AÇÃO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA PARA ENTREGA DE DOCUMENTOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
ÓRGÃOS DO CONSELHO FISCAL
Sumário


1. A legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente seu titular.
2. A mera afirmação pelos autores de que eles próprios são os titulares do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, pelo que só em caso de procedência da ação passa a existir fundamento material para sustentar, a posteriori, quer a legitimidade processual, como a legitimidade material e, assim, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva.
3. No caso concreto, visto que os Autores se arrogam titulares do direito e dele beneficiários por entenderem ainda encontrarem-se em funções por o recurso do despacho que os removeu ter efeitos suspensivos, entendemos que verificar se o mesmo existe ou não, se o pode ou não provar, é já uma questão de mérito.
4. Os autores invocaram a manutenção das funções no órgão fiscal da ré e que não se mostra reconhecido, mais a mais já existe, entretanto, decisão de rejeição ( por extemporâneo) pelo Vaticano daquele recurso hierárquico, o que tornaria de qualquer modo sempre caduco qualquer efeito suspensivo que houvesse ( cfr. canon 1736§4) e que, por isso, legalmente não têm reconhecida a qualidade de órgãos do conselho fiscal da ré, pelo que não são titulares da relação jurídica que invocam ou não demonstraram ter interesse juridicamente atendível; tal determinaria a absolvição do pedido.
5. No entanto, nesta sede de recurso esta nunca poderia ocorrer, sob pena de se prejudicar os Recorrentes, atenta a proibição da reformatio in pejus.
6. Assim, não é possível ao tribunal de recurso absolver o Réu do pedido em recurso apresentado exclusivamente pelos Autores de decisão que absolveu o Réu da instância.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

*
I- Relatório ( que se transcreve):

“ AA, NIF ...07..., residente na Praceta ..., ..., ... ..., ...,
BB, NIF ...39..., residente no Caminho ..., ..., ... ..., ...,
CC, NIF ...94..., residente no Caminho ..., ..., ... ..., ...,

Vieram, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1045.º e segs do Cód. Processo Civil, instaurar ACÇÃO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA PARA APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTOS, com processo especial, contra

CENTRO SOCIAL E PAROQUIAL DE ..., NIPC ...60, com sede no Caminho da Residência... ...89 ..., ..., representado pela Direção, cujo Presidente é o Sr. P.e DD,

Peticionando, que lhes seja apresentado, em formato digital, os documentos referidos na alínea a) do art.º 33º da petição inicial e, em formato de papel, as credenciais e indicações referidas na alínea b) do art.º 33º da mesma peça processual – e, naturalmente, as informações e/ou documentos que, após análise daqueles elementos, se verifique ser indispensável à emissão do parecer do Conselho Fiscal sobre a aprovação das contas do exercício de 2023.

Em síntese alegaram o seguinte:
. De acordo com o Estatuto do Centro Social e Paroquial de ... (cfr. doc. 1 que se junta), esta instituição «prossegue o bem público eclesial, na sua área de intervenção, de acordo com as normas da Igreja Católica e tem como fins a promoção da caridade cristã, da cultura, educação e a integração comunitária e social, na perspetiva dos valores do Evangelho, de todos os habitantes da comunidade onde está situado, especialmente os mais pobres (artigo 3º, nº 1); e os seus órgãos gerentes são a Direção e o Conselho Fiscal (artigo 8.º, n.º 1);
. Por provisão de 01 de junho de 2022 (registo nº ...70), foram aprovados os órgãos sociais do Centro Social e Paroquial de ..., para o quadriénio 2022-2026 (cfr. doc. 2 que se junta), que ficaram assim constituídos:
Direção
Presidente - Padre Dr EE;
Vice-Presidente - FF;
Secretário - GG;
Tesoureiro - HH;
Vogal - II;
Conselho Fiscal
Presidente – AA;
Secretário – BB;
Vogal – CC,
(estes últimos, membros do Conselho Fiscal, são os aqui Autores/Requerentes);
. O Conselho Fiscal, na reunião do dia 28/09/2022, mostrou-se apreensivo e preocupado com a situação financeira do Centro Social e Paroquial de ... e fez recomendações para redução da despesa e para aumento da receita; na reunião do dia 04/03/2023 reiterou «a sua apreensão e preocupação sobre a situação financeira da instituição ao longo do tempo» e verificou existirem «algumas dificuldades na obtenção de informação e documentação sobre a atividade da instituição e na reunião de 26/04/2023 considerou «que as contas de 2022 da instituição corroboram a apreensão e preocupação verificadas ao longo do tempo por este órgão. Neste sentido, seria importante a disponibilização de mais informação para uma melhor análise da situação real da instituição, de modo que este parecer possa ser melhor fundamentado no futuro» (cfr. doc.s 3 a 5 juntos);
. E esta falta de informação por parte da Direção do Centro Social e Paroquial de ... ... – que é o órgão a quem compete «elaborar anualmente e submeter ao parecer do órgão de fiscalização, o relatório e contas da gerência, bem como o respetivo orçamento e programa de ação para o ano seguinte e remeter tais documentos ao Ordinário do lugar»; «assegurar a organização e funcionamento dos serviços e equipamentos, nomeadamente promovendo a organização e elaboração da contabilidade, nos termos da lei»; «zelar pelo cumprimento das leis, do estatuto e das deliberações dos órgãos do Centro»; «gerir o património do Centro, nos termos da lei»; «fornecer ao Conselho Fiscal os elementos que este lhe solicitar para cumprimento das suas atribuições» (artigo 19.º, nº 1 alíneas b), c), f), g) e q) do Estatuto do Centro), torna impossível ao Conselho Fiscal do Centro Social e Paroquial de ... ... – que é o órgão a quem compete «o controlo e fiscalização do Centro, podendo nesse âmbito, efetuar à Direção as recomendações que entende adequadas com vista ao cumprimento da lei, do Estatuto e dos regulamentos e, designadamente, exercer a fiscalização sobre a escrituração e demais documentos do Centro, sempre que julga necessário e conveniente; dar parecer sobre o relatório e contas do exercício bem como sobre o programa de ação e orçamento para o ano seguinte; dar parecer sobre quaisquer assuntos que a Direção submeta à sua apreciação; vigiar pelo cumprimento da lei, do Estatuto e dos regulamentos; dar parecer quanto à aquisição, administração e alienação dos bens eclesiásticos do Centro» (artigo 26.º n.º 1 do Estatuto do Centro) exercer adequadamente as suas funções, de acordo com o Estatuto do Centro Social e Paroquial de ..., com a lei canónica e civil.
Na contestação apresentada desde logo foi invocada a exceção de ilegitimidade dos AA, em síntese, nos seguintes termos:
. Como referem os AA. no artigo 25º da sua douta petição, o Sr. Bispo ..., por Decreto de 30/11/2023, procedeu à remoção dos órgãos sociais do Centro Social e Paroquial de ..., aqui Ré.
. E, por provisão de 06/12/2023, nomeou os seguintes:
Direção
Presidente – JJ
Vice – Presidente – FF
Secretário – GG
Tesoureiro – HH
Vogal – II
Conselho Fiscal
Presidente – KK
Secretário – LL
Vogal – MM

- cfr. documento n.º 1 junto, com a contestação.
Mais se referiu que a remoção de todos os órgãos sociais da Ré teve por fundamento:
a) O pedido de demissão do anterior presidente da direção, em 17/11/2023, por razões de saúde;
b) Gravíssimas perturbações no funcionamento da Instituição por parte dos anteriores elementos do Conselho Fiscal, aqui AA.
c) Ataques pessoais dirigidos pelos membros do Conselho Fiscal ou de algum deles ao anterior presidente da direção. cfr. e doc. 18 junto pelos AA.

Face ao exposto, havia que nomear novas pessoas para presidente da direção e para o conselho fiscal.
Mais informaram que a nova direção e atual conselho fiscal tomaram posse no dia 06/12/2023, conforme ATA n.º ...23, que juntaram como documentos n.º 2 e 3 da contestação.
Entretanto, o tesoureiro da direção, HH, pediu a sua demissão e, em sua substituição, foi nomeado pelo Sr. Bispo da Diocese ..., por provisão de 04/01/2024 (provisão nº 1672), II - cfr. documento nº4 junto com a contestação.
Assim, desde o dia ../../2023 os AA. não desempenham qualquer cargo no Centro Paroquial e Social de ..., pois desde essa data que deixaram de pertencer aos órgãos sociais daquela instituição, ou seja, deixaram de ser membros do conselho fiscal.
Mais foi possível apurar, de acordo com o documento nº5 junto com a contestação, que os AA., no dia 15/12/2023, requereram ao Sr. Bispo ... a revogação do decreto de remoção dos órgãos sociais do Centro Social e Paroquial de ..., como referem no artigo 27º da sua douta petição. E que esse pedido obedeceu ao previsto no Cân. 1734, § 1º do Código de Direito Canónico que prescreve:
Antes de alguém interpor recurso, deve pedir por escrito ao próprio autor a revogação ou a reforma do decreto; apresentado tal pedido, entende-se que pelo mesmo facto também foi solicitada a suspensão da execução. Contudo, o Sr. Bispo ... por decreto de 18/12/2023, decidiu não suspender a execução do decreto de 30/11/2023.
Pelo que, pelo mesmo decreto não aceitou a revogação do decreto que removeu os órgãos sociais (documento nº5 menionado). Dele os AA. interpuseram recurso, que corre termos no Dicastério para os Laicos, Família e Vida, como é indicado no artigo 28º da douta petição, mas ao invés do que alegam os AA. no artigo 29º da sua douta petição, tal recurso não tem efeito suspensivo. Pois, dispõe o Cân. 1736, § 1º e 2º citado pelos AA. no indicado artigo 29º que:
§ 1º - Nas matérias em que o recurso hierárquico suspender a execução do decreto, tem igual efeito a petição referida no Cân. 1734.
§ 2º - Nos outros casos, a não ser que, dentro de dez dias contados desde que a petição referida no Cân. 1734 chegou às mãos do autor do decreto, este tenha decidido suspender a execução do mesmo, pode interinamente pedir-se a suspensão ao seu superior hierárquico, que somente tem a faculdade de a conceder por causas graves e tendo sempre o cuidado de que não sofra detrimento algum o bem das almas.
Pelo exposto conclui que o recurso hierárquico não suspendeu a execução do decreto.
Nestas circunstancia invoca a Ré que os A.A. não são membros do conselho fiscal, razão pela qual da procedência da presente ação não advém qualquer utilidade para os mesmos, pelo que estes não têm interesse direto em demandar – cfr. artigo 30º, n.º 1 e 2 do CC. Ou seja, carecem de legitimidade.”
Ouvidos acerca da suscitada ilegitimidade, vieram os AA. dizer o seguinte, neste particular ( além de terem suscitado a nulidade do despacho anterior-datado de 10-05-2022- e que ordenou o desentranhamento do seu requerimento anterior datado de 22-04-2024): “ por entenderem que o acto praticado pelo Sr. Bispo ... enferma de NULIDADE, os Autores interpuseram recurso hierárquico para o Dicastério para os Laicos, Família e Vida, no Vaticano, como a Ré reconhece. E, no dia 21/05/2024, interpuseram recurso contencioso administrativo para o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, também no Vaticano (cfr. doc. 1 que se junta).
O recurso do acto administrativo praticado por S. Exa. Revma., o Sr. Bispo ... tem efeitos suspensivos e nem o Dicastério Romano nem o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica decidiram o contrário (cân. 1736 do CIC), o que significa que os aqui Autores se mantêm nas funções, respetivamente de Presidente, Secretário e Vogal do Conselho Fiscal do Réu até ../../2026 (fim do mandato de quatro anos em que foram empossados no dia 05/06/2022 – cfr. doc. 2 junto com a p.i.).
Concluem os AA que são parte legítima neste processo seja porque têm interesse direto em demandar; seja porque são sujeitos da relação controvertida, tal como eles a configuram; seja porque existe uma relação directa entre eles, como partes e o objecto deste processo.”
*
Após foi proferido despacho que decidiu o seguinte:
 “  Nestes termos, julga-se verificada a correspondente exceção dilatória de ilegitimidade, no caso processual e substancial, razão pela qual se absolve a Ré da instância (cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil).
Notifique.
Registe.
Custas pelos AA.
Valor: €5.000,01 (cinco mil euros e um cêntimo)”.
*
Os AA vieram recorrer desta decisão e terminaram o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

Os Recorrentes, em 23/05/2024 (Refª ...33), vieram invocar a NULIDADE do D. Despacho de 10/05/2023 (Refª ...74) que ordenou o desentranhamento do requerimento em que os Autores se pronunciam sobre os documentos entregues pela Ré, em manifesta violação do princípio do contraditório.

Tendo em conta que, por um lado, se tratam de factos relevantes que constam do processo e os Autores procuraram exercer o direito ao contraditório e invocaram a nulidade do despacho que o impediu e, por outro lado, a decisão recorrida não se pronunciou a esse respeito, esta padece do vício de omissão de pronúncia, e é, por conseguinte, NULA.

A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa, como são as questões que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

A nulidade da sentença a que se alude na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do Cód. de Processo Civil está diretamente relacionada com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, pretendendo-se sancionar, em respeito pelo princípio do pedido e do impulso processual associado ao princípio da contradição, a violação do disposto no art.º 608.º n.º 2 do CPC. Também a previsão da alínea e) do n.º 1 do mesmo normativo se assume como uma decorrência necessária do princípio do pedido, bem como do princípio do dispositivo, na vertente da conformação da sentença, visando-se assim assegurar uma conformidade quantitativa e qualitativa entre aquilo que é pedido pelas partes e aquilo que é decidido pelo tribunal.

No dia 22/04/2024 (Refª ...29) vieram os Autores, exercer o contraditório quanto aos documentos juntos pela Ré, na sua contestação. No entanto, por D. Despacho de 10/05/2024 (Refª ...74) foi ordenado o desentranhamento de tal requerimento em virtude de, segundo o D. Tribunal, o mesmo não ter «cabimento na tramitação processual desta acção».

Como as normas processuais relativas ao processo de apresentação de coisas ou documentos, não contêm quaisquer disposição sobre a impossibilidade de resposta, por uma parte, aos documentos apresentados pela outra parte, há que aplicar o regime geral – quando uma parte junta um documento com o último articulado ou depois dele, a sua apresentação é sempre notificada à parte contrária, para sobre ele se pronunciar, querendo.

Este regime, imposto pelo art.º 415.º do Cód. Processo Civil, visa realizar o princípio do contraditório (que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo – e está em consonância com o princípio da igualdade das partes (que, igualmente, o tribunal tem o dever de assegurar, ao longo de todo o processo).

Ao mandar desentranhar do processo o articulado dos Recorrentes, o Tribunal a quo obstou à prática, pela parte, de um acto que a lei prescreve – o exercício do contraditório relativamente aos documentos apresentados pela contraparte – e que, naturalmente, pode influir no exame ou na decisão da causa e cometeu uma NULIDADE.
9ª Tendo em conta que
 i) os Requerentes foram nomeados membros do Conselho Fiscal do Centro Social e Paroquial de ..., para o quadriénio 2022-2026 – mais concretamente até ../../2026 –, por provisão de 01/06/2022 (registo nº ...70), Sr. Bispo ...;
ii) este Centro, conforme os respectivos estatutos, «é uma pessoa jurídica canónica de natureza pública», erecta canonicamente por decreto do Bispo da Diocese ... e «sob a sua vigilância e tutela», sujeita «à legislação canónica universal e particular»;
quando a autoridade eclesiástica, por Decreto de 30/11/2023, procedeu à remoção dos órgãos sociais do referido Centro, os Recorrentes reagiram, nos termos da legislação canónica, a este acto: pediram, ao respectivo autor, que o revogasse e, como este não o fez, por entenderem que o acto praticado pelo Sr. Bispo ... enferma de NULIDADE, interpuseram recurso hierárquico para o Dicastério para os Leigos, Família e Vida, no Vaticano e, no dia 21/05/2024, interpuseram recurso contencioso administrativo para o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, também no Vaticano.
10ª
Como, nos termos do direito canónico (legislação por que se rege a pessoa colectiva religisosa designada Centro Social e Paroquial de ...),
i) o acto administrativo NULO, por contrário a uma lei (como sucede com o Decreto do Sr. Bispo ...), carece de eficácia (cân. 38 do CIC), isto é o acto nulo não produz quaisquer efeitos e, consequentemente, ele não vincula ninguém, mesmo antes de ter sido declarado como tal pelo tribunal;
ii) os aqui Recorrentes se mantêm nas funções, respetivamente de Presidente, Secretário e Vogal do Conselho Fiscal do Centro Social e Paroquial Recorrido até ao dia ../../2026 ou até o Tribunal Superior da Igreja decidir que o acto praticado pelo Sr. Bispo ... em 30/11/2023 não enferma de nulidade;
iii) e, enquanto membros do Conselho Fiscal do Centro Social e Paroquial de ..., os ora Recorrentes vieram intentar o presente processo pois àquele órgão compete, designadamente, «exercer a fiscalização sobre a escrituração e demais documentos do Centro» e «dar parecer sobre o relatório e contas do exercício bem como sobre o programa de ação e orçamento para o ano seguinte», o que só é possível fazer com os documentos, informações e credenciais solicitados.
11ª
Os Autores/Recorrentes são parte legítima neste processo pois são sujeitos da relação controvertida, tal como eles a configuram. Mas também por terem interesse direto em demandar e por existir uma relação directa entre eles, como partes e o objecto deste processo.
12ª
A legitimidade processual afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, na petição inicial, e é nestes termos que tem de ser apreciada. Já a legitimidade substancial ou substantiva respeita à efetividade da relação material. Prende-se com o concreto pedido e a causa de pedir que o fundamenta e, por isso, com o mérito da causa, sendo requisito da procedência do pedido.
13ª
A Sentença impugnada viola o disposto nos artigos art.ºs 3.º (em particular o n.º 3 desta disposição), 4.º, 30.º, 415.º, 427.º, 608.º, nº 2, 609.º, nº 1 e 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), todos do Cód. Processo Civil.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO APLICÁVEIS e em conformidade com as razões expostas, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:

A) DECLARAR-SE A NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, por violação dos art.ºs 608.º, nº 2 e 615.º, nº 1, alínea d) e e) do CÓD. PROCESSO CIVIL e sempre,
B) REVOGAR-SE A D. SENTENÇA RECORRIDA, nos termos e nos aspectos indicados neste recurso..”
*
Foram apresentadas contra-alegações e, em síntese, pugnou-se pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:

A) – Saber se se verifica a legitimidade do lado ativo, como questão prévia que importa conhecer e, em caso afirmativo;
B) Se a decisão é nula por omissão de pronuncia quanto à nulidade invocada do despacho de 10-05-2023 e que a decisão recorrida nada analisou, despacho esse que ordenou o desentranhamento do requerimento em que os Autores se pronunciam sobre os documentos juntos pela Ré na contestação, em manifesta violação do princípio do contraditório.

III- Fundamentação de Facto

Já foram descritos os factos processuais relevantes para a decisão deste recurso.

- IV- Fundamentação de Direito

A- Da legitimidade dos requerentes:

Propugnam os recorrentes pela sua legitimidade (ativa) para a causa, argumentando que apesar de terem sido removidos do cargo de órgãos do conselho fiscal da ré, por decreto do Bispo ..., recorreram de tal despacho hierarquicamente e administrativamente, e para além dos efeitos suspensivos do recurso, sendo ato nulo nunca produziu os seus efeitos, logo mantêm-se em funções e, nessa medida, são sujeitos da relação controvertida, tal como eles a configuraram e têm interesse em demandar por existir uma relação direta entre eles como partes e o objeto do processo.
O Réu contra-alegou argumentando que, por um lado, não tem o recurso interposto efeito suspensivo e, por outro lado, não têm os recorrentes qualquer interesse para a presente demanda porquanto não desempenham qualquer cargo no réu, sendo certo que inclusive já foi proferida decisão de rejeição do recurso hierárquico, pelo que a decisão que removeu os órgãos sociais em 30.11.2023 mantém-se, não tendo, assim, qualquer interesse direto em demandar, porquanto os AA não têm qualquer beneficio direto na obtenção dos documentos cujo pedido foi formulado pois não exerciam qualquer função aquando da proposição da ação nem continuam a exercer.

Vejamos.

Como bem se distingue na sentença recorrida, uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância, cfr. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil.
Outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa.
A aferição da legitimidade processual deverá ser achada de acordo com as regras gerais do art.30º do C. P. Civil, que prescreve: «1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.».
Distingue-se, assim, legitimidade das condições da ação.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, respeita às condições impostas ao exercício de uma situação subjetiva em juízo e as condições da ação referem-se aos aspetos dos quais depende a obtenção da tutela jurisdicional requerida (cfr. Ac. do STJ de 4-2-97, BMJ 464 - 545).
No ensinamento de Antunes Varela, "uma coisa é saber se as partes são sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista. Outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objeto e a sua perduração.
A primeira indagação interessa à legitimidade das partes; a segunda à procedência da ação."(in Manual, 2ª ed., pág. 134).
Em conclusão, à legitimidade, tal como hoje a lei adjetiva a concebe, interessa saber quem são os sujeitos da relação material controvertida, tal como o A. a configura, pertencendo ao mérito da causa saber se essa relação existe ou não existe.
“ Assim avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar diretamente do efeito jurídico pretendido… a exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica” ( in CPC Anotado, de G.P.S., p. 63, 2ªed.).
Em suma: a legitimidade processual do autor, assente no interesse direto em demandar, emergente da utilidade derivada da procedência da ação, é um pressuposto processual que o autor deve cumprir no momento da apresentação da petição inicial. Por outro lado, trata-se de um requisito que permite dar expressão ao princípio da igualdade das partes, e que cumpre a função de “assegurar que são partes processuais os sujeitos a que se destinam os efeitos materiais da sentença” ( Rui Pinto, Notas ao Código do Processo Civil, Vol. I (2ª ed), pág.64.)
Numa interessante abordagem, julgou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015 ( relator: Helder Roque, in dgsi) que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objecto da acção, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objecto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.
Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas acções que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da acção, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da acção ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva.”.

Articuladas sumariamente estas noções, passemos ao caso concreto dos autos.

Com a presente ação de jurisdição voluntária para entrega de documentos pretendem os requerentes a entrega de documentos da ré e referidos na al. a) do art. 33º da p.i. e as informações/documentos que, após análise se verifique indispensável à emissão do parecer do Conselho Fiscal sobre a aprovação das contas de 2023.
Conforme é alegado na p.i., para tanto, tal direito advém-lhes da manutenção da qualidade de serem órgãos do conselho fiscal da ré, embora tal manutenção da nomeação não esteja ainda reconhecida e estará dependente das decisões de recurso hierárquico e administrativo que foram intentados junto do Vaticano a respeito do despacho/decreto do Sr. Bispo ... que os removeu de tal cargo em 30.11.2023 e do decreto/despacho de 18-12-2023 que “não aceitou a revogação do decreto de remoção dos órgãos sociais da ré e que decidiu não suspender a execução do decreto de 30-11-2023 segundo a norma do canon 1736§2”.
Ora, numa ação em que se pretende a entrega de documentos tem legitimidade ativa quem se arroga a titularidade de um interesse jurídico atendível, nos termos do art. 575º do CC, ou seja, implica que o requerente pretende retirar do exame do documento “ prova de uma circunstância que diga respeito a uma relação jurídica que o afecte” ( Vaz Serra, 1958, p. 235) e traduz, segundo Menezes Cordeiro, 2009, p. 642, “ uma situação que, a não ser tutelada, envolva um dano ilícito”, ambos citados in Comentário ao CC, UCP, p.590).
No caso vertente, os próprios Autores invocam que foram removidos do cargo por despacho do sr. Bispo e que interpuseram recurso hierárquico e administrativo, recurso esse que afirmam tem efeitos suspensivos, então manter-se-iam em funções e as contas de 2023 têm de ser aprovadas nos primeiros quatro meses de 2024, daí a necessidade da ré lhes fornecer os documentos e informações indispensáveis para a emissão do dito parecer.
Na sentença defendeu-se que “ considera-se que os AA não tem legitimidade para os termos da presente acção, independentemente dos recursos interposto, pois no momento em que iniciam a presente acção não exercem qualquer função no conselho fiscal da Ré, ou seja, nem representam qualquer órgão da Ré. Nem sequer se atendendo à natureza das finalidade prosseguidas pela Ré.”.
No entanto, visto que os Autores se arrogam titulares do direito e dele beneficiários por entenderem ainda encontrarem-se em funções por o recurso do despacho que os removeu ter efeitos suspensivos, entendemos que verificar se os mesmos existem ou não, se o podem ou não provar, é já uma questão de mérito.
Dito de outro modo: atenta a alegação aduzida, os AA têm legitimidade processual, porquanto alegaram ser titulares do direito e dele beneficiários por encontrarem-se em funções, pois o recurso do despacho que os removeu tem efeitos suspensivos; agora verificar se os mesmos existem ou não, se o podem ou não provar, é já uma questão de mérito e que contende com a legitimidade substantiva.
Enfim, entendemos que os autores invocaram a manutenção das funções no órgão fiscal da ré e que não se mostra reconhecido, mais a mais já existe, entretanto, decisão de rejeição ( por extemporâneo) pelo Vaticano daquele recurso hierárquico, o que tornaria de qualquer modo sempre caduco qualquer efeito suspensivo que houvesse ( cfr. canon 1736§4)  e que, por isso, legalmente não têm reconhecida a qualidade de órgãos do conselho fiscal da ré, pelo que não são titulares da relação jurídica que invocam ou não demonstraram ter interesse juridicamente atendível. Tal determinaria a absolvição do pedido, por se verificar ilegitimidade substantiva.
No entanto, nesta sede esta nunca poderia ser declarada, sob pena de se prejudicar os Recorrentes.
A proibição da reformatio in pejus impede que a decisão do recurso (ou a decisão que nele tenha origem, caso este anule a decisão recorrida) seja mais desfavorável ao recorrente que a decisão impugnada, não permitindo que os Recorrentes possam obter um resultado contrário ao pretendido, beneficiando-se a parte que se conformou com a decisão.
A este propósito e quanto a um caso semelhante, lê-se no AC deste TRG de 13-07-2021 ( relatora: Sandra Melo) o seguinte: “ Por um lado, tal funda-se na ideia de que o tribunal não pode ir além do que foi peticionado, à necessidade de não desincentivar as partes a defenderem os seus direitos, por medo de saírem prejudicadas, conjugado com os princípios do caso julgado (embora se corra o risco de fomentar a interposição temerária de recursos).
A esta figura se reporta o artigo 635º nº 5 do Código de Processo Civil, que dispõe: “os efeitos do julgado, na parte recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, nem pela anulação do processo”, conjugado com os limites do caso julgado. Tem sido afirmado que esta condicionante à decisão do recurso tem como causa o facto de no nosso direito o recurso ter como objeto a reapreciação da decisão recorrida (na parte impugnada) e não um novo julgamento da causa.”.
Esta limitação é aliás, muito clara nestes autos, visto que o réu, afirmando que se verificava uma exceção dilatória, sem prescindir pediu a sua absolvição do pedido; apesar de só ter sido absolvido da instância, conformou-se com simples decisão de forma, conforme contra-alegações.
Com efeito, como se lê no citado acórdão “a propositura de uma ação por quem não tem legitimidade para formular pedidos que pretende ver reconhecidos, uma vez que a ilegitimidade é uma exceção dilatória, determina a absolvição do réu da instância, extinguindo-se o processo sem a decisão do juiz sobre o mérito da causa, e esta não adquire a força de coisa julgada material, mas apenas de coisa julgada formal, apenas vinculativo dentro daquele processo, o que não impede a propositura de novas ações com o mesmo objeto. O oposto ocorre com a absolvição do pedido, que faz caso julgado material e por isso é mais gravoso para o Autor.”.
Dúvidas não há, pois, que o pedido formulado nos presentes autos de apresentação de documentos/informações não poderia proceder se ou enquanto não se alterar a situação da remoção dos AA das funções que exerciam no órgão do conselho fiscal da ré, baseando-se os AA numa qualidade de manutenção de funções naquele órgão e que não podem demonstrar.
Por tudo o exposto, nem o recurso, nem a ação podem proceder.
Atenta a presente decisão, torna-se inútil a apreciação da invocada nulidade da decisão por omissão de pronuncia ( neste sentido vide Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo CPC”, p. 472).

V. Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos AA/recorrentes.
Notifique.
Guimarães,14 de novembro de 2024

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Paula Ribas e
Fernanda Proença Fernandes