é realizada no contrato financiado; ao ser assim, iria levar a «deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta…»; tanto basta para concluir que o veículo teria que ter sido vendido pelo stand automóvel A..., Unipessoal, Lda. e que o Recorrido / Réu apenas poderia ter financiado a operação, aliás, nem poderia intervir no contrato de compra e venda desse mesmo veículo. Raciocinar de forma diferente disto seria subverter a lei.
H. Mas não só, senão vejamos: em primeiro lugar, resulta dos documentos juntos aos autos, designadamente a fls. 9 a 14 – contrato de crédito firmado entre a Ré e o insolvente; neste contrato é identificado o “intermediário” e verdadeira vendedora o Stand A..., Unipessoal, Lda.; como ainda da lista definitiva de credores junta designadamente como doc. 5 com a Petição Inicial, relativamente ao Processo de Insolvência n.º 1476/19.8T8AMT, em que AA, NIF ......, foi declarado insolvente.
I. Mais: o próprio insolvente AA prestou as suas declarações no sentido de que realizou o contrato de compra e venda com o Stand A..., Unipessoal, Lda. tendo sido o Stand que lhe entregou a viatura, como o próprio Tribunal a quo admite.
J. E ainda: a testemunha BB – funcionário do Recorrido / Réu, que referiu “(…) existir um protocolo comercial com o intermediário do crédito, protocolo esse genérico e não “veículo a veículo” (…)”, como admitido na Sentença em crise.
K. Vejamos com maior pormenor relativamente ao direito, desde logo de acordo com o n.º 1 do artigo 408.º e do n.º 1 do artigo 409.º, ambos do Cód. Civil.
L. Embora o Tribunal a quo embora não coloque em causa a literalidade deste preceito legal (“Assim sendo, não se atende a invocada interpretação atualista do art. 409º, do C.C. (…)”), vem, no entanto, apresentar uma interpretação inovadora, defendendo o seguinte: “Este é o nosso entendimento em termos gerais, quando o financiador actua só nessa veste, e já não também na veste de fornecedor.”, acrescentando designadamente o seguinte: “Assim sendo, dúvidas não temos de que, o Banco 1..., S.A., foi o financiador e o fornecedor do referido veículo a AA – se bem que, através de um intermediário – o Stand “A...”.”: este raciocínio não se pode compreender de todo, tanto mais que, as instituições financeiras como se sabe, estão impedidas de comprar para vender, veículos automóveis.
M. Senão vejamos: de acordo com o artigo 4.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual (regime das instituições de crédito e das sociedades financeiras) estabelece o rol de atividades das instituições de crédito.
N. E a al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do mesmo diploma legal estabelece os requisitos gerais.
O. De chamar ainda à colação o disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 5.º do DL n.º 54/75, de 12.02, na sua redação atual, (registo automóvel).
P. Ora, da conjugação destas disposições legais resulta que a lei faculta a convenção da reserva da propriedade a favor do alienante da coisa, sendo que o Recorrido /Réu é apenas a mutuante no contrato de mútuo celebrado com a insolvente para esta adquirir o veículo a um terceiro.
Q. Dúvidas não restam que o Recorrido / Réu nunca poderia ser vendedor / fornecedor, por imposição legal (decorre das atividades taxativas que pode exercer), e ainda porque o seu registo foi efetuado por imposição legal na medida em que a reserva de propriedade não pode ser registada, sem prévio registo de propriedade (Artº 5 nº 1 do DL nº 54/75 de 12 de fevereiro -Registo da Propriedade Automóvel).
R. Da simples análise do registo, vê-se que o mesmo foi efetuado no mesmo dia a favor do Recorrido e logo de seguida do insolvente, ou seja, apresentados a 25.08.2017 e concluídos no dia 28.08.2017 (cfr. Factos Provados que resultaram da instrução da causa), tudo em simultâneo, pois de outra forma não poderia ser, nem a conservatória do registo automóvel, o aceita.
S. Não podendo o Recorrido /Réu, como instituição financeira, ter vendido o veículo, designadamente por impossibilidade legal, na verdade a reserva de propriedade não foi reservada à alienante do veículo, como permite aquela disposição legal, mas a favor de um terceiro, o Recorrido, isto é, uma instituição financeira que nada tem a ver com o vendedor do veículo que de facto é o Stand A..., Unipessoal, Lda., aliás, nem resulta dos autos que são sequer empresas do mesmo grupo.
T. Daqui resulta que por aplicação destas normas a reserva de propriedade a favor do Recorrido / Réu mutuante não se encontra contemplada nas citadas disposições legais, sendo que, literalmente, só nos contratos de alienação, é lícita a estipulação da cláusula de reserva de propriedade, o contrato entre o Recorrido Réu e o Stand nunca poderia ser, nem contrato de transmissão, nem sequer se pode falar em contratos coligados para daí ultrapassar a questão de venda de um bem não admitido por lei, a quem exerce atividade financeira.
U. Deste modo, o Recorrido /Réu, na qualidade de financiador, nada vendeu ao insolvente e daí que não possa reservar para si aquilo que nunca teve – a propriedade do bem.
V. A este respeito veja-se as palavras de Fernando Gravato Morais, em Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril / Junho de 2004, pp. 51-52, em anotação ao Ac. da RL de 21.II.2002, cuja transcrição para as alegações se remete.
W. Assim, não se veja falar em “contratos coligados, face ao disposto no art.4º, nº1, al.o), do DL. nº133/2009, de 02 de junho”: embora a celebração do primeiro contrato de compra e venda entre o insolvente e o stand tenha ocorrido para permitir a realização do segundo, contrato de financiamento entre o insolvente e o agora Recorrido /Réu, este contrato de mútuo celebrado entre Recorrido / Ré e o agora insolvente é autónomo em relação ao contrato de compra e venda, celebrado entre o então comprador insolvente e a vendedora do automóvel Stand; caso contrário estaríamos e encapotar uma situação que a lei não permite, como já ficou supra melhor demostrado; acresce que a reserva de propriedade a favor do financiador não é, por natureza, compatível com o regime do crédito ao consumo, dada a finalidade de tutela do consumidor que este desempenha - aliás, se o Recorrido / Réu quisesse garantir o seu financiamento, teria outros meios ao seu dispor, designadamente as seguintes garantias lícitas: aval, fiança ou hipoteca; já para não falar da hipótese de lançar mão de locação financeira, mecanismo este distinto da situação dos presentes autos.
X. Ora, a finalidade típica deste outro tipo de contrato, o contrato de locação financeira, é à cedência do uso da coisa, cedência esta que só se torna possível com a aquisição prévia da coisa pelo locador: o financiamento inicial ligado a esta operação tem lugar na esfera do locador que só obtém resultados externos através da cedência do uso do bem adquirido com esse financiamento - sendo que os elementos da locação financeira e do mútuo não se confundem, isto porque, no caso de locação financeira a verdadeira prestação do locador é a cedência do uso da coisa; e não é o que acontece nos presentes autos, pelo que também por aqui, não se pode dizer que o Recorrido / Réu tenha sido o fornecedor da viatura em questão.
Y. Ou seja, do que sabemos, no momento da celebração do contrato de compra e venda e do contrato de financiamento, o Recorrido /Réu não era proprietário do veículo; para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma “reserva de propriedade” a favor do Recorrido até que se mostrasse liquidado, na íntegra, o contrato de financiamento celebrado - para isso e só por isso, para se efetuar o registo da reservada propriedade, foi necessário registar a propriedade a favor do Recorrido pelo registo de propriedade n.º ap..., em 28.08.2017; tendo no mesmo dia e hora sido a propriedade registada a favor do insolvente: ap..., em 28.08.2017.
Z. Ora, a entidade financiadora não expressa qualquer vontade de fazer seu o bem; e se a instituição de crédito nunca adquire, nem deseja adquirir a propriedade, torna-se forçoso concluir que a assim designada “reserva de propriedade” mais não pretende ser do que, uma garantia real constituída a seu favor.
AA. Aliás e como consta dos autos o Recorrido/Réu foi incapaz de juntar aos autos a fatura de aquisição do veículo, nem o podia fazer, uma vez que não o comprou e até confessou que apenas financiou a sua aquisição como consta dos autos no requerimento datado de 30/06/2023 sob a referencia citius 8900278, o gerente da empresa vendedora do veiculo já afirmara como se vê do requerimento datado de 27/05/2022 sob a referencia citius 7972151, e do email enviado por este, ao Tribunal em 14/12/2021 sob a referencia citius 7570396 o que tudo, constituiu aquisição processual.
BB. Estes factos nem sequer foram contrariados pelo depoimento da testemunha BB, no qual a douta sentença em cotejo motiva a sua convicção:
CC. “.. funcionário do Banco Réu desde Outubro de 2016, exercendo as funções de director no departamento de recuperação de crédito. Demonstrou conhecimento acerca do contrato de crédito celebrado entre o Banco 1..., S.A. e o Sr. AA, mútuo esse contraído para a aquisição de uma viatura automóvel. Como garantias prestadas houve uma reserva de propriedade a favor do Banco e o preenchimento de uma livrança. “.
DD. Dito de outro modo, o Recorrido / Réu financiador é aqui uma instituição de crédito, sendo que o bem adquirido é uma viatura automóvel. Como já supra melhor explanado, as instituições de crédito têm por exclusivo objeto o exercício das atividades elencadas no artigo 4.º e na al. c) do n.º 1 do artigo 14.º do DL n.º 298/92, de 31-12, na sua redação atual, sendo que neste rol não consta a compra para revenda de viaturas.
EE. De resto, o regime específico das sociedades financeiras para aquisições a crédito é ainda mais limitativo do seu objeto social; as instituições de crédito não são, nem podem ser, revendedoras de bens de consumo, nos termos em que esta operação é realizada no contrato financiado.
FF. Coisa distinta seria, se estivéssemos perante um contrato de locação financeira, em que o objeto, aí sim, seria distinto e admitido por lei.
GG. Neste sentido vai o Venerado Tribunal da Relação do Porto, no seu hodierno douto Acórdão de 14/11/2022, no proc. 741/22.1T8VLG.P1, em que foi Relator o Juiz Desembargador Sr. Dr. Manuel Domingos Fernandes, cuja transcrição é feita nas alegações para as quais por mera economia se remetem.
HH. Veja-se ainda no mesmo sentido veja-se ainda PAULO RAMOS DE FARIA, em “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador, cuja transcrição é feita nas alegações.
II. Da cláusula inscrita no contrato de financiamento retira-se que mutuante e mutuário, abstraindo-se dos pressupostos contidos no n.º 2 do artigo 409 do Cód. Civil, visam aparentemente alcançar os efeitos de garantia da “constituição de reserva de propriedade” em sentido próprio, o que se conclui do facto de se referirem a este acordo acessório como sendo de “reserva de propriedade”, inserindo-o numa cláusula contratual dedicada à segurança do crédito, que aliás tem o título de “Garantias”.
JJ. De notar ainda que é estipulado no contrato de crédito o seguinte: “Hipoteca sobre o Bem acima identificado: Não” - como de seguida se vai explanar, existe uma razão para tal acontecer, e mais uma vez, o que se pretende é «deixar entrar pela janela aquilo que não se quis deixar entrar pela porta…».
KK. Os efeitos de garantia reconduzem-se ao direito de o credor haver para si a coisa, em caso de incumprimento, resolvendo o contrato, e ao direito de ser pago pelo seu valor, com preferência sobre os demais credores do comprador.
LL. Ora, o direito do credor a ser pago pelo valor da coisa com preferência sobre os demais credores, encontra-se previsto nas figuras que ora relevam, designadamente nos artigos 666.º e ss. (penhor) e nos artigos 686.º e ss. (hipoteca); se a “reserva de propriedade” constituída a favor do mutuante disser respeito a coisa sujeita a registo, dever-se-á confrontar a cláusula com a hipoteca; sendo este, um regime específico e completamente distinto do que está em causa nestes autos; e esta estipulação, por não estar abrangida pelo artigo 409.º do Cód. Civil ou por qualquer outra norma legal tipificadora, é claramente violadora, designadamente do disposto nos seguintes artigos do Código Civil: artigos 604.º, 1306.º e 694.º
MM. Ora, o pacto comissório, por natureza, exerce uma função de garantia especial do crédito.
NN. Se pudermos afirmar a proibição geral do pacto comissório no âmbito do direito das garantias, tal proibição vem prevista no regime da hipoteca, da constituição do penhor, da consignação de rendimentos e dos privilégios creditórios, estando ainda presente, pela remissão que opera para estas garantias, na caução resultante de negócio jurídico.
OO. Estamos pois, perante uma proibição comum a todo o direito das garantias reais de fonte negocial, o mesmo é dizer, comum a todo o direito civil; do exposto se extrai que a norma contida no artigo 694.º do Cód. Civil é uma norma geral, comum a todo o direito das garantias.
PP. Independentemente da estrutura da figura negocial adotada e do momento em que opera a transferência da propriedade, o resultado a que se chega com a “reserva de propriedade” constituída a favor do Recorrido /Réu mutuante, é sempre aquele que a lei visa obstar, pelo que o âmbito da proibição do pacto comissório ferirá de nulidade tal estipulação.
Por outro lado,
QQ. O processo de insolvência tem como objetivo a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores: designadamente de acordo com o artigo 1.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), trata-se de um processo de execução universal (uma vez que todo o património do devedor insolvente responde pelas suas dívidas), que tem como finalidade a satisfação dos credores; sendo que essa satisfação alcança-se pela forma prevista num plano de insolvência que se baseará na recuperação do devedor ou na liquidação do seu património e repartição do seu produto pelos credores.
RR. Subjacente está que o princípio da igualdade entre credores, se concretiza no tratamento de forma diferente de realidades diversas, traduzindo-se na ideia geral de proibição do arbítrio.
SS. Entre as “razões objetivas” que justificam a diferenciação dos credores, destaca-se a diferenciação entre créditos garantidos e privilegiados, créditos comuns e créditos subordinados, prevista no artigo 47.º do DL n.º 53/2004, de 18 de março, na sua redação atual (CIRE).
TT. Quanto a este aspeto, há que chamar à colação, os factos dados como provados: facto provado 1, facto provado 11 e facto provado 12.
UU. Há ainda a atender à lista definitiva de credores junta designadamente como doc. 5 com a Petição Inicial, que identifica vários credores de natureza comum, para além do aqui Recorrido / Réu.
VV. Decorre da lei que em primeiro lugar, é dado pagamento aos créditos com garantias ou privilégios creditórios e o remanescente, se o houver, será distribuído pelos créditos comuns; ora, o que o Recorrido pretende na prática é precisamente subverter a lei, passando à frente dos restantes credores com a mesma graduação de créditos, situação que, não poderá ser permitida e que este Venerado Tribunal com certeza, fará inteira justiça.
WW. E consequentemente, a não ser válida a cláusula de propriedade, por nula, deverá improceder integralmente o pedido reconvencional, designadamente improceder como válida a resolução contratual operada e o reconhecimento da Ré como proprietária do veículo automóvel, pelo que o Recorrido não poderá beneficiar designadamente o regime do artigo 104.º do CIRE - até porque o verdadeiro vendedor, como já supra melhor explanado, foi o Stand A..., Unipessoal, Lda., que recebeu integralmente o preço, e não o Recorrido / Réu.
Não houve contra-alegações.
Objeto do recurso: - dos factos e das conclusões dados como provados e não provados;
- da validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do Banco mutuante.
FUNDAMENTAÇÃO
Factos dados como provados na sentença recorrida
1-AA, NIF ......, insolvente nos autos do Processo de Insolvência n.º 1476/19.8T8AMT que correm termos no Juízo do Comércio de Amarante - Juiz 2 da Comarca do Porto Este, celebrou com o R. em 11 de agosto de 2017, um contrato de mútuo destinado ao financiamento para aquisição da viatura de marca CITROEN, modelo ..., com a matrícula ..-SC-...
2-Neste contrato, foi fixado que a quantia mutuada no montante global de € 20.417,60€ seria paga em 120 prestações mensais com inicio em 08-09-2017, no montante de € 263,62 cada uma, acrescidos do montante de € 3,00 por cada cobrança realizada, pelo que, o custo do mútuo/total a reembolsar ao R. seria de € 31.994,40€.
3-Foram, ainda, estipuladas garantias de pagamento que consistiram na aceitação de livrança em branco, pessoalmente avalizada pelo insolvente, com autorização de preenchimento da mesma, bem como, acessoriamente, reserva de propriedade a favor do R, sobre o identificado veículo, até integral pagamento do efetivo custo da quantia mutuada/contrato de mútuo.
4-O Insolvente deixou de proceder ao pagamento das prestações devidas ao R. e o veículo foi objeto de apreensão para a massa insolvente, aqui A., quando, atento o lapso de tempo decorrido e a acentuada desvalorização sofrida pela viatura, o seu valor não excedia o montante de € 12.000,00.
5-No âmbito do processo de insolvência, foi elaborado o Auto de Inventário pelo Sr. Administrador de Insolvência, bem como o respetivo Auto de Apreensão de bens móveis, no qual o veículo automóvel consta da verba nº 1 do referido auto de apreensão.
6-A identificada viatura encontra-se em poder da aqui A., nunca tendo sido objeto de qualquer ação de restituição ou separação contra a Massa Insolvente e os demais credores.
7-O R. recusa o levantamento da Reserva de Propriedade que sobre a veículo, instituiu a seu favor, pese as diversas solicitações da A. para o efeito.
8-Esta recusa, impede a A. de vender o veículo sem qualquer ónus, no âmbito da liquidação da massa insolvente, cujo produto da venda, visa a satisfação dos interesses da universalidade dos credores do insolvente.
9- A... UNIPESSOAL, Ldª., recebeu o preço integral do veículo, no momento em que o vendeu.
10-Para garantir o pagamento do seu crédito (o Réu) exigiu à insolvente a subscrição de livrança em branco, avalizada pessoalmente.
11-O Réu, relativamente ao insolvente, foi graduado como seu credor comum - na sentença de graduação de créditos decretada sob o apenso A dos autos identificados no item 1º e respetiva lista definitiva credores.
12-Encontrando-se reconhecido o seu crédito (do Réu) no âmbito da insolvência no montante de € 24.750,44 e de natureza comum.
13-O Réu é um banco cuja atividade consiste na realização de operações bancárias e financeiras com a latitude consentida por lei às instituições que se dedicam à atividade bancária.
14-A 11 de Agosto de 2017, o Banco celebrou com AA contrato de crédito com o n.º ..., destinado à aquisição da viatura de marca “CITROEN”, modelo “...”, com a matrícula ..-SC-.., pelo valor global de € 20.417,60, a que correspondia um montante total imputado ao consumidor de € 13.994,40, reduzido a escrito, de que aquele se confessou devedor.
15-O empréstimo seria reembolsado em 120 prestações mensais e sucessivas de capital, juros e demais encargos contratualmente estabelecidos, no valor unitário de € 263,62, acrescido do montante de € 3,00 por cada cobrança realizada, de acordo com o plano do conhecimento do mutuário, com início a 8 de Setembro de 2017 e, com termo previsto para 8 de agosto de 2027, conforme o disposto nas “Condições Particulares” do contrato.
16-Para garantia do cumprimento do contrato de mútuo, a venda da aludida viatura foi feita com reserva de propriedade a favor do Banco.
17-O Banco adquiriu a propriedade da viatura e transferindo-a posteriormente para o insolvente (antes de o ser assim declarado).
18-Sobre tal bem, foi registada cláusula de reserva de propriedade a favor do Autor (ainda não insolvente), condição sem a qual não contrataria.
19-Tal cláusula visou constituir uma verdadeira garantia, porquanto em situação de incumprimento, não se verificaria o efeito translativo do contrato de compra e venda.
20-A viatura foi entregue ao mutuário.
21-AA, na qualidade de adquirente obteve um financiamento junto do ora Réu, o qual, fez o pagamento diretamente ao alienante, reservando para si a propriedade do bem objeto da transação.
22-Em detrimento do estipulado no contrato em apreço, o mutuário não procedeu ao pagamento da totalidade das prestações estipuladas.
23-Em detrimento do estipulado no contrato, o mutuário apenas procedeu à liquidação parcial da prestação vencida a 8 de outubro de 2019, correspondente à 26.ª prestação.
24-A 17 de outubro de 2019, o mutuário AA foi declarado insolvente, ao abrigo do processo n.º 1476/19.8T8AMT, o qual, corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante -Juiz 2.
25-Neste seguimento, veio o Réu reclamar o seu crédito, tendo informado que havia incumprimento do contrato supra e, bem assim, que mantinha o interesse na reserva de propriedade relativa ao veículo automóvel de marca “CITROEN”, modelo “...”, com a matrícula ..-SC-.., com as respetivas consequências legais.
26-O Administrador da Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato com a consequente resolução do mesmo.
27-O Administrador da Insolvência procedeu à apreensão do veículo automóvel em crise para a massa insolvente e, bem assim, propôs que os autos de insolvência prosseguissem os seus termos com a liquidação do ativo.
28-AA adquiriu a viatura por via do financiamento que o ora Réu lhe fez, tendo a propriedade do veículo sido transmitida deste último para o primeiro.
Factos Provados que resultaram da instrução da causa:
1-A propriedade do veículo com a matrícula ..-SC-.., marca CITROEN, foi objeto dos seguintes registos:
a)Registo de propriedade com ap..., em 09.05.2017, a favor de B... UNIPESSOAL, Ldª., Av. ..., ... Setúbal;
Factos Não Provados.
1-Nessa data (11.08.2017) o referido veículo foi vendido à insolvente, por A... UNIPESSOAL LDA, NIP ... com sede na Rua ..., ..., ... ... Coimbra, tendo esta, recebido de imediato, o respetivo preço.
2-O Réu apenas financiou (in casu, em parte) a aquisição do veículo no âmbito da sua atividade bancária, celebrando em concreto, um contrato de mútuo para o efeito, e não um contrato de compra e venda.
3-O Réu ao conceder ao comprador, total ou parcialmente (como foi o caso), os meios económicos para realizar o negócio, não intervém, nem interveio no contrato de compra e venda do veículo.
No acórdão que anulou a sentença anterior, cremos ter explicitado de forma suficiente a razão pela qual parte da matéria de facto provada era errada (considerando o direito aplicável), contraditória entre si e imprestável para o efeito pretendido pela Ré o qual, em reconvenção, acabou por ser parcialmente acolhido pelo tribunal a quo.
Ficou escrito no acórdão anterior, entre o mais, o seguinte:
«A questão colocada consiste em saber se, sendo o R. financiador, através de contrato de mútuo, do preço da compra efetuada pelo A., pode constituir a seu favor a reserva de propriedade prevista no art. 409.º CC, segundo a qual o alienante pode reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações pelo comprador.
A primeira observação que se impõe e a de que o tribunal a quo discorreu sobre a matéria sem o rigor que era exigível.
Na verdade, deu como provadas circunstâncias que, além de duplicadas, se revelam conclusivas:
Em 9 afirma que a vendedora do carro sobre o qual o Banco financiador detém reserva de propriedade, recebeu do comprador o preço no momento em que o vendeu, mas em lado algum identifica o contrato de compra e venda em que figure como vendedora a A... e o A. insolvente ou o R., na qualidade de comprador.
Nem na motivação da decisão de facto, nem nos autos, surge este contrato de compra e venda, sendo que, sem isso, é manifestamente conclusivo afirmar-se, como o fez o R. na contestação e se deu como provado em 17 e 1 (a final) ter o Banco cumulado a posição de fornecedor e de financiador do automóvel, acrescentando-se ter este adquirido a propriedade e a transferindo-a depois para o para o insolvente.
Cumulou as duas posições como e por que razão? Comprou o veículo a quem? Pagou o preço por si ou como financiador do comprador? Alguma vez teve o automóvel na sua posse? Como adquiriu a propriedade? Como a transferiu para o A.? Vendeu-lho o automóvel?
Depois, ainda que não fossem conclusivos, e são, estes pontos 17 e 1 estão em aparente contradição com o 28, onde se diz que AA adquiriu a viatura através de financiamento do R., tendo-lhe este transmitido a propriedade.
Cabe perguntar: AA comprou a viatura a quem, através do mútuo celebrado com o R.? É conclusivo dizer-se ter-lhe o R. transferido a propriedade do automóvel?
Vendeu-lho? Quando?
É que a atividade social do R. não contempla a venda de automóveis (exceção talvez aos veículos usados para renovação da sua frota, o que não é o caso), mas apenas a realização de operações bancárias e financeiras. Ou entre estas partes foi apenas celebrado o contrato de mútuo, único contrato que está descrito nos factos, não constando aí a descrição dos outros dois contratos de compra e venda, da vendedora A... para o Banco R. e deste para o autor?
Além disso, também o ponto 2 da parte final contém uma afirmação juridicamente errada ao afirmar-se aí ter o Banco adquirido o automóvel através do Requerimento de Registo Automóvel apresentado a 25.8.2017.
É que, como sabemos, a compra a venda opera-se por mero efeito do contrato (art. 408.º, n.º 1 CC – princípio da consensualidade), não tendo sido in casu descrito qualquer contrato de compra e venda, sua data e intervenientes, e sendo ainda certo que o registo do bem na titularidade de alguém não tem a virtualidade de transferir a propriedade, mas apenas de lhe dar publicidade, tendo efeitos apenas declarativos ou consolidativos e não constitutivos do direito real subjacente.
Quer isto dizer que “a constituição, transmissão, modificação e extinção dos direitos reais sobre imóveis [ou móveis sujeitos a registo] ocorre à margem do Registo e, consequentemente, o assento registral visa “apenas” consolidar a eficácia erga omnes, da respectiva relação jurídico-real, perante certos e determinados terceiros”.»
Relendo agora a matéria de facto dada como provada e a fundamentação de direito que se lhe seguiu verificamos que, infelizmente, ou não nos fizemos anteriormente entender perante o tribunal a quo ou este obnubilou integralmente o acórdão que anulou a primeira sentença.
É que muitos dos factos que agora se deram como provados (e não provados) continuam a reproduzir os anteriores, já julgados imprestáveis pelo acórdão anterior – ou foram alterados em sentido também ele juridicamente erróneo ou irrelevante. Tão defeituosa quanto isso é também a motivação de facto em que se diz assentarem os factos, a qual se revela absolutamente escassa e insuficiente.
Assim, nos termos do art. 662.º CPC, impõe-se analisar toda a matéria de facto, além da impugnada, uma vez que o n.º 1 deste normativo pretendeu “que ficasse claro, sem embargo de correção, mesmo a título oficioso, que determinadas patologias que afetam a decisão de facto (v.g. contradição) (…), a Relação deve alterar a decisão de facto, sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostram acessíveis determinem uma solução diversa (…) – António Santos Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.º Ed., p. 286, nota 3.
E, no fundo, tudo passa por saber se o Banco vendeu um automóvel ao insolvente, caso em que poderia reservar para si a propriedade (art. 409.º, n.º 1 CC), ou se apenas lhe facultou o dinheiro (por mútuo) que foi pago ao vendedor da viatura.
Sabemos, do ponto 1 (repetido inutilmente em 14), que o R. celebrou com o insolvente um contrato de mútuo em agosto de 2017.
O dinheiro serviria para comprar um carro que foi adquirido pelo insolvente.
Diz-se também que o Banco se muniu de garantias de que obteria a satisfação do crédito mutuado: uma livrança em branco, avalizada pelo insolvente e a reserva de propriedade a seu favor – pontos 3, 10 e 16 (repetidos inutilmente).
Logo aqui fica-nos a dúvida sobre se a reserva de propriedade era apenas uma garantia exigida pelo mutuante?
Sendo assim, a alteração do ponto 9, relativamente à primeira sentença, é uma simples operação de cosmética que em nada influi sobre a questão de saber se o R. adquiriu o veículo à A....
O tribunal a quo ainda solicitou ao R. a prova de este que comprou o carro à vendedora A..., mas o demandado logo respondeu claramente, em 30.6.2023:
Banco 1... S.A., Ré nos autos à margem melhor identificados, tendo sido notificada para juntar aos autos a fatura de aquisição do veículo à empesa vendedora do mesmo, vem informar V. Exa. que estando perante um contrato de crédito, não sendo, portanto, um contrato de leasing, a Ré não tem fatura de aquisição da viatura, uma vez que apenas empresta dinheiro ao cliente para adquirir a viatura e somente regista a reserva de propriedade como garantia do crédito concedido.
Pelo exposto, se a Ré empresta dinheiro ao cliente para adquirir o veículo, não poderia ter ou dispor de qualquer fatura de aquisição do mesmo.
Ou seja, o R. admitiu expressamente apenas ter concedido o crédito para aquisição do veículo, mas não dispor de fatura da aquisição “uma vez que apenas empresta o dinheiro”.
Mesmo com esta declaração do R., conseguiu o tribunal dar como provada a mesma conclusão que já anteriormente lhe tinha sido censurada pela Relação, pois no ponto 17 escreveu que o Banco adquiriu a propriedade da viatura e depois a transferiu para o devedor.
Já antes ficou dito em acórdão que afirmar-se adquiriu a propriedade é algo conclusivo que não poe figurar entre os factos provados ou não provados.
A aquisição de propriedade ocorre por muitas formas, originárias ou derivadas (art. 1316.º CC). Sendo assim, como adquiriu o Banco o veículo? Comprou-o à vendedora A...? Herdou-o por sucessão? Logrou demonstrar (nem alegou) algum modo originário de transmissão?
Já no ponto 28 se diz algo contrário e igualmente conclusivo: que foi AA que adquiriu a viatura (sabemos nós que foi por compra à vendedora, uma vez que obteve mútuo ao R. para o efeito) e, por isso, não se vê como se concluiu neste ponto, afinal, que propriedade foi transferida (não se sabe por que tipo de negócio) do R. para aquele AA.
Este ponto, conclusivo e contraditório, tal como o ponto 17, são, por isso, eliminados.
É certo que, a 29.12.2023, o R. finalmente juntou o documento que comprova a transferência que efetuou para a vendedora, da quantia de € 19.000, 00, o que fizera no dia 16.8.2017, isto é, cinco dias depois de ter concedido o crédito ao comprador do carro.
Porém, este documento é absolutamente imprestável como prova da compra do veículo pelo R., sendo, isso sim, a justificação de que mutuou o valor ao comprador e de que, por isso – como sucede em grande parte das situações de mútuo – o valor mutuado foi diretamente transferido para a vendedora.
Então, onde encontrou o tribunal recorrido a explicação para esta conclusão – o R. adquiriu a propriedade do veículo e, mais, a transferiu depois para o devedor, sendo que nenhum documento suporta igualmente esta última asserção conclusiva?
Ora, a prova da primeira conclusão – o Banco adquiriu a propriedade à vendedora – parece o tribunal a quo ter ido buscá-la ao depoimento de um funcionário bancário, BB, que afirmou “existir um protocolo comercial com o intermediário do crédito a vendedora, protocolo esse genérico e não “veículo a veículo”, em que nós compramos a viatura ao intermediário do crédito, pagamos o veículo e efetuamos o registo a favor da entidade financeira (…)”.
Ora bem, nem este protocolo foi junto aos autos, nem o mesmo se referirá a este veículo concreto, nem sobretudo foi alegado ter sido dado conhecimento ao comprador de que, ao abrigo do protocolo, ficaria reservada a propriedade ao Banco que mutuou o valor da aquisição e que o Banco é que era, afinal, o vendedor.
Sendo assim, não só é conclusivo o ponto 17, como inexiste prova nesse sentido ou noutro.
O ponto 17 é, por isso, como já se disse, eliminado, sendo verdade, isso sim, o que se deu como provado em 21: AA foi o adquirente (além de mutuário), e não o Banco R. que apenas efetuou com aquele um contrato de mútuo ao abrigo do qual efetuou diretamente o pagamento à vendedora do automóvel.
Quanto aos factos não provados, não se vê, como pretende a recorrente, se dê como provado que o veículo foi vendido à insolvente, porque a insolvência só veio a ocorrer em 2019 (facto 24).
Já a data da aquisição da viatura – no dia do mútuo? ou no dia da transferência do preço para a vendedora (cinco dias depois)´-, é irrelevante para o fim da ação, assim se mantendo o ponto 1 não provado.
Já quanto ao ponto 2 o mesmo deve ser dado como provado, excluindo o que se acha entre parêntesis porquanto o mútuo é superior a € 20.000,00, e o preço pago à vendedora foi inferior a isso.
Razão por que se dá como provado o ponto não provado com exclusºao da expressão (in casu, em parte).
Também, pela mesma razão se dá como provado o ponto 3 não provado (com exceção da expressão como foi o caso.
Fundamentação de Direito
Face aos factos apurados e expurgados das conclusões que neles não deveriam ter sido incluídas, não concordamos igualmente com a sentença recorrida quanto, não tendo sequer discriminado quantos e quais os contratos em causa, inicia a sua exposição por afirmar estarmos perante contratos coligados.
Esta qualificação não é nova e foi acolhida, por ex., no ac. STJ, de 20.12.2017, Proc.1371/12.1TBAMT-A.P1.S1: “um dos traços característicos das actuais aquisições de bens é serem realizadas com recurso ao crédito, sendo frequente os vendedores finais proporem aos compradores o financiamento total ou parcial da aquisição por uma empresa financiadora, usualmente uma instituição de crédito. Para esse efeito, no «acto de aquisição paralelamente ao contrato de compra e venda celebrado com o vendedor, o comprador subscreve uma proposta de contrato de mútuo (ou outras formas de crédito alternativas) que o vendedor envia ao financiador com que habitualmente trabalha, a fim de obter a respectiva aprovação e conclusão.
Foi exactamente isso o que sucedeu no caso em apreço, como evidenciam os factos provados e as instâncias lucidamente entenderam, na medida em que os Recorrentes compraram um veículo automóvel, cujo preço de aquisição foi financiado pela Exequente, caindo no âmbito de aplicação do art. 4º, n.º 1, alínea o), do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho.
Acontece que o legislador, no intuito de proteger os consumidores e atenta a íntima conexão, por um lado, entre o vendedor e o financiador e, por outro, entre os dois contratos (compra e venda e mútuo), no âmbito do circuito económico de bens e serviços, passou a olhar esta realidade na perspectiva de uma unidade funcional e não apenas em função da autonomia formal das obrigações deles emergentes. E, na sequência da Directiva 2008/48/CE, de 23 de Abril, o DL n.º 133/2009, de 2 de Junho, consagrou, entre nós, a responsabilidade do financiador perante o consumidor, na área dos contratos de crédito ao consumo, surgindo, assim, a figura do contrato de crédito coligado e da inerente responsabilidade do concedente do crédito, prevista genericamente no art.º 18º do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho. Quer dizer, muito embora na compra e venda financiada existam dois contratos distintos (um de compra e venda e outro de crédito), apresentam-se ambos unidos e funcionalmente conexos, o que «investe o financiador numa responsabilidade subsidiária perante o consumidor pelo exacto e pontual cumprimento do contrato celebrado com o vendedor (art. 18.º, n.º 3, do DL n.º 133/2009, de 2 de Junho, e arts. 3º, 4º, 5º e 9º do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril.
Entre os participantes nesta cadeia contratual estabelece-se uma coligação ou dependência negocial em que as vicissitudes de cada um desses contratos se reflecte reciprocamente no outro, ficando, por isso, o financiador também responsável perante o comprador pelo cumprimento do contrato celebrado com o vendedor».
Apelou-se, assim, ao disposto no DL 133/09, de 2.6, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores.
O tribunal a quo considerou tratar-se de contratos coligados, por força do art. 4.º, n.º 1 al. o) daquele DL, o que em nada auxilia sobre a validade da reserva de propriedade pois apenas correlaciona o contrato de compra e venda com o contrato de financiamento, nos casos de bens de consumo, obrigando o mutuante e o intermediário de crédito a cumprirem diversos deveres perante o consumidor.
Seja como for, é o disposto no art. 409.º, nº 1, CC, que aqui está em causa e, neste conspectu, a sentença enfatiza a distinção entre duas tendências doutrinárias jurisprudenciais antagónicas, acabando por concluir não ser de atender à aplicação atualista daquele normativo, quanto à validade da cláusula de reserva de propriedade imposta no mútuo (como já tinha sido enfatizado no ponto I do sumário do nosso acórdão de 2023). Porém, logo exceciona desta sua interpretação o caso do financiador que atua como intermediário, por ter sido o R. quem financiou e vendeu o automóvel ao comprador, o que, como vimos, ficou completamente afastado – o Banco não vendeu ao comprador coisa alguma e afirmou-o expressamente nos autos.
Como explica Menezes Cordeiro, no Código Civil Comentado (brochado) II – Das Obrigações em Geral, p. 150: “A reserva de propriedade surge como uma cláusula integrada na compra e venda: em regra, a prestações (934.º e 935.º); donde a referência legal ao “cumprimento total ou parcial das obrigações”. Segue a forma prescrita para o contrato principal. A formalidade do registo é necessária, apenas, para a oponibilidade a terceiros.
Prosseguindo, diz:
7. Situação do adquirente: (a) é titular de um direito real de aquisição da coisa comprada, logo que a obrigação esteja cumprida; (b) é possuidor em nome próprio, podendo gozar e fruir da coisa; (c) pode dispor da sua posição ou, sobre ela, constituir garantias ou sofrer penhoras.
13. Em suma: estamos perante uma alienação de propriedade onerada, com eficácia real, visto estar prevista na lei (1306.o/1), com uma função de garantia”.
Nesta dualidade – interpretação tradicional do art. 409.º/1 e interpretação atualista, socorremo-nos do estudo de LUÍS CARLOS ALMEIDA GIRÃO - A RESERVA DE PROPRIEDADE A FAVOR DA ENTIDADE FINANCIADORA, tese de mestrado apresentada à FDUC em 2016, o qual, na pág. 39 e ss. acaba por recensear a doutrina e a jurisprudência relevantes, explicando, desde logo, a posição favorável à validade da reserva de propriedade a favor da financiadora.
Diz assim:
“A reserva de propriedade a favor da entidade financiadora nasce no âmbito da práxis universalizada pelas instituições de crédito ao financiarem aquisições de bens de consumo. Convencionando as partes que o financiador reserva a seu favor a propriedade do bem, até ao integral pagamento do montante financiado[1], a entidade financiadora surge como um terceiro, estranho ao contrato de compra e venda, mas não no que respeita ao contrato de mútuo. A opinião da jurisprudência[2] não é unânime no que alude à rejeição ou anuência da admissibilidade da reserva de propriedade a favor da entidade financiadora, no qual o fundamento primordial, que se guia pela inadmissibilidade da aceitação da reserva de propriedade, vai na linha de entendimento em que se julga a reserva de propriedade a favor do financiador nula, por ser considerado um negócio contra legem.
A conceção da reserva de propriedade, a favor da entidade financiadora, passa pela celebração de um negócio que se qualifica por uma relação triangular (alienante/vendedor, adquirente/comprador e um terceiro/financiador), onde existem dois contratos estritamente conexos entre si. Um primeiro contrato, que será o contrato de compra e venda, entre o alienante/vendedor e o adquirente/comprador; e um segundo contrato que será o contrato de mútuo celebrado entre o adquirente/comprador e a entidade financiadora.[3] A cláusula de reserva de propriedade é colocada a favor da entidade financiadora, uma vez que é titular do direito de crédito sobre o adquirente/comprador; o alienador/vendedor recebe a totalidade do preço que é pago pela entidade financiadora, e esta[4], por consequência, vai ingressar na posição jurídica do alienante/vendedor, relativamente ao negócio de compra e venda, como se tratasse de uma venda a prestações.
(…)
A este propósito, afirma CALVÃO DA SILVA[5] “as partes quiseram conexionar, genética e funcionalmente, distintos e autónomos contratos por elas firmados com vista à prossecução de um escopo comum (…) essa vontade recíproca de interdependência funcional e teleológica de diferentes contratos para satisfazer o interesse perseguido (…) impõe-se ao intérprete na fixação do sentido com que o fenómeno da coligação negocial há-de valer no caso concreto”. Partindo do plasmado, podemos concluir que existe uma relação funcional entre dois contratos distintos e que os contratos se harmonizam entre si no sentido em que visam um fim comum”.
Acrescentou, depois, a ps. 44 e ss.:
A contrario sensu do que é defendido por GRAVATO MORAIS, no nosso entendimento, o artigo 409.º do Código Civil é uma norma com natureza dispositiva, onde concede a faculdade de prorrogar o momento da produção do efeito real. Neste instante, podemos concluir com robustez que o artigo 409.º do Código Civil não é a norma em causa violada e consequentemente não pode ser interpretada como contra legem[6]. Embora, o artigo 409.º do Código Civil não se refira expressamente ao contrato de mútuo, apenas aos contratos de alienação, de acordo com a nossa compreensão o artigo tem de ser interpretado não só pela letra da lei, mas também pela sua ratio, o espírito da lei. Se entendemos que o contrato de compra e venda é um contrato de alienação, então o mútuo para financiar a mesma compra e venda, tem de ser visto como um contrato híbrido, visto que existe uma correlação entre os dois contratos, e desta forma pode ser entendido como um contrato de alienação. Nesta linha de pensamento, a Autora MARIA MENÉRES CAMPOS[7] defende que “o mútuo para aquisição de um bem, é afinal, do ponto de vista finalístico, um contrato de alienação”. Averiguando o raciocínio de que “financiador nunca foi o proprietário da coisa. Nunca a adquiriu para revender”, este é suprimido pelo fato da cláusula de reserva de propriedade ser suscetível de transmissão, através da sub-rogação como iremos abordar numa fase posterior.
MARIA MENÉRES CAMPOS[8] e PINTO OLIVEIRA[9] comportam parte da doutrina que perfilha a admissibilidade da reserva de propriedade a favor da entidade financiadora. O primeiro argumento surge nas vestes do artigo 9.º do Código Civil sob a epígrafe (Interpretação da lei) que afirma que “1- A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2- Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3- Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” O que está em causa é uma interpretação casuística, teleológica e principalmente atualista da normas jurídicas, pois o cenário social, económico e jurídico vai padecendo de alterações à medida que o tempo passa, e cabe desta forma ao intérprete procurar a vontade do legislador, ao tempo em que a norma foi criada, não se resumindo ao positivismo jurídico, e ir mais além: “cada vez mais a interpretação jurídica das normas vai deixando de se restringir a um conceptualismo formativista, totalmente despido das consequências práticas que dele provinham.”[10] Um segundo argumento, para a admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora, baseia-se no princípio da autonomia privada artigo 405.º do Código Civil. sob a epígrafe “Liberdade contratual” no qual dispõe que “1- Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver. 2- As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.
Sobre este preceito MARIA MENÉRES CAMPOS afirma que a “regra é então a da autonomia privada e da liberdade contratual”[11]; desde que não se atente contra a ordem pública, as partes são livres para fixar o conteúdo contratual. Todavia, o argumento primordial, que é tido em consideração como uma trave mestra no que alude à admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora na jurisprudência[12], é o mecanismo da sub-rogação, a este respeito tece considerações ANTUNES VARELA[13] concluindo que “ o principal efeito da sub-rogação é a transmissão do crédito, que pertencia ao credor satisfeito, para o terceiro (sub-rogado) que cumpriu em lugar do devedor ou à custa de quem a obrigação foi cumprida. Como a aquisição do sub-rogado se funda substancialmente no acto de cumprimento, só lhe será lícito, porém, exigir do devedor uma prestação igual ou equivalente àquela com que tiver sido satisfeito o interesse do credor ” No entendimento de PINTO DUARTE[14] ”a reserva de propriedade nada mais é que uma cláusula contratual (…) a reserva não gera um direito diverso do de propriedade e, portanto, a reserva, em si mesma, não é transmissível (…) na ausência de disposição legal sobre o ponto e tendo em conta o artigo 409.º do Código Civil, não parece que tal transmissibilidade exista”. Em contraditório aos argumentos que o supra autor afirma, no nosso entendimento é possível uma transmissão da cláusula de reserva de propriedade através da sub-rogação. A Sub-rogação encontra-se expressamente prevista nos artigos 589.º e seguintes do Código Civil e pode adotar duas formas: legal ou voluntária. A legal deriva da lei, como se pode depreender e encontra-se no artigo 592.º do Código Civil sob a epígrafe “Sub-rogação legal”; a voluntária prende-se com o elemento volitivo, no caso do artigo 589.º do Código Civil a quando de sub-rogação pelo credor, e por outro lado no artigo 590.º do Código Civil no caso de sub-rogação pelo devedor e finalmente o artigo 591.º do Código Civil pertence à Sub-rogação em consequência de empréstimo feito ao devedor, estes dois últimos artigos prendem-se com a declaração de vontade do devedor.”
Já no que tange aos argumentos desfavoráveis a essa validade, prossegue, nas ps. 42 e ss.:
A jurisprudência[15] tem vindo a pronunciar-se maioritariamente pela inadmissibilidade da cláusula, fundamentando que o financiador não é proprietário do bem, pois não o vendeu. Constituindo-se uma contradição, no sentido em que alguém que reserve um direito de propriedade do qual não é titular, defendem os tribunais que os direitos em questão devem coincidir na mesma esfera jurídica.
Outra razão pelo qual se envida pela tese da inadmissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora passa por uma impossibilidade jurídica quanto ao objeto, visto neste sentido ser legalmente impossível. Os negócios jurídicos, celebrados contra a lei, são nulos de acordo com o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil. Semelhante raciocínio é defendido doutrinalmente, no qual se manifestam contra a admissibilidade da supra referida cláusula, PAULO DUARTE[16], GRAVATO MORAIS[17], PAULO RAMOS DE FARIA[18]. Os Autores defendem não fazer sentido algum admitir a cláusula de reserva de propriedade como válida a favor da entidade financiadora, uma vez que não estamos perante um contrato de alienação, mas sim de um mútuo, não sendo admitido que quem não seja proprietário do bem, não possa reservar a propriedade de uma coisa do qual não se é titular (sublinhado nosso). Defende GRAVATO MORAIS “o financiador nunca foi o proprietário da coisa. Nunca a adquiriu para revender. Nem a alienou. Portanto nunca o objecto passou pelas suas mãos (…) a transferência do raio de acção da reserva de propriedade para um negócio de cariz diverso -mútuo- parece não se enquadrar na finalidade visada pelo legislador (…) a cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é, pois, contrária a uma norma de natureza imperativa, não produzindo qualquer efeito (sublinhado nosso)…”[19] Certo é que o artigo 409.º do Código Civil. não prevê literalmente a cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora[20]. Para GRAVATO MORAIS, o facto de estar em causa uma norma imperativa, e esta ser violada, a consequência congruente é o artigo 294.º do Código Civil que dispõe que “os negócios celebrados contra disposições legais de caracter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”
Acaba o autor, a fls. 48 e ss, por adotar a tese mais atual: “Propugnamos pela admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora, uma vez que a cláusula é válida através da transferência por via da sub-rogação, mediante o pagamento do preço pelo financiador ao alienante/vendedor. Outro argumento que pugna pela validade da cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora, é o argumento que se prende com a hermenêutica, permitindo fazer uma interpretação extensiva, teleológica e atualista do Artigo 409.º do nosso Código Civil, no que concerne aos contratos de compra e venda financiada por terceiro, desta forma não existe nenhum preceito imperativo que esteja a ser violado”.
Por nós, concordamos com os dois arestos já citados (nota 15), emanados desta secção, reproduzindo agora parte do proferido a 9.1.2024 (redação do ponto 4.º da fundamentação jurídica):
«A Autora celebrou com a 1ª Ré um contrato de financiamento para aquisição a crédito por aquela Ré, a compradora do veículo, não o tendo comprado, para o vender à Ré, e vendido, reservando, para si, a propriedade do mesmo.
Bem considerou o tribunal a quo, como exposto, nenhuma compra do veículo pela Autora ter sido efetuada, pois que a mesma meramente financiou a compra do veículo pela 1ª Ré (até não registada). Manifesta é, face ao que a Autora alega e ao documento que junta, que titula o contrato celebrado, a inviabilidade das pretensões que formula, nunca lhe podendo ser reconhecido o direito de propriedade do veículo, por nenhum direito seu existir em relação a ele.
Assim, tendo a autora invocado, como causa de pedir do pedido que deduz contra os Réus, factos que nenhum direito seu são suscetíveis de fundamentar, não sendo dotada de legitimidade substantiva para os pedidos que formula relativos a vendas de terceiros e não tendo resultado provados factos a densificar o seu invocado direito de propriedade, bem foi a ação julgada improcedente e os Réus absolvidos dos pedidos, o que se mantém.
Com efeito, não se provou que a Autora tenha adquirido o veículo para, posteriormente, o vender à 1ª Ré. Provou-se, sim, que o veículo em questão foi importado pela B..., S.A., que o vendeu ao concessionário C..., S.A. (...), que, por sua vez, o vendeu à 1ª Ré, pelo que uma reserva de propriedade a favor da autora, que não alegou factos a densificar direito de propriedade seu sobre o veículo, não foi validamente constituída, consubstanciando, nos termos do disposto no art. 280º/1, uma prestação legalmente impossível, como bem considerou o Tribunal a quo.
Na verdade, é clara a lei, no art. 409º, não podendo deixar de se seguir o entendimento de não poder ser validamente constituída reserva de propriedade num contrato de mútuo para financiamento da aquisição de um bem pelo mutuário, que passou a ser o proprietário do bem, como se entendeu, entre muitos,
- no Ac. do TRC de 8/3/2016, proc. 934/15.8T8LMG.C1 a afirmar:
“ I – Da interpretação literal do artº 409º C. Civil resulta de uma forma clara que a estipulação da reserva de propriedade sobre uma coisa só é válida nos contratos de alienação, traduzindo-se na sujeição do efeito translativo destes negócios a uma condição suspensiva ou termo inicial, sendo a propriedade sobre o bem alienado utilizada como garantia do cumprimento das prestações do adquirente.
II - Suspendendo ela apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato. Apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga contrato de alienação do mesmo, na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado.
III - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
IV - Assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da Requerente, porque legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280º do C. Civil, o que determina a improcedência dos pedidos de restituição do veículo e cancelamento da inscrição do registo de propriedade sobre o veículo a favor do Réu”[31];
- no Ac. do TRP de 14-11-2022, proc. 741/22.1T8VLG.P1, a entender:
I - Da interpretação literal do artigo 409.º C Civil resulta de uma forma clara que a estipulação da reserva de propriedade sobre uma coisa só é válida nos contratos de alienação, pois que, suspendendo ela apenas os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, só poderá ser estipulada nesse contrato.
II - No contrato de mútuo, tendo por finalidade o financiamento de aquisição de um determinado bem, apesar da conexão que possa existir entre os dois contratos, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pela simples razão que não é o seu titular, sendo juridicamente impossível que alguém reserve um direito de propriedade que não tem.
III - Assim, a cláusula de reserva de propriedade a favor da entidade mutuante, porque legalmente impossível, ter-se-á de considerar nula, nos termos do n.º 1 do art.º 280.º do CCivil, o que determina a improcedência dos pedidos de restituição do veículo e cancelamento da inscrição do registo de propriedade sobre o veículo a favor do mutuante” (negrito nosso);
- no Ac. do TRL 14/7/2022, proc. 13977/21.3T8LSB.L1-2[32] a considerar estar a reserva de propriedade reservada aos contratos de alienação, referindo-se: “A reserva de propriedade está reservada aos contratos de alienação, só podendo ser estipulada a favor do alienante”.
Deste modo, é de manter o decidido, bem tendo o Tribunal a quo julgado improcedente a ação e, mantendo-se o registo a favor da Ré-reconvinte, procedente o pedido reconvencional face à presunção derivada do registo».
No nosso caso, a interpretação atualista que se pretende do art. 409.º/1 visa defender o mutuário que, como se sabe, tinha ao seu dispor a hipoteca sobre o automóvel, garantia pela qual não optou, sendo que, além da reserva de propriedade, ainda se muniu de uma livrança, subscrita pelo comprador que, associada à hipoteca, teria tantos ou melhores efeitos do que a reserva de propriedade, altamente contestada pela doutrina e pela jurisprudência.
Quer isto dizer que, a esta luz, o pedido formulado pela A.[21] é de proceder, sendo de improceder a reconvenção[22].
Dispositivo
Pelo exposto, o tribunal decide dar provimento ao recurso da A. e, revogando a sentença recorrida, julga procedente o pedido por si formulado, declarando nula a cláusula de reserva de propriedade a favor de Banco 1..., S.A que incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo ..., com a matrícula ..-SC-.. e ordenando o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel e ordenando a inscrição da respetiva propriedade, sem quaisquer ónus ou encargos, a favor de Massa Insolvente de AA, podendo assim, a A., proceder à venda de tal veiculo, no âmbito da liquidação da massa insolvente.
Julga-se improcedente a reconvenção, dela se absolvendo a reconvinda.
Custas da ação e recurso pela Ré.
Porto, 11.11.2024
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Ana Paula Amorim
__________________
[1] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. pág. 237.
[2] Cita os seguintes arestos: Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 29/06.2006, (Maria José Mouro) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 14/09/2006, (Abrantes Geraldes) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/10/2006, (Neto Neves) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 15/07/2007, (Cura Mariano) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 26/02/2015, (Abrantes Mendes) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão do STJ de 10/07/2008, (Santos Bernardino) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão do STJ de 07/07/2010, (Moreira Alves) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão do STJ de 31/03/2011, (Álvaro Rodrigues) www.dgsi.pt; cfr. Acórdão do STJ de 12/07/2011 (Conselheiro Garcia Calejo) www.dgsi.pt, embora muitos outros se pudessem mencionar como o ac. STJ, de 30.9.2014, proferido no processo 844/09.8TVLSB.L1.S1.
[3] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. pág. 237.
[4] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. pág. 237.
[5] SILVA, João Calvão da, “Anotações ao acórdão do STJ de 16/05/2000-contratos coligados, venda em garantia e promessa de revenda” in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 133.º n.º3911 e3912, cfr. pág. 87.
[6] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. pág. 352.
[7] Idem.
[8] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. págs. 372 e 373.
[9] OLIVEIRA, Nuno Pinto, Contrato de compra e venda. Noções Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, cfr. págs. 56 e 57.
[10] Parágrafo relativo à interpretação, retirado do Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/03/2009 (CARLOS VALVERDE) em www.dgsi.pt;
[11] CAMPOS, Maria Menéres, A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador, Coimbra Editora, 2013, cfr. pág. 358.
[12] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/03/2009 (CARLOS VALVERDE) em www.dgsi.pt;
[13] VARELA, João de Matos Antunes, Das obrigações em geral, vol. II, Coimbra, Almedina, 2012, cfr. pág. 336.
[14] DUARTE, Rui Pinto, “Alguns aspectos jurídicos dos contratos não bancários de aquisição e uso de bens”, in Revista da Banca, nº22, 1992, cfr. págs. 54 e 55.
[15] Cita um conjunto de arestos aos quais poderemos juntar, desta Relação, o ac. de 8.1.2024 (Proc. 1717/20.9T8MTS.P1 (desta secção e outros), como o de 18.10.2023 (Proc. 3047/.1T9PRT-P.P1) e também desta secção o ac. de 14.11.2022 (Proc. 741/22.1T8G«VLG.P1).
[16] DUARTE, Paulo, Contratos de concessão de crédito ao consumidor: em particular as relações trilaterais resultantes da intervenção de um terceiro financiador, Dissertação de Mestrado, Coimbra 2000, cfr. pág. 193 et seq.
[17] MORAIS, Fernando de Gravato, Contratos de crédito ao consumo, Coimbra, Almedina, 2007, págs. 304 a 309 e MORAIS, Fernando de Gravato, União de contratos de crédito e de venda ao consumo, Coimbra, Almedina, 2005, cfr. pág 407.
[18] FARIA, Paulo Ramos de,“A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, in Revista Julgar – n.º 16, 2012, cfr. pág. 18 et seq.
[19] 0 MORAIS, Fernando de Gravato, Contratos de crédito ao consumo, Coimbra, Almedina, 2007, cfr. págs. 305 a 309.
[20] FARIA, Paulo Ramos de,“A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, in Revista Julgar – n.º 16, 2012, cfr. pág. 43
[21] Ser declarada nula a cláusula de reserva de propriedade a favor de Banco 1..., S.A que incide sobre o veículo de marca CITROEN, modelo ..., com a matrícula ..-SC-.. e ordenado o cancelamento do respetivo registo, junto da competente conservatória do registo automóvel e inscrita a respetiva propriedade, sem quaisquer
ónus ou encargos, a favor de Massa Insolvente de AA, podendo assim, a A., proceder à venda de tal veiculo, no âmbito da liquidação da massa insolvente.
[22] a) Ser declarada válida a resolução contratual operada; b) Ser o Réu reconhecido como proprietário do veículo automóvel de marca “CITROEN”, modelo “...”, com a matrícula ..-SC-.., nos termos do disposto nos
artigos 1316.º, al. a); 1317.º; e, 409.º do Código Civil; c) Ser a Autora condenada a restituir ao Réu, no prazo de 10 dias contados da data do trânsito em julgado da sentença, o veículo automóvel de marca “CITROEN”, modelo
“...”, com a matrícula ..-SC-..; e, d) Ordenar-se o cancelamento de todos os ónus eventualmente registados sobre a viatura supra junto da Conservatória do Registo Automóvel.