I. No âmbito dos processos de jurisdição voluntária – como é o apadrinhamento civil (criado pela Lei n.º 103/2009, de 11-09, vulgo “LAC”) – , o princípio do inquisitório faz-se sentir com particular veemência, impondo-se ao juiz uma conduta proactiva na recolha de prova e apuramento de factos – alegados ou não alegados –, sempre no superior interesse da criança visada.
II. Ou seja, o juiz não está dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados.
III. Daí que, estando confiada ao juiz a defesa do interesse da criança visada, a falta ou insuficiência de alegação de factos não pode, por si só e desacompanhada de outros fundamentos, justificar um indeferimento liminar.
IV. A figura do apadrinhamento civil é de aplicação subsidiária, apenas podendo ser aplicada caso não estejam reunidos os pressupostos da confiança com vista a adopção, ou, embora se reúnam em abstracto tais pressupostos, a adopção se mostre, em concreto, inviável.
V. Pode afirmar-se, enfaticamente, que uma criança que possa ser adoptada não deve ser apadrinhada; uma criança que possa ser apadrinhada, não deve ser adotada.
VI. Porém, neste tipo de situações, o ponto de partida – pressuposto incontornável, que permite equacionar uma solução permanente para a criança visada, maxime o seu apadrinhamento civil – é sempre o superior interesse da criança, a pressupor a existência de laços afectivos relevantes.
VII. Pelo que, a inviabilidade da adopção pode colocar-se não ao nível da probabilidade de determinada criança vir a ser adoptada, mas ao nível do seu superior interesse.
VIII. Como tal, pode, em abstracto, revelar-se contrário ao interesse de uma criança a negação da hipótese de ser apadrinhada por uma família com a qual vive, com a qual se identifica, pela qual nutre afecto e com a qual já criou um vínculo consistente.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível
I – RELATÓRIO
AA e BB apresentaram acção pedindo a constituição do apadrinhamento de CC.
O menor CC beneficia actualmente da medida protectiva de confiança a família de acolhimento com vista à adopção, prevista no artigo 35º, nº 1, alínea g) da LPCJP e aplicada pelo Juízo de Família e Menores de ... em 14/Abril/2023, no processo de promoção e proteção nº 4865/22.7..., por decisão transitada.
Foi proferida decisão que indeferiu liminarmente a petição inicial, por o pedido se mostrar manifestamente improcedente, atento o disposto no art. 590 do CPC.
Inconformados, AA e BB recorreram, vindo a Relação de Lisboa a “julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida”1.
CONCLUSÕES
1. Encontram-se preenchidos os fundamentos para interposição do presente Recurso de Revista Excecional, previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, devendo o mesmo ser admitido.
2. A situação sub judice constitui uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
3. A definição do conceito de "adoção inviável" é um tema relevante para a aplicação do direito, enquadrando-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, pela sua relevância jurídica, uma vez que o legislador optou por não elencar taxativamente as situações que conduzirão a tal realidade e até ao momento não foi proferida jurisprudência quanto a tal questão.
4. A situação também envolve um interesse de particular relevância social, nos termos do disposto da alínea b) do mesmo artigo, pois está em causa o superior interesse da criança e os seus direitos fundamentais, e consequentemente o impacto social das decisões judiciais sobre adoção, apadrinhamento civil e conceito de adoção inviável.
5. O Acórdão do Tribunal da Relação manteve a decisão de indeferimento liminar, considerando que os Autores não alegaram na petição inicial os factos indispensáveis para concluir pela inviabilidade da adoção e para justificar o deferimento do pedido de apadrinhamento do menor CC.
6. Se o indeferimento liminar se fundamenta tão só na alegada falta de alegação de factos, o Tribunal de Primeira Instância, e bem assim o Tribunal Recorrido ao confirmar a decisão inicial, violaram o vertido no artigo 590.º do C.P.C, que consagra o princípio / dever de gestão inicial do processo que incumbe ao Juiz, em especial o n.º 4, motivo pelo qual deveriam ter convidado as partes ao aperfeiçoamento da Petição Inicial.
7. A Sentença do Tribunal de 1.ª Instância, com fundamentação parca, limitou-se a determinar o indeferimento liminar sem basear tal decisão na falta de alegação de factos mínimos e indispensáveis.
8. A decisão recorrida considerou ainda que a relação de grande afetividade com a família de acolhimento é natural e não fundamenta a inviabilidade da adoção, procedendo a uma apreciação do mérito da causa sem conceder às partes a devida oportunidade de produção de prova, nomeadamente testemunhal e pericial, ignorando todos os demais fundamentos alegados , nomeadamente as consequências da rutura, então alegadas pelos Recorrentes.
9. O Tribunal recorrido baseou-se ainda no artigo 1978.º do Código Civil, considerando adequada a medida de confiança a instituição para futura adoção. No entanto, o menor está confiado à família de acolhimento, não a uma instituição.
10. Os Requerentes alegaram e requereram a reapreciação fundamentada da situação do menor, considerando a inviabilidade da adoção e propondo o apadrinhamento civil, com base em factos supervenientes e no Relatório Clínico do qual resulta a importância de manter a relação com a família de acolhimento para o desenvolvimento emocional do menor.
11. O impacto negativo da rutura da relação com a família de acolhimento no desenvolvimento psíquico e emocional da criança deve ser analisado e salvaguardado pelo Tribunal, que se focou em aspetos processuais, ignorando frontalmente o superior interesse da criança.
12. Os pressupostos necessários para a reapreciação fundamentada da situação do menor estão reunidos, sendo entendimento dos Requerentes que tal reapreciação deverá concluir pela inviabilidade da adoção.
13. Em abril de 2023, foi aplicada uma medida de promoção e proteção de confiança a família de acolhimento com vista a futura adoção. No entanto, essa medida poderá serrevistaem atençãoao superior interesse da criança e na sequência da ocorrência de factos supervenientes.
14. Em março de 2024, a pediatra solicitou a realização de uma avaliação formal do menor, resultando dessa avaliação que “é de extrema importância proporcionar ao CC a continuidade da relação com as suas principais figuras de vinculação (tutores), através da qual é notória uma evolução constante e progressiva da sua capacidade de regulação emocional (…) qualquer alteração na estabilidade da estrutura relacional irá certamente prejudicar o seu melhor desenvolvimento e pôr em causa toda a evolução até então alcançada (…), concluindo pela importância para o menor de manter a estrutura familiar na qual se insere atualmente, a longo prazo e definitivamente.
15. O pedido de apadrinhamento civil foi feito ao abrigo do artigo 5.º do RJAC, tendo os Requerentes legitimidade para tal, conforme o disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAC, não podendo ser considerado como manifestamente improcedente.
16. O Tribunal deveria proceder a uma análise crítica da prova produzida e a produzir para aferir a inviabilidade da adoção, conforme o artigo 5.º do RJAC, que não remete para o artigo 1978.º do Código Civil.
17. A decisão recorrida desvaloriza o vínculo estabelecido, contrariando a jurisprudência que privilegia as relações afetivas estruturantes para o desenvolvimento saudável da criança.
18. A perspetiva formalista e simplista do Tribunal desconsidera a complexidade do caso e os elementos apresentados, sendo necessário uma reapreciação fundamentada que avalie se a adoção é viável ou se o apadrinhamento civil seria a alternativa mais adequada.
19. Deve prevalecer o superior interesse da criança, garantindo a continuidade do vínculo afetivo e o seu desenvolvimento saudável, ultrapassando a questão formal de hierarquia de institutos.
20. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento do processo e a reapreciação fundamentada do caso, apurando-se se a adoção deverá ou não ser considerada inviável.
Nestes termos e nos melhores de Direito que os Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça doutamente suprirão, deve o presente Recurso de Revista Excecional ser admitido e julgado totalmente procedente, por provado e, consequentemente, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos para reapreciação fundamentada do caso de modo a apurar e decidir se a adoção é ou não inviável.
Remetidos os autos à Formação, foi admitida a revista excepcional.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Nada obsta à apreciação do mérito da revista.
Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
III – FUNDAMENTAÇÃO
III. 1. FACTOS PROVADOS
A factualidade relevante para a presente revista é a seguinte (para além da que decorre decorre do antecedente relatório):
- No âmbito do acima referido processo de promoção e proteção n.º 4865/22.7..., que corre termos no Juízo de Família e Menores de ..., foi aplicada ao menor CC a medida de confiança a família de acolhimento com vista à adoção.
- Nesses autos resultou demonstrado que:
«21. Por se revelar mais adequada ao bem-estar físico e emocional da criança, a 26 de agosto de 2021, a comissão procedeu à substituição da medida de acolhimento residencial, pela medida de acolhimento familiar, a qual a criança integrou em 03.09.2021 e onde se mantém.
(…)
31. O pai reconheceu que sozinho não tinha capacidade para cuidar do filho, embora tenha verbalizado que com a ajuda da sua irmã, DD e da sua sobrinha EE, gostaria de constituir-se como alternativa.
32. EE nunca visitou CC e apesar de convocada por três vezes pela U... nunca aí compareceu.
32. A tia do menor CC, DD, mostrou-se disponível para acompanhar o irmão nos convívios no C.. e para apoiar nos cuidados à criança, caso este regressasse a casa do pai, mas mostrou-se indisponível para se assumir como principal cuidadora até às vésperas da ultima sessão de debate judicial.
33. Us técnicos que têm vindo a acompanhar a situação do menor referem que ambos os progenitores não conseguem garantir o bem-estar e desenvolvimento integral do filho.
34. A progenitora tem vindo de forma progressiva a desligar-se do filho, que não vê, nem fala desde agosto de 2021, não indagando sequer sobre o seu estado.
35. O progenitor por sua vez, apresenta incapacidade em responder de forma consistente às necessidades físicas e emocionais do filho, apresentando rigidez emocional e de comportamentos, apenas conseguindo repetir comportamentos que lhe foram ensinados sem conseguir antever as necessidades do filho e responder às mesmas, apesar de alguma evolução nos convívios muito decorrente da maior autonomia do próprio filho;
36. A criança CC vem respondendo de forma progressivamente mais positiva aos contactos com o pai, passando durante a visita semanal no C.. momentos prazerosos com o mesmo, em contexto supervisionado, mas não revela vínculo relevante, não havendo qualquer angústia no momento da separação; Já com a família de acolhimento CC criou importantes laços reconhecendo a família como sua;
37. A tia paterna, DD, e a filha desta, EE, não obstante a disponibilidade evidenciada para darem o seu apoio a FF nos cuidados à criança, não se assumiram como principais cuidadoras, apenas o tendo feito a tia nas vésperas da última sessão de debate judicial, já após ter sido primeiramente ouvida nessa sede em que negou tal hipótese
37. Aliás, DD não reconhece quaisquer limitações ao Irmão que o impossibilitem de cuidar do filho, demonstrando pouca capacidade de reflexão crítica sobre o projeto de vida que a família idealizou para o CC.
38. Verifica-se, assim, na atualidade que a mãe de CC não apresenta quaisquer condições económicas, habitacionais, profissionais c psíquicas para receber a criança c dela cuidar.
39. Acresce que se desinteressou completamente do filho, comprometendo uma vinculação mútua.
40. O pai não revela capacidades, nem autonomia funcional para se constituir alternativa, nem o projeto apresentado pela família paterna responde aos direitos da criança.
41. Considerando que a medida que melhor defenderá o interesse do CC é a confiança com vista à adoção, a CPCJ remeteu o Processo à Procuradoria da República.
42. O menor CC encontra-se desde ... de ... de 2021 integrado em família de acolhimento.
43. Atualmente está integrado em creche e tem-se revelado uma criança saudável do ponto de vista da saúde física e com capacidade de vinculação emocional.
44. O pai e a tia materna têm definido um regime de convívios semanal com o menor desde ... de 2021 que têm sido cumpridos.
45. No âmbito destes convívios o pai assume um papel mais secundário e quando sozinho, manifesta dificuldades em identificar e responder às necessidades do filho, embora a relação tenha melhorado, fruto da crescente autonomia do filho maior interação.
46. É a tia do menor que apoia o pai ao nível da alimentação e tratamento de roupa.
(…)
A) Quanto ao progenitor:
1) Quer assumir a guarda do filho, com a ajuda da irmã e da sobrinha mas também quer que ele fique com família de acolhimento, que conheceu no âmbito da medida aplicada, estando disponível para um eventual apadrinhamento civil, dizendo preferir ora uma, ora outra hipótese;
2) E reformado por invalidez, sofrendo de epilepsia não controlada com crises generalizadas;
3) Recebe uma reforma por invalidez, pela questão da epilepsia diagnosticada desde a infância;
4) Tem Historial de consumos de heroína e cocaína por vários anos;
5) Esteve em comunidade terapêutica em 2016 e saiu sem terminar o tratamento;
6) Recebe uma reforma de invalidez de cerca de € 432 euros;
7) Vive em casa arrendada no mesmo prédio da irmã, de tipologia t2, pela qual paga uma renda de € 25,00 euros;
8) Nunca trabalhou, nem trabalha;
9) Foi condenado:
a) Por acórdão proferido cm 05.12.2016 no âmbito do processo comum coletivo n° 20/16.3... do Juiz ... do TJ de ... na pena de 1 ano e seis meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova, pela prática cm 16.02.2016 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art 25° do DL 15/93, de 22.01; Tal pena foi declarada extinta cm 18.07.2018;
b) Por acórdão proferido cm 14.03.2018, transitado em jugado em 24.03.2018 no âmbito do processo comum coletivo n° 10/16.6... do Juiz ... do TJ de ... na pena de 3 anos de prisão, suspensa na execução por igual período com regime de prova pela prática em 26.01.2016 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade
B) A progenitora:
1) Assume que não tem vínculo nem condições para ficar com o filho e quer que o mesmo fique com a Família de Acolhimento que refere não conhecer mas que reporta saber que cuida bem do filho e não concorda com a adoção ou que o mesmo fique com o pai e /ou tia;
2) É auxiliar de serviços gerais e ajudante familiar;
3) Terminou a relação que tinha com o companheiro em ... tendo ficado numa casa abrigo e mediante ajudas que recebeu, arrendou um quarto na ...;
4) Recebe o subsídio social de desemprego no valor de 380 euros mensais;
5) Está à procura de emprego;
6) Possui o 2 ano de escolaridade;
7) No relatório de exame psiquiátrico conclui-se que: “é portadora de Perturbação Ango-Depressiva (...) bem como de Perturbação da Personalidade tipo Borderline (...), em comorbilidade com Perturbação Relacionada com o Consumo de Múltiplas Drogas(...) aparentemente em abstinência e mantendo consumos esporádicos apenas de canabinóides.
De relevo para as competências parentais, salienta-se que na avaliação psicológica “quadro depressivo e ansioso, acompanhado de traços de personalidade limite, em que a instabilidade nas relações interpessoais, impulsividade latente e instabilidade afetiva emergem, não permitindo que a avaliada não consiga tomar decisões e avaliar prioridades de forma autónoma.
C) A tia paterna DD:
1) Entende que o melhor projeto para a criança CC é ficar na família acolhimento, que conheceu no âmbito da medida;
2) Não sendo possível tal situação ou a criança ficar com o pai, assumiu-se, na última sessão de debate judicial, como alternativa para o sobrinho porque “ele é nosso”;
3) É casada e vive com o marido e um filho de 30 anos;
4) Tem uma banca no mercado e sai de madrugada;
5) Houve um período que esteve zangada com o irmão, depois que este se separou da mãe do CC fizeram as pazes e vem-lhe prestando apoio;
D) CC:
1) CC é uma criança saudável e com desenvolvimento adequado à sua idade;
2) E uma criança empática, alegre e com capacidade de vinculação;
3) Frequenta o equipamento de infância na sala dos 2 anos;
4) Tem recebido todos os cuidados adequados no seu da família de acolhimento, tendo ultrapassando alguma ansiedade na hora de dormir e comer que havia revelado nos primeiros tempos;”».
- Tal decisão transitou em julgado, encontrando-se aqueles autos a aguardar o envio de informação a que alude o art. 42.º do Regime Jurídico do Processo de Adopção (“RJPA”).
Os presentes autos iniciaram-se com um requerimento apresentado por AA e BB, nos termos do qual se requereu a constituição de vínculo de apadrinhamento civil em relação a CC.
A decisão recorrida (do tribunal da Relação), confirmando a decisão da 1.ª instância, concluiu, em suma, que “há que considerar que a alteração da medida de promoção e protecção ou a consideração da sua inviabilidade deve ser declarada no processo adequado e nada foi alegado quanto há inviabilidade da adopção do menor, apenas que tem uma relação de grande afectividade com a família de acolhimento, o que é natural pois a maior parte da sua vida foi passada com a família de acolhimento e tendo poucos meses quando na mesma foi acolhido mostra-se natural que tenham sido estabelecidos esses laços entre o CC e quem o cuidou, lhe deu carinho e o fez sentir-se seguro, mas tal não é fundamento para a adopção ser considerada inviável e nada mais foi indicado como fundamentos da inviabilidade da adopção.”.
Assim, concluiu a Relação que “a acção intentada por AA e BB não tinha possibilidade de proceder, caso prosseguisse, pelo que não merece reparo a decisão recorrida que a indeferiu liminarmente.”.
Que dizer?
Ora, independentemente do acerto desta posição (que à frente se abordará), impõe-se deixar claro que, como é sabido, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o princípio do inquisitório faz-se sentir com particular veemência, impondo-se ao juiz uma conduta proactiva na recolha de prova e apuramento de factos – alegados ou não alegados – sempre no interesse da criança visada.
Como se diz no acórdão deste STJ, de 09-09-20143, “Nos processos de jurisdição voluntária, o princípio da actividade inquisitória do juiz prevalece sobre o princípio da actividade dispositiva das partes – art. 1409.º, n.º 2, do CPC, na versão de 1995/96 [art. 986.º, n.º 2, do NCPC (2013)] –, e nas decisões a tomar o juiz não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”4.
Isto mesmo resulta do disposto no art. 986.º, n.º 2, do CPC que dispõe que “o tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.”.
A propósito desta norma legal, explicam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA que “o n.º 2 prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, de modo que “os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual) para além daqueles que são alegados pelas parte” (António Fialho, ob. Cit., p. 97), não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados.”5.
Resulta, assim, que, estando confiada ao juiz a defesa do interesse da criança visada, a falta de alegação de factos não pode, por si só e desacompanhada de outros fundamentos, justificar um indeferimento liminar e isto porque há sempre que, razoavelmente, contar que da actuação proactiva do tribunal, do Ministério Público e de outros intervenientes possam resultar outros factos relevantes para a decisão do caso concreto.
Quer isto significar que a insuficiência de alegação não pode, por si só e ressalvados os casos de manifesta e inequívoca improcedência da pretensão deduzida em juízo, justificar uma decisão de indeferimento liminar, na medida em que compete ao juiz apurar todos os factos que, estando numa relação de conexão com os factos alegados pelos interessados, se revelem úteis à decisão a proferir.
Cumpre, agora sim, apreciar a figura do apadrinhamento civil, criada com a aprovação da Lei n.º 103/2009, de 11-09 (“LAC”).
Uma primeira nota para deixar expresso que não resulta do referido diploma legal qualquer impedimento a que a família de acolhimento se apresente como candidata ao apadrinhamento civil em situações como a que se encontra descrita nos autos. Pelo contrário, tal possibilidade mostra-se, expressamente, prevista pelo legislador, que no art. 11.º, n.º 5, da LAC prescreveu que “podem ser designados como padrinhos os familiares, a pessoa idónea ou a família de acolhimento a quem a criança ou o jovem tenha sido confiado no processo de promoção e proteção ou o tutor.”6.
Importa, assim, apreciar se, face à pretensão deduzida nos autos, a possibilidade de apadrinhamento se afigura possível ou equacionável ou se, pelo contrário, tal possibilidade se afigura, manifestamente, inviável.
Ora, a propósito dos motivos que presidiram à criação da figura do apadrinhamento civil, RUI DO CARMO esclarece que “o apadrinhamento civil foi concebido, pois, com o objetivo de contribuir para a diminuição da institucionalização de crianças em Portugal e para o reforço da afirmação da família como ambiente adequado ao desenvolvimento integral e à plena integração social dos seus membros - no respeito por dois princípios essenciais do direito da família e das crianças:
- o princípio da responsabilidade parental, segundo o qual a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o Jovem; e
- o principio da prevalência da família, segundo o qual na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável.”7.
Como reza a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 253/X/4, “O regime jurídico do apadrinhamento civil – que agora se apresenta – pretende satisfazer aquelas preocupações e necessidades prioritárias. O apadrinhamento civil visa sobretudo promover a desinstitucionalização, através da constituição de uma relação para-familiar tendencialmente permanente, destinada às crianças e jovens que não são encaminhados para a adopção ou não são adoptados. Deseja-se que os primeiros beneficiários do regime sejam as crianças e jovens que estejam acolhidos em instituição, embora não se exclua que outras crianças e jovens sejam apadrinhados, na sequência da revisão de outra medida, ou mesmo antes da aplicação de qualquer medida.”
Assim, animado pela clara intenção de reduzir o número de crianças institucionalizadas, o legislador criou a figura do apadrinhamento civil, que corresponde a “uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afetivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento, constituída por homologação ou decisão judicial e sujeita a registo civil.” (artº 2.º da Lei n.º 103/2009, de 11-09 - “LAC”).
Ora, o objetivo do legislador é claro e passa por tentar garantir às crianças e jovens cujos pais não se mostrem capazes de exercer, de forma cabal, as responsabilidades parentais, a possibilidade de se integrarem, de forma duradoura, num ambiente familiar capaz de promover o seu desenvolvimento integral.
Assim, muito embora o apadrinhamento apresente características que o aproximam de uma típica relação de parentalidade, não só com esta não se confunde, como deve com ela – em regra – coexistir. De facto, como resulta da leitura do diploma mencionado, a constituição do vínculo de apadrinhamento civil não inviabiliza a manutenção do vínculo biológico, pressupondo, antes e em regra, a sua existência. É esta nova configuração familiar que justifica que o legislador tenha previsto, no art. 8.º da LAC, um conjunto de direitos dos progenitores, entre os quais constam o direito de contactar o filho, o direito de serem informados sobre o desenvolvimento integral do filho e o direito de visitar o filho e ainda o dever – imposto aos padrinhos e progenitores – de mútuo respeito e de preservação da intimidade da vida privada e familiar, do bom nome e da reputação, sempre em prol do bem-estar da criança visada.
Como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 253/X/4, “a relação jurídica de apadrinhamento civil espera corresponder a uma real vinculação afectiva entre padrinhos e afilhados. É esse o propósito da definição do apadrinhamento civil, do requisito de que o vínculo apresente reais vantagens para a criança ou o jovem, do dever de cooperação entre os padrinhos e os pais no sentido do bem-estar e desenvolvimento da criança ou do jovem, da possibilidade de serem os pais ou a própria criança ou o jovem a designar os padrinhos, da necessidade de que o principal interessado participe no processo, da pretensão de que o vínculo assente num compromisso assinado pelos intervenientes, da afirmação do carácter tendencialmente permanente do apadrinhamento civil, da imposição de um dever recíproco de alimentos, da previsão de alguns direitos dos padrinhos mesmo depois de cessada a relação. Não se pretende, no entanto, criar um vínculo semelhante ao de filiação, nem se cortam os laços com a família biológica. O vínculo de apadrinhamento civil quer servir para as crianças e os jovens que não vão seguir o caminho da adopção. Pensa-se nas crianças e nos jovens que não reúnem os pressupostos da adoptabilidade, ou para quem a adopção se tornou inviável, mas que também não podem regressar à família biológica. (…) Nem todas as pessoas podem tornar-se padrinhos e é necessário mostrar as competências pessoais mínimas num pequeno processo de habilitação junto da entidade que tem mais experiência nesta matéria. Mas um familiar, uma pessoa idónea ou uma família de acolhimento, a quem a criança ou o jovem já foi confiado num processo de promoção e protecção, já não precisa de nova habilitação. Deseja-se que o apadrinhamento civil assente fundamentalmente num simples compromisso subscrito pelos participantes directos e indirectos, à semelhança do acordo de promoção e protecção.”.
Os padrinhos exercem as responsabilidades parentais, como se de progenitores se tratassem, devendo responsabilizar-se pela segurança, saúde, educação e sustento das crianças ou jovens apadrinhados. Este acompanhamento, que se quer próximo da relação filho-pai, não cessa – como não cessa na família biológica – com a maioridade do apadrinhado, pelo que a relação jurídica familiar assim constituída assume um carácter tendencialmente perpétuo, sem prejuízo da sua possível revogação.
O apadrinhamento civil configura, assim, uma relação jurídica recente e inovadora, que permite a criação de laços afetivos entre a criança e a família que passa a exercer as responsabilidades parentais, sem que se quebrem - em regra - os laços com a família biológica.
Ora, dispõe o art. 5.º do mesmo diploma legal:
“1 - Desde que o apadrinhamento civil apresente reais vantagens para a criança ou o jovem e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção, a apreciar pela entidade competente para a constituição do apadrinhamento civil, pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos:
a) Que esteja a beneficiar de uma medida de acolhimento em instituição;
b) Que esteja a beneficiar de outra medida de promoção e proteção;
c) Que se encontre numa situação de perigo confirmada em processo de uma comissão de proteção de crianças e jovens ou em processo judicial;
d) Que, para além dos casos previstos nas alíneas anteriores, seja encaminhada para o apadrinhamento civil por iniciativa das pessoas ou das entidades referidas no artigo 10.º
2 - Também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção ou a pessoa selecionada para a adoção quando, depois de uma reapreciação fundamentada do caso, se mostre que a adoção é inviável.”8.
Resulta da norma legal acabada de citar que a figura do apadrinhamento civil é de aplicação subsidiária, apenas podendo ser aplicada caso não estejam reunidos os pressupostos da confiança com vista a adopção ou, embora se reúnam em abstrato tais pressupostos, a adopção se mostre, em concreto, inviável.
Como nos dá nota GUILHERME DE OLIVEIRA, “O apadrinhamento civil não pretende concorrer com a adoção. Pretende antes servir como uma medida própria de colocação familiar permanente, para situações em que a manutenção dos vínculos com a família biológica convenha ao interesse da criança e, portanto, a adoção não lhe sirva. Na verdade, se a criança não tiver memórias dolorosas da sua família de origem, e apenas precise de uma família que desempenhe as responsabilidades que os seus familiares biológicos não podem desempenhar, a adoção não deve ser o "projeto de vida" desta criança; o apadrinhamento civil pode ser. Pelo contrário, se os vínculos com a família de origem apenas significarem sofrimento, a adoção pode ser o "projeto de vida"; o apadrinhamento civil não é.
Pode afirmar-se, enfaticamente, que uma criança que possa ser adotada não deve ser apadrinhada; uma criança que possa ser apadrinhada, não deve ser adotada.”9.
Temos, portanto, que a medida de confiança com vista a futura adopção apenas pode ser alterada por decisão fundamentada e caso se conclua pela inviabilidade da adopção.
No plano doutrinário indicam-se, como exemplos de inviabilidade da adopção, a permanência em instituição por longo período, idade avançada da criança e casos de doença, que tornam pouco crível que a adopção venha a concretizar-se10.
Basicamente, as situações avançadas pela doutrina guiam-se por um critério de probabilidade, do qual resulta que a adopção só será inviável se e quando for pouco provável que, de facto, se concretize. Este foi o critério observado pelas instâncias ao considerarem que esta inviabilidade não se verifica nos autos, na medida em que se trata de criança de tenra idade, que, com grande probabilidade, será adotada no âmbito do normal processo de adoção.
Não vemos que possa ser esta a única abordagem ao tema.
“1. A adoção visa realizar o superior interesse da criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adotando, se funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros filhos do adotante e seja razoável supor que entre o adotante e o adotando se estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.
2. O adotando deverá ter estado ao cuidado do adotante durante prazo suficiente para se poder avaliar da conveniência da constituição do vínculo.”.
CLARA SOTTOMAYOR esclarece a este propósito que “O conceito de superior interesse da criança remete para os direitos fundamentais de que as crianças são titulares, nomeadamente, para o direito à proteção da sociedade e do Estado e para o direito ao desenvolvimento integral (art. 69º da CRP), dos quais se pode deduzir o direito das crianças ao afeto e a viver em ambiente familiar, em especial, das crianças «órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal». O instituto da adoção integra, assim, a política do Estado na protecção das crianças em perigo, quando este perigo é grave e não pode ser removido pelo apoio económico-social à família biológica. O instituto da adoção está concebido para realizar o interesse das crianças e para garantir o seu pleno desenvolvimento psicológico, físico, intelectual, moral e social. O interesse da criança é qualificado como superior porque prevalece sobre os interesses dos pais biológicos e sobre os interesses dos adotantes, em consonância com os arts. 3.º e 21.º da CDC”11.
Prossegue a referida autora, afirmando que “o conceito de reais vantagens significa que a adoção deve apresentar para o adotando tanto benefícios afetivos, morais ou espirituais e também patrimoniais, devendo entender-se que as vantagens afetivas, morais ou espirituais sobrelevam as económicas, embora o Estado, na seleção dos candidatos a adotantes, não deixe de controlar as condições de habitabilidade e de emprego destes. Estes benefícios são reais porque têm que verificar-se de modo concreto. A demonstração das vantagens da relação adotiva faz-se através de fatores indiciários, sobre os quais possa assentar a fundada convicção de que a adoção terá efeitos favoráveis para a criança, nomeadamente a capacidade para o desempenho das funções parentais (cuidados de saúde, educação, alimentação etc.) e para a construção de uma relação afetiva entre adoptantes e adotado, a disponibilidade para atender às necessidades físicas, afetivas e psíquicas da criança, para comunicar com esta e lhe transmitir carinho e segurança.”.
O comando ínsito no nº1 do citado normativo (artº 1974º CC) é claro: a adopção só será decretada se realizar o superior interesse da criança e apenas quando apresente reais vantagens para o adotando. O mesmo é dizer que caso se conclua que o projecto da adopção é contrário ao superior interesse da criança ou que não oferece reais vantagens ao adoptando, a adopção deve considerar-se inviável.
Ora, como vimos, nada impede que a família de acolhimento de transforme em candidata ao apadrinhamento civil. E assim é, porquanto o legislador, conhecedor da possibilidade de criação de laços afectivos consistentes e securizantes para a criança em contexto de acolhimento familiar, não quis afastar a possibilidade de, nestas situações, se prever a hipótese de conversão da situação de facto em solução permanente para a criança.
Assim, ao contrário do que parece ser o entendimento do acórdão recorrido, a existência de laços afectivos é, a nosso ver, neste tipo de situações, o ponto de partida, pressuposto incontornável, que permite equacionar uma solução permanente para a criança visada. O mesmo é dizer, numa situação como a dos autos, sem a existência de laços afectivos relevantes dificilmente se poderia colocar a hipótese de apadrinhamento.
Ora, existindo laços afectivos consistentes, fortes e benéficos entre a criança e a família de acolhimento, há que aferir da inviabilidade da adopção por aquele motivo.
Na verdade, pode ocorrer que a inviabilidade se coloque, já não ao nível da probabilidade de determinada criança vir a ser adoptada, mas ao nível do seu superior interesse.
Formulando de outra forma: pode, em abstracto, revelar-se contrário ao interesse de uma criança a negação da hipótese de ser apadrinhada por uma família com a qual vive, com a qual se identifica, pela qual nutre afecto e com a qual já criou um vínculo consistente.
É que (não nos esqueçamos), muito embora nos pareça (a nós adultos) uma criança de tenra idade, está em causa (do ponto de vista da criança) uma relação que durou toda a sua vida.
Vale isto por dizer que não é possível excluir que a adopção no caso vertente se afigure, no caso concreto dos autos, inviável.
A mera hipótese de verificação desta inviabilidade justifica, em nosso entender, que deva ser feito um esforço pelo tribunal no sentido de apurar se, de facto, o que se alega corresponde à verdade e ainda se o caminho da adopção se afigura, face ao caminho do apadrinhamento civil, mais benéfico para a criança.
Dito de outra forma: é necessário aquilatar se a definitividade e irreversibilidade da adopção deve ceder face à natureza, meramente, permanente do apadrinhamento, face aos benefícios que esta figura, no caso dos autos, pode oferecer.
Ora, apenas o apuramento – que se espera urgente – destas questões permitirá ao julgador tomar uma decisão esclarecida sobre o projeto de vida a delinear para o CC.
Nesta senda, considera-se necessária a produção de prova com vista a apurar os factos relevantes para a apreciação do projecto de vida a delinear para o CC.
IV. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e ordenando-se o prosseguimento dos autos para reapreciação fundamentada do caso de modo a apurar e decidir se a adopção é ou não, in casu, inviável.
Custas a fixar a final.
Lisboa, 27.12.2024
Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)
Isabel Salgado (Juíza Conselheira 1º adjunto)
Maria da Graça Trigo (Juiz Conselheiro 2º Adjunto) – com a declaração de voto que segue:
Declaração de voto – Processo n.º 1467/24.7T8VFX.L1.S1
«Votei o acórdão, acompanhando, no essencial, a respectiva fundamentação, mas considerando que a decisão proferida deve assentar, também e sobretudo, na seguinte ordem de considerações:
- Analisado globalmente o sistema legal de tutela de menores, tudo indica que este foi pensado para que, relativamente à mesma criança, não pudessem concorrer e/ou sobrepor-se um processo de apadrinhamento civil e um processo de promoção e protecção tendente a decretar a medida de confiança para adopção.
- Tendo a adopção prevalência sobre o apadrinhamento civil e tendo sido decretada, em processo de promoção e protecção, medida de confiança para adopção respeitante ao menor dos autos, creio que o sistema legal se encontra estruturado no sentido de excluir a possibilidade de um processo de apadrinhamento civil relativo a este menor.
- Este sistema (e, sobretudo, o facto de se permitir que as famílias de acolhimento possam apadrinhar civilmente a criança acolhida, mas não que a possam adoptar) tem vindo a ser posto em causa tanto por especialistas na matéria, como, inclusivamente, e de forma muito significativa, por diversos partidos políticos com assento parlamentar12.
- Contudo, não tendo essa contestação conduzido, ao menos até à data, à alteração do sistema instituído, compreende-se, até certo ponto, que as instâncias tenham considerado não ser possível verificar-se, neste processo, se a adopção do menor é ou não inviável, uma vez que o processo próprio para tal seria o processo de promoção e protecção e, nesse, se decidiu já em sentido diverso.
- Porém, aqui chegados, considero que o superior interesse da criança – critério primacial da tutela legal dos menores, e emanação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana – não poderá deixar de prevalecer sobre o sistema formal instituído, se, porventura, um e outro se encontrarem em contradição.
- O que, no caso, se traduzirá no seguinte: se os factos alegados pelos aqui requerentes (a família de acolhimento) forem dados como provados, então o superior interesse da criança será o de permanecer, de forma estável, com os requerentes, o que poderá ser conseguido mediante uma decisão de apadrinhamento civil.
- Torna-se, por isso, necessário que a acção prossiga para permitir que, eventualmente, venha a ser feita prova de tais factos, assim como, também eventualmente, de outros factos de averiguação oficiosa.
- A principal objecção que se pode invocar a este entendimento (a existência de decisão que decretou a medida de confiança para adopção, exarada em processo de promoção e protecção do menor) não pode, a meu ver, deixar de improceder, uma vez que, nesse processo, a família de acolhimento não teve intervenção e o Tribunal Constitucional – num processo de menores no qual estava em causa a regulação do poder paternal, mas cuja decisão se afigura válida para qualquer situação de tutela de menores) – declarou inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo a norma (ou, mais precisamente, o sentido interpretativo da mesma) que impedia a intervenção processual daqueles que tinham a guarda de facto da criança (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 52/2007, de 30 de Janeiro de 2007).
Maria da Graça Trigo».
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1. Entendeu que, porque “nada foi alegado quanto à inviabilidade da adopção do menor, apenas que tem uma relação de grande afectividade com a família de acolhimento,…”, “a acção…não tinha possibilidade de proceder”).
2. Cfr. arts. 3.º, al. k), e 12.º ambos do RGPTC.
3. Proc. n.º 4289/12.4TBALM.L1-A.S1.
4. Neste sentido se pronunciaram, entre muitos outros, os acórdãos de 29-04-2021? (proc. n.º 4661/16.0T8VIS-R.C1.S1 – in www.dgsi.pt), de 05-02-2019 (proc. n.º 122/16.6T8FAR.E1.S1), de 05-12-2017 (proc. n.º 1530/14.2TMPRT-A.P1.S2), de 09-09-2014 (proc. n.º 4289/12.4TBALM.L1-A.S1) e de 20-11-2014 (proc. n.º 99/10.1TMCBR-A.C1.S1) – estes não publicados nas bases de dados disponíveis.
5. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial, arts. 703.º a 1139.º, Almedina, 2020, p.436.
7. In Primeiro Congresso de Direito da Família e das Crianças, 2016, Ed. Almedina, pp 199.
Sobre esta temática, pronunciaram-se, entre outros autores, ANA RITA ALFAIATE, Algumas notas sobre o impacto do apadrinhamento civil na protecção das crianças e jovens em Portugal, in Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 15, n.º 29-30, 2018; CRISTINA ARAÚJO DIAS, Algumas notas em torno do regime jurídico do apadrinhamento civil, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor HEINRICH EWALD HÖRSTER, Almedina, 2012, pp. 161-195; GUILHERME DE OLIVEIRA, Adoção e Apadrinhamento Civil, Petrony;, MARIA ELISABETE FERREIRA, Algumas notas em torno do regime jurídico do apadrinhamento civil, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor HEINRICH EWALD HÖRSTER, Almedina, 2012, pp. 410-424.
10. Neste sentido se pronunciaram, inter alios, GUILHERME DE OLIVEIRA, Ob. Cit. p. 98 e CRISTINA ARAÚJO DIAS, Ob. Cit. p. 162.
11. Código Civil – Livro IV – Direito da Família, Almedina, 2020, pp. 1007 e ss.
12. Cfr. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173112