OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
CASO JULGADO FORMAL
QUESTÃO NOVA
ACÇÃO POSSESSÓRIA
Sumário


I - A nulidade da sentença quando o Tribunal condene em objeto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio dispositivo que atribui às partes, a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
II - A ineptidão da petição inicial gera a nulidade do processado e deve ser oficiosamente conhecida no despacho saneador, se não o foi em momento anterior, e se não houver despacho saneador, pode ser conhecida até à sentença final (artigo 200º n.º 2 do CPC).
III - A decisão, em sede de despacho saneador, sobre tal matéria, forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico sobre a mesma, não formando caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico.
IV – Mesmo no caso de ter ocorrido um pronunciamento genérico no despacho saneador, não se tendo formado caso julgado formal, fica dessa forma precludida a possibilidade de conhecimento da ineptidão da petição inicial, não podendo tal questão ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.
V - Nas ações possessórias a causa de pedir é constituída pelo ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para alegar que a posse lhe pertence e pelo facto lesivo dessa posse.
VI - Para que seja de qualificar a ação de possessória basta que o possuidor, perturbado ou esbulhado, alegue que se achava na posse do prédio e que o réu a perturbou ou esbulhou, não tendo, ao lançar mão de ação possessória, de pedir o reconhecimento do direito real violado.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

AA, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher, DD, formulando os seguintes pedidos:

a) condenarem-se os Réus a reconhecerem a Autora como cabeça de casal de casal e administradora da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do marido da Autora BB, falecido em ../../2012, e, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição, com a área, configuração e limites aí identificados e na planta junta como doc. 8;
b) condenarem-se os Réus a restituírem a posse à Autora, como cabeça de casal de casal e administradora da herança, do prédio identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição, com a área, configuração e limites aí identificados e na planta junta como doc. 8; c) condenarem-se os Réus a retirarem, à sua custa, os muros, as guias e o portão identificados nos artigos 22.º, 36º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 46.º e 47.º da petição;  
d) condenarem-se os Réus a não praticarem quaisquer atos perturbadores dessa mesma posse da Autora, respeitando os limites do prédio da herança identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição e no doc. 8 junto, abstendo-se de o invadirem e/ou nele praticar quaisquer atos de turbação da posse da Autora ou obras;
e) condenarem-se os Réus a pagar à Autora a quantia de €10.000 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da sua citação, até efetivo e integral pagamento;
f) condenarem-se os Réus no pagamento das custas processuais.

Alega, em síntese, que o prédio registado na Conservatória ... com o n.º ...84/..., atualmente, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...59, fazia parte da herança de EE e foi deixado por testamento em ../../1984, a seu falecido marido, BB, com quem era casada em regime de comunhão geral de bens.
Que nesse prédio a Autora e o falecido marido construíram uma casa de habitação e uma edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaiais e instrumentos agrícolas, sendo constituído desde 1990 por casa de habitação de rés do chão e andar, vacaria e logradouro e sobre o qual praticaram atos de posse.
Que por escritura de .../.../1999, a Autora e marido doaram ao filho CC, aqui Réu, o prédio rústico denominado “Campo ...”, de lavradio, que confronta a nascente e norte com a herança de BB, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02 e descrito na Conservatória ... sob o n.º ...82/..., prédio esse cuja área, configuração e limites se encontram definidos no levantamento topográfico realizado em Janeiro de 2000 a pedido do Réu e de acordo com a Autora e seu falecido marido.
Mais alega que no dia 16 de janeiro de 2018, os Réus iniciaram a construção de um muro em blocos de cimento dentro do prédio que pertence à herança, tendo em vista a anexação dessa faixa de terreno e da vacaria ao seu prédio.
Que a Autora tomou conhecimento da situação e embargou extrajudicialmente a obra, em 16 de janeiro de 2018, embargo que os Réus desrespeitam, prosseguindo com a construção do muro e com a colocação de dois pilares em ferro, tudo dentro do prédio da herança.
Regulamente citados, os Réus contestaram+ pugnando pela improcedência da ação e sustentando que a faixa de terreno em causa e a vacaria pertencem ao seu prédio, que descrevem, alegando a aquisição do prédio por via derivada e originária e que a Autora frequenta a vacaria por mera tolerância dos Réus.

Os Réus deduzem reconvenção formulando os seguintes pedidos:

“a) Serem os RR/Reconvintes declarados como únicos donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 119º supra deste articulado, e conforme planta junta como doc. nº 8, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido;
b) Condenar-se os AA/reconvindos a reconhecer tal direito e absterem-se de praticar quaisquer atos que impeçam o normal exercício do mesmo;
c) Condenarem-se os AA/reconvindos a restituírem aos RR/reconvintes a faixa de terreno e a “vacaria”, livres e devolutas de pessoas e bens;
d) Condenarem-se os AA/reconvindos no pagamento da quantia de €10.000,00 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros, à taxa legal, a contar da sua citação até efetivo e integral pagamento;
3) Ser admitida a intervenção principal provocada, nos termos do artigo 316º e ss. Do CPC, e consequentemente serem os chamados citados para intervir nos presentes autos.
4)  Condenarem-se os AA/reconvindos no pagamento das custas do processo.

A Autora replicou impugnando os factos constantes da contestação/reconvenção.
Os Réus deduziram incidente de intervenção principal provocada dos restantes herdeiros de BB, na qualidade de Reconvindos, o que foi admitido, e, por conseguinte, foram citados FF, GG e HH.
Foi dispensada a audiência prévia, e proferido despacho saneador, identificando-se o objeto do litígio e anunciando-se os temas da prova.
Durante a realização da audiência final a Autora apresentou articulado superveniente, que foi admitido.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Pelo exposto, o Tribunal julga
- a ação parcialmente procedente e, consequentemente:
. declara-se a Autora cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, falecido em ../../2012, e que integra esta herança o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial;
. condena-se os Réus a restituírem à herança, representada pela Autora, a parte do prédio que ocuparam, retirando, às suas custas, o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados;
. absolve os RR. dos restantes pedidos formulados;
- a reconvenção parcialmente procedente e, consequentemente:
. declara-se o direito de propriedade dos RR./Reconvintes sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...82/...;
. absolve-se a A./reconvinda dos pedidos contra ela formulados.
Custas da ação pela Autora e Réus, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 10% para a Autora e 90% para os Réus (art. 527º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.
Custas da Reconvenção pelas RR./Reconvintes (art. 527º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.
Notifique e registe.
Processei e revi.”

Inconformados, apelaram os Réus da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“A. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgando a ação parcialmente procedente, declarou a Autora cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, falecido em 18 de Maio 2012, e que integra esta herança o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14m2, e a configuração e limites constantes do documento nº8 junto com a petição inicial; condenou os Réus a restituírem à herança, representada pela Autora, a parte do prédio que ocuparam, retirando, as suas custas, o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados; e absolveu os RR. dos restantes pedidos formulados; E julgou ainda, a reconvenção parcialmente procedente e, consequentemente: declarou o direito de propriedade dos RR/Reconvintes sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº ...82/...; e absolveu a A./Reconvinda dos pedidos contra ela formulados.
B. Os fundamentos da irresignação dos Recorrentes são os seguintes: nulidade insuprível da petição inicial, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, de acordo com o artigo 186º nº 2 alínea c) do CPC.; nulidade da sentença por ter decidido para além do pedido, ultra petitum, padecendo a sentença de nulidade prevista no artigo 615º nº1 al e) do CPC; erro da apreciação da prova, e consequentemente a alteração da decisão da matéria de facto provada e modificabilidade da fundamentação jurídica, prevista no artigo 607º do CPC.
C. A ação processualmente intentada não poderia ter sido tratada como uma ação de reivindicação, mas antes como uma ação de demarcação, pois como se pode constatar pela causa de pedir e pedido formulados, o que está em causa não é a posse, mas sim os limites/estremas da propriedade da A. e dos RR.
D. Recorrente e Recorridos colocam em causa não a posse da totalidade dos artigos urbanos que titulam, mas sim uma faixa de terreno e vacaria, arrogando-se ambos dos limites indefinidos pois não existem atualmente, marcos ou delimitações.
E. Face ao pedido efetuado pela Recorrente, do reconhecimento da posse do seu prédio mediante a planta junta sob doc nº 8, conclui-se que a sua real vontade era a delimitação das estremas dos prédios, e não o reconhecimento da propriedade, que não peticiona.
F. A A. efetuou pedidos, substancialmente, incompatíveis que não podem ser cumulados, o que gera a ineptidão da petição inicial, determinativa da nulidade de todo o processo; e nesse sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo nº 75/15.8T8TMG.G1, de 05.04.2018, publicado em www.dgsi.pt.
G. A ineptidão da petição inicial com fundamento em incompatibilidade substancial de pedido ocorre quando, em cumulação real são formulados pedidos cujos efeitos jurídicos mutuamente se repelem e desde que tal incompatibilidade derive de razões substanciais e não de mero desrespeito das regras processuais de cumulação de pedidos vertidas no art. 555º, n.º 1, conjugado com o art. 37º, n.º 1, ambos do CPC , ou dito por outras palavras, são incompatíveis os pedidos que mutuamente se excluem ou que assentem em causas de pedir inconciliáveis, devendo esta incompatibilidade reportar-se exclusivamente aos pedidos e fundamentos invocados pelo autor e de modo nenhum ao enquadramento ou qualificação verdadeira dos factos segundo a lei.
H. A ação de demarcação tem por finalidade e, consequentemente, o seu pedido, é a necessidade de fixação das estremas, isto é, da linha divisória entre os prédios confinantes, cuja linha divisória é incerta ou tornou-se duvidosa. Diferentemente, a ação de reivindicação e tem por finalidade,  e esta corresponderá, consequentemente, ao respetivo pedido, o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.
I. Na ação de reivindicação e ação de demarcação não existe identidade de causa de pedir e pedidos. A causa de pedir na ação de reivindicação é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (móvel ou imóvel) reivindicada e a lesão desse seu direito de propriedade pelo demandado (possuidor ou detentor da mesma). Já na ação de demarcação, a causa de pedir é a existência de dois prédios confinantes, propriedade de dois proprietários distintos e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios.
J. Não obstante, nem sempre ser fácil distinguir a ação de reivindicação da de demarcação, com o conteúdo que a lei civil nacional lhe atribuiu, onde, em ambas acaba, na verdade, por se discutir a questão do domínio sobre uma faixa de terreno, tem-se entendido que essa distinção passa por divisar se na concreta ação instaurada, tal como vem delineada pelo autor e atentos os pedidos que deduz, se está perante um conflito acerca do título ou um conflito de prédios.
K. Na ação de demarcação não se discute, assim, os títulos de aquisição dos prédios confinantes, mas quando muito a relevância desses títulos em relação aos prédios. Não se trata, pois, de um conflito entre títulos de aquisição, mas antes de um conflito de prédios – onde acaba um e se inicia o outro - e na possibilidade do proprietário de um prédio confinante, perante a indefinição das estremas dos prédios, obrigar o proprietário do outro prédio confinante a concorrer para a demarcação das estremas entre ambos os prédios (art. 1353º do CC).
L. Os pedidos formulados pela Recorrida, são aparentemente os típicos pedidos de uma ação de reivindicação, mas que encapotam o pedido de uma ação de demarcação, na medida em que o pretende com base na planta que junta como documento nº 8 por si elaborada.
M. O pedido da alínea b) integra em si mesmo a cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis entre si, pois a restituição da posse (com o reconhecimento da propriedade implícito no pedido de restituição) é característico da ação de reivindicação, mas o facto de pedir com base numa determinada área, configuração e limites, demarcando os prédios em causa, consubstancia um típico pedido da ação de demarcação.
N. Estes pedidos (reivindicação e demarcação) são intrínseca e substancialmente incompatíveis entre si, na medida em que um (reivindicação) pressupõe, que a discussão incida sobre o título de aquisição da Recorrida sobre esse prédio - o seu direito de propriedade, integra a causa de pedir na ação de reivindicação, pelo que o thema probandum e decidendum vai incidir, necessariamente, sobre os factos que a mesma alega com vista à demonstração da aquisição desse seu direito de propriedade sobre aquele prédio (e parcela de terreno que reivindica e que alega fazer parte integrante daquele), por via do funcionamento do instituto da usucapião (matéria que alega nos arts. 14º e 15º da p.i.) -, enquanto o outro (demarcação) pressupõe um título de aquisição de propriedade que se afirma indiscutido entre as partes, pelo que o direito de propriedade da Recorrida e Recorrentes sobre os respetivos prédios não integra a causa de pedir da ação, não indo o thema probandum e decidendum incidir sobre esses títulos de aquisição, mas apenas sobre a relevância deles em relação aos prédios, designadamente, tratando-se de usucapião, vai-se discutir a extensão do prédio possuído pela Autora, designadamente, se a extensão da posse exercida pela Autora se estende à totalidade da faixa de terreno a demarcar ou apenas a parte dela, por existir um pretenso estado de incerteza sobre essa extensão.
O. Quanto aos pedidos típicos da reivindicação, não há da parte da Recorrida qualquer estado de incerteza e daí que ela peça que se declare a mesma como legítima possuidora, e se condene os RR/Recorrentes a restituir-lhe a totalidade do prédio, nomeadamente a faixa de terreno e a vacaria; contraditoriamente, com esses pedidos, ao formular o pedido com base na planta junta como documento nº 8 da p.i. – peticionando que seja declarado que o prédio da herança tem aquela área, configuração e limites, a Recorrida alega um estado de incerteza do título sobre aquele prédio, mais concretamente, sobre a parcela de terreno e vacaria.
P. Os pedidos formulados pela Recorrida, são intrínseca e substancialmente incompatíveis, na medida em que excluem-se mutuamente, e embora, como dito, assentem em causas de pedir distintas entre si, essas causas de pedir são distintas e são inconciliáveis, o que gera a ineptidão da petição inicial, com a consequente anulação de todo o processado (arts. 186º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC).
Q. A petição inicial padece do vício da ineptidão por cumulação de pedidos substantivamente incompatíveis, que a fulmina de nulidade insuprível (art. 186º, n.º 4 do CPC).
R. Por outro lado, e sem conceder, o Douto Tribunal “a quo” não poderia ter decidido como decidiu, pois ao atentarmos no pedido efetuado pela Recorrida, facilmente se constata que a mesma peticiona um reconhecimento da sua qualidade de cabeça de casal, e enquanto tal, seja reconhecida “legitima possuidora” do prédio identificado nos artigos 2 a 11 da petição inicial, com a área e limites ai referidos, a que corresponde a planta junta como documento nº 8, ou seja, a Recorrida não reivindica a propriedade mas apenas a posse sobre tal prédio.
S. Com o reconhecimento da propriedade, pelo douto Tribunal “a quo”, da Recorrida em relação ao prédio com os limites e configuração que a mesma indicou na planta junta como documento nº 8, houve pronuncia ultra petitum já que a Recorrida pediu apenas o seu reconhecimento enquanto legítima possuidora, para além de que atribui à mesma a propriedade de um caminho, que tem natureza pública; extravasando a questão da titularidade da vacaria e da parcela de terreno.
T. A recondução da causa a uma ação de defesa do direito de propriedade, mormente a ação de revindicação, prevista no artigo 1311º do Código Civil, apenas poderia incidir sobre a parcela de terreno e a vacaria por ambos reivindicadas.
U. Os dois pedidos que integram e caracterizam a reivindicação são o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no n º 1, se preenche o esquema da ação de reivindicação.
V. A Recorrida não pediu o reconhecimento de propriedade do prédio que diz ser titular, o prédio identificado nos     artigos 2.º a 11.º da petição, com a área, configuração e limites aí identificados e na planta junta como doc. 8; ou tão pouco da “vacaria” e do trato de terreno em frente á mesma, que se encontra em litigio; pelo que sem a formulação deste pedido que é obrigatório, condição “sine qua non” não podia o Douto Tribunal Recorrido julgar a ação procedente e condenar os Recorrentes nos termos em que condenou.
W. Pelo que, o douto Tribunal “a quo” decidiu em objeto diverso do pedido e para além do pedido “ultra petitium”, infringindo a regra estabelecida no nº1 do artigo 609 do CPC, pelo que padece a sentença da nulidade prevista no artigo 615º nº1 alínea e) do CPC.
X. No que à impugnação da matéria de facto diz respeito, prescreve o nº 4 do artigo 607º do CPC, que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.
Y. Acresce ainda que o nº 5 do mesmo artigo prescreve que: “o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Z. A sentença ora em crise, contem divergências, contradições e imperfeições.
AA. Considera o Douto Tribunal “a quo”, que “a A. fez prova dos atos de posse que alegou, (no prédio com inclusão da área da vacaria e do terreno de fronte da mesma), e pelo período de tempo relevante, pelo que se provou ainda a aquisição originária do mesmo prédio através da usucapião.”
BB.No que à posse diz respeito, ficou apenas provado que: (…)
B) Da herança do falecido EE fazia parte o prédio rústico denominado “...”, de cultura e ramada, sito no lugar..., atualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., devidamente delimitado, e que agora confronta do sul com os RR., do nascente com II e com os RR., do Norte com JJ e KK e do poente com JJ e LL, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/....
E) A A. e o seu falecido marido construíram e mantiveram no prédio rústico referido, na parte sul/poente do mesmo, uma edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas, denominada por A. e RR. como a “vacaria”.
F) A A. e o seu falecido marido construíram no prédio rústico identificado uma casa de habitação de r/c e andar, com a área de 137m2, que passou a ser a casa de morada de família de ambos,
G) passando o referido prédio rústico a estar inscrito na matriz predial urbana, desde 1990, sob o artigo ...59 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., como casa de habitação de r/c e andar e logradouro.
H) A A. e o seu falecido marido sempre utilizaram, limparam, conservaram e cultivaram, bem como plantaram nesse prédio videiras e outras plantas, construíram muros de suporte de terreno e alguns muros de vedação, sendo que a A. sempre o fez até esta data.
I) O que vinham fazendo desde o ano de 1990. (…)
T) A A. guarda na vacaria bens que lhe pertencem e bens que pertencem à herança, nomeadamente alfaias e utensílios agrícolas, animais e alimento para os mesmos, cujo acesso a pé e de veículo é feito por aquele local.
CC. A Recorrida não logrou provar ou demonstrar a existência, nem de atos possessórios nem a aquisição de qualquer direito sobre a vacaria e a parcela de terreno em causa.
DD. O prédio rustico mencionado no ponto B, onde foi dado como provado (H e I) que a Recorrida sempre utilizou, limpou, conservou e cultivou, bem como plantou videiras e outras plantas, construíram muros de suporte de terreno e alguns muros de vedação, é o prédio que fazia parte da herança de EE de quem o falecido marido da cabeça de casal foi instituído como único herdeiro, que tinha a área de 3000m2, e no qual a cabeça de casal e o seu falecido marido construíram na parte sul/poente do mesmo uma edificação destinada a aguardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas e a casa morada de família.
EE. Tal edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas (a que a Recorrida se refere no artigo seis da sua petição inicial e que foi dado como provado na alínea E) da matéria de facto), não é a vacaria que se encontra em discussão nos presente autos, mas antes um anexo que foi construído a norte, neste terreno da herança, ainda antes da construção da casa morada de família.
FF. Há contradição entre os factos dados como provado no ponto B, F e G, onde deu como provado que a área do prédio é de 3000m2 de acordo com a descrição, com o ponto JJ, onde determina que a área do referido prédio da herança também é de 1501,14m2.
GG. Os factos H e I, dados como provados dizem respeito á propriedade do prédio da herança, que não está aqui em discussão, mas ao prédio rústico herdado, com outra configuração, nomeadamente a da fig. 2 pág. 5 do relatório pericial.
HH. O tribunal “a quo” deveria ter dado como não provados os factos B, E F, G, H e I, e ao não assim decidir, decidiu em violação do princípio do contraditório, do princípio do dispositivo e do princípio da igualdade das partes.
II. A prova produzida não foi bastante, suficiente e inequívoca para atribuir à A. a posse e consequentemente a aquisição originária da vacaria, nem mesmo do depoimento das testemunhas, se verificaram os elementos conducentes à aquisição por usucapião da vacaria e muito menos do trato de terreno, por parte da Recorrida.
JJ. A usucapião traduz-se numa forma originária de aquisição do direito, ou seja, em que o titular recebe o seu direito independentemente do direito do anterior titular, pelo que para a mesma poder ser eficaz, necessário se torna avaliar se existem actos de posse e se os mesmos foram exercidos em moldes conducentes á aquisição do direito, isto é com a intenção de corresponder ao direito real invocado, “ in casu”, o direito de propriedade, durante um certo lapso de tempo e com determinadas características.
KK. Assim, para que a posse possa conduzir á usucapião, tem de revestir, determinadas características, as descritas no artigo 1258º do Código Civil, em que se inclui a exigência de ser uma posse pacífica e de boa-fé.
LL. A Recorrida não tem a posse pacifica e de boa-fé da vacaria e do trato de terreno, pois como foi referido pelas dos Recorrentes e Recorrida, o R. marido até à morte do seu pai, ocorrida em 2012, fazia uso do trato de terreno e da vacaria, nela guardando os seus animais, o seu alimento, bem como lá guardava outros pertences, sempre de boa-fé, sem a oposição da Recorrida. e do seu falecido marido de forma interrupta e pacifica. Só após a morte daquele é que a Recorrida impediu o R. marido de usar a vacaria, ficando só ela na posse da mesma;
MM.    Esta posse exercida pela Recorrida não é pacifica, ou de boa-fé, pois, como resultou dos depoimentos das testemunhas MM e GG, a Recorrida fechou a vacaria colocando portões e retirou do interior da mesma todos os pertences dos Recorrentes, nomeadamente fardos, as ferramentas maquina de cortar erva…, e foi dessa forma que impediu o acesso aos Recorrentes, ficando apenas ela na posse da vacaria, e como bem sabia estava a ofender o direito dos RR., adquirindo a posse de forma violenta, de acordo com o artigo 1260º do Código Civil.
NN. Faltando o requisito de a posse ser pacífica e de boa fé, não pode conduzir à usucapião. “Não é boa para usucapião”, nos termos do disposto nos artigos 1260º e 1297º Código Civil.
OO. Pelo que muito mal andou a Meritíssima Juiz “a quo” ao considerar suficiente o ponto T da matéria de facto provada, para a aquisição originaria por parte da A.; Como da mesma forma, deveria ter dado como provados os pontos 11 a 22 da matéria de facto dada como não provada.
PP. A Meritíssima Juiz “a quo” decidiu que integra a herança aberta por óbito de BB, o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14m2, e com a configuração e limites constantes do documento nº 8 junto com a petição inicial, nele integrando, parte do caminho público denominado Travessa ....
QQ. Transversal a toda a prova testemunhal, e mais concretamente nos depoimentos de NN e OO, antigo e atual presidente de Junta de Freguesia ..., respetivamente, a Travessa ..., termina no local onde os Recorrentes, colocaram o portão e é um caminho público, pavimentado, com luz pública, água e saneamento, que está sob a administração da Junta de Freguesia ..., sendo este organismo quem o executou e criou todas as infraestruturas existentes, e quem zela pela sua conservação e limpeza.
RR. A A. jamais demonstrou quaisquer atos de posse sobre esta área denominada Travessa ..., que lhe permitam incluir tal área no seu prédio!
SS. Para além de que a aquisição por usucapião não se aplica a bens de natureza pública, tal como decorre da nossa doutrina e jurisprudência, sendo que o entendimento tem sido de que os caminhos públicos, por serem de domínio publico, estão fora do comercio jurídico, sendo por isso, inalienáveis e imprescritíveis – insuscetíveis de ser adquiridos por usucapião (Acórdãos do STJ de 23.12.2008, da Relação    de            Coimbra de 11.11.1999, proc. 9930786, in www.dgsi.pt/jtrp e, ainda, Meneses Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, tomo II, 2002, páginas 43-52).
TT. Logo, o prédio da herança não tem a área, configuração e limites que são apresentados na planta nº 8 junta com a petição inicial, que a Recorrida viu reconhecida.
UU. Assim, face à impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada, nomeadamente, os pontos B, E, F, G, H, I e a insuficiência do ponto T, impõe-se uma modificabilidade da fundamentação jurídica da sentença, nos termos dos artigos 640 nº1 e 662 nº1 do CPC, e a final concluir que a recorrida não reuniu os requisitos para se verificar o usucapião da vacaria e da faixa de terreno, por um lado, e por outro, não pode o prédio descrito na planta junta como doc nº 8 com a petição inicial ter aquela área configuração e limites, porque inclui um caminho público.
VV. Incorrendo em erro de julgamento sobre os factos, os quais deverão ser alterados por este Tribunal Superior, atento ao facto de a prova produzida impõe-se decisão diversa, o que se requer.
WW. É manifesta a contradição/imprecisão de que padece a presente sentença, conjugados os factos acima mencionadas.
XX. Ao decidir como decidiu violou irremediavelmente o Tribunal “a quo” o disposto nos artigos 4º, 607º nº 4 e 5, 609º nº1, e 615º nº1 CPC.”

Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação da sentença recorrida.
A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.

O tribunal a quo pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença nos seguintes termos:

“As nulidades da sentença são as elencadas no art. 615º, n.º 1, do CPC. A recorrente argui a nulidade prevista na al. d) da disposição legal citada. Salvo o devido respeito por outro entendimento, entendemos que na sentença foram apreciadas todas as questões relacionadas com os temas da prova e não foram conhecidas outras de que não se podia tomar conhecimento, nomeadamente o direito de propriedade sobre o prédio cuja parcela é reivindicada pela Autora. Pelo exposto, e nos termos do art. 641º, n.º 1, do CPC, indefiro a nulidade invocada pelo recorrente”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***
II. Delimitação do Objeto do Recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, são as seguintes:

1 – Saber se a sentença é nula;
2 – Saber se a petição inicial é inepta;
3 – Saber se houve erro no julgamento da matéria de facto;
4 - Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

A) Por testamento de EE, de ../../1984, BB, falecido marido da A., com quem esta era casada no regime da comunhão geral, foi instituído único herdeiro daquele EE, falecido em ../../1990.
B) Da herança do falecido EE fazia parte o prédio rústico denominado “De ...”, de cultura e ramada, sito no lugar..., atualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., devidamente delimitado, e que agora confronta do sul com os RR., do nascente com II e com os RR., do Norte com JJ e KK e do poente com JJ e LL, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/....
C) Este prédio encontra-se definitivamente registado a favor da A. e seu falecido marido, desde ../../1999, na Conservatória do Registo Predial de ....
D) Encontrando-se o prédio atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...59, desde o ano 1990.
E) A A. e o seu falecido marido construíram e mantiveram no prédio rústico referido, na parte sul/poente do mesmo, uma edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas, denominada por A. e RR. como a “vacaria”.
F) A A. e o seu falecido marido construíram no prédio rústico identificado uma casa de habitação de r/c e andar, com a área de 137m2, que passou a ser a casa de morada de família de ambos,
G) passando o referido prédio rústico a estar inscrito na matriz predial urbana, desde 1990, sob o artigo ...59 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., como casa de habitação de r/c e andar e logradouro.
H) A A. e o seu falecido marido sempre utilizaram, limparam, conservaram e cultivaram, bem como plantaram nesse prédio videiras e outras plantas, construíram muros de suporte de terreno e alguns muros de vedação, sendo que a A. sempre o fez até esta data.
I) O que vinham fazendo desde o ano de 1990.
J) Prédio este que agora faz parte do acervo hereditário da herança ilíquida e indivisa, contribuinte n.º ...32, aberta por óbito do marido da A., BB, falecido em ../../2012,
K) da qual a aqui A. é cabeça de casal.
L) São herdeiros habilitados do falecido BB, além da A., os seus filhos CC, casado no regime da comunhão de adquiridos com DD; FF casada com PP; GG casado com QQ; e HH casado com RR.
M) Por escritura pública de doação, outorgada em ../../.... do 1999, a A. e o seu falecido marido, doaram ao seu filho CC, aqui R. marido, o prédio rústico denominado de “Campo ...”, de lavradio, situado no lugar..., atualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., que confronta do sul com LL, do nascente e norte com herança de BB, e do poente com a herança de BB e LL, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...82/....
N) Em Janeiro de 2000 foi feito um levantamento topográfico desse prédio, que o Réu apresentou na Câmara Municipal ..., junto com o projeto para construção de uma casa de habitação nesse prédio, no âmbito do processo de obras n.º ...0..., levantamento cujos limites incluem uma baia de estacionamento a construir pelos RR., na estrema poente/norte do seu prédio, onde confronta a poente com a Travessa ..., com a largura de 2,00 metros (nascente/poente) e comprimento de 12,50 metros (sul/norte).
O) No dia 16 de janeiro de 2018, pelas 14.00 horas, os RR. iniciaram a construção de um muro com blocos e cimento, a cerca de 5,50 metros de distância do limite norte/poente do seu prédio, incluindo a supra baia de estacionamento que ainda não foi construída pelos RR., e a cerca de 2,15 metros de distância da “vacaria”, ao longo desta.
P) O que os RR. fizeram sem qualquer autorização ou consentimento da A.
Q) Tendo em vista a anexação desta faixa de terreno e da “vacaria” ao seu prédio e impedir o total acesso da A. a parte do logradouro e à “vacaria” que fazem parte do prédio da herança.
R) Iniciando os RR., para o efeito, a remoção de terras e a construção de um muro, com colocação de fiadas de blocos, com cimento.
S) A A. tomou conhecimento dessa pretensão e imediatamente se opôs.
T) A A. guarda na vacaria bens que lhe pertencem e bens que pertencem à herança, nomeadamente alfaias e utensílios agrícolas, animais e alimento para os mesmos, cujo acesso a pé e de veículo é feito por aquele local.
U) A A. embargou extrajudicialmente a prossecução daqueles trabalhos, o que fez nesse dia 16 de janeiro de 2018, pelas 14.30 horas, acompanhada do seu advogado e de duas testemunhas.
V) Tendo-se constatado que, nesse dia e hora, e aquando da realização do embargo, os RR. encontravam-se a construir um muro com blocos e cimento, que naquela hora não estava concluído e tinha 3.90 metros de comprimento e 45,00 centímetros de altura.
W) Depois do embargo extrajudicial realizado pela A., os RR. continuaram a construção do supra referido muro, passando o muro, apesar de inacabado, a ter cerca de 3,90 metros de comprimento e cerca de 1,30 metros de altura.
X) Também após as 14.30 horas, do dia 16 de janeiro de 2018, os RR. construíram e colocaram dois pilares em ferro, chumbando-os com cimento na mesma fundação do muro em causa nos autos, fundação essa também construída em cimento pelos RR.,
Y) estando um dos pilares agora colocado na fundação situada a sul / nascente do referido muro e a cerca de um metro do mesmo, tudo para a continuação da construção do muro inacabado, total vedação do acesso à “vacaria” e à parte do logradouro do referido prédio da herança.
Z) Em face da atuação dos RR., a A. fez uma exposição à CM..., em 17 de Janeiro de 2018, comunicando a execução que o R. estava a fazer do muro em causa nos autos e solicitando a demolição do mesmo.
AA) Tendo a referida CM..., em 05-02-2018, pelo Eng. SS, Chefe da Divisão de Planeamento Urbanístico e Ambiente da CM..., tomado decisão e dado informação sobre a exposição da A., a esta, ao R. marido e à “DF/PM” Divisão de Fiscalização / Policia Municipal, informando que: “Pela análise do processo de licenciamento n.º ...0..., poderá constatar-se que o local onde se encontra o muro de vedação não pertence ao titular do processo de licenciamento ...0..., Sr. CC.”, “Os procedimentos encetados pelo titular do presente processo de obras ...0..., encontram-se suspensos …”, e que “Desta forma, o titular do processo de obras ...0..., Sr. CC, deveria ser informado que não poderá executar qualquer obra de construção de muro de vedação de propriedade …”.
BB) No alinhamento sequência e após o limite da estrema norte do prédio dos RR., na direção poente, os RR. construíram um outro muro com blocos e cimento, com cerca de 1.60 metros de altura e 3.80 metros de comprimento, e um portão em metal, com cerca de 1.60 metros de altura e 3.00 metros de comprimento,
CC) Este portão em metal está implantado para lá dos limites do prédio dos Réus.
DD) Também sem qualquer autorização ou consentimento da A.
EE) Sendo agora impossível o acesso àquela parte do logradouro do prédio e à “vacaria” de veículos, sendo somente possível, com dificuldade, de pessoas a pé.
FF) Em ../../1999, o falecido marido da A., participou, no Serviço de Finanças ..., o prédio rústico, denominado Campo ..., sito no lugar..., declarando a área de 1135m2.
GG) Prédio este, que o falecido marido da A., juntamente com os demais prédios que faziam parte do acervo hereditário de EE, levou a registo em 05.08.1999.
HH) Os RR. notificaram a A., já por duas vezes, em 06.11.2013 e em 19.09.2016, para que abandonasse a vacaria.
II) Na planta topográfica junta como doc. 1 pelos RR., identifica-se o local da fossa séptica “f.s.” e do poço sumidouro “p.s.”, situados e construídos a sul/poente da casa de habitação da herança, no logradouro da mesma e em frente à “vacaria”.
JJ) A área do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84 é de 1501,14 m2.
KK) A área do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...82 é de 1015,61 m2.
LL) O trato de terreno em frente à vacaria até à estrema sul desta tem a área de com 119,91 m2.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1- O muro descrito na alínea BB) e as guias em cimento, sobre um alicerce em cimento, com cerca de 0,20 metros de altura e um metro de comprimento, iniciando no alinhamento da estrema norte do prédio dos RR., de forma perpendicular a esta estrema e em direção a sul, numa extensão de cerca de 15 metros, foram construídos no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84.
2- A vacaria referida em E) tem a área de 91m2.
3- O prédio doado ao Réu trem a área de 1.019,00 m2.
4- Com o descrito comportamento, os RR causaram à A. aborrecimentos vários.
5- Tendo a mesma ficado extremamente inquietada e até exasperada com o sucedido.
6- O que lhe causou e causa stress emocional.
7- Ficou também a A. desgostosa e profundamente incomodada pela turbação da sua posse sobre o prédio da herança e por ter necessidade de passar a “correr” para o escritório do seu advogado, em ..., e de se deslocar várias vezes a ..., mais concretamente à Câmara Municipal ... e ao Tribunal.
8- O prédio denominado Campo ... tem a área de 1135m2.
9- Esta área encontrava-se fisicamente delimitada, com um muro de pedras soltas, que foi reconstruído pelos RR.
10- Para evitar o licenciamento da “vacaria”, os RR. apresentaram a planta com aquela configuração, de forma a que a mesma, não fizesse parte do prédio com a construção a licenciar.
11- Há mais de 10, 20 ou 30 anos, por si, ante possuidores e ante proprietários, sempre estiveram na posse pública do prédio com a faixa de terreno e vacaria em discussão.
12- Posse essa que exercem em nome próprio;
13- Há mais de 18 anos;
14- Sem interrupção;
15- Com o conhecimento da generalidade das pessoas e sem oposição de ninguém;
16- Praticando vários atos materiais de uso e aproveitamento;
17- Pagando as respetivas contribuições e impostos, nomeadamente IMI;
18- Agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade;
19- De boa fé, por ignorarem lesarem direito alheio;
20- Pacificamente, porque sem violência;
21- Pública e continuadamente porque com o conhecimento de todos e de toda a gente;
22- E sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja.
23- Até ../../2018, como anteriormente e até ao momento, os animais continuam, por tolerância, a ser lá guardados na vacaria, depois de serem diariamente soltos e alimentados.
24- Os RR. deram o seu consentimento expresso para que a A. e o seu falecido marido, usassem a “vacaria”;
25- Por razões de obsequiosidade, de boas relações familiares e consideração.
26- Com constante invasão da propriedade dos RR/Reconvintes, pelo não uso da “vacaria”, porque ocupada, para além dos transtornos e arrelias que toda esta situação lhes provoca com as constantes queixas apresentadas quer no Tribunal, quer na Câmara Municipal ....
27- O que os obriga a constantemente, faltar ao trabalho e a deslocar-se ao escritório das advogadas.
28- No dia 22 de junho de 2023, entre as 19.30 horas e as 20:30horas, e no dia 26 de junho de 2023, entre as 19.00 horas e as 20:00horas, ou seja após o inicio da audiência de julgamento, em 20/06/2023, o R./Reconvinte CC, com o auxílio do seu genro PP, ferramentas e um trator, retirou blocos, vigas, guias de cimento, tubos de plásticos, terra e pedras, que se encontravam em frente aos dois portões metálicos e parede mais a sul da vacaria, voltados para nascente,
29- onde tinham sido anteriormente colocadas pelo mesmo para impedir o acesso da A./Reconvinda ao interior da vacaria com trator agrícola,
30-  bem como o R./Reconvinte começou a destruir, e destruiu, parte do muro em blocos construído na estrema mais a sul do prédio da herança, ou seja, na confrontação mais a sul deste prédio com o prédio dos RR./Reconvintes,
31- Os blocos de cimento que o R./Reconvinte retirou da frente do referido portão da vacaria foram pelo mesmo colocados noutro local do prédio da herança.
32- Ao que acresce o facto de o R./Reconvinte ter ainda soldado o referido portão situado na parte mais a sul da vacaria, de forma a não poder ser aberto pela A./Reconvinda para aceder ao interior da vacaria,
33- Tendo o R./Reconvinte ainda colocado, no dia 26 de junho de 2023, no logradouro do prédio e junto ao referido portão da vacaria, uma bicicleta, uma tábua em madeira a tapar a referida soldadura do portão e dois vasos com plantas.
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3.2. Da nulidade da sentença

Os Recorrentes vêm arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento na alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC por entenderem que, tendo a Autora peticionado o reconhecimento da sua qualidade de cabeça de casal e, enquanto tal, que seja reconhecida como legitima possuidora do prédio identificado nos artigos 2 a 11 da petição inicial, a mesma não reivindica a propriedade mas apenas a posse sobre o prédio, pelo que, com o reconhecimento da propriedade, o tribunal a quo pronunciou-se ultra petitum, para além de atribuir a propriedade de um caminho que tem natureza pública, extravasando a questão da titularidade da vacaria e da parcela de terreno.
Vejamos se lhe assiste razão.
As decisões judiciais podem encontrar-se viciadas por causas distintas, sendo a respetiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respetiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do referido artigo 615º do CPC.

Estabelece o n.º 1 deste preceito, de forma taxativa, as causas de nulidade da sentença:

“1- É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”.

Segundo os Recorrentes está em causa a nulidade prevista na alínea e).
Esta nulidade, que ocorre quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, relaciona-se com o previsto no artigo 609º n.º 1 do CPC onde se estabelece que: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.
O tribunal, por regra, não só não pode conhecer senão das questões que lhe tenham sido colocadas pelas partes, como também não pode decidir ultrapassando os limites do pedido que foi formulado, sob pena da decisão ficar afetada de nulidade.
A nulidade da decisão quando o Tribunal condene em objeto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio do dispositivo, que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/03/2019, Processo n.º 2827/14.7T8LSB.L1.S1 Relator Conselheiro Oliveira Abreu, também disponível em www.dgsi.pt).
É inequívoco que o pedido do autor, conformando o objeto do processo, irá condicionar a decisão de mérito: o juiz não pode, na sentença, extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles e a sentença terá de manter-se dentro dos limites definidos pela pretensão do autor ou da reconvenção, se deduzida pelo réu, não podendo o juiz transpor os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objeto.
Se o fizer a sentença ficará efetivamente ferida de nulidade.
O princípio do dispositivo encontra no artigo 3º do CPC a sua consagração mais inequívoca e manifesta-se, para além do mais, na consagração do ónus de iniciativa processual e na conformação do objeto do processo, que ocorre por via da enunciação do pedido, delimitando este objetivamente o âmbito decisório do Tribunal, sendo incontornável que, de acordo com o previsto no artigo 609º n.º 1 do CPC, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir) não podendo o juiz condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Ou seja, através do pedido as partes “circunscrevem o thema decidendum, isto é, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa. Trata-se de uma esfera em que domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede da sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir), não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir” (v. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 728).
Como sustenta Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 362, apud o citado Acórdão de 21/03/2019) “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado [art. 668°, n° 1, al. e)]”.
A decisão que ultrapassar o pedido formulado, passando a abranger matéria distinta, está ferida da nulidade prevista na referida alínea e).
In casu, se bem interpretamos a alegação dos Recorrentes, sustentam que o tribunal a quo terá condenado em objeto diverso do pedido uma vez que a Autora, invocando a sua qualidade de cabeça de casal e administradora da herança, apenas peticionou o reconhecimento da sua qualidade de cabeça de casal e, enquanto tal, que seja reconhecida como legitima possuidora do prédio, não tendo reivindicado a sua propriedade.
Vejamos então o que alegou e peticionou a Autora.
A Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, veio pedir a condenação dos Réus a reconhecerem a Autora como cabeça de casal e administradora da herança e, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição inicial, com a área, configuração e limites aí identificados e a restituírem a posse à Autora, como cabeça de casal e administradora da herança, do referido prédio.
Pediu ainda a condenação dos Réus a retirarem, à sua custa, os muros, as guias e o portão e a não praticarem quaisquer atos perturbadores da posse da Autora, e a pagarem a quantia de €10.000 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da sua citação, até efetivo e integral pagamento.
A Autora alegou, para fundamentar a sua pretensão, que o prédio em causa faz parte do acervo hereditário da herança aberta por óbito do seu marido BB, falecido em ../../2012, da qual é cabeça de casal e administradora, que os Réus iniciaram a construção de um muro com blocos e cimento tendo em vista anexar uma faixa de terreno e a vacaria, que se encontram dentro do prédio em causa, que pertence à herança e está na posse e administração da Autora, sendo a sua atuação turbadora da posse da autora como cabeça de casal e administradora, que legalmente representa.
É certo que alegou ainda que a Autora e seu falecido marido, por si, e agora como cabeça de casal e administradora da herança, sempre estiveram na posse pública, continua, pacifica, titulada e de boa-fé do prédio, nele fazendo obras, cultivando-o, usufruindo frutos e rendimentos, zelando por ele, pagando as contribuições devidas, com animus domini, tendo adquirido por usucapião a propriedade do prédio com todas as partes integrantes e direitos inerentes.
Porém, analisando os pedidos formulados, os fundamentos invocados e tendo em consideração que a Autora instaurou a presente ação desacompanhada dos demais herdeiros, fazendo-o na qualidade de cabeça de casal e administradora, entendemos ser de concluir que a presente ação, tal como a Autora a configurou, constitui uma ação possessória e não uma ação de reivindicação.
Foi, desde logo, esta a interpretação feita pelos Réus, no seu articulado de contestação, do vertido na petição inicial, tendo deduzido o incidente de intervenção principal provocada dos demais filhos e herdeiros AA, TT e HH, na instância reconvencional, por terem pedido o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 119º da contestação, do qual fazem parte integrante a faixa de terreno e vacaria. 
Conforme aí alegam, e com toda a pertinência, “no âmbito destas ações possessórias, a cabeça de casal tem legitimidade para em representação da herança, vir a juízo, pois estas ações enquadram-se nos poderes de administração da herança; no demais, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos ou contra todos os herdeiros.”
Na verdade, pertencendo a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, ao cabeça de casal (cfr. artigo 2079º do Código Civil), a previsão do artigo 2078º do Código Civil só lhe atribui legitimidade para pedir a entrega de bens da herança e para usar de ações possessórias.
Decorre ainda expressamente do n.º 1 do artigo 2088º que o cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído; estabelecendo o n.º 1 do artigo 2091º que “[f]ora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”.
Assim, e estando em causa uma ação de restituição da posse tem a Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança, legitimidade para a instaurar desacompanhada dos demais herdeiros; já não seria assim se estivéssemos perante uma ação de reivindicação.
Foi também esta a posição inicialmente assumida pelo tribunal a quo ao admitir a intervenção principal de AA, TT e HH (herdeiros) na qualidade de reconvindos.
Apenas na identificação do objeto do litigio viria a ser consignado pelo tribunal a quo que “reconduz-se assim a causa a uma ação de defesa do direito de propriedade, comummente denominada de reivindicação, subsumível ao art. 1311º do Código Civil”.
Não entendemos que assim seja, sendo certo que a ser assim, como já vimos, estaríamos perante uma situação de ilegitimidade ativa, uma vez que os referidos herdeiros AA, TT e HH foram apenas admitidos a intervir na instância reconvencional, na qualidade de reconvindos.
Importa esclarecer que constitui jurisprudência largamente dominante nos tribunais superiores, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça, que tanto o despacho de identificação do objeto do litígio, como o da enunciação dos temas da prova não formam caso julgado formal, podendo ser modificados posteriormente (neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2021, Processo n.º 2952/15.7T8FNC.L2.S1, Relatora Maria Clara Sottomayor, disponível para consulta em www.dgsi.pt) .
Aliás, a identificação do objeto do litígio, por sua vez, sendo meramente enunciativa, não atribui nem retira direitos às partes e, como tal, não decide qualquer relação processual, sendo certo ainda que as questões a resolver na ação resultam da alegação deduzida nos seus articulados.
“Por isso, o despacho de identificação do objeto do litígio, correspondente ao alegado nos articulados, designadamente na petição inicial, não chega a constituir caso julgado, podendo a sentença, quanto ao objeto da ação, ir além daquele despacho, se o conteúdo dos articulados o permitir, na medida em que são os mesmos que delimitam os poderes de cognição do tribunal, independentemente da identificação do litígio que tenha sido declarada, embora esta, observando a disciplina processual, deva corresponder inteiramente à alegação dos articulados” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/06/2016, Processo n.º 3296/11.9TBLLE.E1.S1, Relator Olindo Geraldes, também disponível para consulta em www.dgsi.pt) .
Assim, o despacho que identificou o objeto do litigio, e considerou estarmos perante uma ação de reivindicação, não formou caso julgado, pelo que nada obsta a que se considere estarmos perante uma ação de restituição de posse (cfr. artigo 1278º do Cód. Civil) e não perante uma ação de reivindicação.
De facto, nas ações de reivindicação, a procedência do pedido de condenação do réu a entregar ao autor a coisa depende do reconhecimento judicial do direito real (de propriedade ou outro, cfr. artigo 1315º do Código Civil) cuja titularidade o autor reivindica; aqui a restituição da posse está condicionada ao reconhecimento prévio da propriedade do autor, sendo este reconhecimento que determina a restituição da coisa; tal como se estabelece no  artigo 1311º n.º 1, do Código Civil “[o] proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
Já as ações possessórias têm por único fim a proteção da posse, permitindo ao possuidor obter do juiz que ponha fim à perturbação, sem ter de averiguar se o demandante é titular do direito real que exerce, só dizendo respeito ao facto da posse, ao possessório (v. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. V, 1997, p. 35); na ação de restituição de posse, a causa de pedir consiste na factualidade concreta geradora da posse do autor e do seu esbulho.
Ora, na presente ação, a Autora não pede a condenação dos Réus a reconhecerem o direito de propriedade da herança sobre o imóvel em questão; os pedidos que formula são, tão só, o da condenação dos Réus a reconhecerem a Autora como cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito do marido e, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio e a condenação dos Réus a restituírem a posse à Autora, como cabeça de casal e administradora da herança, do prédio em causa.
Não colhe, por isso, a argumentação apresentada pela Recorrida nas contra-alegações de que se encontra implicitamente formulado no pedido de restituição do prédio da herança, o pedido de declaração de que o prédio, com os limites por si identificados, faz parte integrante da herança; é certo que também perfilhamos o entendimento constante do acórdão desta Relação citado pela Autora de que “se o reivindicante se limita a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele”. Contudo, como já referimos, a Autora, que instaura a presente ação desacompanhada dos demais herdeiros, não se apresenta nos presentes autos como reivindicante e nem peticiona a restituição do prédio; a Autora apresenta-se como cabeça-de-casal e administradora da herança e nessa qualidade peticiona expressamente a condenação dos Réus a reconhecerem que é legitima possuidora e a restituírem a posse do prédio à Autora, e ainda a não praticarem atos perturbadores dessa mesma posse.
O tribunal a quo veio a julgar a ação parcialmente procedente e declarou a Autora cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, falecido em ../../2012, e que integra esta herança o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial, condenando os Réus a restituírem à herança, representada pela Autora, a parte do prédio que ocuparam, retirando, às suas custas, o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados, absolvendo dos restantes pedidos formulados.
Entendemos, por isso, que a decisão proferida pelo tribunal a quo, baseada no reconhecimento do direito de propriedade (adquirido por usucapião), vai além do peticionado pela Autora ao condenar os Réus a reconhecerem que o prédio em causa integra a herança e a restituírem à herança a parte do prédio que ocuparam, condenando para além dos pedidos formulados.
O principio do dispositivo, ao determinar o respeito pela definição do litigio feita pelas partes, impõe também esta solução, pois que traduzindo-se “na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar)”, é um princípio que, no fundo, “estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão” (Mariana França Gouveia, “O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil: a Incessante Procura da Flexibilidade Processual”, Texto escrito para os estudos em homenagem aos Professores Palma Carlos e Castro Mendes, a consultar em https://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf), pelo que, tendo a decisão ultrapassado os pedidos formulados está efetivamente ferida da nulidade prevista na referida alínea e).
Tal determina, em face da regra da substituição por parte da Relação (cfr. artigo 665º n.º 1 do CPC) e inexistindo necessidade de recolher quaisquer outros elementos, que este tribunal conheça dentro do limite dos pedidos formulados pela Autora, o que sempre seria levado a cabo considerando as questões suscitadas pelos Recorrentes no presente recurso, impondo-se, contudo, e previamente, decidir da invocada ineptidão da petição inicial e da impugnação da decisão da matéria de facto.
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3.3. Da ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis

Sustentam os Recorrentes que a presente ação não pode ser tratada como uma ação de reivindicação, mas antes como uma ação de demarcação pois o que está em causa não é a posse, mas os limites/estremas da propriedade da autora e dos Réus, uma vez que nenhuma das partes coloca em causa a titularidade dos imóveis, mas os limites da propriedade.
Entendem os Recorrentes que a vontade real da Autora era a de delimitar as extremas dos prédios e não o reconhecimento da propriedade pelo que efetuou pedidos incompatíveis, que não podem ser cumulados., o que gera a ineptidão da petição inicial determinativa da nulidade de todo o processo.
Vejamos se lhe assiste razão.

Dispõe o artigo 186º n.º 2 do CPC que:

“2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.

Por outro lado, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (n.º 3 do mesmo preceito) e no caso da alínea c) a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo (n.º 4).
A ineptidão da petição inicial gera a nulidade de todo o processo (n.º 1 do referido artigo 186º).
Uma petição diz-se inepta quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, mas também quando esta ou aquele forem ininteligíveis, correspondendo a ininteligibilidade à falta daqueles.
Como ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Almedina, 1945, p. 359 e sgs.) uma petição é ininteligível quando não pode saber-se, nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.
No que toca à causa de pedir, impõe-se que os factos essenciais sejam apresentados com clareza e concisão. A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (cfr. artigo 581º n.º 4 do CPC), consistindo a falta de causa de pedir na omissão dos factos essenciais que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Quanto ao pedido a lei processual “impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objeto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será, pois, inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da ação (…)” (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, p. 105).
No caso concreto, está em causa uma questão nova, suscitada pelos Réus apenas nas suas alegações de recurso.
Como é consabido os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e que antes foram submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido e não a criar soluções sobre matéria nova, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso (v. por todos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/06/2024, Processo n.º 7778/21.6T8ALM.L1.S1, Relator Leonel Serôdio, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Tal como ensina António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, p. 119) “[a] natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.
Não obstante, como já referimos, esta regra comporta como exceção o conhecimento das questões que sejam do conhecimento oficioso do julgador.
Ora, a ineptidão da petição inicial, geradora da nulidade de todo o processo, é do conhecimento oficioso (cfr. artigo 196º do CPC); contudo, apenas pode ser arguida até à contestação ou neste articulado (artigo 198º n.º 1 do CPC) e pode ser apreciada no despacho saneador, se antes não tiver sido apreciada, e se não houver despacho saneador, pode ser conhecida até à sentença final (artigo 200º nº 2 do CPC).
Ou seja, “a prolação de despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º e 193º, nº 1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades. Se o processo não comportar ou não tiver despacho saneador, o juiz pode conhecer destes dois vícios até à sentença final” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 240).
A decisão, em sede de despacho saneador, da questão da ineptidão da petição inicial forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico; já não formando caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico.
São também neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13/05/2021 (Processo n.º 1934/17.9T8PNF.P1.S1, Relatora Catarina Serra) e de 14/07/2021 (Processo n. 56347/19.8YIPRT.P1.S1, Relatora Maria da Graça Trigo, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt) podendo ler-se no primeiro que “tal como as outras exceções dilatórias, a nulidade de todo o processo é de conhecimento oficioso, mas este conhecimento oficioso está, no caso especial de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, limitado no tempo, nos termos do artigo 200.º, n.º 2, do CPC[16]. Assim, proferida a sentença pelo Tribunal de 1.ª instância e tendo este apreciado e decidido o mérito do pedido, o Tribunal da Relação não podia, oficiosamente, ter conhecido da ineptidão da petição inicial e declarado a nulidade de todo o processo e, na sequência disso, absolvido os réus da instância”.
No caso concreto, no despacho saneador proferido em 15/05/2019 foi exarado o seguinte:
“O tribunal é competente.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente patrocinadas.
Inexistem quaisquer outras nulidades, exceções dilatórias ou quaisquer questões prévias de que cumpra conhecer”.
Estamos perante um pronunciamento genérico e não concreto pelo que, nos termos do n.º 3 do artigo 595º do CPC, não se formou caso julgado formal sobre a questão da ineptidão da petição inicial.  Contudo, de acordo com o referido n.º 2 do artigo 200º precludiu a possibilidade de conhecimento desta questão, não podendo a mesma ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação (v. o citado acórdão de 14/07/2021).
Do exposto decorre que, apesar de ser de conhecimento oficioso, não pode a questão da ineptidão da petição inicial ser inovatoriamente apreciada em sede de recurso de apelação.
Ainda assim, não podemos deixar de referir como sendo no mínimo inusitado que, tendo os Recorrentes alegado expressamente na sua contestação que a Autora se arroga como legitima possuidora e que nos encontramos no âmbito de uma ação possessória, venham agora em sede de alegações de recurso invocar que os pedidos encapotam uma ação de demarcação e que a real vontade da Autora era que se delimitassem as estremas dos prédios.
De todo o modo, tendo a Autora configurado a presente ação como uma ação possessória, pedindo a condenação dos Réus a reconhecerem a Autora como cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito do marido e, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio em causa, nos moldes por si identificados, e a condenação dos Réus a restituírem a posse à Autora e a retirarem as guias, o muro e o portão e a não praticarem atos perturbadores dessa posse, bem como a pagarem a quantia de €10.000,00 a título de danos não patrimoniais, não vemos que possa afirmar-se ter a Autora cumulado pedidos substancialmente incompatíveis.
Improcede, por isso, e nesta parte, o recurso.
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3.4. Da modificabilidade da decisão de facto

Decorre do preceituado n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
O legislador impõe por isso ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, sob pena de rejeição do recurso.
No caso concreto, atendendo aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, iremos considerar que os Recorrentes, ainda que de forma confusa (confundindo por vezes a impugnação da matéria de facto com a apreciação de mérito) e minimamente satisfatória, cumpriram os ónus de impugnação da matéria de facto, relativamente aos pontos B), E), F), G), H) e I) dos factos provados, indicando os pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, o sentido da decisão que em seu entender se impõe e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso (atendendo às alegações apresentadas no seu todo, sendo certo que nas conclusões formuladas indicam inequivocamente os pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados e o sentido da decisão que deve ser proferida).
Do mesmo modo, temos vindo a entender que não deve determinar a imediata rejeição do recurso o facto do recorrente proceder à impugnação por “blocos de factos” quando “os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão revelando-se alguns deles incindíveis e o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/2023, Processo n.º 2054/21.7T8BRG.G1.S1, Relator Sousa Pinto, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
No caso concreto, ainda que os Recorrentes impugnem os referidos pontos da matéria de facto provada “em bloco”, considerando que apresentam entre si evidente conexão, entendemos não ser de rejeitar, nesta parte, o recurso.
Quanto ao ponto T) dos factos provados limitam-se os Recorrentes a alegar que não pode ser suficiente para atribuir à Autora a aquisição por via originária da vacaria, pelo que entendemos não estar sequer aqui em causa qualquer intenção de impugnação da decisão da matéria de facto.
Importa, por último, referir que os Recorrentes alegam ainda, de forma absolutamente genérica, na conclusão OO), bem como no corpo das alegações, que “mal andou a Meritíssima juiz “a quo” ao considerar suficiente i ponto T da matéria de facto provada, para a aquisição originária por parte da A.; Como da mesma forma, deveria ter dado como provados os pontos 11 a 22 da matéria de facto dada como não provada”.
Ora, não basta impugnar a matéria de facto com base em erro de julgamento de uma forma genérica, apontando simplesmente o sentido que deve ser dado aos pontos impugnados; impõe-se ao recorrente que especifique, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Os Recorrentes nas alegações de recurso (seja no corpo das alegações seja nas conclusões que formulam) não indicaram os concretos meios probatórios constantes do processo que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos 11) a 22) da matéria de facto dada como não provada; e se a impugnação da matéria de facto não pode bastar-se com uma remissão genérica para determinados meios de prova, sem demonstrar a sua relevância quanto aos factos concretos, no caso concreto nem sequer é feita menção a um qualquer meio de prova relativamente aos referidos pontos da matéria de facto julgada não provada.
Como se afirma no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/02/2024 (Processo n.º 18321/21.7T8PRT.P1.S1, Relator Nelson Borges Carneiro, disponível em www.dgsi.pt) “II – A especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova (…) IV – O recorrente terá de tomar posição especifica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entenda ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica ou exemplificativa afirmação dessa discordância”.
Importa ainda salientar que, se temos vindo a entender que, de forma a evitar na apreciação do cumprimento dos ónus do artigo 640º do CPC os efeitos dum excessivo formalismo, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a verdade é que também entendemos que há sempre um “mínimo” que o recorrente tem de cumprir, e esse “mínimo” não é alcançado se se limita a dizer que os pontos da matéria de facto dada como não provada que identifica, devem ser dados como provados, sem qualquer menção a qualquer meio de prova que em seu entender determina que assim seja.
Não podemos, por isso, e quanto aos pontos 11) a 22) da matéria de facto dada como não provada, considerar devidamente cumpridos pelos Recorrentes o ónus de impugnação, impondo-se rejeitar o recurso nessa parte, o que não prejudica o conhecimento da parte restante a que iremos proceder.
Vejamos então os motivos de discordância dos Recorrente relativamente aos pontos B), E), F), G), H) e I) dos factos provados, que entendem que devem ser julgados não provados e a alegada contradição entre os pontos B), F) e G) e o ponto JJ) dos factos provados.
Analisemos em primeiro lugar a alegada contradição dos factos constantes dos pontos B), F) e G), com o ponto JJ) dos factos provados, sendo que deste consta o seguinte: “JJ) A área do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84 é de 1501,14 m2”.
Como é por demais evidente da simples leitura dos factos em causa não se vislumbra qualquer contradição.
Se bem interpretamos a alegação dos Recorrentes, o que pretendem invocar é a contradição entre a área que consta na descrição da Conservatória do Registo Predial e na matriz, com a área julgada provada no ponto JJ).
Porém, também aqui não lhes assiste razão.
A área constante do ponto JJ) resulta da perícia realizada, constando do relatório pericial que a área total é de 1501,14 m2.
Quanto à área total de 3000 m2 (137 m2 de área coberta e 2863 m2 de área descoberta) constante da descrição predial e da matriz, como sabemos, não faz prova plena quanto a essa mesma área e nem a presunção decorrente do artigo 7º do Código de Registo Predial abrange fatores descritivos, como as áreas, limites ou confrontações dos prédios, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença ao titular inscrito; da mesma forma as inscrições matriciais não fazem prova plena da localização, da área, da composição, dos limites e das confrontações dos prédios a que se referem, pois que nenhum desses elementos concernentes à identificação física destes é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas perceções (v. neste sentido, entre muitos outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 02/02/2020 (Processo n.º 602/17.6T8MFR.L1-7, Relator Luís Filipe Pires de Sousa, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Os pontos B), F) e G) na medida em que se referem à descrição predial e à inscrição na matriz em nada colidem com o ponto JJ); mas, ainda que dos mesmos constasse expressamente a área (o que nem sequer consta) também nenhuma contradição existiria, na medida em que estaria apenas em causa a área constante da descrição predial e da matriz, enquanto no ponto JJ) consta a área efetiva do prédio.
Inexiste, por isso, qualquer contradição.
Vejamos agora se os pontos B), E), F), G), H) e I) devem ser julgados não provados como pretendem os Recorrentes.
Os pontos B), E), F), G), H) e I) dos factos provados têm a seguinte redação:

“B) Da herança do falecido EE fazia parte o prédio rústico denominado “De ...”, de cultura e ramada, sito no lugar..., atualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., devidamente delimitado, e que agora confronta do sul com os RR., do nascente com II e com os RR., do Norte com JJ e KK e do poente com JJ e LL, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/....
E) A A. e o seu falecido marido construíram e mantiveram no prédio rústico referido, na parte sul/poente do mesmo, uma edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas, denominada por A. e RR. como a “vacaria”.
F) A A. e o seu falecido marido construíram no prédio rústico identificado uma casa de habitação de r/c e andar, com a área de 137m2, que passou a ser a casa de morada de família de ambos,
G) passando o referido prédio rústico a estar inscrito na matriz predial urbana, desde 1990, sob o artigo ...59 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., como casa de habitação de r/c e andar e logradouro.
H) A A. e o seu falecido marido sempre utilizaram, limparam, conservaram e cultivaram, bem como plantaram nesse prédio videiras e outras plantas, construíram muros de suporte de terreno e alguns muros de vedação, sendo que a A. sempre o fez até esta data.
I) O que vinham fazendo desde o ano de 1990”.

Sustentam os Recorrentes que ao julgar provados os pontos B), E), F), G), H) e I) o tribunal a quo decidiu em violação do principio do contraditório, do dispositivo e da igualdade das partes.
Analisando os autos e a prova produzida não conseguimos ver de que forma podem ter sido tais princípios violados, sendo certo que os Recorrentes também o não dizem, e que estão em causa factos alegados pela Autora, tendo sido fixada a matéria de facto na sentença, após a produção de prova.
Por outro lado, decorre da leitura da motivação constante da sentença recorrida que o tribunal a quo na análise da prova equacionou toda a prova testemunhal produzida, designadamente as testemunhas ora indicadas pelos Recorrentes, bem como as declarações prestadas pela Autora e pelo Réu marido, a prova documental constante dos autos, bem como a prova pericial realizada, e fê-lo de forma crítica, fundamentada e exaustiva, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção, especificando os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão.
Os Recorrentes, perante a motivação exposta pelo tribunal a quo, esgrimem razões que radicam no essencial na sua discordância relativamente à convicção do Tribunal a quo, fazendo apelo a uma parte da prova produzida nos autos e transcrevendo de forma cirúrgica partes dos depoimentos prestados pelas testemunhas ora indicadas.
Mas, para se poder concluir pela verificação de um facto não basta proceder à indicação ou transcrição de parte das declarações prestadas por algumas testemunhas sobre o mesmo, ou de outros meios de prova; a prova tem de ser analisada na sua globalidade e de forma crítica, não bastando desde logo indicar e transcrever de forma cirúrgica, partes isoladas que aparentam sustentar a pretensão dos recorrentes; é necessário que as declarações prestadas pelas testemunhas sejam efetivamente contextualizadas, circunstanciadas e analisadas no confronto entre si e dos demais meios de prova, desde logo para aferir a sua credibilidade e razão de ciência.
E foi a isso que o tribunal a quo procedeu, entendendo que “conjugados todos os depoimentos e documentos e atendendo às regras da experiência comum e critérios de verosimilhança, resultou que a versão mais credível é a apresentada pela Autora”.
Ora, ouvidos os depoimentos das referidas testemunhas (e das demais ouvidas em audiência), os quais naturalmente não podem ser analisados isoladamente, não podemos deixar de concordar e subscrever a apreciação e análise critica efectuada pelo tribunal a quo (após indicar os meios de prova considerados e de expor em síntese o relatado por cada testemunha), a qual por ser precisa e clara, aqui transcrevemos:
“Efectivamente, e como não é raro nestas situações, as testemunhas inquiridas sobre o local da construção da vacaria prestaram depoimentos contraditórios – consoante foram indicadas por uma parte ou pela outra, sustentaram que a vacaria foi construída na leira onde a Autora e o falecido marido construíram a casa ou que a vacaria foi construída na leira doada ao Réu.
Relativamente ao uso que se fazia da vacaria os depoimentos coincidiram na parte em que foi afirmado que a Autora e falecido marido sempre usaram a vacaria e que os Réus também a usavam, tendo sido referido pela testemunha que foi presidente da junta de freguesia e que se dá com todos os envolvidos, não tendo qualquer interesse na causa (a testemunha UU) que a Autora e o falecido BB viviam da vacaria (eram agricultores), que o BB dizia que a vacaria era dele, que estava combinada e adjudicada a pavimentação do caminho até mais à frente, de forma a servir os Réus e a vacaria, mas acabou por ser pavimentado só até onde o CC deixou, já depois da morte do pai.
Face à subjectividade e incerteza da prova testemunhal, afigura-se imperiosa a análise dos elementos objectivos constantes dos autos no que diz respeito à questão essencial da configuração e área dos prédios e, por conseguinte, a questão do local da construção da vacaria (prédio da Autora e da herança ou prédio dos Réus) e da realização das obras pelos Réus.
Assim, temos que as certidões prediais e matriciais juntas aos autos nada provam relativamente às reais áreas dos prédios e que os levantamentos topográficos são realizados em função dos limites indicados pelas partes, pelo que, só por si, pouca relevância têm.
E no caso dos autos há vários e distintos levantamentos topográficos.
Depois de analisar os vários levantamentos topográficos e de se proceder ao confronto dos mesmos com as características dos prédios e das construções existentes no local, entendemos que aquele que de forma mais realista revela a dimensão e configuração do prédio dos Réus é o que foi por eles apresentado na Câmara Municipal ... no início do ano de 2000.
Como bem se refere no relatório pericial, dos docs. 7 e 8 juntos com a petição inicial mais não são do que extractos de cópias do levantamento topográfico e respectiva legenda datado de Janeiro de 2000, à escala 1/500, e junto ao Processo Administrativo (P.A.) de Licenciamento da moradia dos Réus (a fls. 144 de tal PA), que corre termos no município ... sob o Processo ...0..., e onde a Autora assinalou/sublinhou os limites do prédio dos Réus e, no último, o muro que os Réus executaram paralelamente à vacaria.
A razão que os Réus apresentam para desvalorizar esse levantamento topográfico (se tivessem sido rigorosos, ao incluir a vacaria, não conseguiriam licenciar a moradia sem legalizar a vacaria), não é credível face aos demais indícios recolhidos.
Assim, temos que, no que se refere à área declarada ao serviço de finanças pelo doador, o pai do Réu, não foi alegado que a declaração da área às finanças pelo falecido pai do Réu foi precedida de um levantamento topográfico do prédio ou de outro qualquer método de medição mais ou menos rigoroso, nem explicado porque foi declarada aquela área, se estava indicada em qualquer documento, por exemplo.
A área declarada de 1135 m2 não abrange toda a zona da vacaria, deixando uma parte de fora, conforme resulta da perícia.
E como compreender o levantamento topográfico junto com a contestação, a fls. 68 do suporte físico, com aquela faixa de terreno paralela ao muro que separa o prédio dos Réus do prédio vizinho, a poente?
Este levantamento topográfico de fls. 129 (de fevereiro de 2014), com uma linha de delimitação do terreno com a área de 1135.00 m2, deixa de fora uma faixa de terreno junto ao muro que se encontra a poente, deixando parte da vacaria e do anexo que se encontra a seguir a ela de fora, passando mesmo junto à esquina da casa dos Réus.
Com efeito, neste levantamento topográfico há uma faixa de terreno que se inicia junto a uma construção existente a norte e que segue em direcção a sul, apanha parte da zona da vacaria e do coberto dos Réus, passa junto à esquina da casa de habitação dos Réus e termina no anexo existente a sul. Segundo esse levantamento topográfico essa faixa de terreno não integra o prédio dos Réus, sendo que, segundo o mesmo levantamento topográfico, não há qualquer acesso à mesma e a passagem para a parte situada a sul do prédios dos Réus torna-se impossível pelo exterior da casa.
Só se compreende essa faixa de terreno como um esforço para medir a área de 1135 m2 de forma a abranger a parte da frente da vacaria e do logradouro também em frente à mesma até às escadas de acesso à parte de cima da vacaria.
Importa ainda perceber a razão pela qual os Réus aceitariam a colocação dos contadores de abastecimento de água e de gás no local identificado na figura de fls. 7 do relatório pericial (fls. 258 do suporte físico), se, realmente, entendessem que a configuração e a dimensão do seu prédio é a que descrevem na contestação. Então ficariam com os contadores no meio do terreno, e não arrumados numa extremidade?
E como é que nunca muraram aquela parte do terreno junto à vacaria desde 2000, apenas tendo feito essa tentativa já depois da morte do doador, o pai do Réu? E por que nunca tentaram a demolição da vacaria quando pelo menos em 2012, à data da morte do pai do Réu, já lá não tinham animais, como referiu a filha dos Réus?
Tudo isto, conjugado com o que a testemunha UU afirmou, leva-nos a crer que os Réus sabiam que aquele espaço da vacaria e terreno defronte da mesma não lhes pertenciam e que com a morte do doador tentaram apoderar-se dos mesmos.
A verdade é que ao Autora e o falecido marido continuaram sempre a usar a vacaria e o logradouro em frente, tendo sempre lá mentido animais, alimentos para os animais, alfaiais agrícolas.
Acresce que a Autora e o marido eram, sendo ela ainda, agricultores, vivendo também dos animais que mantinham na vacaria, e o réu nunca exerceu essa profissão.
Por outro lado, também se estranham as diferentes explicações que os Réus foram dando à Câmara Municipal ..., quando confrontados sobre os limites do seu prédio – por exemplo, em 4 de Setembro de 2015, informaram que o limite do terreno resultava do acordo de partilhas entretanto efectuado e que as construções existentes (vacaria) seriam para demolir, informando, posteriormente, que afinal não era assim. Não é credível que tivesse havido lapso dos Réus num assunto que é do seu interesse e conhecimento pessoal, como o acordo de partilhas por óbito do pai do Réu.
Quanto aos muros construídos, portão, características de uns e de outros, atendeu-se ao que resultou da perícia; quanto às áreas dos dois prédios, considerou-se o que resultou da perícia.
A este propósito, destaca-se a afirmação inserta no relatório pericial de que a localização, características, configuração e área do prédio da herança, é a que se encontra representada na planta que se juntou supra na Fig.29 supra, com uma área total de 1 501,14m2, nela se incluindo a moradia de R/C e Andar, logradouro, dois anexos a nascente de um piso, trato de terreno pavimentado em calçada à fiada a poente, que será actualmente o arruamento público denominado “Travessa ...”, e ainda, do lado oposto a tal via pública, um anexo de um piso destinado a recolha de pássaros e/ou animais de capoeira, seguido de escadas de acesso ao terraço existente sobre a cobertura plana da vacaria de planta rectangular com um piso e ainda ao anexo que cobre parcialmente a vacaria no andar, de planta quadrangular, e ainda de trato de terreno frontal a esta vacaria, até à estrema sul desta, confrontante a nascente e sul com os limites do prédio dos RR constante de tal DOC 7, com uma área aproximada de 119,91 m2, onde se encontra edificado um muro de blocos de cimento a seguir às referidas escadas, lintel de betão encastrado e nivelado superiormente pela “berma” do pavimento em calçada a cubos da via pública, portão metálico de correr, muro de bloco areado e mais interiormente, para sul dois pilares metálicos.
E ainda que existe um muro de bloco de cimento revestido com reboco areado com 4,37m de comprimento e 1,58m de altura e um portão metálico de correr com 3,75m de comprimento e 1,50m de altura para poente da estrema norte do prédio dos RR., mas, de acordo com os limites do prédio dos RR, constantes das Fig. 26 e Fig. 32 (favorável à versão da Autora), o referido muro encontra-se integralmente implantado dentro do limite do prédio dos RR., ainda que parcialmente com a fundação saliente para o prédio da AA, e que apenas cerca 0,29m do portão metálico de correr, alinhado com aquele muro para poente da estrema norte, se encontra dentro do limite do prédio dos RR, estando o demais portão metálico, para poente, implantado para lá do limite do prédio dos RR.”
Acresce dizer que, naturalmente, não basta a testemunha MM, filha do Réu CC e neta da Autora, afirmar que a vacaria está dentro do terreno que o avo deu ao pai, e que a mesma sempre foi do pai, para se poder concluir que assim seja; é necessário analisar tais declarações no confronto das declarações prestadas pelas demais testemunhas, conjugadas com os documentos juntos aos autos, a inspeção judicial ao local e a prova pericial realizada. E quanto a esta, consta como área total do prédio da herança 1 501,14m2, aí se incluindo a vacaria.
De todo o modo, mesmo das declarações da testemunha MM transcritas pelos Recorrentes decorre que os seus avós eram agricultores e que até ao avô falecer sempre continuou a usar a vacaria, a qual era usada por ambos; e que a Autora a continua até à data de hoje a utilizar, tendo lá cabritas, fardos de palha, erva, alimentos, e indo lá diariamente para tirar e colocar os animais.
O uso da vacaria pelo falecido marido da Autora e por esta resulta ainda patente nas declarações das demais testemunhas a cujo depoimento os Recorrentes fazem apelo, designadamente nos próprios excertos que transcreveram.
Veja-se ainda que os próprios Recorrentes alegaram na contestação que, tal como alegado nos artigos 1 a 4 da petição inicial a Autora e o seu falecido marido herdaram o prédio rústico atualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...59 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo ...84/..., e que foi nesse prédio que a Autora e seu falecido marido construíram a casa de habitação com 137 m2 e que mais tarde, após a construção da habitação, construíram a edificação denominada vacaria, a qual foi construída pelo falecido marido da Autora.
E, ainda que aleguem que a vacaria faz parte do prédio que foi doado aos Réus, afirmam também que a Autora acede à mesma todos os dias, onde guarda bens que lhe pertencem, bens que pertencem à herança, nomeadamente alfaias e utensílios agrícolas, animais e alimento para os mesmos. Se é certo que alegaram que tal ocorria por mera tolerância dos Réus, não o lograram demonstrar, bem como não demonstraram que sempre estiveram há mais de 30 anos na posse do prédio com a faixa de terreno e vacaria, conforme pontos 11) a 25) dos factos julgados não provados.
Inexiste, por isso, qualquer fundamento para julgar não provados os pontos B), E), F), G), H) e I).
Assim, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª Instância.
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3.5. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Como já referimos, entendemos que a presente ação, tal como a Autora a configurou, constitui uma ação possessória e não uma ação de reivindicação, tendo a Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança, legitimidade para a instaurar desacompanhada dos demais herdeiros (cfr. artigos 2078º e 2088º, ambos do Código Civil).
Nesse sentido consideramos a sentença recorrida ferida da nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, impondo-se agora que este Tribunal (cfr. artigo 665º n.º 1 do CPC) conheça dos pedidos formulados pela Autora.
In casu, veio a Autora, invocando a sua qualidade de cabeça de casal e administradora da herança formular os seguintes pedidos:
a) condenarem-se os Réus a reconhecerem a Autora como cabeça de casal de casal e administradora da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do marido da Autora BB, falecido em ../../2012, e, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição, com a área, configuração e limites aí identificados e na planta junta como doc. 8;
b) condenarem-se os Réus a restituírem a posse à Autora, como cabeça de casal de casal e administradora da herança, do prédio identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição, com a área, configuração e limites aí identificados e na planta junta como doc. 8; c) condenarem-se os Réus a retirarem, à sua custa, os muros, as guias e o portão identificados nos artigos 22.º, 36º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 46.º e 47.º da petição;  
d) condenarem-se os Réus a não praticarem quaisquer atos perturbadores dessa mesma posse da Autora, respeitando os limites do prédio da herança identificado nos artigos 2.º a 11.º da petição e no doc. 8 junto, abstendo-se de o invadirem e/ou nele praticar quaisquer atos de turbação da posse da Autora ou obras;
e) condenarem-se os Réus a pagar à Autora a quantia de €10.000 (dez mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da sua citação, até efetivo e integral pagamento.
Importa começar por precisar que, considerando a decisão proferida pelo tribunal a quo, não estão agora em causa os pedidos formulados sob as alíneas d) e e), dos quais os Réus foram absolvidos, não tendo a Autora interposto recurso.
Por outro lado, tendo sido julgada apenas parcialmente procedente a reconvenção, declarando-se “o direito de propriedade dos Reconvintes sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...82/...”, absolvendo-se a Autora/Reconvinda dos pedidos contra ela formulados, e não sendo objeto do presente recurso conhecer desses pedidos reconvencionais, transitou em julgado, também nessa parte, o decidido pelo tribunal a quo; o mesmo ocorrendo com a declaração da Autora como cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, falecido em ../../2012.
Assim, importa apenas apreciar e decidir neste momento dos pedidos de condenação dos Réus a reconhecerem a Autora, na qualidade de cabeça de casal de casal e administradora da herança, como legitima possuidora do prédio e a restituírem a sua posse à Autora (na parte que ocuparam), bem como a retirarem, à sua custa, os muros, as guias e o portão.
Vejamos.
Conforme decorre do artigo 1277º do Código Civil, o possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade ou recorrer a tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse.
Há, assim, meios de defesa da posse de carácter extrajudicial, como o são, genericamente, a ação direta e a legítima defesa (regulados respetivamente nos artigos. 336° e 337° do Código Civil) e meios de defesa judicial da posse, estes regulados nos artigos 1276º e sgs. do Código Civil, de onde se destacam a ação de prevenção, a ação de manutenção e a ação de restituição da posse.
A ação de prevenção, a que se refere o artigo 1276º pressupõe a inexistência de qualquer ato material de efetiva perturbação da posse ou de esbulho, mas sim a existência de justo receio do possuidor vir a ser perturbado ou esbulhado.
A ação de manutenção e a ação de restituição da posse, encontram-se previstas no artigo 1278º n.º 1, do Código Civil; a primeira é o meio judicial a que o possuidor pode recorrer no caso de haver perturbação da sua posse, sem que, contudo, chegue a haver esbulho, estando a ação de restituição reservada para os casos em que a violação da posse (esbulho) se traduz na efetiva privação desta.
É certo que a caracterização dos atos como de turbação ou de esbulho nem sempre é fácil (v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora Limitada, 2ª Edição Revista e Atualizada, p. 49), permitindo-se no n.º 3 do artigo 609º do CPC que se tiver sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conheça do pedido correspondente à situação realmente verificada.
Decorre ainda do n.º 1 do artigo 1278º que o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito, ou, dito de outro modo, a manutenção ou restituição da posse cessam se o possuidor for convencido nessa questão.
De facto, se o Réu conseguir demonstrar ser ele o proprietário a tutela possessória deixa de ter, em regra, qualquer sentido (poderá não ser assim nos casos dos possuidores em nome alheio, como sucede com o parceiro pensador, o locatário, o comodatário e o depositário, a quem a lei faculta o direito de recorrer às ações defensivas da posse).
Pode, por isso, o Réu formular (como ocorreu nos presentes autos) pedido reconvencional pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa.
Por outro lado, a artigo 1278º, prevê ainda que se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse (n.º 2) e que a melhor posse é a que for titulada, se nenhuma das posses for titulada, a melhor posse é a mais antiga.
Nas ações possessórias a causa de pedir é constituída pelo ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para alegar que a posse lhe pertence e pelo facto lesivo dessa posse e a procedência do pedido não depende de se fazer prova da existência do direito real a que corresponde a posse invocada, mas sim de se provar que existem atos e situações enquadráveis no conceito de posse (v. acórdãos da Relação de Lisboa, de 17/01/1991, CJ, 1991, I, p. 124, acórdão da Relação de Lisboa de 20/01/2009, Processo n.º 6486/2008-1, Relator Rui Vouga, disponível para consulta em www.dgsi.pt, e acórdão desta Relação de 07/10/2021, Processo n.º 230/20.9T8CBT.G1, Relatora Conceição Bucho, também a consultar em www.dgsi.pt).
E as ações possessórias caracterizam-se por ter “por único fim a proteção da posse; não protegem o próprio direito; permitem ao possuidor obter do juiz que ponha fim à perturbação, sem ter de averiguar se o demandante é titular do direito real que exerce” (v. o citado acórdão da Relação de Lisboa de 20/01/2009).
A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real (cfr. artigo 1251º do Código Civil) e para que seja de qualificar a ação de possessória basta que o possuidor, perturbado ou esbulhado, alegue que se achava na posse do prédio e que o réu a perturbou ou esbulhou, não tendo, ao lançar mão de ação possessória, de pedir o reconhecimento do direito real violado; tal não significa que, no âmbito das ações possessórias em geral, o autor não possa referir a propriedade, desde que refira igualmente a relação possessória, e esta seja determinante do pedido que formula
Ora, na presente ação, a Autora, invocando expressamente a sua qualidade de cabeça de casal e administradora da herança, não veio pedir o reconhecimento, pelo Tribunal, do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, mas a condenação dos Réus a reconhecerem que é, nessa qualidade, legitima possuidora do prédio e a restituírem a sua posse à Autora.
Tal como já referimos, estamos perante uma ação possessória de restituição de posse e numa ação de restituição de posse “incumbe ao A. a prova dos factos constitutivos do seu direito entre os quais avultam os atinentes ao esbulho (art.º 1278°, n° 1 do C. Civ.), consistindo este no “ato pelo qual alguém priva outrem total ou parcialmente, da posse de uma coisa" (acórdão da Relação de Évora de 04/03/2004, Processo n.º 045/03-2, Relator Bernardo Domingos, a consultar em www.dgsi.pt).
Quanto ao esbulho será de considerar que existe sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, do uso ou fruição do bem possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício, contra sua vontade.
Na definição de Manuel Rodrigues (A Posse, 4ª Edição, 1996, p. 363) “há esbulho sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar” podendo o esbulho ser total ou parcial.
Competia, por isso, à Autora demonstrar que, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança, se encontrava na posse do prédio, desde quando esta existe e as suas características, e que dela foi esbulhada pelos Réus.
Da matéria de facto provada resulta que da herança do falecido EE fazia parte o prédio rústico denominado “De ...”, de cultura e ramada, sito no lugar..., atualmente Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., devidamente delimitado, e que agora confronta do sul com os RR., do nascente com II e com os RR., do Norte com JJ e KK e do poente com JJ e LL, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...02, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., o qual foi registado definitivamente a favor da Autora e seu falecido marido em ../../1999, encontrando-se atualmente inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., sob o artigo ...59, desde o ano 1990, e que agora faz parte do acervo hereditário da herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito do marido da Autora, BB, falecido em ../../2012, da qual a Autora é cabeça-de-casal.
Mais resulta dos autos que a Autora e o seu falecido marido construíram no prédio rústico identificado uma casa de habitação de r/c e andar, com a área de 137m2, que passou a ser a casa de morada de família de ambos, e construíram e mantiveram no prédio rústico uma edificação destinada a guardar animais domésticos, veículos, alfaias e instrumentos agrícolas, denominada por Autora e Réus como a “vacaria”; tendo a Autora e o seu falecido marido sempre utilizado, limpo, conservado e cultivado, bem como plantado nesse prédio videiras e outras plantas, onde também construíram muros de suporte de terreno e alguns muros de vedação; o que vinham fazendo desde o ano de 1990, sendo que a Autora sempre o fez até esta data. E que a Autora guarda na vacaria bens que lhe pertencem e bens que pertencem à herança, nomeadamente alfaias e utensílios agrícolas, animais e alimento para os mesmos.
Temos assim demonstrada a prática de atos possessórios pela Autora sobre o referido prédio (nele se incluindo a faixa de terreno em causa e a vacaria), seja em vida de seu marido, seja após o seu óbito, e até à presente data, guardando na vacaria bens que lhe pertencem e bens que pertencem à herança, da qual é cabeça de casal, posse que ocorre há muito mais de um ano.
Da matéria de facto provada decorre ainda que a Autora foi esbulhada dessa posse pelos Réus.
Na verdade, no dia 16 de janeiro de 2018 os Réus iniciaram a construção de um muro com blocos e cimento, a cerca de 5,50 metros de distância do limite norte/poente do seu prédio e a cerca de 2,15 metros de distância da “vacaria”, ao longo desta, o que fizeram sem qualquer autorização ou consentimento da Autora, tendo em vista a anexação desta faixa de terreno e da “vacaria” ao seu prédio e impedir o total acesso da Autora a parte do logradouro e à “vacaria” que fazem parte do prédio da herança.
Os Réus, para o efeito, iniciaram a remoção de terras e a construção de um muro, com colocação de fiadas de blocos, com cimento, tendo a Autora embargado extrajudicialmente a prossecução dos trabalhos.
Depois do embargo extrajudicial os Réus continuaram a construção do, passando o muro, apesar de inacabado, a ter cerca de 3,90 metros de comprimento e cerca de 1,30 metros de altura; e também construíram e colocaram dois pilares em ferro, chumbando-os com cimento na mesma fundação do muro em causa nos autos, fundação essa também construída em cimento pelos Réus, estando um dos pilares agora colocado na fundação situada a sul / nascente do referido muro e a cerca de um metro do mesmo, tudo para a continuação da construção do muro inacabado, total vedação do acesso à “vacaria” e à parte do logradouro do referido prédio da herança. Após o limite da estrema norte do prédio dos Réus, na direção poente, estes construíram ainda um outro muro com blocos e cimento, com cerca de 1.60 metros de altura e 3.80 metros de comprimento, e um portão em metal, com cerca de 1.60 metros de altura e 3.00 metros de comprimento, este implantado para lá dos limites do prédio dos Réus, sendo agora impossível o acesso àquela parte do logradouro do prédio e à “vacaria” de veículos, sendo somente possível, com dificuldade, de pessoas a pé.
Por outro lado, as Réus também não lograram convencer da titularidade do direito, de forma a impedir a restituição (cfr. n.º 1 do referido artigo 1278º do Código civil); de facto, os Réus, que deduziram reconvenção peticionando que fossem declarados como únicos donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 119º da contestação, conforme planta junta como doc. nº 8, e que os Reconvindos fossem condenados a restituírem aos Réus a faixa de terreno e a “vacaria”, livres e devolutas de pessoas e bens, não conseguiram demonstrar que a faixa de tereno em causa e a vacaria fazem parte integrante do seu prédio, descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o n.º ...82/....
Deve pois a Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, ser reconhecida como legitima possuidora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial, e ser restituída à posse do mesmo, designadamente à parte que os Réus ocuparam, devendo estes, por força dessa restituição,  retirar às suas custas o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados.
Em face de todo o exposto, procede, pois, parcialmente a apelação, sendo de alterar a sentença recorrida, condenando-se os Réus a reconhecer a Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB como legitima possuidora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial, e a restituírem a Autora, nessa qualidade, à posse da parte do mesmo que ocuparam, e a retirarem às suas custas o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados.
De referir por último que a questão suscitada pelos Recorrentes quanto à denominada Travessa ... que alegam ser caminho público e estar em parte integrada no prédio descrito sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites referidos, em nada releva para a economia da presente ação (e apelação) onde está em discussão a posse da Autora, na qualidade de cabeça-de-casal e administradora da herança, do prédio, em particular sobre a faixa de terreno e vacaria; de todo o modo, e quanto à área, a mesma resulta expressamente do ponto JJ) dos factos provados.
As custas da apelação são da responsabilidade dos Recorrentes e da Recorrida na proporção do decaimento, que se fixa em 2/3 para os Recorrentes e 1/3 para a Recorrida (artigo 527º do Código de Processo Civil), mantendo-se quanto às custas da ação o decidido na sentença recorrida.
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, decidem:

1) Julgar a sentença recorrida nula nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, na parte em que fundamentou a procedência do pedido de restituição do imóvel no direito de propriedade;
2) Alterar a sentença recorrida e condenar os Réus:
a) A reconhecerem a Autora, na qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de BB, como legitima possuidora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...84/..., com a área de 1501,14 m2, e a configuração e limites constantes do documento n.º 8 junto com a petição inicial;
b) A restituírem à Autora, nessa qualidade, a posse da parte do prédio referido em a) que ocuparam (faixa de terreno e “vacaria” referidos nos factos provados);
c) A retirarem às suas custas o portão, o muro e os pilares identificados nos factos provados;
3) Manter, no mais, a sentença recorrida;
4) Condenar os Recorrentes e a Recorrida nas custas da apelação na proporção do decaimento, que se fixa em 2/3 para os Recorrentes e 1/3 para a Recorrida, mantendo-se quanto às custas da ação o decidido na sentença recorrida.
Guimarães, 21 de novembro de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Eva Almeida (1ª Adjunta)
António Beça Pereira (2º Adjunto)