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PERÍCIA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
EXUMAÇÃO DE CADÁVER
PROVA DE ADN
ATO LÍCITO
Sumário
I – No art. 71.º, n.º1 do Código Civil prevê-se apenas um direito próprio dos familiares do falecido e não um direito de personalidade deste, uma vez que a personalidade cessa com a morte, nos termos do art. 68.º do Código Civil. II – A exumação de um cadáver e a recolha de material biológico para realização de testes de ADN, que seja determinada pela autoridade judicial competente por a considerar necessária à descoberta da verdade material não está em conflito com o disposto no art. 71º, nº 1 do Código Civil, uma vez que neste preceito se visa evitar a prática de atos ilícitos.
Texto Integral
Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Conceição Sampaio
Segunda Adjunta: Margarida Pinto Gomes
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ... ..., ..., veio propor ação para impugnação e investigação de paternidade contra:
1 – BB, residente na Rua ..., da freguesia ..., do concelho ...;
2 – CC, residente na Urbanização ..., ..., ... ...;
3 –DD, residente na Rua ..., ..., Calendário, ... ...;
4 – EE, residente na Rua ..., ..., ... ...;
5 – FF, residente na Rua ..., ... ...;
6 – GG, residente na Rua ..., da freguesia ..., do concelho ...; e
7 – HH, com domicílio profissional na Rua ..., ..., da freguesia ..., do concelho ....
Alegou, no que ora importa considerar, em suma, que o autor está registado como sendo filho do primeiro réu, mas é filho de II, entretanto falecido.
Concluiu pedindo que seja:
“(…) julgada procedente a impugnação da paternidade do 1º R. em relação ao A. e que, consequentemente,
a) se declare que o A. não é filho do 1º R.;
b) se ordene a eliminação do correspondente registo na Conservatória do Registo Civil ...,
E que seja julgada procedente a averiguação da paternidade e que, consequentemente,
a) se reconheça e declare que o A. é filho de II;
b) se ordene o averbamento no assento de nascimento do A. Na Conservatória do Registo Civil ..., passando no final a figurar o A. como filho daquele II, averbando-se também a respectiva avoenga paterna.”.
Requereu, a final, entre outras diligências probatórias, a realização de exame pericial de ADN ao cadáver de II, para o que requereu a exumação.
Os Réus CC, DD e EE (sobrinhos do falecido II) apresentaram contestação, impugnando designadamente que o Autor é filho do dito II, para além de terem invocado, entre outra matéria, que havia decorrido o prazo de caducidade para a propositura da ação e deduzido reconvenção no sentido que ainda que o Autor seja declarado filho do referido II tal não lhe deve conferir “(…) quaisquer direitos de natureza patrimonial, designadamente, de sucessor e herdeiro do pretenso pai II, sendo declarado que não é seu herdeiro, a nada tendo direito dos bens e/ou direitos que integram o acervo da herança aberta e deixada por morte deste, tudo com todas as legais consequências.”.
O Autor apresentou réplica, reafirmando, em suma, o alegado na petição inicial e pugnando pelo indeferimento da exceção de caducidade e da reconvenção.
Realizou-se audiência prévia, em 09/06/2020, tendo ficado consignado em ata o seguinte:
“DESPACHO Nos termos dos artº 591º n.º 4 e 155º n.º 7 do C.P.C., dispenso a gravação da audiência prévia.
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Nos termos do artº 266º, nº 2, al. a), do CPC, admito o pedido reconvencional formulado pelos Réus.
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Nos termos do artº 306º, n.º 1, do C.P.C., fixo à acção o valor de € 30.000,01.
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O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. O processo está isento de nulidades que o invalidem. As partes dotadas de personalidade e capacidade judiciárias têm legitimidade “ad causam”. Os Réus arguiram a excepção da caducidade de direito da acção, a qual neste momento mostra-se controvertida, pelo que em sede de decisão final tal excepção será apreciada. Não se verificam outras excepções, nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa. A acção prosseguirá com vista à audiência discussão e julgamento, uma vez que existe matéria controvertida para a boa decisão da causa.
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Objecto do Litigio. a) – Apreciação da excepção de caducidade suscitada pelos 2.º, 3.º e 4.º Réus, no âmbito da acção de impugnação da paternidade e da investigação da paternidade; b) - Saber se o 1.º Réu, BB, não é pai biológico do Autor, AA; c) - Na eventual resposta positiva dada à resposta na al. b), saber se II é o pai biológico de AA. d) - Na eventual procedência das respostas positivas dadas às alíneas b) e c), apreciar o instituto do abuso do direito relativamente à pretensão do Autor na sucessão dos direitos patrimoniais do referido II.
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Por haver acordo entre as partes, consideram-se desde já assentes as matérias constantes dos artigos 1º a 15º da petição inicial.
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Temas da Prova. 1º – Saber em que data/momento o Autor teve conhecimento de que poderia não ser filho do 1º Réu, BB. 2º - Saber em que data/momento o Autor teve conhecimento de que II poderia ser seu pai biológico. 3º - Saber se II manteve relações sexuais de cópula completa com JJ, nos primeiros 120 dias dos 300 que antecederam o nascimento do Autor, tendo este sido gerado em consequência de tais relações sexuais. 4º - Saber se JJ, no período referido em 3º, não manteve relações sexuais com outro homem para além do referido II. 5º - Saber se o Autor com esta acção pretende única e exclusivamente aceder aos direitos sucessórios que pertenceram ao referido II.
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De seguida, e não tendo sido apresentadas reclamações, foi dada a palavra aos Ilustres mandatários para se pronunciarem quanto à prova a produzir, sendo que os mesmos reiteraram a prova já junta aos autos.
Seguidamente pelo Mmº Juiz foi proferido o seguinte: DESPACHO Admito os róis de testemunhas.
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Admito a prova documental junta aos autos.
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Nos termos do disposto no art.º 466º do CPC, admito a tomada de declarações de parte dos Réus, CC e EE, a todos os temas da prova.
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No que diz respeito aos exames periciais requeridos, entende-se, por ora, que os mesmos deverão ser efectuados através de exame pericial de ADN a realizar pelo IML do ..., sendo que relativamente à 1.ª das perícias requeridas a mesma consiste em saber se o Autor, AA, não é filho biológico de BB; Quanto ao objecto da 2.ª perícia a mesma consiste em saber se o Autor, AA, é filho de II e, em caso afirmativo, qual a percentagem de probabilidade de o Autor ser filho do referido II. No caso de não ser possível a realização da 2.ª perícia através de exame de ADN, o Tribunal, oportunamente, se pronunciará sobre a exumação do cadáver pedida pelo Autor, para efeitos de perícia.
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Oportunamente se designará data a para realização da audiência de julgamento.”.
Foi, entretanto, realizada a perícia, relativamente à paternidade do réu AA em relação ao autor, tendo sido elaborado o competente relatório pelo Serviço de Genética e Biologia Forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., datado de 19/11/2020, que concluiu pela exclusão da relação de paternidade entre ambos.
Em 09/03/2021, o Serviço de Genética e Biologia Forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. informou o seguinte:
“Ex.mo Sr. Meritíssimo Juiz de Direito, Sobre o ofício n.º ...88, de 26 de fevereiro de 2021, informo que perícias de investigação de paternidade biológica em que o pretenso pai já faleceu podem ser concluídas com recurso a familiares do pretenso pai e/ou a material colhido em exumação realizada ao cadáver do pretenso pai. Em perícias com recurso a familiares do pretenso pai, os valores de probabilidade a atingir dependem do número de familiares, dos graus de parentesco e dos perfis genéticos identificados. A priori, não se pode garantir que os resultados sejam suficientemente esclarecedores, nem afirmar inequivocamente quais os familiares que serão necessários. Parentescos diretos, por exemplo pais/filhos e avós/netos, implicam, obrigatoriamente, partilha de informação genética, permitindo assim disponibilizar a informação genética necessária, de uma forma mais explícita. Pelo contrário, a informação genética disponibilizada a partir de irmãos pode não ser suficiente; dependerá do número de irmãos e dos perfis determinados (da maior ou menor partilha de informação genética). Sobre a exumação do cadáver do pretenso pai II, informo que, do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não podemos garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade definidos pelo SGBF, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado. Assim sendo, este serviço aguarda a determinação de V.ª Ex. ª para agendamento das colheitas de material biológico a possíveis familiares do pretenso pai (se aplicável) e/ou da exumação ao cadáver do pretenso pai II.”.
Foi realizado exame genético com recurso a amostras recolhidas ao autor e aos réus EE, DD e CC (sobrinhos do pretenso pai II), tendo o relatório elaborado em 30/11/2021, pelo Serviço de Genética e Biologia Forenses do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. concluído que:
“- O estudo dos polimorfismos de ADN nuclear efetuado: 1. Não permite excluir EE, DD e CC como primos direitos de AA. 2. Não permite excluir o pai de EE, DD e de CC como tio biológico de AA. (…) - Utilizando o programa Familias 3, a análise probabilística do pai de EE, DD e de CC ser o tio de AA, por comparação com outro indivíduo ao acaso da população, conduziu a um índice de parentesco IP=25. ADN DO CROMOSSOMA Y - A identificação de haplótipos coincidentes do cromossoma Y em EE, DD, CC e AA, não permite excluir que pertençam à mesma linhagem paterna. OBSERVAÇÕES: - O parâmetro estatístico IP indica o número de vezes que é mais provável a ocorrência dos perfis genéticos determinados admitindo a Hipótese 1 como verdadeira, relativamente à ocorrência desses mesmos perfis admitindo a Hipótese 2 como verdadeira. - O parâmetro estatístico W (probabilidade a posteriori) é calculado a partir do valor de IP previamente determinado e de uma probabilidade a priori P0, de acordo com W=P0 × IP/ P0 × IP + 1-P0. Deste modo, o IP previamente determinado conduziu a uma probabilidade W=96,15%, considerando uma probabilidade a priori de 0,5.”
- Após vários pedidos de esclarecimento ao relatório pericial por parte dos réus contestantes e após o encerramento da audiência de julgamento, em 27/02/2024, os ditos réus juntaram aos autos, em 28/02/2024, o que denominaram de quatro pareceres do IPATIMUP sobre a perícia com relatório datado de 30/11/2021.
A 10/04/2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimentos ref.ª citius 15818971 e 15888694: Em 30/11/2021 foi elaborada perícia pelo INML que teve por objeto a investigação da paternidade do Autor AA e que concluiu ser de 96,15% a probabilidade de o pai dos réus contestantes ser tio do autor, ou seja, de os réus contestantes serem primos diretos do autor. A perícia foi efetuada com recurso a material biológico do autor e de supostos primos, ou seja, sobrinhos do pretenso pai já falecido. Por requerimento datado de 28/02/2024, vieram os Réus contestantes juntar aos autos quatro pareceres do IPATIMUP sobre a perícia elaborada pelo INML em 30/11/2021. Tais pareceres, provenientes de laboratório científico reconhecido, são aptos do ponto de vista objetivo e atentas as circunstâncias do caso concreto (pretenso pai já falecido) a criar um estado de dúvida no julgador sobre se a perícia efetuada não padecerá dos vícios e fragilidades que os Réus contestantes lhe assacam. De resto e adensando tais dúvidas, temos a informação da Diretora do INML prestada aos autos em 09/03/2021, segundo a qual “Em perícias com recurso a familiares do pretenso pai, os valores de probabilidade a atingir dependem do número de familiares, dos graus de parentesco e dos perfis genéticos identificados. A priori, não se pode garantir que os resultados sejam suficientemente esclarecedores, nem afirmar inequivocamente quais os familiares que serão necessários. Parentescos diretos, por exemplo pais/filhos e avós/netos, implicam, obrigatoriamente, partilha de informação genética, permitindo assim disponibilizara informação genética necessária, de uma forma mais explícita. Pelo contrário, a informação genética disponibilizada a partir de irmãos pode não ser suficiente; dependerá do número de irmãos e dos perfis determinados (da maior ou menor partilha de informação genética).” Dispõe o n.º2, do art. 487.º, do Código de Processo Civil, que “O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.” Por seu turno, o n.º3 da mesma norma prevê que “A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.” Atentas as dúvidas criadas no espírito do julgador sobre a eventual inexatidão dos resultados da perícia elaborada pelo INML em 30/11/2021, a que acresce a circunstância de nesta ação de investigação da paternidade se procurar a verdade biológica, afigura-se relevante e pertinente a realização de uma segunda perícia, ao abrigo do disposto no art. 487.º, n.º2, do CPC, desta feita com recurso a material colhido em exumação realizada ao cadáver do pretenso pai II. Assim e no estrito cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, no prazo de dez dias, quanto à suscitada questão da realização de segunda perícia.”.
Subsequentemente, em 09/05/2024, proferiu o seguinte despacho objeto de recurso:
“Da realização de segunda perícia: Suscitando-se a existência de dúvidas criadas no espírito do julgador sobre a eventual inexatidão dos resultados da perícia elaborada pelo INML em 30/11/2021, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a pertinência e relevância da realização de uma segunda perícia, ao abrigo do disposto no art. 487.º, n.º2, do CPC, desta feita com recurso a material colhido em exumação realizada ao cadáver do pretenso pai II. Nessa sequência, veio o Autor manifestar a sua não oposição à realização da segunda perícia. Por sua vez, os Réus contestantes vieram pugnar pelo não decretamento da exumação do cadáver de II, não só porque se estaria a determinar a realização de uma diligência irrelevante para a descoberta da verdade material, por inútil, como por ser altamente lesiva de direitos absolutos dos Réus e dos demais familiares do defunto. Cumpre decidir. Dispõe o n.º2, do art. 487.º, do Código de Processo Civil, que “O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.” Por seu turno, o n.º3 da mesma norma prevê que “A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.” Assim, o tribunal pode ordenar oficiosamente a segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade (nº 2 do citado artigo). Em qualquer caso, a segunda perícia destina-se a corrigir eventual inexatidão dos resultados da primeira perícia (nº 3 do mesmo artigo). Quanto ao primeiro pressuposto, encontra-se o mesmo preenchido, pois, como resulta da fundamentação expendida no despacho de 10/04/2024 e para a qual se remete, o Tribunal não está totalmente esclarecido com o resultado da primeira perícia, motivo pelo qual se considera a segunda perícia necessária ao apuramento da verdade. Com efeito, se nesta ação de investigação da paternidade se procura a verdade biológica, é na ciência que tem de se encontrar a resposta, sendo certo que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo Tribunal (cfr. art. 489.º, do CPC). Conforme diz Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 521), a segunda perícia visa fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objeto da primeira, de forma a contribuir para uma mais adequada convicção judicial. No que concerne ao segundo pressuposto - a eventual inexatidão da primeira perícia, verifica-se que a mesma foi efetuada com recurso a material biológico do autor e de supostos primos, ou seja, sobrinhos do pretenso pai já falecido. Ocorreu, pois, nesta primeira perícia, uma tentativa de reconstrução do ADN da pessoa falecida por inexistência de material biológico desta. Ora, como se refere no estudo sobre Princípios de Genética Forense de Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira (da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, fls. 120), nas situações em que não é possível realizar as perícias de investigação da paternidade com recurso ao trio pai/mãe/filho e se recorre a familiares do pretenso pai, as investigações serão de casos incompletos e por isso mais complexas, podendo ser necessário proceder a novas avaliações dos dados familiares, ou mesmo à exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de material biológico, por forma a realizar uma investigação de paternidade direta. Conclui-se, por isso, que em tese geral a realização de uma perícia de ADN com recurso aos familiares de pessoa falecida é menos fiável do que a realização de perícia através de vestígios biológicos do pretenso pai, o que, no caso, conduz à eventual inexatidão da primeira perícia. Verificam-se, portanto, os pressupostos legais da realização da segunda perícia. Verdadeiramente, tal não é posto em causa pelos argumentos apresentados pelos Réus contestantes. Por um lado, os Réus contestantes alegam uma provável inutilidade da segunda perícia, mas não a provam, sendo certo que essa suposta inutilidade depende de um juízo técnico e científico. Apenas os peritos poderão afirmar se a segunda perícia será impossível ou inútil, designadamente devido ao tempo já decorrido desde a inumação ou devido a contaminação do material genético. Por outro lado, os Réus defendem a não realização da segunda perícia por ser a mesma altamente lesiva de direitos absolutos dos Réus e dos demais familiares do defunto. Sem razão, contudo. Esta segunda perícia médico-legal tem em vista apurar da existência de vínculo biológico entre o Autor e o pretenso pai II e, nesta conformidade, proceder ao estabelecimento da paternidade de consonância com o princípio da verdade biológica. Com efeito, a realização de perícia através de vestígios biológicos recolhidos de material cadavérico do pretenso pai consubstancia o melhor meio, por ser direto, dentro das possibilidades existentes, para tutelar o direito à identidade pessoal do Autor, constitucionalmente consagrado no artigo 26.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e que abrange o conhecimento das suas origens. Não obstante, não se poderá olvidar que os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respetivo titular, o que poderá contender, a priori, com a exumação do cadáver do pretenso pai para realização de exame científico de modo a proceder ao estabelecimento do vínculo de filiação. Nesta conformidade, atenta a colisão dos direitos fundamentais em causa e uma vez sendo manifesta a impossibilidade de concordância prática, o Tribunal conclui, nos termos do artigo 335.º, n.º2, do Código Civil, pela prevalência do direito à identidade pessoal do Autor, porquanto a agressão efetiva a que o cadáver do pretenso pai será sujeito com a recolha de material biológico para a realização do exame científico atualmente apresenta-se pouco significativa relativamente ao bem jurídico que se visa proteger e que impõe, precisamente, a realização do mesmo, na medida em que se considera que não contende, de forma relevante, com os direitos de personalidade do falecido ou com os “direitos absolutos dos Réus e demais familiares do defunto” (os réus não especificam quais sejam esses direitos absolutos), tudo à luz do artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa. Nesta conformidade, determino que se proceda à realização de segunda perícia, ao abrigo do disposto no art. 487.º, n.º2, do CPC, desta feita com recurso a material colhido em exumação realizada ao cadáver do pretenso pai II, a qual terá o mesmo objeto que a primeira, qual seja: - saber se o Autor, AA, é filho de II e, em caso afirmativo, qual a percentagem de probabilidade de o Autor ser filho do referido II. Assim, solicite ao Gabinete Médico-Legal competente do INML a realização da perícia e a indicação de peritos médicos (diferentes dos anteriores), os quais, desde já, se nomeiam para a realização do exame supra referido, que averiguará e apreciará os mesmos factos que foram averiguados no anterior exame de 30/11/2021, mas recorrendo previamente à exumação do cadáver do pretenso pai. Notifique e demais diligência necessárias.”.
Inconformados com a decisão dela vieram dela recorrer os réus contestantes, formulando as seguintes conclusões:
“1. Consta dos autos uma comunicação oficial da Senhora Serviço de Genética e Biologia Forenses Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., Prof. Doutora KK, datada de 09/03/2022, que, inter alia, e para o que ora importa diz o seguinte: “Sobre a exumação do cadáver do pretenso pai II, informo que, do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não podemos garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade definidos pelo SGBF, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado.”(realces nossos). 2. Note-se que, no caso vertente, a inumação de II ocorreu já há cerca de 20 anos, e, na campa onde está sepultado o referido II, estão também sepultados o seu pai e a sua mãe. 3. Ou seja, no presente caso, a diligência de exumação é na verdade uma diligência inútil, não só atendendo ao tempo já transcorrido desde a inumação, e da possibilidade de, como refere o INML, não se poder recolher material adequado, mas também porque, com elevada probabilidade, o material que se recolher vai estar contaminado, pois na campa em causa há material biológico de, pelo menos, três pessoas. 4. Salvo o devido respeito, neste circunstancialismo, o douto Tribunal a quo estava impedido de decretar a diligência que decretou, na medida em que lhe está vedado por lei o decretamento de qualquer diligência inútil (cfr. artigo 130.º do CPC). 5. O facto de o cadáver não ser titular de direitos não significa que o ordenamento jurídico deixe sem tutela as agressões materiais ou imateriais perpetradas contra a memória ou os restos mortais da pessoa falecida. 6. Ao determinar-se a exumação, nos presentes autos, de II, estar-se-ia a determinar a realização de uma diligência irrelevante para a descoberta da verdade material, e logo, proibida, por inútil, e altamente lesiva de direitos absolutos dos Recorrente, dos demais familiares do defunto, e deste. Esses direitos absolutos são os direitos de personalidade dos ora Recorrentes, concretamente a sua personalidade moral (artigo 70.º do Código Civil) e a tutela da personalidade de que ainda beneficia o defunto (artigo 71.º do Código Civil). 7. Ou seja, o douto Despacho a quo é, com o devido respeito, violador dos artigos 70.º e 71.º do Código Civil. 8. Acresce que o decretamento da diligência é legalmente impossível, e deve, salvo o devido respeito, ser revogado, pela circunstância de a exumação não ser consentida pelos ora Recorrentes, enquanto únicos herdeiros do falecido (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/11/2010 (Proc. 1194/06.7TBBGC-B.P1)). 9. O artigo 417.º, n.º 3, do CPC reconhece, expressamente, um direito à recusa de cooperação, inter alia, nos casos em que a mesma importe: “violação da integridade física ou moral das pessoas” ou “intromissão na vida privada ou familiar”. 10. No caso vertente, e salvo o respeito por opinião contrária, a recusa de cooperação dos ora Recorrente, que, reafirma-se, só por si impede a realização da deiligência decretada, é legal, por estar em causa uma violação da sua integridade moral e uma intromissão na sua vida privada e familiar. Assim se constata que o douto Despacho recorrido enferma do vício de violação de lei, devendo ser, por isso, revogado. Pois só assim se fará inteira e sã JUSTIÇA”.
O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar se se deve manter o despacho que determinou a realização de uma segunda perícia com a exumação de cadáver, apreciando se, como invocam os recorrentes se trata de um ato inútil e se a exumação com recolha de vestígios biológicos do cadáver do indigitado progenitor do recorrido é violadora dos direitos de personalidade dos recorrentes e da memória do falecido, nos termos em que o preveem os arts. 70.º e 71.º do Código Civil.
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III – FACTOS A CONSIDERAR
Com interesse para a decisão a proferir, considera-se a factualidade descrita no relatório.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Dispõe o art. 487.º do Código Civil que:
“1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.
3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.”
Conforme ressalta do normativo supra transcrito, a segunda perícia pode ser realizada a pedido das partes ou de uma das partes e pode ainda ter lugar por determinação oficiosa do Tribunal.
Neste último caso basta que o Tribunal julgue necessária a realização de outra perícia para o apuramento da verdade, ou seja, afigura-se-nos ser insindicável este juízo do Tribunal sobre a necessidade ou mesmo imprescindibilidade da realização de uma nova perícia.
Distintamente, já podem ser objeto de impugnação os concretos contornos da realização da segunda perícia, pois que aqui já se coloca uma questão de legalidade na sua execução.
Ora, os recorrentes não colocam em causa o juízo do tribunal sobre a necessidade de realização de uma segunda por julgador entender que a primeira perícia não é totalmente esclarecedora, o que questionam são os moldes em que a mesma foi determinada, ou seja, com a exumação do cadáver do tio para recolha de vestígios biológicos.
A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a inutilidade da realização da perícia, dizendo que a perícia não deve ser realizada por violar o plasmado no art. 130.º do Código de Processo Civil que proíbe a prática de atos inúteis.
Louvam-se numa comunicação de 09/03/2021 (e não 2022 como por lapso referem) do Serviço de Genética e Biologia Forenses Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., mas que efetivamente contraria a inutilidade que os recorrentes invocam, pois que o que diz em tal comunicação é que do ponto de vista técnico, a análise de material exumado pode ser difícil, pelo que não pode garantir a obtenção de resultados que cumpram os critérios de qualidade que têm definidos, de modo a permitir identificar o respetivo perfil genético e disponibilizar toda a informação genética necessária, com segurança. A especificidade de cada amostra, as condições a que esteve sujeita e o tempo de inumação são fatores determinantes na identificação de perfis genéticos, a partir de material exumado.
Ora, tal comunicação alerta para vicissitudes próprias de uma exumação de cadáver com recolha de amostras, mas em momento algum se refere que tal diligência será inútil, antes se referindo que pode ser difícil (logo, também pode não ser difícil), pelo que as asserções produzidas pelos recorrentes acerca da inutilidade da diligência em causa, não encontram arrimo na comunicação em causa, inferindo-se, pelo contrário, da mesma, que correndo bem a exumação e recolha de amostras pode ser útil para o esclarecimento das relações de filiação objeto de litígio nos presentes autos.
A tal não obsta o tempo decorrido desde a inumação do cadáver indigitado progenitor nem a invocada existência de outros dois cadáveres inumados no mesmo local. São, naturalmente, circunstâncias que poderão afetar a recolha de material biológico, bem como a qualidade das amostras recolhidas, mas é algo que apenas poderá ser avaliado aquando da recolha e análise das amostras recolhidas, pelo que é absolutamente inadequado asseverar que a diligência é inútil. Relembra-se o que no ofício supra referenciado que, como vimos, afastou a inutilidade da diligência, já se consideraram as circunstâncias que podem gerar dificuldades para o sucesso na realização da perícia.
Não existe assim qualquer inutilidade na realização da perícia em causa, bem pelo contrário, a mesma poderá mesmo ser concludente para a decisão da ação, pois que conforme ressalta do estudo sobre Princípios de Genética Forense de Francisco Corte-Real e Duarte Nuno Vieira (da Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, págs. 120), nos casos em que não é possível realizar as perícias de investigação da paternidade com recurso ao trio pai/mãe/filho e se recorre a familiares do pretenso pai, como sucedeu na primeira perícia, as investigações serão de casos incompletos e por isso mais complexas, podendo ser necessário proceder a novas avaliações dos dados familiares, ou mesmo à exumação do cadáver do pretenso pai para recolha de material biológico, de modo a realizar uma investigação de paternidade direta.
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Dizem ainda os recorrentes que a decretada exumação para recolha de material biológico é altamente lesiva dos direitos absolutos de personalidade moral dos recorrentes e dos demais familiares e ainda da tutela de personalidade de que beneficia o defunto, respetivamente nos termos dos arts. 70.º e 71.º do Código Civil.
Apreciando.
De acordo com o art. 1801.º do Código Civil nas ações relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames sanguíneos e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados, em que incontestadamente se incluem os exames a amostras biológicas recolhidas de cadáveres para a realização de testes de ADN, que são os que com maior fiabilidade próxima da certeza tornam possível estabelecer que determinado indivíduo procede biologicamente de outro.
Porém, esgrimem os recorrentes que tal diligência viola dos seus direitos de personalidade e os do falecido.
Contudo, tal asserção não tem qualquer fundamento como a seguir procuraremos demonstrar.
Dispõe o art. 1.º do Decreto-Lei nº 411/98, de 30/12 que:
“A exumação consiste na abertura de sepultura, local de consumpção aeróbia ou caixão de metal onde se encontra inumado o cadáver”.
Por seu turno o art. 21.º, n.º 1 do citado diploma legal dispõe que: "Após a inumação é proibido abrir qualquer sepultura ou local de consumpção aeróbia antes de decorridos três anos, salvo em cumprimento de mandado da autoridade judiciária”.
Antes de mais importa considerar que, com a morte de uma pessoa extingue-se a sua personalidade jurídica, nos termos do n.º 1 do art. 68.º do Código Civil, ou seja, a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas.
A este propósito, Mota Pinto, in Teoria Geral da Relação Jurídica, 2.ª edição atualizada, págs. 200 e 201, expende o seguinte:
“No momento da morte, a pessoa perde, assim, os direitos e deveres da sua esfera jurídica, extinguindo-se os de natureza pessoal (v. g. os direitos e deveres conjugais) e transmitindo-se para os sucessores "mortis causa" os de natureza patrimonial (…) a tutela do artigo 71.°, n.° 1, é uma protecção de interesses e direitos de pessoas vivas (as indicadas no n° 2 do mesmo artigo) que seriam afectadas por actos ofensivos da memória (da integridade moral) do falecido.".
Assim, “a tutela post mortem é, na realidade, a protecção concedida ao direito que os familiares têm de exigir o respeito pelo descanso e pela memória dos seus mortos.” (Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, pág. 466).
No caso concreto, em primeiro lugar não se vislumbra que a exumação judicialmente determinada, de acordo com os procedimentos legais possa ser violadora da integridade moral dos recorrentes, sobrinhos do pretenso progenitor do recorrido, nada tendo sido alegado em concreto nesse sentido.
O que poderia estar aqui em causa, seria a violação dos direitos dos familiares – não do falecido - nos termos do art. 71.º do Código Civil que dispõe que:
“1. Os direitos de personalidade gozam igualmente de protecção depois da morte do respectivo titular.
2. Tem legitimidade, neste caso, para requerer as providências previstas no n.º 2 do artigo anterior o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
3. Se a ilicitude da ofensa resultar de falta de consentimento, só as pessoas que o deveriam prestar têm legitimidade, conjunta ou separadamente, para requerer providências a que o número anterior se refere.”.
Contudo, ainda que se concedesse que poderiam estar também aqui em causa direitos de personalidade próprios dos recorrentes, chamemos-lhes assim, ou seja direitos de personalidade com assento no referido art. 70.º, que não estão, a verdade é que poderíamos ter um conflito com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, conhecimento da identidade pessoal na vertente de conhecimento das origens biológicas, com assento no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Ora, sob a epígrafe “colisão de direitos” dispõe o art. 335.º do Código Civil que:
“1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
“2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.”.
Nesse caso, deveriam os direitos de personalidade dos recorrentes (que em concreto nem sequer se mostram alegados) ceder por o direito ao conhecimento da identidade pessoal dever prevalecer sobre esses hipotéticos direitos.
Ainda que fosse este o caso, a prevalência do direito à identidade pessoal do recorrente justificar-se-ia, porquanto a recolha de material biológico no cadáver do indigitado progenitor para a realização do exame científico, supostamente violador de direitos de personalidade dos sobrinhos, mostra-se num patamar muito inferior relativamente ao direito à identidade pessoal.
Mas não é de todo este o caso. O que está aqui em causa são os direitos dos familiares plasmados no art. 71.º, n.º 1 do Código civil, embora com uma redação imperfeita, não sendo tutelados os supostos direitos dos familiares nos termos do art. 70.º do Código Civil.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2011, processo. 912B/2002.C1.S1, em que é relator Álvaro Rodrigues, sustentado na numerosa doutrina e jurisprudência que aí se mostra recenseada, diz-se que “o cadáver não é titular de direitos, mas beneficiário da protecção a que se refere o nº 1 do artº 71º do C. Civil. (…) Na realização da colheita do material cadavérico para a realização dos testes do ADN, ordenada por autoridade judicial competente, que a considerou necessária, após a devida ponderação, e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, não há objectivamente qualquer violação de direitos, tendo em atenção o direito do Investigante à sua identidade. A violação do respeito ao cadáver importa a prática de actos que consubstanciem, materialmente, um vilipêndio do cadáver, isto é, actos susceptíveis de aviltar, profanar ou ultrajar o cadáver e não actos médicos periciais exigidos com a legítima finalidade da descoberta da verdade biológica, em casos em que importe o reconhecimento e declaração da identidade de uma pessoa.”.
Eduardo Vera Cruz Pinto in Conferência proferida em Brasília, no âmbito da II Jornada de Direito Civil, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal in http://www.cjf.jus.br) diz que:
“No art. 71º do Código Civil português, a proteção aos direitos da personalidade do morto resulta da possibilidade de dano à sua família, que, nesse caso, tem legitimidade processual para atuar em sua defesa, protegendo-se. Logo, a proteção legal é dada não à pessoa que foi, mas à sua família.”.
Assim sendo, como é – também na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/03/2015, proferido no processo 244/06.1TBMNC-B.G.1, em que é relatora Eva Almeida -, dir-se-á que os direitos da família dos falecidos, ponderados em face do direito do autor à sua identidade pessoal, não deverão prevalecer, sendo de salientar que a ter sucesso a ação o recorrido passará inclusivamente a ser o parente mais próximo (primeiro grau na linha reta em contraposição com os recorridos, que são colaterais em terceiro grau – cfr. arts. 1578.º a 1581.º do Código Civil).
Como se refere a propósito da transcrita norma com a epígrafe “colisão de direitos” no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/05/2006, no processo 006A636, em que foi relator Nuno Cameira citado no acórdão do mesmo Tribunal datado de 24/05/2012, no processo 69/09.2TBMUR.P1.S1, em que é relator Serra Baptista:
“Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos. Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade. Isto é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento. Se, ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se”.
Adotado este entendimento, em face das considerações supra expostas, resulta que não existe qualquer colisão de direitos quanto aos fundamentos da oposição deduzida pelos recorrentes à exumação de cadáver do seu tio pelos motivos atinentes a si próprios (aliás não explicitados ou concretizados), supostamente subsumíveis ao art. 70.º do Código Civil, sendo que na realidade o normativo aplicável é o seguinte (art. 71.º).
Já relativamente ao seu falecido tio, o mesmo é desde o momento da morte destituído de personalidade jurídica e, inerentemente, despojado de qualquer direito.
De todo o modo, na interpretação que consideramos a melhor, o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil, confere aos familiares do falecido um direito próprio para defesa da sua memória e dos seus restos mortais. Tem-se entendido que tal direito concedido aos familiares do falecido nos termos do citado normativo apenas pode valer contra a prática de atos ilícitos, pelo que sendo assim, em face de uma exumação determinada por autoridade judiciária, tendo em vista a satisfação de um interesse e direito legítimo, como é o conhecimento das origens não pode prevalecer, inexistindo também aqui qualquer colisão de direitos.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/2014:
“Independentemente de o cadáver não ser titular de direitos, mas beneficiário da proteção a que se refere o art.º 71.º n.º 1 do Código Civil, importa sublinhar que a realização da colheita de material cadavérico para a realização dos testes de ADN, que seja ordenada pela autoridade judicial competente que a considerar necessária, após a devida ponderação e levada a efeito nos limites procedimentais legal e tecnicamente previstos, nunca pode estar em conflito com o disposto no art.º 71.º n.º1 do C.Civil.”.
O que o art. 71.º, n.º 1 do Código Civil visa evitar é a prática de atos ilícitos, como por exemplo a ofensa ao bom nome de pessoa falecida, não sendo, pois necessário qualquer consentimento dos familiares do falecido, uma vez que a determinação judicial é lícita e muito menos qualquer cooperação por ser desnecessária para a realização da diligência em causa, mostrando-se assim deslocada a referência ao art. 413.º do Código de Processo Civil e as considerações tecidas a tal respeito.
A não ser assim, não se compreenderiam a realização de autópsias sem o consentimento dos familiares e diplomas como os que permitem a utilização de cadáveres para dissecação ou extração de peças, tecidos ou órgãos para fins de ensino e investigação científica (DL 274/99, de 22/07) ou a colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana (Lei 22/2007, de 29/06). Deste modo, a extração de ADN com recurso à exumação, sendo uma diligência lícita com vista à obtenção de provas tendentes a apurar a verdade biológica, torna infundada a oposição deduzida pelos recorrentes à realização da segunda perícia. (cfr. neste sentido, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 07/12/2016, no processo 3727/13.3TBBCL-A.G1, em que é relatora Alexandra Rolim Mendes).
Para finalizar, dir-se-á que no caso Jaggi vs Suíça, em 13/06/2006, o Tribunal Europeu dos Direitos humanos condenou o Estado Helvético pela violação do art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito à proteção da vida familiar) pelo facto de os Tribunais terem impedido o recorrente de recolher ADN do indigitado pai biológico falecido, não tendo permitido a exumação, prejudicando o direito ao estabelecimento da filiação, num caso em que, como no presente, os familiares do falecido não colocaram entraves de matriz religiosa ou filosófica.
O recurso deve, assim, improceder.
As custas deverão ser suportadas pelos recorrentes, nos termos do art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
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Sumário:
I – No art. 71.º, n.º1 do Código Civil prevê-se apenas um direito próprio dos familiares do falecido e não um direito de personalidade deste, uma vez que a personalidade cessa com a morte, nos termos do art. 68.º do Código Civil.
II – A exumação de um cadáver e a recolha de material biológico para realização de testes de ADN, que seja determinada pela autoridade judicial competente por a considerar necessária à descoberta da verdade material não está em conflito com o disposto no art. 71º, nº 1 do Código Civil, uma vez que neste preceito se visa evitar a prática de atos ilícitos.
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V- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.