I - A norma do art.º 511º do CPP, relativa à ordem de precedência no pagamento coercivo do valor da pena de multa relativamente às custas e indemnização devidas em processo penal é de aplicar por analogia na fase pré-executiva do processo, nomeadamente quando já tenha decorrido o prazo de pagamento voluntário da multa e haja montantes depositados à ordem do processo, ainda que inicialmente destinados ao pagamento de custas.
II - Como fundamento de uma tal aplicação analógica, procedem materialmente as mesmas razões, de imperatividade e de interesse público, que o legislador visou tutelar e cuja importância assenta teleologicamente no facto de estar em causa o cumprimento de uma pena, e as consequências de ultima ratio inerentes ao respetivo incumprimento, previstas no art.º 49º, nº 1, do Código Penal, mais precisamente a possibilidade de vir a ser determinado o cumprimento de prisão subsidiária, quando não se logre o pagamento voluntário ou coercivo da pena de multa inicialmente aplicada.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Relator: Francisco Mota Ribeiro
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1. Por decisão proferida a 07/01/2024 no processo nº 761/22.6T9OAZ, que corre termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, foi determinada a conversão para amortização da multa em dívida do valor pago a título de custas pela arguida AA.
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela veio interpor recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“a. Nos termos do art.º 511.º do Código de Processo Penal, com o produto dos bens executados, efetuam-se os pagamentos pela ordem seguinte: as multas penais e as coimas, a taxa de justiça, os encargos liquidados a favor do Estado e do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, IP, os restantes encargos, proporcionalmente e as indemnizações.
b. Essa é uma norma exclusiva da ação executiva, para cobrança coerciva de multas, coimas, custas processuais e indemnizações, instaurada no âmbito do processo penal, que estabelece a ordem de pagamentos a efetuar com os valores que tenham sido depositados ou obtidos com o produto da venda de bens penhorados, em sede executiva.
c. Sendo efetuados pagamentos, de modo voluntário, não é admissível que os valores sejam afetos ao pagamento de dívidas a que não se destinavam, nomeadamente, destinando-se quantias pagas para liquidação de custas processuais ao pagamento da pena de multa.
d. A condenada BB, de modo voluntário, pagou o montante de 310 €, relativo à pena de multa e as custas processuais no montante de 51 €.
e. Pelo que não podia o Tribunal decidir como decidiu, determinando a imputação da quantia de 51 €, paga a título de custas processuais, no pagamento da pena de multa em dívida, no montante de 500 € e fixando esta no montante de 449 €.
V. Normas jurídicas violadas
O despacho recorrido, por errónea interpretação e aplicação, violou o art.º 511.º do Código de Processo Penal.
VI. Pedido
Em conformidade com o que vem de ser alegado, peticiona-se que
- Seja revogado o despacho recorrido;
- Seja substituído por outro que:
a. Considerando que a quantia de 51 € paga pela condenada AA respeita a custas processuais, dê sem efeito a sua imputação no pagamento da pena de multa.”
1.3. A arguida não respondeu ao recurso.
1.4. O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal da Relação, emitiu douto parecer, concluindo pela procedência do recurso.
1.5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto e os poderes de cognição deste Tribunal, importa essencialmente apreciar e decidir se numa fase processual que precede a execução por multa e custas pode ou não o juiz do processo, invocando a norma do art.º 511º do CPP, determinar a afetação de montantes entregues a título de pagamento de dívida de custas ao abatimento ou ao pagamento do montante da multa em dívida pelo condenado.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
1. Por decisão de 06/09/2023, transitada em julgado a 26/09/2023 foi a arguida AA condenada pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, nº 1, al. b), do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 9 €, perfazendo o montante global de 810 €.
2. Por requerimento de 09/11/2023, veio a arguida requerer o pagamento em prestações da pena de multa.
3. Alegou como fundamento, em síntese, que, além da pena de multa, foi ainda condenada no pagamento das custas do processo, no valor de € 51,00, e ainda que se encontrava integrada num agregado familiar composto por ela, seu companheiro, uma filha e dois netos, sendo os seus rendimentos parcos, vivendo da reforma do companheiro e do apoio dos restantes filhos, pelo que o seu agregado familiar tem claras dificuldades económico-financeiras, não possuindo por isso meios económicos de pagar de uma só vez o montante global da multa penal e respetivas custas com o processo, e que atenta a alteração da situação económica e familiar da arguida não lhe restava outra alternativa que não fosse a de requerer o pagamento em 6 (seis) prestações mensais sucessivas da quantia da multa penal em que foi condenada.
4. Pronunciou-se o Ministério Público promovendo o indeferimento do pedido de pagamento em prestações deduzido pela arguida, por considerar que o mesmo era extemporâneo, porquanto não foi deduzido no prazo de 15 dias, previsto para o seu pagamento voluntário, invocando o art.º 489º, nºs 2 e 3, do CPP.
5. Entretanto, pela Senhora Escrivã de Direito foi lavrada informação no processo, dando conta de que a arguida havia procedido aos seguintes pagamentos:
“- 9/11/2023 - 51€ referente às custas, através de DUC (refª 130058070);
-14/11/2023 - 150€ referente à pena de multa, através de DUC (refª.131216019);
-27/11/2023 - 160€ referente à pena de multa, através de DUC (refª.130347099).
Conforme ordenado, o total pago de 361€ foi levado em consideração na multa aplicada - 810€ -. Assim, encontra-se em dívida o montante de 449€ referente à multa penal refª.131234508) e 51€ referente às custas.”
6. Os pagamentos referidos estão comprovados através dos respetivos Documentos Únicos de Cobrança (DUC).
2.1. Fundamentos Fáctico-conclusivos e jurídicos
A questão a resolver consiste fundamentalmente em saber se, numa fase ainda pré-executiva do processo, e sem, portanto, que haja ainda sido instaurada execução por multa e custas, pode o juiz do processo, invocando a norma do art.º 511º do CPP, determinar a afetação de montantes entregues para pagamento de custas ao abatimento do montante da multa em dívida pelo mesmo condenado.
Está fundamentalmente em causa, pelo menos como horizonte normativo da solução a encontrar para o caso-problema, a norma do art.º 511º do CPP, ao dizer, sob a epígrafe “Ordem dos pagamentos” o seguinte:
“Com o produto dos bens executados efetuam-se os pagamentos pela ordem seguinte:
1.º As multas penais e as coimas;
2.º A taxa de justiça;
3.º Os encargos liquidados a favor do Estado e do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, I. P.
4.º Os restantes encargos, proporcionalmente;
5.º As indemnizações.”
O Juiz Conselheiro Pires da Graça diz que tal norma “Define a sequência prioritária dos pagamentos com o produto dos bens executados”. Acrescentando: “A indicação prioritária de pagamentos, é obrigatória e taxativa. É, por conseguinte, uma norma processual de interesse público”.[1]
E esta afirmação do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro prende-nos, portanto, a atenção, ao referir o caráter taxativo da norma, mas sobretudo o de se tratar de uma norma de “interesse público”, sabendo nós que tal significa que o comando normativo nela contido se sobrepõe à vontade de qualquer sujeito processual, incluindo do próprio tribunal. Concedendo-lhe assim uma imperatividade, um caráter cogente que se sobrepõe a qualquer vontade, expressa ou tacitamente manifestada no processo. A sua aplicação não olha nem permite o funcionamento de qualquer autonomia privada.
Por outro lado, a linearidade com que é elaborada a norma, faz com a que a mesma também seja de linear interpretação, ou de interpretação declarativa, na medida em que o sentido normativo resulta clara e diretamente do texto da lei, fazendo com que face a ele seja também muito claro o pensamento legislativo. Sem margem para dúvidas, portanto. Razão por que o problema nunca poderia ser de interpretação, e muito menos o de saber se o sentido normativo fixado pelo Tribunal a quo, nomeadamente quanto à questão de saber se a quantia existente no processo deve primacialmente ser imputada ao pagamento da multa devida pela condenada, tem ou não na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, porque a verdade é que o tem. Mas tem-na, como bem refere o recorrente, enquanto norma inserta no âmbito de outras disposições normativas relativas ao pagamento coercivo das multas, custas e indemnizações devidas em processo penal. E não já, de um ponto vista jurídico-positivo e sistemático, em fase processual que anteceda aquela de execução do património do devedor. Sendo precisamente aqui que se coloca o problema a resolver, isto é, a imperatividade da norma acima referida e o interesse público de que está imbuída, só se colocam na fase executiva do processo? E se já tiver decorrido o prazo de pagamento voluntário da multa, estando iminente a instauração de execução para o seu pagamento assim como das custas em dívida, importando fazer a liquidação dos respetivos valores, não fará sentido considerar também aquela norma, dando-se primazia, em tal liquidação, à imputação dos valores existentes, primeiramente à quantia devida a título de multa e só depois à de custas?
A este perguntar pertence não já a problemática da interpretação, mas a da integração das lacunas, ou seja, da solução a encontrar para um caso omisso. A qual inevitavelmente implica a questão de saber se estamos ou não, usando as palavras do Professor Baptista Machado, “perante uma incompletude relativamente a algo que propende para a completude”, ou seja, perante uma lacuna jurídica, enquanto “incompletude contrária ao plano do Direito”[2]. E o “plano do Direito” está na norma imperativa acima referida, e o interesse público que a mesma visa salvaguardar, cuja importância do ponto de vista material e teleológico, assenta no facto de estar em causa o cumprimento de uma pena, e das consequências inerentes ao respetivo incumprimento, previstas no art.º 49º, nº 1, do Código Penal, nomeadamente a possibilidade de aquela pena vir a ser substituída por prisão subsidiária, quando não se logre o pagamento voluntário ou coercivo da pena de multa inicialmente aplicada, visando claramente o legislador, ao impor no art.º 511º do CPP uma determinada imputação dos valores coercivamente obtidos à custa do património do condenado, afastar a possibilidade ou estabelecer como ultima ratio a ponderação da necessidade de imposição daquela pena de prisão subsidiária.
Neste ponto, é de relevante importância mencionar o importante Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27/02/2008[3], prolatado na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público (recurso no qual o Ministério Público tomou posição diametralmente oposta à agora perfilhada no presente caso), nomeadamente quando a dado passo aí se diz: “Caso se entenda que estará em falta o pagamento de custas, a repercussão apenas se poderá refletir, eventualmente, no seu património. Neste aspeto, não se oferecem dúvidas, não só e em abstrato sobre o valor superior da liberdade face ao património, aliás consubstanciado no princípio da prevalência do bem jurídico liberdade sobre o bem jurídico patrimonial, mas também e atento o princípio dos fins das penas, que impõe a afetação da quantia depositada pelo condenado à multa que lhe foi aplicada por um juiz, após julgamento e condenação pela prática de crime.” Acrescentando-se de seguida: “No âmbito da harmonia do sistema processual penal e que no caso em apreço se integra no âmbito do conceito de analogia, verificamos que o art.º 511º sobre a ordem de pagamentos, e tratando da execução de bens, afeta em primeiro lugar o respetivo produto às multas e só em segundo lugar é que surge a taxa de justiça”.
Podendo assim concluir-se que as razões que o legislador atendeu para a imperatividade colocada na norma do art.º 511º do CPP, para a fase executiva, subsistem ou são as mesmas que existem na fase pré-executiva, na qual já tenha decorrido o prazo de pagamento voluntário da multa em dívida, como aconteceu no caso dos autos, e onde a condenada veio já invocar as dificuldades económico-financeiras que a impediram de realizar voluntariamente o pagamento da totalidade da multa. Sendo assim, portanto, iminente a instauração da respetiva execução.
Ou seja, nos termos do disposto no art.º 10º, nº 2, do Código Civil, no momento atual do presente processo, procedem as mesmas razões justificativas da aplicação da norma expressa no art.º 511º do CPP, para o âmbito da ação executiva, sob pena de se preservar uma “incompletude contrária ao plano do Direito”, nos termos já acima referidos.
A solução adotada pelo Tribunal a quo tem ainda apoio em doutrina avalisada, ainda que fundamentalmente baseada numa breve referência ao acórdão da Relação de Lisboa acima citado, mas categorizando claramente de analógica a aplicação da norma do art.º 511º do CPP a casos como o dos presentes autos - nomeadamente Conceição Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque [“Esta disposição também se aplica, por analogia, ao caso do concurso entre dívida da pena de multa e a dívida da taxa de justiça, devendo dar-se prioridade ao pagamento da pena de multa (acórdão do TRL, de 27.02.2008, in CJ, XXXIII, 1, 143)”] e Luís Lemos Triunfante [“A disposição em apreço também se aplica, por analogia, ao caso do concurso entre dívida da pena de multa e dívida da taxa de justiça, devendo dar-se prioridade ao pagamento da pena de multa, face à possível conversão em pena de prisão subsidiária (ac. RL, 27/02/2008, in CJ, XXXIII, 1, 143)] .[4]
Razão por que irá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas
Porto, 2024-11-13
Francisco Mota Ribeiro
José Piedade
José António Rodrigues da Cunha
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[1] Pires da Graça in: António Henriques Gaspar et al., Código do Processo Penal Comentado, 4ª edição revista, Almedina, Coimbra, 2022, p. 445 e 446.
[2] J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p. 194.
[3] Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIII, Tomo I, p. 143.
[4] Conceição Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, UCP Editora, Lisboa, 2023, p. 830, e Luís Lemos Triunfante, in António Gama et. al., Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, Coimbra, p. 1006.