REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÃO DECORRENTE DO REGISTO PREDIAL
ATOS DE POSSE
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO POSSESSÓRIA
Sumário

I - A nulidade por omissão ou excesso de pronúncia a que se reporta a al. d) do nº 1 do artigo 615º respeita ao não conhecimento [ou conhecimento para além] de todas as questões que são submetidas a apreciação pelo tribunal, ou seja, de todos os pedidos, causas de pedir ou exceções cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento de outra(s) questão(ões).
Não se confundindo questões com argumentos ou razões invocadas pelas partes em sustentação das suas pretensões.
II - Tem sido entendido de forma reiterada e em respeito pelos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo.
Motivo porque e quando tal reapreciação se mostre inútil/inócua para o resultado da pretensão formulada, se deve rejeitar a mesma.
III - A presunção da titularidade do direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP não abrange a área, os limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo predial.
IV - Quanto a estes limites incumbia aos recorrentes alegar e fazer prova de que sobre a parcela de terreno em discussão nos autos praticaram atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para, por via da usucapião, meio de aquisição originária do direito de propriedade (independente do direito de propriedade anterior), lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma, como o peticionaram.
V - A usucapião é a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que quando mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito real a cujo exercício corresponde a sua atuação possessória - artigo 1287º do C.C..
VI - É a ação de reivindicação uma ação real de defesa da propriedade.
Por contraponto à ação de reivindicação, na ação possessória defende-se a posse, por um dos meios típicos previstos pelo legislador: ação de prevenção, manutenção ou restituição da posse a que acrescem os embargos de terceiro (vide artigos 1276º, 1278º e 1285º do CC). Ações estas sujeitas à observância dos seus próprios requisitos.

Texto Integral

Processo nº. 543/22.5T8OVR.P1

3ª Secção Cível

Relatora – M. Fátima Andrade

Adjunta – Anabela Mendes Morais

Adjunta – Ana Olívia Loureiro

Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca de Aveiro – Jz. Local Cível de Ovar

Apelantes / AA e outra

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

AA e BB instauraram ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Município ..., peticionando pela procedência da ação, a condenação do R.:

“a) RECONHECER QUE OS AA SÃO DONOS E LEGÍTIMOS POSSUIDORES DO PRÉDIO SUPRA IDENTIFICADO EM 3º.

b) QUE FAZ PARTE DE TAL PRÉDIO A PORÇÃO DE TERRENO QUE SE ENCONTRA ASSINALADA COM UM X NA PLANTA JUNTA COMO DOC. Nº 12.”

Para tanto e em suma alegaram serem donos e legítimos possuidores do prédio misto descrito em 3º da p.i., do qual mais alegaram fazer parte a porção de terreno assinalada no doc. junto à p.i. sob nº 12, conforme alegado entre o mais em 35º a 38º, 57º e 58º da p.i..

Citado, contestou o R., em suma tendo impugnado pertencer ao prédio dos aqui AA. a parcela em questão.

A qual mais alegou, foi cedida pelos AA. à Junta de Freguesia ... para alargamento do caminho. Tendo esta procedido à pavimentação da mesma.

Tendo a final concluído pela improcedência do pedido formulado pelos AA. sob a al. b).


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Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador e dispensado o despacho a que alude o artigo 596º do CPC.

Realizada audiência final, foi após proferida sentença decidindo julgar totalmente improcedente a ação, com a consequente absolvição do R. do pedido.


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Do assim decidido apelaram os AA., oferecendo alegações e formulando as seguintes

Conclusões:

1- Os autores têm inscrito a seu favor na conservatória do registo predial o prédio que identificam na sua p.i., pelo que gozam da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo. Não tendo a mesma sido ilidida e não abrangendo a presunção as confrontações e área deveria ter sido julgado procedente o primeiro pedido nos termos seguintes: os autores são donos do prédio misto composto de casa de habitação e terreno de cultura sito no lugar ..., da freguesia ..., inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica SOB O ARTIGO ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar na ficha n.º ... de ... e aí inscrito a favor do A marido pela AP ... de 1999/09/09.

2- Os autores identificaram expressamente qual o objeto da ação e que era que

fosse reconhecido que a Travessa ... termina na extrema sul do prédio dos autores, não se prolongando ao longo da extrema poente do prédio, tal como pretende o réu.

3- Estando em causa a existência dum troço dum caminho que os autores defendem não ser público e o réu defende ser público, independentemente da questão da sua propriedade, era essencial que se apurasse se o mesmo detinha características de caminho público.

Estando em causa pelo menos a extensão da Travessa enquanto caminho público, era essencial que fossem apuradas as características de tal caminho.

4- Os autores alegaram diversos factos tendentes a demonstrar que o dito caminho não era público, nomeadamente as características enunciadas no acórdão do

STJ de 18/10/2018, sendo que a sentença recorrida não se debruçou sobre tais factos, ignorando-os, pelo que violou o disposto no artigo 608.º-2 do CPC.

Omitindo a pronúncia gera a nulidade da sentença.

5- Alegaram-se em 7.º a 32.º da p.i. factos relevantes que foram ignorados, sendo que tal ocorreu desde a audiência de julgamento em que o senhor juiz, que não tinha proferido o despacho previsto no artigo 596.º do CPC, entendeu que apenas era relevante a prova de factos posteriores a 1992, impedindo o autor de fazer perguntas sobre factos que alegara e que eram essenciais para a prova do seu direito de propriedade sobre o troço em questão. O senhor juiz, deste modo, violou o disposto no artigo 608.º-2 do CPC e o direito à tutela jurisdicional efetiva.

6- Tendo o réu admitido em 26.º da contestação que os pais do autor (antepossuidor do prédio em questão) tinham cedido uma parcela de terreno com 3 metros de largura, mais relevante se tornou apurar as condições de tal alegada cedência e para quê, pelo que era importante permitir que se interrogasse as testemunhas sobre tas factos e não apenas sobre o que se passou após as obras, ou seja após a cedência.

7- Tendo o réu admitido em 26.º da contestação que os pais do autor (antepossuidor do prédio em questão) tinham cedido uma parcela de terreno com 3 metros de largura isso está em contradição com a não prova do facto constante em 1 dos factos não provados. Com efeito, se o réu defende que a travessa foi construída, na parte junto ao prédio dos autores, com uma parcela de terreno cedida pelos antepossuidores dos autores, não se pode afirmar que não resultou provado que “Os pais do autor, ou os autores, desde que a receberam em doação, até 2020, tenham feito qualquer uso da parcela assinalada com x”. Estando também em contradição com o provado em 12.

8- Há nulidade quando o juiz deixe de conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é de todos os pedidos deduzidos e de todas as causas de pedir e exceções invocadas (e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer).

O tribunal deve tomar posição expressa sobre as questões que os sujeitos processuais submetam à apreciação do tribunal (cfr. n.º 2 do artigo 608.º do CPC) e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

Desta forma, a omissão de pronúncia é um vício gerador de nulidade da decisão judicial que ocorre quando o tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito.

O que manifestamente não foi feito na douta sentença ao ignorar os alegados factos e ao impor a sua visão redutora.

9- O tribunal ao não atender aos factos alegados e aos que advieram da instrução violou o disposto no artigo 607.º-4 do CPC.

10- O ignorar de tais factos reflete-se também na fundamentação que não cumpre o disposto no artigo 607.º - 4 do CPC, uma vez que se não pronuncia sobre tais factos: os alegados em 7.º a 32.º.

11- Sendo que tal vício de decisão se estende aos factos que no decurso da audiência de julgamento foram apurados e que são importantes para se compreender o que estava em discussão e porquê. Referimo-nos concretamente à explicação dada pelas testemunhas nomeadamente o CC sobre o arranjo do caminho, a participação dos moradores e a atuação obstrutiva do proprietário do prédio que era suposto permitir o prolongamento da travessa e que impediu vedando a muro o seu prédio e, no entanto, agora, beneficiando do esforço dos 3 moradores que custearam as obras, pretende usar em seu proveito. Este facto é importante para se poder interpretar os demais factos e, bem assim, deles retirar as ilações que se impõem.

Deve, assim, ser considerado provado que:

a) O caminho existente antes das obras terminava junto ao prédio dos autores, não o cruzando (depoimento do suprarreferido CC especialmente ao minuto 07:20);

b) Os moradores do caminho designado por Travessa ... quando em 1992/1993 cederam terreno para alargamento do caminho o fizeram com o propósito de esse caminho deixar de ser um caminho sem saída e se prolongar até à Rua ...;

c) Tal não aconteceu porque o proprietário do prédio que fica junto à Rua ...  e que seria cruzado pelo novo caminho/prolongamento da travessa não o permitiu;

d) Sendo que agora pretende abrir uma entrada para o atual caminho – ver o citado depoimento especialmente entre os minutos 10:28 a 12:35, 13:05 a 13:50 e 22:42 a 24:43.

12- Como resulta do depoimento da testemunha CC a hoje apelidada de Travessa ... era um caminho de servidão (estreito e em terra batida – ver confissão do réu em 14.º, 18.º e 19.º, sendo ainda relevante o documento n.º 7, que juntámos com a p.i., onde na planta de construção da casa vizinha em 1976 o caminho surge identificado como de servidão), que servia três moradores e terminava no prédio hoje dos autores, servidão essa que no seu inicio tinha um portão (ver o citado depoimento que supra transcrevemos, especialmente aos minutos 1:55 a 2:10, 7:15 a 7:20 e 13:57 a 14:55) e que, em 1992/1993, é objeto de pavimentação e alargamento com o objetivo de prolongar tal caminho até à Rua ..., o que só não foi possível por oposição do proprietário do outro prédio que era necessário cruzar (ver o aludido depoimento, o qual se transcreveu supra, mas nesta parte especialmente minutos: 10:28 a12:15, 13:05 a 13:50 e 22:05 a 24:33).

Recentemente, o proprietário desse prédio tem aí em construção uma casa que, não obstante ter frente para a Rua ..., pretende abrir uma entrada para a Travessa ....

Tais factos foram parcialmente aceites pelo réu que aceitou que o caminho inicial era um estreito caminho com cerca de 3 metros em terra batida – ver artigo 14.º, 26.º e 27.º da contestação.

Deve, assim, ser considerado provado que:

a) O caminho existente até 1992/1993 era em terra batida, com cerca de 3 metros de largura, sem infraestruturas, nomeadamente água e saneamento (ver ainda documentos 16 a 18 juntos com a p.i.);

b) Sendo um caminho de servidão para três prédios e tendo no seu início um portão.

13- Mais deve ser dado por provado que não existia aí nenhuma fonte ou jardim, estabelecimentos comerciais, igreja, escola - factos alegados em 30.º a 32.º e não impugnados.

14- Não houve qualquer prova de que tal caminho tivesse tido alguma atuação por parte da junta de freguesia ou Câmara antes de 1992/1993 – como se extrai do que foi provado em 15 e 8 da matéria de facto considerada provada pelo que, deve tal ser levado aos factos não provados.

15- Face ao provado em 16 resulta que os autores provaram que são detentores da porção de terreno em discussão nestes autos. Ao serem detentores gozam da presunção de posse – artigo 1252.º-2 do CC, e estando na posse gozam da presunção da titularidade do direito de propriedade que invocam – artigo 1268.º do CC. Tudo isso foi ignorado pela sentença que incorreu em vício de julgamento violando as supramencionadas normas.

16- Face à manifesta insuficiência da matéria de facto considerada na sentença deve, nos termos do disposto no artigo 662.º n.º 2 alínea c) e n.º 3 alínea b) do CPC, proceder-se à anulação da decisão recorrida e repetição da prova.

NESTES TERMOS DEVE O RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E ASSIM:

A) SER JULGADO QUE O PRÉDIO MISTO COMPOSTO DE CASA DE HABITAÇÃO E TERRENO DE CULTURA SITO NO lugar ..., DA freguesia ..., INSCRITO NA MATRIZ URBANA SOB O ARTIGO ...... NA MATRIZ RÚSTICA SOB O ARTIGO ..., DESCRITO NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL DE OVAR NA FICHA N.º ... DE ... E AÍ INSCRITO A FAVOR DO AUTOR MARIDO PELA AP ... DE 1999/09/09 – É PROPRIEDADE DO AUTOR MARIDO. DESSE MODO SE DEVE JULGAR PROCEDENTE O 1.º PEDIDO.

B) MAIS DEVE SER JULGADO PROCEDENTE O SEGUNDO PEDIDO, FACE AO QUE SUPRA SE ALEGA E RESUME EM 15.º DAS CONCLUSÕES.

C) CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA, E RELATIVAMENTE AO SEGUNDO PEDIDO, DEVE SER JULGADA PROCEDENTE A CORREÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO SUPRA ALEGADA E ANULAR-SE A SENTENÇA RECORRIDA NA PARTE RELATIVA AO SEGUNDO PEDIDO ORDENANDO-SE A REPETIÇÃO DE PROVA.”


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Apresentou o R. contra-alegações, em suma e após ter suscitado a questão da extemporaneidade do recurso interposto – com a argumentação de que os recorrentes não devem beneficiar do alargamento do prazo previsto para o caso de impugnação da decisão de facto, por não efetuada esta regularmente - tendo concluído pela total improcedência do recurso, face ao bem decidido pelo tribunal a quo tanto em sede decisão de facto como de direito.

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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Tendo ainda o tribunal a quo emitido pronúncia no sentido de se não verificar a arguida nulidade da decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.


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II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem questões a apreciar:

1) nulidade da decisão recorrida;

2) erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Nesta sede sendo ainda apreciada e como questão prévia da pertinência em conhecer da impugnação aduzida.

3) erro na aplicação do direito.


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III- Fundamentação

O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

“1. Encontra-se descrito na CRP de Ovar, sob o n.º ..., da freguesia ... um prédio misto composto de casa de rés-do-chão – habitação – s.c. 105m2 – Logradouro 635m 2 – e Terreno de cultura 740m 2 – Norte e nascente AA, DD e outro, sul EE e poente caminho;

2. Tal prédio estava anteriormente descrito na CRP de Ovar sob o n.º ..., a fls. 180, Livro ..., como “Uma leira de mato e pinhal sita no lugar ... freguesia ..., que confronta com FF e outros, sul EE, nascente com DD do poente com GG e caminho de servidão”;

3. As confrontações constantes do ponto 1, dos factos provados, foram averbadas na sequência da Ap. ...;

4. A propriedade sobre o prédio referido no ponto 1, encontra-se inscrita a favor de AA, casado com BB, no regime de comunhão geral, pela AP ... de 1999/09/09;

5. A doação referida no ponto anterior foi realizada mediante escritura outorgada em 09/08/1999, a fls. 14v., a 15v., dos autos, na qual outorgaram como doadores HH e mulher, II, pais do autor;

6. Os pais do autor haviam adquirido o mencionado prédio por compra que fizeram em 07/01/1978 a JJ e esposa KK, conforme escritura publica de compra e venda outorgada no cartório notarial de Espinho a fls. 80 verso a 81 do Livro ..., a fls. 17 a 17v., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

7. Na reunião da Junta de Freguesia ... de 09/12/1989, esteve presente LL, dono de um dos prédios que confronta com a Travessa ..., informando da sua disposição em colaborar com os arranjos que fossem feitos na dita travessa pelo que, na sequência dessa disposição, a Junta de Freguesia, nessa mesma reunião, deliberou: “Uma vez que há participação para ajudar o enorme esforço que se vem fazendo nesta Terra pela sua melhoria, foi deliberado executar as respetivas obras oportunamente comprometendo-se este a comparticipar com cem mil escudos para a respetiva comparticipação”;

8. Foi na sequência de tal deliberação que o réu e Junta de Freguesia ... procederam à construção, nesse arruamento, das redes de abastecimento de água e rede de esgotos, bem como à pavimentação do mesmo em cubos de granito;

9. Tais obras foram executadas em 1992/1993;

10. Em 23/04/1992, os autodenominados “Locatários da Travessa ..., ..., remeteram ao Presidente da Junta de Freguesia ... o escrito a fls. 19, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, onde se lê: “Com os n/ respeitosos cumprimentos e de acordo com o estabelecido entre os locatários deste lugar e a Junta de Freguesia e ainda de harmonia com a ata de 9 de Dezembro de 89 e n/carta de 5 de Setembro de 1990 estamos a juntar o n/cheque de esc; 100.000$00 cem mil escudos, para comparticipação do arranjo do pavimento na Travessa .... Achamos esta ocasião muito Oportuna visto estar em última fase, os trabalhos de saneamento e águas nesta travessa.”;

11. Com a missiva referida no ponto anterior, foi junto um cheque no valor de cem mil escudos, o qual foi recebido pela Junta de Freguesia ..., em 28/04/1992, tendo sido emitida a guia de receita a fls. 18vso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

12. Os pais do autor cederam, na sequência da deliberação referida no ponto 7, uma parcela de terreno, em toda a extensão do seu prédio, para alargamento do caminho e pavimentação do mesmo, ficando o caminho, a partir daí, na confinância com o prédio dos autores, com a configuração assinalada com “x” no documento a fls. 20 vso dos autos;

13. Imediatamente a nascente da parcela assinalada com “x” no documento a fls. 20vso dos autos, os pais do autor construíram um muro de vedação, deixando livre para o caminho a mencionada parcela;

14. Foi mantido na primitiva estrema sul/poente do prédio dos autores, após a pavimentação do caminho, um marco em pedra que anteriormente lá se encontrava;

15. Desde as obras referidas no ponto 8, dos factos provados, que o caminho denominado “Travessa ...” se encontra aberto ao trânsito de quaisquer pessoas ou veículos, tem placa com a respetiva designação aplicada pela autarquia e é por esta regularmente limpa e mantida;

16. A partir de data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2020, os autores vedaram a parcela assinalada com “x” no documento a fls. 20vso., colocaram na vedação a menção “propriedade privada” e aí passaram a depositar madeiras e estacionar um veículo pesado de mercadorias.”

O tribunal a quo julgou ainda não provada a seguinte factualidade:

“1. Os pais do autor, ou os autores, desde que a receberam em doação, até 2020, tenham feito qualquer uso da parcela assinalada com “x”, no doc. a fls. 20vso, nomeadamente, a tenham cuidado, nela apanhado lenhas e matos, cultivado, nela tenham construído, ou a tenham usado como local de depósito de madeiras ou viaturas, arrogando-se seus únicos donos, na plena convicção de estarem a exercer um direito próprio, sendo havidos como únicos donos pela generalidade das pessoas, tudo fazendo aos olhos de toda a gente e sem a oposição de quem quer que fosse, há mais de trinta anos consecutivos;

2. Tenham sido os autores quem mandou pavimentar com paralelepípedos a parcela assinalada com “x”, no doc. a fls. 20 vso.”


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Conhecendo.

1) Cumpre em primeiro lugar apreciar da arguida nulidade imputada à decisão recorrida.

Em causa a alegada nulidade por omissão de pronúncia [vide conclusão 8].

Nos termos do artigo 615º, nº 1 do CPC:

“É nula a sentença quando:

(…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”

Estando as nulidades da sentença previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC é pacificamente aceite que estas respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[1], motivo por que nas mesmas se não incluem quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[2].

E quanto à nulidade por omissão ou excesso de pronúncia a que se reporta a al. d) do mesmo nº 1 do artigo 615º, entende-se que esta respeita ao não conhecimento [ou conhecimento para além] de todas as questões que são submetidas a apreciação pelo tribunal, ou seja, de todos os pedidos, causas de pedir ou exceções cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento de outra(s) questão(ões). Não se confundindo questões com argumentos ou razões invocadas pelas partes em sustentação das suas pretensões.

Encontra este dever a sua consagração legal no disposto no artigo 608º nº 2 do CPC.

Sendo ainda de distinguir questões a resolver (para efeitos do artigo 608º nº 2 do CPC) da consideração ou não consideração de um facto em concreto que e quando se traduza em violação do artigo 5º nº 2 do CPC, deverá ser tratado em sede de erro de julgamento e não como nulidade de sentença [3].

Tendo presentes estes considerandos e o alegado pelos recorrentes – vide nomeadamente conclusões 1 a 11 - resulta evidente que estes fundam a arguida nulidade por omissão de pronúncia por referência à não consideração de factualidade que alegaram e que entendem ser essencial à apreciação do pedido pelos mesmos formulado.

Factualidade essa – a alegada em 7º a 32º da p.i. e por via da qual pretendiam fazer prova de que o caminho em causa não era público (vide conclusão 4), bem como que assim foram impedidos de fazer prova do “seu direito de propriedade sobre o troço em questão” (vide conclusão 5).

Como já afirmado antes, a não consideração de factualidade concretamente alegada com relevo para o objeto do processo tem de ser tratada em sede de erro de julgamento e não como nulidade de sentença.

Acresce que e como bem alegou o recorrido em sede de contra-alegações o mesmo não deduziu reconvenção para que apreciada fosse a natureza de caminho público da faixa de terreno em questão.

E da parte dos autores tão pouco foi esse o pedido pelos mesmos formulado.

O que os mesmos AA. peticionaram fosse reconhecido, para além da sua qualidade de proprietários do prédio identificado em 3º da p.i., foi a condenação do R. a reconhecer que de tal prédio faz parte a porção de terreno assinalada com um x na planta junta como doc. nº 12 (ou seja a fls. 20 verso dos autos).

E para tanto incumbia aos AA. ter feito prova de que sobre tal faixa de terreno exerceram atos materiais correspondentes à atuação de um seu titular e com tal intuito – ou seja a posse caraterizada pelos seus dois elementos típicos de corpus e animus – durante determinado lapso de tempo (15 ou 20 anos dependendo da boa ou má fé – vide artigo 1296º do CC) e de forma pública (vide artigo 1297º do CC).

Esta era a factualidade que relevava da parte dos AA. alegar e ter como provada (e vem não provada em 1 dos factos não provados).

Da eventual prova de que o caminho em causa, entenda-se a parcela de terreno que nos autos se discutia, não é público não derivava a procedência da pretensão dos autores – de reconhecimento de que essa mesma parcela pertencia ao prédio de sua propriedade.

E tal era a pretensão formulada pelos autores e de que cumpria conhecer.

Pretensão de que o tribunal a quo conheceu, tendo julgado a mesma improcedente.

Concluindo, não só inexiste qualquer omissão de pronúncia tendo por referência o pedido e causa de pedir nos autos formulada, como a argumentação aduzida para a fundamentar não encontra apoio legal, pois reconduz-se a uma alegada não consideração de factualidade alegada o que, como também já referido, poderá relevar para a eventual consideração de erro de julgamento, mas não para a nulidade da decisão recorrida.

Improcede, em conclusão, a pelos recorrentes invocada nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615º nº 1 al. d) do CPC.

2) Do erro imputado à decisão de facto e da pertinência do seu conhecimento.

Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.

Releva ainda relembrar que o fim dos recursos – por via da apreciação da pretensão dos recorrentes – é o de validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, modificando a decisão antes proferida. Em consonância com o que tem sido entendido de forma reiterada e em respeito pelos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo.

Motivo porque e quando tal reapreciação se mostre inútil/inócua para o resultado da pretensão formulada, se deve rejeitar a mesma [vide neste sentido Acs. do TRG de 12/07/2016, nº de processo 59/12.8TBPCR.G1; e de 11/07/2017 nº de processo 5527/16.0T8GMR.G1; ainda Ac. STJ de 28/09/2023, nº de processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt].

Analisadas, quer as conclusões quer o corpo alegatório, resulta a observância dos requisitos exigidos pelo normativo assinalado [artigo 640º nºs 1 e 2 al. a) do CPC].

Em causa estão factos que os recorrentes defendem devem ser aditados e inseridos na decisão de facto como provados.

Nomeadamente, factos:

- alegados na p.i. de forma direta [vide o indicado em d) da conclusão 11 e artigo 48º da p.i.];

- alegados na p.i. de forma indireta [vide o indicado em a) da conclusão 11 e artigo 7º da p.i.];

- sequer alegados.

Vide al. c) e a parte final da al. b) da mesma conclusão 11. Sendo certo que a primeira parte da al. b) corresponde no que à parcela em causa nos autos respeita ao constante de 12 dos factos provados e que fora alegado em 26º da contestação quanto aos pais do autor marido, conforme os próprios recorrentes invocam na conclusão 7ª.

De igual forma o indicado na al. a) da conclusão 12, segunda parte não corresponde a uma alegação factual direta, antes se extraindo de outra factualidade alegada na negativa – vide o alegado em 12º e 13º da p.i.

Correspondendo o indicado na al. b) da conclusão 12 ao alegado em 7º da p.i., com exclusão da menção à existência de um portão.

- finalmente, os factos indicados na conclusão 13 respeitam ao alegado em 30º a 32º da p.i.

Ainda, pugnam os recorrentes que perante o que vem julgado provado em 8 e 15 dos factos provados, se julgue não provado que anteriormente a 92/93 a junta de freguesia ou a Câmara teve sobre tal caminho alguma intervenção (vide conclusão 16).

O que justificam alegando nenhuma prova ter dos mesmos sido produzida.


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Analisemos a impugnação aduzida à decisão de facto, para tanto relembrando o pedido formulado pelos autores e a causa de pedir para tanto invocada:

- o reconhecimento da propriedade do prédio descrito em 3º da p.i. e a seu favor registado – esta propriedade [e a que corresponde o pedido formulado sob a al. a) da p.i.], acrescenta-se desde já, não discutida e que como tal deveria ter sido reconhecida, como em sede de direito se apreciará;

- bem como a declaração e condenação do R. a reconhecer que de tal prédio faz parte a parcela identificada com um X na planta junta sob doc. 12 (a fls. 20 verso dos autos físicos).

Do pedido formulado resulta desde já incorreta a afirmação constante das conclusões 2 e 3. A pretensão formulada pelos AA. não foi nem a de ver declarado onde termina a Travessa .... Nem a de ver declarado que o troço não era um caminho público.

Em causa esteve sempre – atento o objeto do processo conformado pelo pedido e causa de pedir delineados pelos autores – a propriedade do prédio que identificaram e seus limites, nomeadamente a parcela de terreno discutida nos autos.

A discussão e prova nos autos produzida foi toda direcionada para a propriedade da parcela mencionada, pois era esse o objeto de litígio entre as partes.

Sendo a propriedade da parcela já referida o alvo da prova a produzir, resulta claro que a factualidade alegada em 30º a 32º da p.i. para o mérito dos autos nada releva. Sequer a título instrumental.

Em tais artigos foi alegada a inexistência de fontes, jardim público, estabelecimentos comerciais, igreja ou escola no arruamento onde se localiza o prédio dos AA..

Se tal poderia relevar para o reconhecimento do arruamento em questão como caminho público, facto é que este não era, não foi nunca, o objeto desta ação.

Como já tivemos oportunidade de referir, da eventual prova de que o caminho em causa, entenda-se a parcela de terreno que nos autos se discutia, não é caminho público, não deriva a procedência da pretensão dos autores – de reconhecimento de que essa mesma parcela pertencia/pertence ao prédio de sua propriedade.

Motivo por que é irrelevante para o mérito dos autos tal factualidade, cuja reapreciação se mostra pois inútil e assim é rejeitada.

O mesmo se diz da factualidade indicada na conclusão 12).

As caraterísticas do caminho antes das obras de 1992/1993 (vide fp 9) que nunca foi alegado incluísse até então qualquer parcela de terreno dos AA. e que ora se discute, é como tal também irrelevante para o mérito dos autos.

Tal como o é a factualidade que na conclusão 16 os recorrentes pretendem ver aditada – para o objeto do processo em nada releva a atuação que a junta ou a Câmara tenham assumido em relação ao caminho em causa. Pelo que também esta pretensão vai rejeitada.

Finalmente e no que respeita à factualidade indica na conclusão 11 do recurso, como já afirmado antes o constante da al. c) não foi alegado. E aliás tanto o ali indicado, como o constante da al. d) não relevam para o mérito dos autos. Tal como o indicado na al. b) da conclusão 11.

Não releva nem a razão por que os moradores cederam terreno para o alargamento do caminho, nem a razão por que o mesmo não foi prolongado até à Rua ..., nem a intenção de outro proprietário pretender agora abrir uma entrada para o atual caminho.

Ou bem que em causa está uma demonstrada (e alegada) propriedade dos AA. sobre uma parcela de terreno em relação à qual terceiros pretendem aceder/acedem em violação da propriedade dos AA. e então sim, tal será eventualmente violador do seu direito de propriedade - desde que a contraparte não demonstre ser titular de um outro direito que legitime tal atuação, como é próprio de uma qualquer ação de revindicação a instaurar contra aquele que viola o direito de propriedade do respetivo titular. Ou então carece de fundamento a pretensão dos AA.. Sendo ainda de referir que in casu, nem sequer os terceiros (entenda-se o vizinho terceiro invocado) é nos autos demandado.

Assim, é para a pretensão dos AA. de reconhecimento da titularidade do direito de propriedade que reclamam, tal circunstancialismo irrelevante.

Pelo que igualmente se rejeita a reapreciação da matéria contida nas als. b), c) e d) da conclusão 11.

Resta o alegado na al. a) da conclusão 11, quanto à configuração do caminho antes das obras de 92/93 e nomeadamente se então o caminho existente terminava junto ao prédio dos autores.

Ora vindo provado que os pais do A. marido, à data proprietários do prédio em questão, cederam a parcela em questão para alargamento do caminho – vide fp 12, caminho este mencionado em 7 a 12 dos factos provados, resulta desta realidade que até então esta mesma parcela não fazia parte do caminho.

E, uma vez mais, para o objeto da ação, é o que relevava apurar.

Pelo que se mostra inútil para o mérito do recurso apurar até onde se prolongava esse mesmo caminho, antes das obras de 92/93.

Assim igualmente se rejeita a apreciação da prova, para introdução da al. a) da conclusão 11 nos factos provados, por inócua para o mérito do recurso.

Alegou ainda o recorrente existir contradição entre o julgado provado e constante de 12º dos factos provados e o julgado não provado em 1 dos factos não provados.

Para tanto invocando ainda o alegado em 26º da contestação, onde o R. afirmou que os pais do A. marido cederam a parcela de terreno em questão para alargamento do caminho e pavimentação do mesmo.

A redação deste ponto 1 dos factos não provados tem de ser entendida de forma conjugada não só com o que consta em 12 dos factos provados, mas também com o que vem provado em 8 a 11 e 13 a 16.

Dos quais resulta não vir provado o que consta em 1 dos factos não provados, ou seja que a atuação dos AA. ou antepossuidores, seus pais, tenha ocorrido nos termos descritos em tal ponto factual de forma ininterrupta e até 2020 (atento o que vem provado em 16) precisamente pela conduta apurada e constante de 12 e seguinte dos factos provados.

Neste contexto inexiste a imputada contradição factual (vide conclusão 7).

Do exposto, resulta a total improcedência da pretendida alteração da decisão de facto. Seja por em parte não ser relevante para o mérito dos autos o que se pretende seja aditado, seja por no restante improceder a argumentação apresentada.

Pelo que se mantém na integra a decisão de facto constante da decisão recorrida.


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3) Do erro na aplicação do direito.

Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].

Conforme consta do relatório supra elaborado, peticionaram os AA. nos autos o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel descrito em 3º da p.i..

Direito de propriedade que não só se impõe ser reconhecido, atendendo ao que vem provado de 1 a 4 dos factos provados – beneficiam os recorrentes da presunção de titularidade sobre o prédio identificado por a seu favor registada a aquisição na CRP (vide facto provado 4 e o disposto no artigo 7º do C. Registo Predial) - como tão pouco foi questionado pelo recorrido, que logo a reconheceu. Apenas tendo questionado os limites do prédio em causa, nomeadamente em relação à parcela de terreno descrita em 12) dos factos provados e a que respeita o pedido identificado sob a al. b) do pedido formulado na p.i. pelos autores.

Assim, têm os recorrentes o direito a ver reconhecida a sua propriedade sobre o prédio em questão, ainda que seja correta a afirmação do tribunal a quo de que este pedido de reconhecimento da propriedade era o pressuposto para a procedência da segunda pretensão pelos mesmos AA. formulada – esta já relativa aos limites da sua propriedade, a qual aqui sim mereceu a oposição do recorrido.

E, no que aos limites da sua propriedade concerne, atenta a não alteração da decisão facto, impõe-se concluir pela improcedência do recurso nesta parte, já que a presunção da titularidade do direito de propriedade decorrente do previsto no artigo 7º do CRP não abrange a área, os limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo predial[4].

Quanto a estes limites e concretamente quanto à parcela em causa, incumbia aos recorrentes alegar e fazer prova de que sobre a mesma praticaram atos de posse correspondentes aos de um proprietário por tempo suficiente para, por via da usucapião, meio de aquisição originária do direito de propriedade (independente do direito de propriedade anterior), lhe ser reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma, como o peticionaram.

A eventual posse, derivada da atuação descrita em 16 dos factos provados desde 2020 não confere aos AA. o direito a ver-lhes reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela em questão por via da usucapião.

A usucapião é a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que quando mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito real a cujo exercício corresponde a sua atuação possessória - artigo 1287º do C.C..

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real (artigo 1251º).

Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente quer da validade substancial do negócio jurídico (artigo 1259º).

Diz-se de boa-fé quando o possuidor ignora ao adquiri-la que lesa o direito de outrem. Presumindo-se de boa-fé a posse titulada e de má-fé a não titulada (artigo 1260º).

No que concerne aos imóveis, e conforme dispõe o artigo 1294º, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar: a) quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado por dez anos contados desde a data do registo; b) quando a posse, ainda que de má-fé, houver durado quinze anos contados da mesma data.

Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse – artigo 1295º - a usucapião tem lugar: a) se a posse tiver continuado por cinco anos, contado desde a data do registo e for de boa-fé; b) se a posse tiver continuado por dez anos a contar da mesma data, ainda que não seja de boa-fé.

Sendo que a mera posse só será registada em vista de sentença passada em julgado na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não inferior a cinco anos (n.º 2 do artigo ora em citação).

Finalmente e quando não haja nem registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé (artigo 1296º).

Tendo presente os pressupostos da usucapião acima expostos e no confronto com os factos dados como provados, atendendo em especial ao constante de 12 e 16 dos factos provados, resulta claro não terem os AA. provado o direito a verem reconhecido o direito de propriedade sobre a parcela em questão por via da usucapião.

Resta por último apreciar o argumento aduzido pelos recorrentes relativo à presunção da titularidade do direito derivada da posse, por referência ao disposto no artigo 1268º nº 1 do CC.

Tal qual resulta da análise jurídica que se vem fazendo, os AA. intentaram uma típica ação de reivindicação, por via da qual requereram o reconhecimento da sua propriedade sobre um prédio que descreveram, mais alegando desse mesmo prédio fazer parte uma concreta parcela de terreno – a descrita no pedido formulado sob a al. b). Parcela que requereram fosse declarado e a R. condenada a reconhecer que a mesma faz parte do referido prédio.

Na ação de reivindicação é ónus do A. a prova do facto constitutivo da propriedade e da posse por outrem. E ónus do R. a invocação de facto impeditivo da restituição (cfr. art.º 342º nº1 e 2 do C.C).

Propriedade que o A. terá de demonstrar ter adquirido por via derivada ou originária.

Ou seja, é a ação de reivindicação uma ação real de defesa da propriedade.

Por contraponto à ação de reivindicação, na ação possessória defende-se a posse, por um dos meios típicos previstos pelo legislador: ação de prevenção, manutenção ou restituição da posse a que acrescem os embargos de terceiro (vide artigos 1276º, 1278º e 1285º do CC). Ações estas sujeitas à observância dos seus próprios requisitos.

A posse convocada pelo recorrente com base no previsto no artigo 1268º do CC releva para efeitos de reconhecimento do direito a defender a posse, em sede de ação possessória.

Não para efeitos de ação de reivindicação em que é peticionado o reconhecimento do direito de propriedade do requerente sobre determinada parcela de terreno.

Em suma, a invocada posse em nada altera o decidido pelo tribunal a quo e acima já analisado.

Tal como corretamente justificado na decisão recorrida, analisando o pedido formulado relativo à parcela de terreno que se discutiu:

“(…) constitui jurisprudência pacífica que a presunção da titularidade do direito de propriedade constante do artigo 7.º do CRPredial não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo, pois o registo predial não é, em regra, constitutivo e não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio.

Acresce que o próprio registo a favor dos autores contraria a sua pretensão na medida em que, por força de averbamento realizado pelos anteriores proprietários (posto que se trata de averbamento por apresentação, para a qual só têm legitimidade os mesmos, nos termos do artigo 38.º, n.º 1, al. a), do CRPredial), a confrontação do prédio, a poente, encontra-se descrito como caminho, quando anteriormente era “GG e caminho de servidão” – pontos 1 a 3, dos factos provados.

Tal averbamento compreende-se na sequência dos atos praticados pelos pais do autor, anteriores proprietários e possuidores do prédio, constantes dos pontos 12 e 13, dos factos provados, os quais cederam, na sequência da deliberação referida no ponto 7, dos factos provados, uma parcela de terreno, em toda a extensão do seu prédio, para alargamento do caminho e pavimentação do mesmo, ficando o caminho, a partir daí, na confinância com o prédio dos autores, com a configuração assinalada com “x” no documento a fls. 20vso dos autos e, imediatamente a nascente da mesma, construíram um muro de vedação, deixando livre para o caminho a mencionada parcela.

Tais factos constituem, por parte dos pais do autor, uma clara cedência da parcela cuja propriedade estes reclamam àquele caminho, posto que a Travessa ..., pelo menos desde então, se encontra aberta ao trânsito, tem infraestruturas básicas realizadas pela autarquia, placa com a respetiva designação aplicada pela mesma e é por esta regularmente limpa e mantida.

Por outro lado, pese embora tenham alegado factos nesse sentido, os autores não lograram provar que eles ou os seus antepossuidores sempre exerceram o poder de facto e utilizaram, efetivamente, a concreta faixa de terreno cuja propriedade reclamam.

A usucapião encontra-se prevista no artigo 1287.º do Código Civil, o qual dispõe que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação”.

Adotando a conceção subjetivista da posse, diremos que, para lograrem o reconhecimento da propriedade por esta via, os autores teriam que ter provado que fazem uso das utilidades da parcela de terreno em causa há mais de vinte anos, comportando-se como proprietários dela com conhecimento e aceitação do réu.

Ora, não tendo os autores logrado provar tal factualidade, também por esta via soçobra a sua pretensão.”

Do exposto se conclui pela improcedência do recurso dos AA. quanto ao pedido formulado sob a al. b).

E pela procedência do recurso quanto ao pedido formulado sob a al. a).

Pedido este que aliás, como também já antes referido, não mereceu oposição do R..

Quanto a custas e porquanto os AA. não alegaram sequer que o R. alguma vez tivesse questionado a titularidade do prédio descrito em 3º da p.i., titularidade que aliás logo reconheceu na contestação, antes e apenas estando em causa a parcela de terreno que foi discutida, nesta parte improcedendo a pretensão dos AA., serão os mesmos responsáveis pela totalidade das custas [vide artigos 533º e 535º nº 2 al. a) do CPC].


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III. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a presente apelação, consequentemente e revogando parcialmente a decisão recorrida, decidindo:
- Condenar o R. a reconhecer que os AA. são os proprietários e possuidores do prédio identificado em 1º, 3º e 4º da p.i.;
- No mais mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, tanto do recurso, como da ação.
Notifique.

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Porto, 2024-11-11
Fátima Andrade
Anabela Morais
Ana Olívia Loureiro
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[1] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in www.dgsi.pt
[2] Vide também Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento; ainda Ac. TRP de 24/01/2018, nº de processo 19656/15.3T8PRT.P1 sobre a distinção entre erro ou vício da decisão de facto e nulidade de julgamento. Ambos in www.dgsi.pt
[3] Neste sentido Francisco Almeida in ob. cit., p. 371; Ac. STJ de 30-09-2010, Relator Álvaro Rodrigues, Ac. STJ de 06/12/2012, Relator João Bernardo e mais recentemente Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Tomé Gomes (ambos in www.dgsi.pt/jstj), este último convocando o ensinamento de José Alberto dos Reis in CPC anotado, vol. V, 1981, p. 144-146 sobre a distinção entre erro de julgamento e nulidade de sentença nos seguintes termos (ainda por referência ao anterior 664º do CPC, hoje artigo 5º do CPC e no caso considerando o excesso de pronúncia, mas aplicável por identidade de razões à omissão): “(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
[4] Cfr. Ac. STJ de 12/01/2021, nº de processo 2999/08.0TBLLE.E2.S1 in www.dgsi.pt entre outros