INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTE
CRÉDITO LABORAL
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO GERAL
CREDOR SUBORDINADO
Sumário

Da responsabilidade da relatora – art.º 663º nº7 do CPC.
1 -  Não foi replicada, para as sociedades por quotas e seus gerentes, a regra do art.º 398º do CSC pelo que duas possibilidades se abrem: ou o art.º 398º é uma norma excecional que não pode ser aplicada analogicamente, tendo como consequência que estamos perante uma lacuna a preencher, ou a norma deve ser analogicamente aplicada e existe uma incompatibilidade prevista por lei (por analogia) que determina a suspensão do contrato de trabalho de um trabalhador que assuma a qualidade de gerente, nos termos do nº5 do art.º 296º do CT.
2 – Determinada a suspensão do contrato de trabalho, há que ter em conta que o tempo de suspensão se conta para efeitos de antiguidade, pelo que todo o tempo decorrido desde que o trabalhador assumiu a qualidade de gerente conta para os efeitos do cálculo da compensação pela extinção do contrato de trabalho por caducidade – cfr. arts. 347º nº5 e 366º do CT.
3 – O crédito devido por compensação pela cessação do contrato de trabalho sendo um  crédito laboral, é um crédito privilegiado, nos termos do disposto no art.º 333º do CT, pelo que, nos termos do disposto no art.º 47º nº 4, al. b) do CIRE, não pode ser qualificado e graduado como subordinado, mesmo quando detido por pessoa especialmente relacionada com o devedor.
4 – Um gerente de uma sociedade por quotas declarada insolvente é pessoa especialmente relacionada com o devedor nos termos da al. c) do nº 2 do art.º 49º do CIRE.
5 – Um sócio de uma sociedade por quotas, só por esse facto, não é pessoa especialmente relacionada com devedor nos termos da al. a) do nº 2 do art.º 49º do CIRE, dado que não é responsável legal nos termos do art.º 6º nº2 do CIRE, atento o disposto no art.º 198º do Código das Sociedades Comerciais.

Texto Integral

1. Relatório
A…, Lda, foi declarado insolvente por sentença de 12/01/2017, transitada em julgado.
Foi reclamada a verificação e graduação de créditos sobre a insolvente, nos termos e prazo estabelecidos para o efeito.
O Administrador da Insolvência apresentou em 06/03/2017 a lista prevista no art.º 129º do CIRE, nela constando como reconhecido, entre outros, o crédito reclamado por CM, no montante de € 37.712,15, como dotado de privilégio mobiliário geral.
Foram apresentadas várias impugnações à lista de credores, nos termos do disposto no art.º 130º do CIRE, entre as quais por AS, credora reclamante, que impugnou o crédito reconhecido a CM, alegando que aquele foi trabalhador da insolvente entre 02/01/86 e 19/09/96, mas que a partir dessa data desempenhou as funções de sócio gerente da insolvente situação que se verificou desde então e se mantinha à data da declaração de insolvência. Existe incompatibilidade de acumulação, na mesma pessoa das qualidades de trabalhador e de sócio gerente. Caso assim se não entenda sempre dependerá da prova de subordinação jurídica. Caso assim se não entenda tais créditos deverão ser qualificados como subordinados nos termos dos arts. 48º e 49º nº 2, als. a) e c) do CIRE, que prevalecem sobre o art.º 333º do CT. Pediu o não reconhecimento dos créditos.
Notificado, veio CM responder à impugnação alegando que nunca cessou o seu contrato de trabalho, tendo mantido sempre as suas funções de vendedor, sob as ordens e direção do gerente MA, visto ser ele o sócio maioritário e o verdadeiro dono do negócio. Em 1996, com a doença do seu pai foi-lhe solicitado que assumisse nominalmente a gerência, o que fez, apenas lhe sendo entregues documentos e não tendo tido qualquer aumento de remuneração.
Foi proferido despacho saneador e indicados o objeto do litígio e os temas da prova.
Foi realizada audiência de discussão e julgamento e, em 01/03/2024 foi proferida a seguinte sentença:
«V – Decisão
Face ao exposto, julgo verificados, para além dos créditos já julgados verificados na sentença proferida em 24.07.2023, o crédito de CM, no valor de € 37.712,15 (trinta e sete mil, setecentos e doze euros e quinze cêntimos), de natureza subordinada.
Procedo à graduação dos créditos, para serem pagos com o produto da venda dos bens apreendidos, da seguinte forma:
A. 2150 ações representativas do capital social da A – Sociedade …, S.A.:
1.º - Todos os créditos detidos pela A – Sociedade …, S.A.;
2.º - Créditos Laborais e Fundo de Garantia Salarial, em igualdade de situação e proporcionalmente;
3.º - Os créditos de natureza comum, todos em igualdade de situação e rateadamente;
4.º - Os créditos subordinados.
B. Demais bens e valores:
1.º - Os créditos laborais e Fundo de Garantia Salarial, em igualdade de situação e proporcionalmente;
2.º - Os créditos de natureza comum (incluindo o remanescente do crédito da A – Sociedade …, S.A. que não vier ser liquidado pelo produto da venda das ações) todos em igualdade de situação e rateadamente;
3.º - Os créditos subordinados.
As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem (artigo 172º, n.º 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Custas pela massa insolvente, nos termos do artigo 304.º, e tendo em consideração do disposto no artigo 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Registe e notifique.»
Inconformado apelou CM, pedindo sejam considerados provados os factos que indica e proferido acórdão que reconheça que os créditos reclamados pelo recorrente eram justificados pela prestação da sua atividade laboral e gozam de privilégio mobiliário geral, formulando as seguintes conclusões:
(…)
Não foi apresentada resposta ao recurso.
O recurso foi admitido por despacho de 18/07/2024 (ref.ª 436704272).
Foram colhidos os vistos.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº 3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas, são as seguintes as questões a decidir:
- impugnação da matéria de facto;
- se deve ser mantida a sentença proferida, no que toca ao reconhecimento e graduação do créditos ao credor CM em função da decisão proferida quanto à matéria de facto.
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3. Fundamentação de facto:
O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
“1. A sociedade A…, Lda. foi constituída em 1979, sendo a sua gerência exercida inicialmente por MA e por FM.
2. Na sequência de situação de doença de FM, CM, seu filho, passou a integrar a gerência da sociedade, tendo sido designado gerente em 20.06.1996.
3. Desde tal data que a gerência da sociedade é constituída por MA e por CM, sendo este sobrinho daquele.
4. A sociedade insolvente obriga-se com a assinatura de dois gerentes.
5. CM é igualmente sócio da sociedade insolvente, titular em comum e sem determinação de parte ou de direito, com HM e AM, de duas quotas no valor global de € 19.951,92.
6. Para além destes sócios, a sociedade insolvente tem ainda como sócio MA, titular de uma quota no valor de € 29.927,87.
7. Em 5.01.2017 a A…, Lda. requereu a declaração da insolvência, que veio a ser proferida por sentença de 10.01.2017.
8. CM reclamou créditos junto da Sra. Administradora da Insolvência no valor de € 37.709,74, e a sua graduação como privilegiados.
9. Para o efeito alegou ter celebrado com a insolvente um contrato de trabalho em 30.01.1986, o qual se converteu em contrato sem termo.
10. Alegou também o credor reclamante que para «além das suas funções habituais de vendedor, passou a desempenhar a função de gerente desde 02/01/1996», tendo cessado as suas funções em 17.01.2017, «data em que foi decidida a insolvência e por força desta.»
11. Reclamou o pagamento do seu vencimento de janeiro, diuturnidades e subsídio de refeição, na proporção dos dias de trabalho, compensação pela cessação do contrato de trabalho calculada com base na antiguidade do contrato de trabalho reportada a 30.01.1986, férias, subsídio de férias e proporcionais de subsídio de Natal, de férias e de subsídio de férias.
12. Concluiu ainda o credor reclamante que «não se pode presumir que o exercício de funções de gerência configura um acordo de revogação entre empregador e trabalhador, como causa de extinção do contrato de trabalho, principalmente quando aquela não importa a concreta e efectiva cessação das funções inicialmente exercidas pelo Reclamante como trabalhador por conta de outrem, que o Reclamante continuou a exercer até ocorrer o real facto extintivo da relação laboral – a declaração de insolvência.»
13. A Sra. Administradora da Insolvência reconheceu a CM um crédito no valor de € 37.712,15, com privilégio mobiliário geral.
14. MA, na qualidade de gerente da sociedade A…, Lda., e CM assinaram um contrato de trabalho pelo qual o segundo foi admitido ao serviço da sociedade para desempenhar as funções de servente, mediante a remuneração mensal de 22.500$00, com início em 2.01.1986, pelo prazo de 6 meses.
15. Posteriormente, CM passou a exercer as funções de vendedor e, em seguida, de inspetor de vendas, atividade que desempenhou até à insolvência da A…, Lda.
16. Em Dezembro de 1997 CM auferia, como inspetor de vendas, o vencimento base de 120.000$00, acrescido de 2.400$00 a título de diuturnidades.
17. Em Janeiro de 1998 CM auferia, como inspetor de vendas, o vencimento base de 150.000$00, acrescido de 2.500$00 a título de diuturnidades.
18. Este vencimento manteve-se em Fevereiro de 1998, tendo a categoria profissional constante do recibo sido alterada para gerente.
19. Do recibo de vencimento de CM respeitante ao mês de Dezembro de 2016 consta um vencimento base de € 1.250,00, diuturnidades no valor de € 46,85, sendo a profissão ali inscrita a de gerente.
20. Na ficha principal de empregados da sociedade insolvente a data de admissão de CM é de 02.01.1986, sendo a data de alteração da situação de 20.06.1996.
21. Em Dezembro de 2016 MA, o outro gerente da sociedade insolvente, auferia o vencimento base de € 1.250,00.
22. O vencimento base mais elevado dos trabalhadores ao serviço da insolvente situava-se, em Dezembro de 2016, no valor de € 950,00.
23. Era MA quem tomava as decisões correntes necessárias à atividade diária da sociedade insolvente.
24. Em 19.06.2014 CM e MA, na qualidade de gerentes da sociedade A…, Lda., assinaram um contrato de mútuo com o Banco …, S.A., pelo qual este emprestou à insolvente a quantia de € 50.000,00.
25. No âmbito de tal contrato CM e MA avalizaram uma livrança para garantia do cumprimento contratual.
26. Em 5.08.2015 CM e MA, na qualidade de gerentes da sociedade A…, Lda., assinaram um contrato de mútuo com o Banco …, S.A., pelo qual este emprestou à insolvente a quantia de € 50.000,00.
27. No âmbito de tal contrato CM e MA António avalizaram uma livrança para garantia do cumprimento contratual.
28. Em 06.01.2016 CM e MA, na qualidade de gerentes da sociedade A…, Lda., assinaram um contrato de mútuo com o Banco … S.A., pelo qual este emprestou à insolvente a quantia de € 50.000,00.
29. No âmbito de tal contrato CM e MA avalizaram uma livrança para garantia do cumprimento contratual.
Factos Não Provados
A. CM nunca viu o seu vencimento aumentado por ter sido nomeado gerente da sociedade A…, Lda.
B. A CM apenas eram dados cheques e outros documentos necessários ao giro da empresa.
C. CM não tomava qualquer decisão respeitante à sociedade insolvente, sendo estas exclusivamente tomadas por MA.
D. CM não tinha autonomia, subordinando-se sempre às decisões, ordens e instruções de MA.
E. CM não tinha quaisquer outras regalias face aos demais trabalhadores, com a sua função.
F. CM e MA decidiam tudo em conjunto.
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4. Impugnação da matéria de facto:
O atual CPC introduziu o duplo grau de jurisdição também quanto à matéria de facto havendo que aferir, relativamente a cada uma das impugnações deduzidas se estão preenchidos todos os requisitos enunciados nos n.ºs 1 e 2, alínea a) do art.º 640.º do CPC.
Na reapreciação da decisão de facto cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do CPC, devendo formar a sua própria convicção, para o que lhe cumpre avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem ter que estar sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido.
Nos termos do disposto no art.º 341.º do Código Civil (doravante CC) as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”. 
Há que atentar não apenas nas regras sobre o ónus da prova que constam dos art.ºs 342º a 346.º do CC mas também no disposto no art.º 414.º do CPC, que estabelece que na dúvida acerca da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, tal dúvida se resolve contra a parte à qual o facto aproveita.
Importa ainda recordar que o apenso de verificação e graduação de créditos em insolvência não se encontra abrangido pelo disposto no art.º 11º do CIRE, ou seja, não vigora o princípio do inquisitório, aplicando-se, sim, nos termos do disposto no nº1 do art.º 17º do CIRE a regra geral do CPC, ou seja, rege o princípio do dispositivo quanto aos factos e o princípio do inquisitório quanto às provas – cfr. art.º 5º do CPC[1].
Assim, os factos essenciais terão que ter sido alegados pela parte para que se possam considerar, podendo o tribunal considerar ainda (art.º 5º nº 2 do CPC):
- os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
- os factos complementares ou concretizadores dos que as partes tenham alegado que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; e
- os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Há a notar que, num apenso de processo de insolvência, mesmo num apenso em que não seja aplicável o disposto no art.º 11º do CIRE, como o presente, assumem grande relevância os factos de que o tribunal tem conhecimento devido ao respetivo exercício de funções e o princípio da aquisição processual (cfr. 412º e 413º do CPC), mas que tal não pode ser confundido com a aplicabilidade do princípio do inquisitório, previsto no CIRE apenas para alguns dos apensos onde se discutem essencialmente interesses gerais e comuns aos credores.
Na verdade, ao chegar ao momento da prolação da sentença no apenso de verificação e graduação de créditos, o tribunal já processou a fase declarativa da insolvência, já decidiu a abertura de qualificação da mesma, já tem bens apreendidos e, eventualmente liquidados, ou seja, já sabe muitos factos sobre a insolvente e sobre as pessoas que à volta dela gravitavam. E se esses factos forem relevantes para a decisão da verificação e graduação, pode e deve usá-los, independentemente da respetiva proveniência, desde que observadas as demais regras aplicáveis.
É neste enquadramento que devem ser analisadas as impugnações da decisão relativas à matéria de facto.
Nos termos do disposto no nº1 do art.º 640º do CPC, aplicável ex vi nº1 do art.º 17º do CIRE, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do nº 2, al. a), do referido preceito legal, no caso previsto na alínea b), deve também o recorrente, quando os meios probatórios tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de transcrição dos excertos considerados importantes, sob pena de imediata rejeição.
Nos termos da alínea b) do mesmo nº 2, cabe ao recorrido desenvolver a mesma indicação em sentido inverso, ou seja, indicar as concretas passagens que infirmam as conclusões do recorrente, e querendo proceder à sua transcrição, sem prejuízo, porém, dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
Como refere Abrantes Geraldes[2] a verificação das exigências previstas neste preceito deve ser feita à luz de um critério de rigor, já que decorre do princípio da autorresponsabilidade das partes e apenas assim se impede que este tipo de impugnação resvale no mero inconformismo. Importa, porém, não exponenciar os requisitos formais em violação do princípio da proporcionalidade, denegando a reapreciação da matéria de facto “…com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.”
É, pois, um exercício de equilíbrio que se pede, sendo necessário rigor ancorado no texto da lei, mas sem excessivo formalismo, garantindo o efetivo conhecimento em impugnação de matéria de facto, sempre que as partes cumpram, efetivamente o seu ónus.
Tal como se refere no Ac. STJ de 17/12/19[3] é “…orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”
Recorde-se que, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art.º 640º já citado, tem como solução para o seu incumprimento (diversamente da previsão do art.º 639º nº3) a rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento - cfr. arts. 635º nº4, 640º nº2, al. a) e 641º nº1, al. b), ambos do CPC.
Analisando a alegação do recorrente à luz das exigências do artigo 640º do CPC e mantendo presente que a menção à impugnação da matéria de facto e a identificação dos concretos pontos de facto erradamente julgados devem constar das conclusões [cfr. 635º nº4, 641º, nº 2, al. b) e 640º nº1, al. a), todos do CPC] e que a especificação dos meios probatórios, a indicação das passagens da gravação e a posição expressa sobre o resultado pretendido devem constar da motivação[4], constatamos que, quanto à alteração do facto nº 5, aos factos que pretende aditar identificados nas conclusões I a III e à prova dos factos dados como não provados:
- o recorrente identifica nas conclusões a menção da impugnação da matéria de facto e identifica os pontos de facto que, no seu entender foram erradamente julgado – conclusões I a IV;
- indica, na motivação e nas conclusões, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão, nomeadamente prova documental e testemunhal, identificando as passagens dos depoimentos que, no seu entender impunham resultado diverso (conclusões I a IV);
- indica, na motivação e nas conclusões, qual a decisão que no seu entender deve ser proferida - cls. I a IV.
Já quanto ao facto cuja pretensão de aditamento é efetuada apenas nas conclusões, a final, ou seja, o aditamento de um ponto “F. Não obstante ter sido inscrita na sua ficha de empregado, a sua nomeação de gerente, manteve-se nesta a inscrição de ser trabalhador por conta de outrem.”, contrariamente aos demais, não foram indicados quaisquer meios probatórios que fossem suscetíveis de suportar este aditamento, menção totalmente omitida nas conclusões e na motivação.
Assim, com a exceção assinalada, o recorrente cumpriu o seu ónus, no que respeita à impugnação da matéria de facto, pelo que cumpre apreciar a mesma.
Vai rejeitada, por incumprimento do referido ónus, a impugnação tendo por conteúdo a pretensão de aditamento do seguinte facto: “F. Não obstante ter sido inscrita na sua ficha de empregado, a sua nomeação de gerente, manteve-se nesta a inscrição de ser trabalhador por conta de outrem.”
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Antes de mais importa sistematizar e sintetizar as pretensões do apelante no tocante à impugnação da matéria de facto, dado que as conclusões apresentadas não espelham qualquer esforço de síntese.
São as seguintes as pretensões do recorrente quanto à modificação e aditamento da matéria de facto:
- alteração do ponto 5 da matéria de facto provada, do qual entende deverá passar a constar:
“5. CM, HM e AM, com a morte do sócio FM, a partir de 16/09/2021, passaram a ser contitulares de duas quotas, em comum e sem determinação de parte de direito, no valor global de €19.951,92, no capital social total de 49.879,79 da sociedade insolvente”.
- aditamento do seguinte facto que indica como 5A:
“O Sr. MA, sócio maioritário, com 60% do capital e gerente da sociedade, foi o único a emprestar dinheiro à sociedade, no montante de 411.296,39 euros e que assumiu a responsabilidade pelo pagamento do passivo bancário.”
- aditamento do seguinte facto (que indica como 15A):
“Em 15 de agosto de 1996, o valor de vencimento base, enquanto inspector de vendas era Esc. 122.220$00 (€ 609,63), tendo até, havido diminuição do vencimento-base para € 600,00.”
- aditamento do seguinte facto:
“CM era remunerado pelo exercício das funções de vendedor /inspector de vendas, com 1.250,00 €, por ser o mais antigo e com melhor Desempenho”
- aditamento do seguinte facto:
“Por motivo de doença do pai do recorrente, o qual ficou com dificuldades em assinar e não recuperou, tendo falecido em 16/09/2001, o Sr. CM foi nomeado gerente, dado que sociedade obrigava-se com duas assinaturas e era necessário assegurar a continuação da actividade.”
- aditamento dos seguintes factos:
“A viatura mercedes adquirida em 1993, que fora atribuída ao seu Pai, na qual ele fazia as vendas, estava parada, sem uso, desde a doença deste e foi posteriormente, à sua nomeação como gerente, usada pelo sr. CM, por a viatura deste ter avariado, não sendo uma remuneração de gerência, mas por conveniência da sociedade, para não ter de se adquirir outra.
Todos os vendedores tinham viaturas para fazer as vendas e todos as utilizavam da mesma forma.”
Requer ainda que todos os factos dados como não provados sob as letras A a E sejam dados como provados.
No nº 49 da motivação o apelante parece expressar impugnação do facto dado como provado sob 22, referindo não se ter fundamentado em que documentos se baseou o tribunal para dar tal facto como provado, havendo que somar comissões e concluindo que a comparação de vencimentos base não serve.
Sucede que tal matéria não foi levada às conclusões, pelo que sendo estas que delimitam o objeto do recurso (arts 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC), e sendo pacífico o entendimento consequente de que os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, alínea a) do CPC) devem figurar nas conclusões, não se pode considerar esta alegação como impugnação da matéria de facto e, consequentemente, não será apreciada.
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Passando à apreciação concreta:
Alteração do facto dado como provado sob o nº5:
O tribunal deu como provado que “5. CM é igualmente sócio da sociedade insolvente, titular em comum e sem determinação de parte ou de direito, com HM e AM, de duas quotas no valor global de € 19.951,92.”
O apelante pretende seja dado como provado:
“5.CM, HM e AM, com a morte do sócio FM, a partir de 16/09/2021, passaram a ser contitulares de duas quotas, em comum e sem determinação de parte de direito, no valor global de €19.951,92, no capital social total de 49.879,79 da sociedade insolvente”.
Para tanto indica como meio de prova a certidão do registo comercial da insolvente, apontando que não é juridicamente correto referir que é sócio, dado que é contitular de quota indivisa, entendendo também relevante a menção da totalidade do capital social.
Tudo o mais que discute a propósito deste facto – as consequências que refere terem sido tiradas pelo tribunal do facto de ser sócio, bem como a prova produzida quanto à forma como eram aprovadas as contas dirige-se já ao juízo de mérito efetuado pelo tribunal e às conclusões extraídas da matéria de facto, não sendo aptos à prova desta específica alteração.
O tribunal indicou, na fundamentação da matéria de facto, que a prova dos factos 1 a 6 decorreu da análise da certidão do registo comercial da insolvente junta com o requerimento inicial do processo principal, conjugada com o depoimento das duas testemunhas inquiridas, no que respeita às relações familiares existentes e ao motivo para CM passar a integrar a gerência da sociedade.
A alteração peticionada adita a causa de uma transmissão de quotas sem qualquer relevo para a decisão da causa (a morte do sócio FM) e a indicação da totalidade do capital social.
Sucede que da conjugação dos factos dados como provados em 5 e 6[5] resulta não só o montante global do capital social como a proporção quotista: duas quotas no valor de € 19.951,92 em comum e sem determinação de direito sendo contitulares CM, HM e AM e mais uma quota no valor de €  29.927,87 de que é titular MA.
Assim, nenhuma destas alterações é necessária, dado que se tratam de factos que já constam da matéria de facto provada.
Quanto à peticionada eliminação da expressão sócio, por juridicamente incorreta:
Um contitular de uma quota é titular de determinada posição jurídica em relação a uma quota da sociedade por quotas, é titular de direitos e deveres, tem uma posição jurídica ante a sociedade, sendo a contitularidade o modo de titularidade da parte social, no caso a quota ou quotas[6].
A sociedade por quotas é uma sociedade de capitais na qual o voto é exercido pelo capital e não pelas pessoas, embora a pessoa dos sócios seja relevante, – cfr. art.º 250º do CSC. Assim sendo, os contitulares de uma quota não têm exatamente o estatuto de sócios, apenas o de contitulares, dado que os mais significativos respetivos direitos sociais que integram esse estatuto, têm a particularidade de serem exercidos por determinada forma prescrita por lei, ou seja, através de representante comum, nos termos do nº 1 do art.º 222º do CSC.
Se tal diferença releva ou não para o efeito de se considerar este estatuto do recorrente mais ou menos próximo do estatuto de sócio é matéria a apreciar de mérito, se necessário, e não a decidir pela nomenclatura escolhida na descrição da matéria de facto.
Procede, assim, parcialmente a pretendida alteração do nº5 da matéria de facto provada, que se reformula nos seguintes termos:
5. CM é, titular em comum e sem determinação de parte ou de direito, com HM e AM, de duas quotas do capital social da insolvente, no valor global de € 19.951,92.
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Pretende o apelante o aditamento do seguinte facto que indica como 5A:
“O Sr. MA, sócio maioritário, com 60% do capital e gerente da sociedade, foi o único a emprestar dinheiro à sociedade, no montante de 411.296,39 euros e que assumiu a responsabilidade pelo pagamento do passivo bancário.”
Indica como meios de prova o relatório da administradora da insolvência e o depoimento da testemunha AM e as declarações de MA.
A parte do acervo factual que se pretende aditar relativa à percentagem do capital social detida por MA e a sua qualidade de gerente constam já dos factos dados como provados sob os nºs 3, 5 e 6.
Nenhuma das pessoas ouvidas, a irmã e o tio do apelante, confirmou o montante de suprimentos prestados. A testemunha AM disse, textualmente apenas que o seu tio “tinha lá muito dinheiro” e que aquando da insolvência o seu tio “assumiu”.
O grau de conhecimento desta testemunha sobre o passivo bancário e o demais passivo da sociedade ficou patente ser baixo quando referiu que o seu irmão havia assinado uma livrança que tinha sido paga e que as demais tinha sido o tio a fazê-las em nome pessoal, o que é frontalmente contrariado pelos documentos juntos com o requerimento inicial[7] que fundaram a prova dos factos 24 a 29, não impugnados.
MA, por sua vez não mencionou o assunto no seu depoimento – o que explica que nenhuma passagem do mesmo tenha sido identificada ou transcrita, para o efeito.
E compulsado o relatório apresentado pela administradora da insolvência (Relatório apresentado em 25/02/2017 nos autos principais, Refª 14130501), verificamos que nele não consta qualquer referência a suprimentos.
Tanto bastaria para a improcedência do pretendido aditamento, mas na verdade, compulsados os articulados (reclamação de créditos apresentada pelo apelante, lista, impugnação da lista quanto a este crédito e resposta à impugnação) verificamos que esta matéria não foi sequer aludida por qualquer dos intervenientes, pelo que só se tivessem resultado da prova produzida e considerados factos instrumentais, complementares ou concretizadores dos alegados poderiam ser considerados.
Assim, improcede o pretendido aditamento do facto identificado como 5A.
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Pede o apelante o aditamento do seguinte facto que indica como 15 A: - aditamento do seguinte facto:
“Em 15 de agosto de 1996, o valor de vencimento base, enquanto inspector de vendas era Esc. 122.220$00 (€ 609,63), tendo até, havido diminuição do vencimento-base para € 600,00.”
O apelante entende que foram desconsiderados factos por si alegados no art.º 10º da resposta à impugnação e entende que foram desconsiderados os documentos 1 e 2 que juntou com a impugnação.
Compulsando os documentos juntos com a impugnação encontramos os recibos de vencimento de 15/08/96, dos quais consta a categoria de Inspetor de vendas e o vencimento base de Esc: 122.220$00, sendo esse o primeiro documento junto. O documento seguinte é um recibo de 30/12/1997, continuando a constar a categoria de inspetor de vendas e agora o vencimento base de Esc: 122.400$00. O documento seguinte é um recibo de vencimento em nome do apelante datado de 28/02/1998 no qual já consta a categoria profissional de gerente e o vencimento base de Esc: 152.500$00.
Os factos relativos à evolução salarial e remuneratória do apelante estão já fielmente retratadas nos factos dados como provados sob 14 e ss., sendo certo que, não se tendo dado como provado o montante auferido em agosto de 1996, não há qualquer elemento nos autos (nem tal foi referido na prova por declarações, integralmente ouvidas) que permita concluir que o vencimento base do apelante diminuiu em dezembro de 2016. Não foi junto qualquer recibo de dezembro de 2016, pelo que não foi desconsiderada qualquer da prova documental produzida. Frisamos, que se trata de matéria que de todo foi alegada, o que, aliás, se coaduna com a sua irrelevância para o tema a decidir nos autos.
Também não foi desconsiderada a matéria alegada, de forma conclusiva, no nº10 da resposta à impugnação. Resulta dos factos 15 a 17 que o apelante, apesar de nomeado gerente, em dezembro de 1997 auferia um vencimento base de Esc: 122.400$00, o que, no que aqui releva é suficiente e bastante mais determinante que o facto de ganhar Esc: 122.200$00 em agosto de 1996, um mês e pouco depois de nomeado.
É, assim, igualmente improcedente a pretensão de aditamento do facto identificado como 15 A.
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Apenas nas conclusões[8], embora aí fazendo as indicações devidas (remetendo para a motivação) o apelante deduz a pretensão de aditamento do seguinte facto:
“CM era remunerado pelo exercício das funções de vendedor/inspector de vendas, com 1.250,00 €, por ser o mais antigo e com melhor Desempenho”
Indica como fundamento o depoimento de MA transcrito na motivação.
O que o recorrente pretende seja dado como provado é, não matéria factual, mas antes uma conclusão (que o apelante era remunerado como vendedor/inspetor de vendas) somada a outra conclusão (era o vendedor mais antigo e com melhor desempenho), que, na tese do apelante praticamente soluciona o desfecho da reclamação.
Não é possível consignar como facto algo que o não é.
Deve proceder-se como o fez o tribunal recorrido, que elencou os factos resultantes da prova produzida (factos 14 a 22) e depois, na apreciação, daí retirou conclusões.
A passagem transcrita[9] são as respostas dadas às perguntas que procuraram esclarecer a razão de o apelante ter o mesmo vencimento que o sócio gerente MA e não auferir o mesmo salário que os demais vendedores. E as respostas dadas foram muito pouco esclarecedoras. Perguntado porquê recebiam os dois salário igual, MA começou por referir que “não sentia que ele estivesse inferior”, passagem que não foi transcrita e acrescentou, espontaneamente e logo de seguida que “ele não fazia nenhum serviço de gerente senão as assinaturas”, ponto que nessa altura não lhe foi perguntado e que era já uma repetição.
A pergunta seguinte foi, logicamente, se era apenas esse o serviço de gerente porque não recebia como os outros vendedores. A resposta foi a parcialmente transcrita que a prestação de serviços dele era superior à maioria dos vendedores e foi logo espontaneamente acrescentado (sem pergunta) que a gerência dele era rigorosamente “assinar por causa do banco”. A esclarecimentos acrescentou que também era o mais velho e perguntado se o apelante fazia inspeção de vendas respondeu que isso era para haver “diferença de categorias”, subentendendo-se, em relação aos demais vendedores. Mas o depoimento acabou por ser ainda menos esclarecedor quando foi perguntado à testemunha se havia prémios de desempenho para os vendedores e este confirmou que sim. Perguntado se o apelante recebia prémio de desempenho respondeu que ele prestava melhor serviço, recebia mais, ou seja, fugiu à pergunta e só com insistência confirmou que o apelante não recebia prémios de desempenho e recebia o vencimento fixo.
Com estes elementos, recibos onde constava a categoria de gerente e um salário igual ao gerente e superior a todos os outros vendedores não é sequer possível ter estabilizada a base factual das conclusões que o apelante pretende ver convertidas em matéria de facto.
A base factual – que o apelante ganhava € 1.250,00 mensais de vencimento base está provado no ponto 19, onde igualmente consta que do documento de recibo constava a categoria de gerente.
Tudo o que exceda esta base factual, que tem integral correspondência com os documentos juntos (cfr. recibo de vencimento do recorrente junto com a reclamação de créditos) não pode e não deve ser aditado à matéria de facto.
Improcede, nestes termos o peticionado aditamento do facto em causa.
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Pretende ainda o apelante o aditamento do seguinte facto:
“Por motivo de doença do pai do recorrente, o qual ficou com dificuldades em assinar e não recuperou, tendo falecido em 16/09/2001, o Sr. CM foi nomeado gerente, dado que sociedade obrigava-se com duas assinaturas e era necessário assegurar a continuação da actividade.”
Indica ter alegado tal factualidade na resposta à impugnação e ter sido confirmado pelo depoimento de MA.
A nomeação de gerente do apelante, na sequência de doença do pai está já provado no facto nº2, do qual consta, textualmente, “Na sequência de situação de doença de FM, CM, seu filho, passou a integrar a gerência da sociedade, tendo sido designado gerente em 20.06.1996.”
Consta do facto dado como provado sob o nº 4 que “A sociedade insolvente obriga-se com a assinatura de dois gerentes.”
O que está peticionado é tão só uma repetição, de forma conclusiva e amalgamada, dos factos que já estão provados, incluindo o que foi alegado pelo apelante na resposta à impugnação, ou seja, o motivo da sua nomeação: a doença do pai e o facto de a sociedade se obrigar com duas assinaturas.
Improcede, nestes termos, também esta pretensão de aditamento, dado que acarretaria duplicação de factos já dados como provados.
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Prosseguindo, o recorrente entende que deve ser aditada a seguinte matéria aos factos dados como provados:
“A viatura mercedes adquirida em 1993, que fora atribuída ao seu Pai, na qual ele fazia as vendas, estava parada, sem uso, desde a doença deste e foi posteriormente, à sua nomeação como gerente, usada pelo sr. CM, por a viatura deste ter avariado, não sendo uma remuneração de gerência, mas por conveniência da sociedade, para não ter de se adquirir outra.”
Todos os vendedores tinham viaturas para fazer as vendas e todos as utilizavam da mesma forma.”
Alega o recorrente que não há qualquer referência na decisão da matéria de facto à viatura Mercedes, pelo que não concebe que se possa usar tal matéria, à qual foi dada extrema importância na sentença, mas sem se atender que a viatura foi comprada em 1993, atribuída ao pai do apelante e estava parada por causa da doença deste tendo-lhe sido atribuída porque o seu carro avariou.
Indicou como meios de prova o relatório da administradora e os depoimentos de MA e AM.
Os factos essenciais a apurar nos autos respeitavam aos temas da prova fixados oportunamente sem qualquer reclamação, sinteticamente, as funções exercidas pelo apelante na insolvente, se recebia ordens ou instruções ou estava sujeito a fiscalização, como era exercida a gerência da sociedade e quem tomava as decisões de gestão.
A revisão do CPC operada em 2013 concentrou na sentença toda a decisão da matéria de facto, como resulta do atual artigo 607º do CPC.
Na decisão relativa à matéria de facto o juiz tem necessariamente que se pronunciar sobre os factos essenciais alegados bem como sobre os factos complementares necessários, Se necessário[10] devem também ser enunciados os factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa.
“Quanto aos factos instrumentais, para além de não carecerem de alegação (aliás, o ónus de alegação respeita somente aos factos essenciais, isto é, àqueles de cuja prova depende a procedência ou improcedência da ação ou da defesa), podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final (cf. anot, aos arts. 5º, 186º e 552º). Consequentemente, atenta a função secundária que desempenham no processo, tendente a justificar simplesmente a prova dos factos essenciais, para além de, em regra, não integrarem os temas da prova, nem sequer deverão ser objeto de juízo probatório específico.”[11]
O que significa que os factos instrumentais podem ser utilizados na motivação da decisão de facto, porque contribuem para formar a convicção do julgador sem necessidade de se mostrarem espelhados como provados ou não provados na enunciação da matéria de facto provada.
Foi o que sucedeu com a matéria da viatura Mercedes. Não se tratavam de factos essenciais ou sequer complementares (como os vencimentos auferidos e categoria profissional constante dos recibos, para dar dois exemplos concretos) mas de factos instrumentais usados pelo julgador na motivação para atingir a conclusão de prova ou não prova quanto a factos essenciais e complementares.
E é assim que, em argumento da motivação da matéria de facto não provada o tribunal refere “Importa ainda ter em consideração que CM, tal como MA, eram os únicos que tinham à sua disposição um veículo Mercedes para utilização pessoal, o que mais uma vez reforça a equiparação existente entre ambos. E se os demais vendedores também podiam fazer uso do veículo que lhes era distribuído, o certo é que tais veículos eram de gama inferior, revelando uma diferença de estatuto dentro da sociedade. Esta circunstância impede a prova do facto E.”
O facto instrumental foi assim um dos elementos considerados e enunciados para a não prova de um facto complementar.
Aliás, o regime desta factualidade só podia ser este, dado que não se trata de matéria alegada por nenhuma das partes, mas que o tribunal pôde adquirir, da prova produzida, nos termos do art.º 5º do CPC.
O tribunal apenas considerou que ao apelante estava atribuída uma viatura Mercedes, valorando o facto de aos demais, exceção feita ao gerente MA, estarem distribuídas viaturas de categoria inferior. A factualidade, também instrumental, que o apelante indica como devendo ser aditada à matéria de facto provada deve, não ser dada como provada, mas ponderada quanto à não prova do facto E, cuja impugnação também foi deduzida.
Improcede, por consequência, o presente segmento da impugnação da matéria de facto.
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Requer o apelante que todos os factos dados como não provados sob as letras A a E sejam dados como provados.
Indicou como meio de prova o depoimento de MA e de AM, dos quais entende resultar que as funções exercidas elo recorrente eram de mera assinatura, não tinha poderes de decisão nem decidia e que quem tomava todas as decisões era ao gerente e sócio maioritário MA.
O tribunal fundamentou a sua convicção conjuntamente quanto aos factos provados e não provados, indicando as razões específicas da decisão, nos seguintes termos (com negritos e sublinhados nossos):
“O tribunal teve em consideração, para a formação da sua convicção, os documentos juntos, não só ao presente apenso, bem como aos demais e processo principal, e bem assim os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento.
(…)
Referiu a Sra. Administradora da Insolvência que foi MA quem se lhe dirigiu, aquando da sua comparência na sociedade insolvente após a nomeação realizada no processo principal, tendo sido com ele quem tratou de todas as matérias necessárias. Foi MA, em conjunto com trabalhadoras administrativas, que lhe forneceu os documentos contabilísticos da sociedade. Também foi com MA que discutiu o destino a dar ao stock da sociedade, com vista a encontrar as melhores soluções para as diversas mercadorias.
Revelou a Sra. Administradora da Insolvência que era este gerente quem tomava as decisões quotidianas, necessárias à prossecução da atividade diária, razão pela qual não tratou de nenhuma destas matérias com CM. Esclareceu que com este último apenas terá solicitado esclarecimentos sobre valores a cobrar aos clientes na sua zona, à semelhança do que fez com os demais vendedores.
Daqui se retira que MA era o gerente preponderante na gestão diária da sociedade insolvente, o que o próprio confirmou no depoimento prestado. Mas tal preponderância não afasta o exercício das funções de gerente por parte de CM, tendo sido o próprio quem afirmou exercê-las, na reclamação de créditos apresentada junto da Sra. Administradora da Insolvência, e que foi junta aos autos em 26.07.2023.
MA tomava as decisões correntes necessárias à atividade diária da sociedade insolvente, sem intervenção de CM, como decorre do depoimento das duas testemunhas inquiridas. Por esse motivo se considera provado o facto 23 e não provado o facto F.
Mas as decisões de fundo, que importavam obrigações relevantes para a vida e atividade da sociedade insolvente eram tomadas por ambos, já que a sociedade se obrigava como a assinatura dos dois gerentes. E este modelo de representação da sociedade poderia ter sido alterado ao longo dos 20 anos em que CM integrou a gerência da sociedade, o que não aconteceu.
Assim, sempre que CM assinava documentos que vinculavam a sociedade, tomava a decisão de fazê-lo, necessariamente consciente das consequências das suas decisões CM decidiu, de sua livre vontade, assinar os contratos de mútuo celebrados entre a sociedade insolvente e o Banco …, S.A., referidos nos factos 24 a 29. Sabia que a sua assinatura era imprescindível a tal contratualização, e que a prossecução de tais negócios dependia, também, de si. Caso se tivesse recusado a assinar, por não concordar com a sua celebração ou com os seus termos, nenhum dos contratos teria entrado em vigor.
Referiram as testemunhas que CM assinava os contratos que o seu tio, MA, lhe pedia para assinar. Mas se assim era, também tal forma de proceder era uma decisão sua e constituía um ato de gestão seu.
CM viu os contratos que assinou, viu as contas da sociedade, tanto mais que é seu sócio, tinha acesso a muitos mais documentos do que os enunciados no facto B, designadamente as contas anuais, podendo contactar o contabilista sempre que assim o entendesse ou solicitar-lhe qualquer informação, na sua qualidade de gerente e de sócio. Aliás, a sua irmã AM enumerou os elementos contabilísticos que eram entregues a todos os sócios nas Assembleia Gerais anuais, razão pela qual se considera não provado o facto B.
CM é pessoa independente e capaz, não tendo sido alegado em momento algum qualquer ato de coação para o exercício das funções de gerente. Donde, agiu sempre de acordo com a sua vontade, com a autonomia e o poder próprios de um gerente cuja assinatura é necessária à vinculação da sociedade. E a forma como exerceu a gerência foi uma escolha sua e, nessa medida, uma decisão de exercício da gestão da sociedade.
Não pode, por isso, concluir-se pela prova dos factos C e D.
Alegou o credor reclamante que o seu salário nunca foi aumentado por ter sido nomeado gerente, juntando para o efeito recibos de vencimento de Dezembro de 1997 a Fevereiro de 1998, altura em que foi alterada a sua categoria profissional nos recibos emitidos. Contudo, estes documentos não são suficientes para concluir pela prova do facto A, uma vez que CM foi nomeado gerente em 20.06.1996 e desconhece-se se nesta data teve lugar algum aumento salarial, ainda que sem alteração da categoria profissional inscrita no recibo.
Acresce que o vencimento de CM aquando da insolvência tinha um valor igual ao de MA, e superior aos restantes vendedores da sociedade, podendo por esta análise concluir-se que os dois gerentes estavam equiparados em termos remuneratórios, sendo os demais trabalhadores remunerados com valores inferiores em, pelo menos, € 300,00.
Importa ainda ter em consideração que CM, tal como MA, eram os únicos que tinham à sua disposição um veículo Mercedes para utilização pessoal, o que mais uma vez reforça a equiparação existente entre ambos. E se os demais vendedores também podiam fazer uso do veículo que lhes era distribuído, o certo é que tais veículos eram de gama inferior, revelando uma diferença de estatuto dentro da sociedade. Esta circunstância impede a prova do facto E.”
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Começando pelo facto A, podemos concluir pela correção do raciocínio do tribunal.
O próprio MA admitiu que a categoria Inspetor de vendas atribuída ao apelante era para criar uma diferenciação com os demais vendedores, que nem a antiguidade (pela qual auferia diuturnidades) nem os melhores resultados (que seriam compensados pelas comissões de vendas) explicam.
O depoimento de AM foi totalmente inverosímil neste ponto, tendo declarado ter a certeza que o irmão ganhava menos que o tio e referindo, quando interrogada se receberia comissões, que se os outros vendedores ganhavam porque não ele, ou seja, demonstrando não ter qualquer conhecimento dos factos e pretender apenas relatar o que pensava ser mais conveniente para as pretensões do irmão.
E na verdade, como referido na fundamentação só temos recibos de vencimento do recorrente de dezembro de 2016 (doc. 3 junto com a reclamação de créditos) e de agosto de 1996, dezembro de 1997, janeiro de 1998 e fevereiro de 1998 (documentos juntos com a resposta à impugnação).
Ou seja, não temos elementos de prova que nos permitam concluir que o recorrente “nunca viu o seu vencimento aumentado por ter sido nomeado gerente da sociedade A..., Lda.”
Relativamente ao facto B resultou do depoimento de MA que, de facto, ao recorrente eram dados cheques e outros documentos necessários ao giro da empresa. Mas não resultou das declarações de qualquer das testemunhas que apenas tais elementos lhe eram dados. Para além dos documentos de prestação de contas anuais – a situação descrita pela testemunha AM – que lhe eram entregues na qualidade de contitular de duas quotas, não houve qualquer referência a tal limitação.
E, na realidade, não era exatamente o que lhe era ou não entregue que relevaria, mas sim o que ele não lograsse obter se se propusesse a tal. Sendo gerente essa era uma opção que lhe cabia exercer ou não, com total liberdade, sendo maior, capaz e um profissional.
Assim, também o facto B se deve quedar como não provado.
Os factos C e D foram alvo de cuidada fundamentação por parte do tribunal, que se não vê contrariada por qualquer depoimento.
Como foi explicado, a forma como se apurou que exercia as suas funções, ou seja, sem questionar, confiando, assinando o que lhe pediam, sendo maior e capaz e não tendo sido coagido, foi opção sua.
MA disse expressamente que não sentia que o seu sobrinho lhe estivesse inferior e, em todo o seu depoimento, nunca referiu ter-lhe dado instruções ou ordens, nomeadamente quanto ao desempenho de funções deste.
AM disse que o tio dava ao recorrente instruções sobre as voltas, nomeadamente quando calhava um feriado à semana, mas também declarou que só trabalhou na empresa e ali esteve diariamente 2 ou 3 meses, que pensa terá sido em 1996, ou seja, sem situar se antes ou depois de o seu irmão ser nomeado gerente.
Os gerentes podem ter pelouros – um gerente pode só tratar de vendas e cobranças e outro da gestão de stocks e da parte administrativa-financeira. Nestes autos está-se a tentar reduzir a gestão de uma sociedade à parte financeira, quando a gestão de uma sociedade é muito mais que isso.
E ainda assim, há uma conclusão inegável a tirar: o recorrente podia perfeitamente recusar-se a assinar os cheques, os contratos de financiamento e as livranças, dado que a sociedade se obrigava com duas assinaturas, tendo optado por assinar. Ou seja, ainda que se tratassem de decisões tomadas por outro gerente, concordou. Essas foram decisões de gestão.
Por outro lado, nada impede que um gerente faça trabalho para a empresa que poderia ser efetuado por um trabalhador subordinado. Essa é, aliás, a realidade na maior parte das empresas familiares e das pequenas sociedades.
Não temos assim, elementos que nos permitam infirmar o juízo probatório negativo atingido pelo tribunal a quo, improcedendo a pretensão impugnatória do recorrente.
No tocante ao ponto E, resulta, em contrário dos factos dados como provados sob 19, 21 e 22 que o recorrente ganhava um vencimento base mais alto que os demais vendedores. É certo que não ganharia comissões (depoimento de MA) mas esse era um acréscimo variável que tanto podia ocorrer como não, sendo o vencimento base o único certo para todos.
A questão da viatura Mercedes não é, assim, decisiva, sendo-o bastante mais a diferença de vencimento. Ambas as testemunhas confirmaram que, dadas as funções nas vendas e cobranças havia necessidade de carro e que a viatura que o recorrente usava avariou, estando o Mercedes parado, pelo que, sem outros custos para a empresa, passou a andar com aquele.
Não se apurou que o Mercedes fosse atribuído a qualquer outro vendedor cujo carro avariasse, o que retiraria ao uso daquela viatura qualquer relevância. Mas ainda assim, faz sentido, embora não permitindo a conclusão contrária à não prova do facto.
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Procede, assim, parcialmente a impugnação da matéria de facto, sendo alterada a redação do facto nº5 nos termos acima decididos, improcedendo todas as demais alterações e aditamentos alegados.
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5. Fundamentação de direito
O recorrente limitou-se a requerer a revogação da decisão proferida e sua substituição em função da procedência da impugnação da matéria de facto a que procedeu.
Tendo a pretensão de impugnação da matéria de facto sido maioritariamente improcedente na parte não rejeitada, ainda assim, há que proceder à apreciação dos fundamentos jurídicos da decisão, do conhecimento oficioso deste Tribunal, com respeito pelo disposto no art.º 635º nº5 do CPC.
Desde logo se perfila como imodificável a decisão de verificação do crédito reclamado pelo credor recorrente.
O tribunal recorrido expressamente não se debruçou sobre os cálculos efetuados e a decisão de reconhecimento do crédito pelo montante global de € 37.712,15 não foi, por qualquer forma, impugnada, pelo que nesta parte não poderá este Tribunal, independentemente das conclusões a que chegue, alterar o valor reconhecido.
Está apenas em causa a qualificação do crédito, que a sentença recorrida entendeu ser, globalmente subordinado, e que o credor recorrente entende dever ser integralmente qualificado como privilegiado.
O tribunal a quo ponderando os factos apurados, da existência de um contrato de trabalho entre o credor e a insolvente e a nomeação daquele como gerente desta a determinado ponto no tempo e enumerou as caraterísticas da função de gerente e identificou a dificuldade de conjugação entre o papel de gerente de uma sociedade e de trabalhador subordinado da mesma.
Indicou o regime legal para as sociedades anónimas (398º do CSC) e a omissão do regime legal para as sociedades por quotas.
Indicou seguidamente os critérios enunciados pelo Ac. STJ de 29/09/99 para a possibilidade de coexistência da qualidade de sócio gerente e de trabalhador subordinado:
1. Anterioridade, ou não, do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente;
2. Retribuição auferida, eventuais alterações significativas ou dualidade de retribuições;
3. Natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de atividades;
4. Composição da gerência, designadamente ao número de sócios gerentes e respetivas quotas;
5. Existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
6. Dependência, hierárquica e funcional, dos sócios gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a estas atividades.
O tribunal a quo apreciou a matéria de facto provada e concluiu não estar demonstrada a existência de subordinação jurídica do recorrente à insolvente, requisito essencial para a manutenção do contrato de trabalho.
Entendeu-se que, não sendo imputável ao credor a incompatibilidade do exercício das funções de gerente coma manutenção do contrato de trabalho, este contrato ficou suspenso, nos termos do disposto no art.º 296º do CT, desde a respetiva nomeação como gerente.
E, passo seguinte, estando o contrato de trabalho suspenso, concluiu a decisão sob recurso que os créditos reclamados não decorriam do contrato de trabalho, mas sim do contrato de mandato relativo à gerência, não sendo créditos privilegiados, e sendo todos subordinados, dada essa qualidade do credor - artigos 48.º, al. a) e 49.º, n.º 2, al. a) e c) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Apreciando:
O primeiro ponto jurídico a apreciar, antes sequer da averiguação da existência de subordinação jurídica, é o estado e subsistência do contrato de trabalho que se apurou ter sido celebrado entre a insolvente e o credor em janeiro de 1986 – cfr. facto 14 – após a nomeação deste como gerente da sua entidade patronal – cfr. facto nº 2 da matéria de facto provada.
Nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 398º do CSC:
«1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.
2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.»
No âmbito das sociedades anónimas o nº 1 do art.º 398º do CSC configura uma incompatibilidade absoluta das qualidades de administrador e trabalhador. A doutrina diverge na concordância com a regra, mas a incompatibilidade é reconhecida por todos[12].
A sentença recorrida concluiu que este contrato de trabalho se suspendeu quando o credor se tornou gerente, nos termos do nº1 do art.º 296º do CT[13]. Para tanto justificou não ser a incompatibilidade entre o contrato de trabalho e a nomeação como gerente imputável ao próprio. Não podemos concordar com esta afirmação, dado que, sendo a incompatibilidade consequência dos regimes legais e funções de um trabalhador (de uma sociedade) e de um gerente (da mesma sociedade), o recorrente só se tornou gerente porque o quis, ou seja, voluntariamente[14]. Assim, esta específica incompatibilidade é-lhe imputável e resta apenas uma outra hipótese de suspensão do contrato de trabalho.
Nos termos do nº 5 do art.º 296º do CT «O impedimento temporário por facto imputável ao trabalhador determina a suspensão do contrato de trabalho nos casos previstos na lei.»
Não foi replicada, para as sociedades por quotas e seus gerentes, a regra do art.º 398º do CSC pelo que duas possibilidades se abrem, ambas com arrimo na jurisprudência e na doutrina: ou o art.º 398º é uma norma excecional que não pode ser aplicada analogicamente, tendo como consequência que estamos perante uma lacuna a preencher, ou a norma deve ser analogicamente aplicada e existe uma incompatibilidade prevista por lei (por analogia) que determina a suspensão do contrato de trabalho nos termos do nº 5 do art.º 296º do CT.
A primeira hipótese é a que suporta a posição assumida pelo tribunal a quo, ou seja, na inexistência de incompatibilidade legal, podem coexistir as duas qualidades, tratando-se de uma questão de prova da coexistência de subordinação jurídica, dado que por regra, as duas funções serão incompatíveis dado o respetivo conteúdo. A consequência da não prova de subordinação jurídica será a suspensão do contrato de trabalho, mas por via da integração da lacuna.
É também a posição maioritária, quer na jurisprudência[15], quer na doutrina[16].
Encontramos, porém, vozes discordantes, que entendem e justificam que o art.º 398º do CSC é analogicamente aplicável às sociedades por quotas e as seus gerentes[17].
No caso concreto e na economia do objeto do recurso, é indiferente a opção por uma ou outra posições.
Na sentença recorrida acolheu-se a posição da possibilidade de cumulação, não se tendo, porém, apurado factos que permitissem concluir que o credor manteve a subordinação jurídica e o contrato de trabalho enquanto revestia a qualidade de gerente.
O “reconhecimento de um vínculo laboral depende sempre da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor”[18], ou seja, neste caso, do apelante, pelo que a não prova determina a improcedência da respetiva pretensão.
Neste ponto, e independentemente da posição quanto à aplicação analógica do art.º 398º do CSC aos gerentes das sociedades por quotas, há que assim que reconhecer que, no caso concreto, é indiferente a opção porque as consequências, num caso por integração de lacuna, noutro por aplicação analógica, são uma e a mesma: o contrato de trabalho do apelante ficou suspenso quando foi nomeado gerente da insolvente.
Não temos quaisquer dados que apontem no sentido da extinção do contrato de trabalho[19] aquando da assunção da gerência, que, assim sendo, só se veio a extinguir após a declaração de insolvência por iniciativa da administradora da insolvência.
Determinada a suspensão do contrato de trabalho – que pode ser definida como a “coexistência temporária da subsistência do vínculo contratual com a paralisação de algum ou alguns dos principais direitos e deveres dele emergentes”[20] – há que aferir quais as consequências dessa suspensão.
Estabelece o art.º 295º do CT, sob a epígrafe Efeitos da redução ou da suspensão:
«1 - Durante a redução ou suspensão, mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho.
2 - O tempo de redução ou suspensão conta-se para efeitos de antiguidade.
3 - A redução ou suspensão não tem efeitos no decurso de prazo de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais.
4 - Terminado o período de redução ou suspensão, são restabelecidos os direitos, deveres e garantias das partes decorrentes da efectiva prestação de trabalho.
5 - Constitui contra-ordenação grave o impedimento por parte do empregador a que o trabalhador retome a actividade normal após o termo do período de redução ou suspensão.»
Nos termos do nº1 do preceito, durante a suspensão, para o trabalhador, apenas não se mantêm os deveres de assiduidade, obediência ou diligência, mantendo-se os deveres de lealdade. Do lado da entidade patronal suspende-se o poder de direção, mantendo-se o poder disciplinar[21].
O tempo de suspensão conta-se para efeitos de antiguidade, ou seja, todo o tempo decorrido desde junho de 1996 se conta como antiguidade para os efeitos do contrato de trabalho, devendo, para os efeitos do cálculo da compensação pela extinção do contrato de trabalho por caducidade, ser contado todo o tempo decorrido desde a nomeação como gerente – cfr. arts. 347º nº5 e 366º do CT.
O que tem como consequência a correção dos cálculos efetuados pelo credor e da respetiva verificação pelo montante compreendendo todo o período de duração do contrato de trabalho que, para este efeito, e apenas para este, compreende o período de efetividade e o período suspenso.
Verificada a correção da verificação do crédito – que sempre estaria, no caso concreto, coberta pelo caso julgado por não ter sido questionada por qualquer dos interessados – há que analisar as consequências da suspensão do contrato em termos de qualificação do crédito.
O apelante pretende a qualificação de todo o crédito que reclamou como privilegiado nos termos do disposto no art.º 333º do CT.
O tribunal qualificou todos os créditos verificados como subordinados, por serem detidos por pessoa especialmente relacionada com o devedor, nos termos dos artigos 48.º, al. a) e 49.º, n.º 2, al. a) e c) do CIRE.
A qualidade de pessoa especialmente relacionada com o devedor do credor apelante não sofre qualquer dúvida, atento que é gerente da sociedade insolvente, nos termos do disposto nos arts. 49º nº2, al. c) e 6º, nº1, al. a) do CIRE, atento o disposto nos arts. 252º e ss. do CSC[22].
Já o facto de ser contitular de quota da insolvente não constitui causa de especial relação com o devedor, contrariamente ao assumido na decisão sob recurso, dado que a al. a) do nº 2 do art.º 49º do CIRE só se aplica aos sócios que respondam legalmente pelas dívidas do insolvente.
Estabelece o art.º 6º nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que, para efeitos do código, «…são considerados responsáveis legais as pessoas que, nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário.»
Traço essencial, para que se considere preenchida a figura de responsável legal é que estejamos perante uma responsabilidade ilimitada, o que, como ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda[23] depende de dois vetores: a não dependência dos montantes das dívidas ou da sua natureza ou fonte e a afetação da totalidade das forças do património do responsável no pagamento.
Ora, basta atentar na natureza jurídica da insolvente, uma sociedade por quotas e no seu regime jurídico, para liminarmente excluirmos da noção de responsável legal para efeitos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o sócio deste tipo de sociedade, atento o disposto no art.º 198º do Código das Sociedades Comerciais: a regra é de que os sócios são solidariamente responsáveis pelas entradas convencionadas no contrato social e só poderão responder diretamente com a sociedade perante credores sociais até certo montante e se convencionado no pacto social. Ou seja, há dependência do montante e da fonte da obrigação. E se é assim para os sócios, o mesmo regime se aplica aos contitulares de quotas sociais, que igualmente apenas respondem em comum até aos mesmos montantes e pelas mesmas razões.
Estabelecida a especial relação como devedor, prescreve o art.º 48º, al. a) do CIRE que são considerados subordinados «Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;».
Importa, porém, atentar no que prescreve o art.º 47º do CIRE, no qual se estabelece a classificação dos créditos sobre a insolvência para os efeitos deste Código e em cuja al. b) do nº4 se prevê que são subordinados os créditos enumerados no art.º 48º «[excepto] quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;»
Já acima caraterizámos o crédito por compensação pela cessação do contrato de trabalho do apelante como crédito laboral, o que significa que se trata, nessa parte, de um crédito privilegiado, nos termos do disposto no art.º 333º do CT.
Sendo um crédito privilegiado, nos termos do disposto no art.º 47º nº4, al. b) do CIRE, não pode ser qualificado e graduado como subordinado
Nesse exato sentido, entre outros o Ac. TRL de 04/06/2024 (Renata Linhares de Castro – 3770/19), no qual se decidiu que o crédito de natureza laboral reclamado por credor que exerceu o cargo de gerente não pode ser considerado subordinado, precisamente por ter natureza privilegiada.
Mas apenas o crédito relativo à compensação pela cessação do contrato de trabalho tem natureza laboral e se mostra dotado de privilégio mobiliário geral.
Quando foi decretada a insolvência e cessado o contrato de trabalho, este estava suspenso e as funções exercidas pelo credor eram as de gerente da insolvente, pelas quais recebia a sua retribuição – facto 19.
O que significa que os montantes reclamados por este credor a título de remuneração não paga em 17 dias de janeiro de 2017, os proporcionais relativos ao mesmo período relativos a diuturnidades, férias, subsidio de férias e de natal, bem como subsídio de refeição e férias e subsidio de férias vencidos em janeiro de 2017 não são créditos laborais, dado que o contrato de trabalho estava suspenso e também os direitos que pressupunham efetiva prestação de trabalho, incluindo remuneração e os proporcionais.
Estes créditos, no montante de € 3.014,21, são créditos não privilegiados ou garantidos, detidos por pessoa especialmente relacionada com o devedor pelo que, nos termos dos artigos 47º, nº 4, al. b), 48.º, al. a), 49.º, n.º 2, al. c) e 6º, nº1, al. a) do CIRE são créditos subordinados pelo que, nesta parte, se mostra correto o juízo da sentença recorrida.
Procede, assim, parcialmente a apelação, sendo que, do crédito verificado ao apelante, no montante global de € 37.712,15, € 34.697,94, por serem créditos laborais, devem ser graduados como privilegiados, gozando de privilégio mobiliário geral[24] nos termos do disposto no art.º 333º, nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do Código do Trabalho e € 3.014,21 como créditos subordinados, por serem detidos por pessoa especialmente relacionada com o devedor, nos termos dos sobre apontados preceitos do CIRE, a satisfazer, no concurso com os demais créditos subordinados, pela ordem prescrita no art.º 48º do CIRE[25].
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Não são devidas custas na presente instância recursiva, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso, este não envolveu diligências geradoras de despesas e não há lugar a custas de parte por não ter sido apresentada resposta às alegações de recurso – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil [26].
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6. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência:
a) revogam a decisão recorrida na parte em que qualificou como subordinados os créditos verificados a CM no montante de € 37.712,15 (trinta e sete mil, setecentos e doze euros e quinze cêntimos);
b) qualificam os créditos de € 37.712,15 (trinta e sete mil, setecentos e doze euros e quinze cêntimos) verificados a CM nos seguintes termos:
i) € 34.697,94 (trinta e quatro mil seiscentos e noventa e sete euros e noventa e quatro cêntimos) como créditos laborais privilegiados, gozando de privilégio mobiliário geral nos termos do disposto no art.º 333º, nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do Código do Trabalho;
ii) € 3.014,21 (três mil e catorze euros e vinte e um cêntimos) como créditos subordinados;
c) determinam a graduação dos créditos referidos em b) i) em segundo lugar do ponto A da decisão de graduação e em primeiro lugar do ponto B da graduação, nos termos aí previstos para os créditos laborais;
d) determinam a graduação dos créditos referidos em b) ii) em quarto lugar do ponto A da decisão de graduação e em terceiro lugar do ponto B da graduação, a satisfazer, no concurso com os demais créditos subordinados, pela ordem prevista nas alíneas do art.º 48º do CIRE.
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Sem custas na presente instância recursiva.
Notifique.

Lisboa, 12 de novembro de 2024
Fátima Reis Silva
Nuno Teixeira
Renata Linhares de Castro
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[1] Cfr. neste sentido Ac. TRP de 28/03/2012 (Leonel Serôdio - 2384/08), disponível in http://www.dgsi.pt/  e Ac. TRL de 18/12/2019 (1240/16), por nós relatado, disponível no mesmo local.
[2] Em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, Almedina, 2022, pgs. 201 e 202.
[3] Relatora Maria da Graça Trigo, disponível, como todos os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[4] Abrantes Geraldes, local já citado, pgs. 197 e 198 e jurisprudência ali citada, confirmados pelo AUJ nº 12/2023 de 14/11, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/12-2023-224203164, no qual se decidiu uniformizar jurisprudência no seguinte sentido: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
[5] Ponto 6 da matéria de facto provada: Para além destes sócios, a sociedade insolvente tem ainda como sócio MA, titular de uma quota no valor de € 29.927,87.
[6] Assim Paes de Vasconcelos em A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª edição, Almedina, 2020, pg. 10.
[7] Documento nº 3, 4 e 5 juntos com o requerimento de apresentação à insolvência.
[8] Pg. 28 da peça de recurso.
[9] Pg. 15 da peça recursiva.
[10] Seguimos de perto Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Almedina, 2022, em anotação ao art.º 607º, pgs. 771 e 772.
[11] Autores e local citados na nota anterior.
[12] Ver, entre outros Paulo de Tarso Domingues em Administradores trabalhadores – Breves notas, Católica Law Review, Vol. II, nº2, maio de 2018, pgs. 14 a 16, Coutinho de Abreu em Administradores e trabalhadores de sociedades (cúmulos e não), em Temas Societários, IDET, Colóquios, nº 2, Almedina, 2006, pg. 17 e Marta de Sande Taborda, em Análise do artigo 398º nº 1 do CSC e a sua aplicação analógica às sociedades por quotas, dissertação de mestrado, orientada por Pedro Caetano Nunes, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Junho de 2017, pgs. 42 a 50, disponível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/32042/1/Taborda_2017.pdf.
[13] Não foi indicado o nº1 do art.º 296º mas a justificação da não imputabilidade do impedimento ao trabalhador não deixa qualquer margem para dúvidas de que foi este o preceito na mente do julgador.
[14] Não iremos aqui tomar partido na discussão sobre a natureza do ato de designação dos titulares dos órgãos sociais, dado que é muito claro que esta relação de gerência se prolongou desde 1996 e que o credor não renunciou nem promoveu a impugnação da deliberação que o nomeou.
[15] Ver, entre outros, os Acs. STJ de 29/09/99, citado, de 30/09/2004 (Vítor Mesquita - 03S2053), de 23/11/23 (Mário Belo Morgado - 2529/21) e de 25/09/24 (Mário Belo Morgado -533/19), TRG de 22/09/22 (Vera Sottomayor – 2859/20), TRE de 06/04/17 (Mário Branco Coelho - 127/15), TRP de 21/01/19 (Rui Ataíde de Araújo – 12602/16) e TRG de 13/12/14 (Fernando Fernandes Freitas - 2690/12).
[16]Ver, entre outros Raúl Ventura em Sociedades por Quotas, pgs 35 e ss., Ilidio Duarte Rodrigues em A Administração das sociedades anónimas, pg. 313, Pedro Romano Martinez em Direito do Trabalho, pg. 311, Coutinho de Abreu, local citado, pg. 19, entre outros.
[17] Paulo de Tarso Domingues, local citado, pgs. 22 e 23 e Marta de Sande Taborda, local citado, pgs. 71 a 84.
[18] Ac. TRP de 21/01/2019, já citado.
[19] Como sucedeu no caso tratado pelo Ac. TRG de 13/02/2014, já citado.
[20] João Leal Amado citando Jorge Leite em Direito do Trabalho, Relação Individual, 2ª edição, Almedina, 2023, pg. 1171.
[21] João Leal Amado, local citado, pg. 1172.
[22] Qualidade que aliás permanece, nos termos do nº1 do art.º 82º do CIRE.
[23] Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 87, em anotação ao art.º 6º.
[24] Nos autos apenas foram apreendidos bens móveis.
[25] Como anotam Labareda e Carvalho Fernandes, local citado, pg. 296.
[26] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.