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INSOLVÊNCIA
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
APREENSÃO DE BENS
MASSA INSOLVENTE
CASA DE HABITAÇÃO
EXTEMPORANEIDADE
Sumário
O campo de aplicação da remissão operada pelo art.º 150º, nº 5 do CIRE para o incidente de diferimento da desocupação de imóvel previsto pelo art.º 864º do CPC restringe-se à fase de apreensão dos bens para a massa insolvente, a título de oposição à entrega do imóvel solicitada pelo administrador da insolvência para concretização material/fáctica da apreensão, e apenas como impedimento excecional e precário à obtenção da sua imediata disponibilização pelo administrador da insolvência. (Da responsabilidade da relatora, cfr. art.º 663º, nº 7 do CPC.)
Texto Integral
Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,
I – Relatório:
1. R. apresentou-se à insolvência, que foi declarada por sentença proferida em 22.05.2019, e no cumprimento do art.º 24º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) relacionou um único imóvel, correspondente à fração "B" - Habitação …. descrito na Conservatória do Registo Predial de Seixal sob o nº….
Mais requereu o benefício da exoneração do passivo restante, que lhe foi concedido por decisão de 02.03.2023 já transitada.
2. Em 11.06.2019 a Sr.ª administradora da insolvência (AI) juntou auto de apreensão e em 30.08.2023 escritura publica de compra e venda do imóvel da insolvente, celebrada no âmbito da liquidação da massa insolvente em 29.08.2023 com o credor hipotecário, Caixa Geral de Depósitos (CGD). Pelo requerimento de 30.08.2023 a AI mais considerou concluída a liquidação.
3. Em 08.01.2024 a CGD alegou que a insolvente não procedeu à entrega voluntária do imóvel e ali permanece sem título válido, e requereu seja autorizada “a tomada de posse do imóvel adjudicado à ora credora reclamante, deferindo, desde já, o auxílio da força pública, se necessário.”
4. Em resposta a insolvente requereu a suspensão da entrega do imóvel com fundamento nos arts. 150º, nº 6 do CIRE e 863º, nºs 3 a 5 do Código de Processo Civil (CPC). Alegou que tem 78 anos de idade, padece de osteoporose, e vive no imóvel com o seu marido de 92 anos de idade que se encontra acamado 24 horas por dia, com doença aguda, não podendo ser deslocado sob pena de sofrer graves e sérios problemas de saúde, nomeadamente danos psicológicos e cognitivos, que poderão torná-lo num “vegetal”, o que, em última análise, configura um risco de vida.
5. Sobre o dito requerimento recaiu o seguinte despacho de 14.02.2024: (…) Como ponto prévio, cumpre atender que pedido de suspensão da entrega judicial da casa de morada da família da insolvente foi apresentado depois de concluída a fase da liquidação e de realizada a venda da fracção cuja entrega a insolvente requerer a suspensão, pelo que o seu deferimento depende da verificação do pressupostos exigidos pelo art.º 863.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, ex vi art.º 861.º, n.º 6 do mesmo diploma, aplicável ao processo de insolvência por força do art.º 17.º do CIRE (neste sentido, cf. Ac. TRL de 16-05-2023, proc. n.º 701/14.6T8SNT-I.L1-1, disponível em dgsi.pt). Conforme decorre do Ac. TRL de 16-05-2023 supra citado, o regime processual da fase da liquidação apenas admite a apresentação de pedidos de suspensão da entrega da casa de morada de família motivados por doença de saúde que assuma uma gravidade extrema, ao ponto de colocar em risco a vida de quem ocupe o local. Para o efeito, impõe o art.º 863.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil a junção de declaração médica que indique o prazo durante o qual se deve suspender a entrega, bem como ateste que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontre no local, por razões de doença aguda. Retornando aos autos, não foi junto qualquer atestado médico que comprove o estado de saúde da insolvente, que, em todo o caso, não configura uma situação de doença aguda que comporte risco para a sua vida. Quanto ao marido da insolvente, o atestado médico junto aos autos não indica o prazo durante o qual se deve suspender a execução, nem dele decorre que a entrega da fracção comportará risco para a sua vida, porquanto tal conclusão não se retira da circunstância de a desocupação poder “provocar danos psicológicos e cognitivos pelo stress que poderá causar” (cf. atestado médico). Nesses termos, por não estarem reunidos os pressupostos do art.º 863.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, indefere-se o requerimento de suspensão da entrega do imóvel apresentado pela insolvente. Fixa-se o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para a insolvente proceder à entrega voluntária da fracção autónoma em questão à administradora da insolvência, se outro prazo não for acordado com a adquirente. Decorrido o prazo acima mencionado sem que a fracção autónoma tenha sido entregue, desde já se autoriza a administradora da insolvência a requerer o auxílio da força pública para a desocupação e entrega da fracção à adquirente, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 754.º, n.º 2, 828.º e 861.º, n.ºs 1 e 6 do Cód. Proc. Civil e arts. 17.º do CIRE. Caso a administradora de insolvência venha a designar data para entrega coerciva da fracção, deverá dar cumprimento ao disposto no art.º 861.º, n.º 6 do Cód. Proc. Civil quanto à comunicação antecipada do facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes e ter em consideração o disposto nos arts. 863.º, n.ºs 3 a 5 do Cód. Proc. Civil na execução da diligência.
6. Em 04.04.2024 a insolvente requereu o diferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de 05 (cinco) meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder, invocando em fundamento os arts. 150º, nº 5 do CIRE e 864º, nº 1 e 2, al. a) e 865º, nº 4 do CPC. Alegou, em síntese, “não dispor imediatamente de outra habitação, a sua idade e a do seu marido, o seu estado de saúde e, sobretudo, o do seu marido, a situação económica e social deste agregado familiar e a respectiva carência de meios (…).”
7. Sobre este requerimento recaiu despacho proferido em 15.04.2024 nos seguintes termos: (…) Por força do disposto no n.º 5 do art.º 150.º do CIRE, o regime previsto no art.º 864.º do CPC é aplicável à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente. Todavia, o art.º 150º do CIRE (que permite a aplicação deste regime especial de diferimento da desocupação) integra-se no capítulo dedicado à apreensão de bens em sede de insolvência, tendo vindo a ser entendido que o insolvente não pode recorrer a este mecanismo no decurso da liquidação do activo. Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14.05.2020, processo 3910/06 TBSTS-L.P1 (…). No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.02.2023, processo 2160/22.0T8SNT-E.L1-1 (…). Também no recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.01.2024, processo 587/19.4T8VFX-E.L1-1, www.dgsi.pt, (…). (…) como resulta do processado dos autos e do supra exposto, a insolvente pretende o diferimento da desocupação, não para obstar à entrega imediata e efectiva do imóvel, apreendido para a massa, ao administrador da insolvência, mas sim para obstar à entrega do imóvel ao adquirente do bem, o que não é admissível, não sendo aplicável nesta fase processual o disposto no art.º 864º do CPC. Acresce que a invocada situação de «doença aguda» impeditiva da entrega já foi oportunamente apreciada pelo Tribunal, tendo sido indeferida a suspensão da entrega ao abrigo do art.º 863º n.º 3 do CPC, por não se verificarem os respectivos pressupostos, o que se mantém. Em conformidade com tudo o exposto, conclui-se que a dedução do incidente de diferimento de desocupação, já após a venda do imóvel, mostra-se extemporânea, nos termos do disposto no art.º 865º, n.º 1, alínea a), do CPC, ex vi do art.º 150º, n.º 1 e n.º 5, do CIRE, o que assim se declara. Nestes termos, indefere-se liminarmente o requerimento da insolvente, devendo a mesma proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 45 (quarenta e cinco dias), sob pena de recurso ao auxílio da força pública, nos exactos termos determinados no despacho de 14.02.2024.
8. Dessa decisão a insolvente interpôs o presente recurso pedindo seja revogada e substituída por outra “que determine o prosseguimento do Incidente de Diferimento da Desocupação do Imóvel, com produção de prova e subsequente decisão final.”
Juntou alegações que sintetizou nas seguintes conclusões: 1. No âmbito dos presentes autos foi proferido Despacho que indeferiu, liminarmente, o Requerimento de Diferimento da Desocupação do Imóvel constituído pela fracção autónoma designada pela letra B, destinada a habitação no rés-do-chão direito e arrecadação na cave, afeta ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida …, Casal ..., freguesia de Fernão Ferro, concelho do Seixal, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o número …., apresentado pela Insolvente, aqui Recorrente, concluindo, liminarmente, pelo indeferimento do requerimento; 2. Entendeu o Mmo Juiz a quo, que “a dedução do incidente de diferimento de desocupação, já após a venda do imóvel, mostra-se extemporânea, nos termos do disposto no art.º 865º, n.º 1, alínea a), do CPC, ex vi do art.º 150º, n.º 1 e n.º 5, do CIRE, o que assim se declara. 3. O objecto da matéria em crise é a aplicação, em sede de insolvência, do regime de diferimento de desocupação da casa de morada de família no decurso da liquidação do Activo, nos termos do artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e dos artigos 864º e 865º, do Código de Processo Civil (CPC); 4. Defende o Mmo. Juiz a quo que, como o artigo 150º, do CIRE se integra no capítulo dedicado â apreensão de bens em sede de insolvência, o insolvente não pode recorrer a este mecanismo no decurso da liquidação do activo; 5. A ser assim, também o mecanismo de suspensão de entrega de imóvel, nos termos do artigo 863º, do CPC, só poderia ser aplicado na fase da apreensão de bens, o que não acontece; 6. No sentido de que o procedimento de diferimento de desocupação de imóvel, nos termos do artigo 150º, nº 5, do CIRE, e dos artigos 864º e 865º, do CPC, se aplica no decurso da liquidação do activo, sempre se invocará o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-06-2016 (Proc. nº 277/14.4TBMCN-E.P1), in www.dgsi.pt: “I - É aplicável aos insolventes singulares o beneficio do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 150º, nº 5 do CIRE e 862º do Cód. do Proc. Civil. II - O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo. III - O pedido de diferimento da desocupação do imóvel apresentado pelos insolventes não pode ser rejeitado, sem apreciação da situação económica e social destes, apenas com fundamento no período de tempo entretanto decorrido após a sua adjudicação ao credor reclamante.” (sublinhado nosso); 7. Neste sentido, também o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 08-02-2018 (Proc. nº 164/13.3TBCBT-E.G1), in www.dgsi.pt, nomeadamente no Ponto III, do Sumário: “O diferimento da desocupação da habitação, como situação excepcional que é em relação à sua entrega após a sua venda, sempre determinaria a obrigação do requerente cumprir com o ónus de alegação e prova dos factos que permitissem o diferimento da sua pretensão.”; 8. Portanto, o procedimento de diferimento da desocupação de imóvel, previsto nos arts. 864º e 865º, do CPC, por força da remissão operada nos arts. 150º, nº 5, do CIRE, e 862º do CPC, é aplicável aos insolventes singulares no decurso da liquidação do activo; 9. Ao decidir como decidiu, o Mmo Juiz a quo violou os artigos 864º e 865º, do CPC, por força da remissão operada nos arts. 150º, nº 5, do CIRE, e 862º do CPC, ao indeferir liminarmente o requerimento de diferimento de desocupação do imóvel constituído pela fracção autónoma designada pela letra B, destinada a habitação no rés-do-chão direito e arrecadação na cave, afeta ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., Casal ..., freguesia de Fernão Ferro, concelho do Seixal, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o número ...; 10. A Insolvente preencheu, com prova documental junta aos autos e com a indicação de prova testemunhal, os requisitos preceituados nos artigos 864º e 865º, do CPC - não dispor imediatamente de outra habitação, a sua idade e a do seu marido, o seu estado de saúde e, sobretudo, o do seu marido, a situação económica e social deste agregado familiar e a respectiva carência de meios.
9. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Objeto do recurso – Questões a apreciar:
É consensual que, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do art.º 662º nº 2 e 608º, nº 2, este, ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do CPC, o objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), e que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais para reponderação do julgamento por ela realizado, destina-se apenas à reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo, pelo que mister é que a matéria das conclusões se contenha no âmbito das questões cuja apreciação integram ou devam integrar o objeto da decisão objeto do recurso. Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa (ou do incidente), se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Assim, considerando o objeto e teor da decisão recorrida e as conclusões enunciadas pela recorrente, cumpre aferir da admissibilidade do incidente de diferimento de desocupação do imóvel no âmbito do processo de insolvência depois de cumprida a sua venda pelo administrador da insolvência.
III – Fundamentação de Facto
Relevam para a apreciação do mérito do recurso as incidências processuais e da liquidação acima descritas no relatório, para o qual se remete.
IV – Fundamentos do recurso
1. Tratando-se de incidente deduzido no âmbito de processo de insolvência, nos termos do art.º 17º do CIRE a questão suscitada é regulada pelas normas especialmente previstas no CIRE e pelas disposições do Código de Processo Civil para as quais aquele expressamente remete, ou outras que na falta ou insuficiência das expressamente previstas sejam subsidiariamente aplicáveis. Em qualquer caso, as disposições gerais ou especiais do CPC só se aplicam na medida em que não contrariem as disposições do CIRE ou, de um modo mais abrangente, as características e finalidade do processo de insolvência.
Para melhor compreensão importa proceder à contextualização da questão por referência às atividades de apreensão e liquidação no âmbito do processo de insolvência.
No caso estamos perante insolvência de pessoa singular não empresária, à qual a recorrente se apresentou identificando os bens de que é titular, pelo que lhe corresponde processo de insolvência liquidatário que, no essencial e nos termos previstos pelo art.º 1º, se caracteriza como processo de execução universal e concursal que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art.º 46º, nº 1 e 2 (…) salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação/venda dos bens que integram o património do devedor.
Sob a epígrafe Apreensão dos bens prevê o art.º 149º, nº 1 do CIRE que, Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente. Sob a epígrafe Entrega dos bens apreendidos prevê o art.º 150º, nº 1 que O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
Destas normas, assim como do art.º 36º, nº 1, al. g)[1], decorre que o AI é judicial e automaticamente investido no poder-dever de diligenciar pela imediata apreensão de todos os bens que integram a massa insolvente, dos quais, na qualidade de representante legal da massa insolvente, fica depositário, administrador e liquidatário. Mais resulta que o cumprimento da apreensão dos bens pressupõe a atividade material do AI para que, aferindo da efetiva existência, localização, descrição e estado dos bens que integram a massa insolvente, diligencie para que estes fiquem na sua disponibilidade fáctica, poder que não só se compatibiliza como é condição de cumprimento dos deveres de administração e frutificação dos bens da massa insolvente que, até à venda dos bens, lhe estão legalmente deferidos (arts. 55º, nº 1, al. b) e 81º, nº 1 do CIRE); deveres cujo cumprimento pressupõem a referida disponibilidade jurídica e material sobre os bens que a integram enquanto representante da massa insolvente e do coletivo dos credores da insolvência. (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º).
É com a referida amplitude que o nº 1 do art.º 150º prevê expressamente o poder do AI proceder à apreensão (jurídica e material) dos bens da massa insolvente, e o dever de diligenciar o necessário para que os bens lhe sejam entregues logo que seja declarada a insolvência do devedor (ou seja, sem que dependa de qualquer prévia apreciação, sindicância ou decisão judicial nesse sentido para além da já declarada insolvência). Poder e dever que logicamente decorrem da sua qualidade legal de representante da massa insolvente, de [d]efensor dos seus interesses e enquanto “órgão funcional” da insolvência, ou seja, enquanto órgão dotado de funções adequadas à realização prática dos valores tutelados pelo Direito da Insolvência[2].
Por pertinente ao caso anota-se que no contexto da finalidade imediata do processo de insolvência de cariz liquidatário (conversão do património do devedor em dinheiro) e das características da celeridade e da desjudicialização que em benefício da mesma o legislador lhe atribuiu e justificam as especificidades do seu regime e os poderes-deveres atribuídos ao AI, não se compreenderia que, sendo a massa insolvente integrada por imóvel que constitui casa de habitação do devedor, este pudesse impor e opor ao AI e, assim, aos credores da insolvência, a manutenção dessa qualidade de morador e continuar a beneficiar das utilidades de um imóvel da massa insolvente em detrimento da célere satisfação dos interesses dos seus credores (e até da possibilidade de, na pendência da liquidação e até à sua venda, dele serem retirados rendimentos em benefício da massa insolvente). Da mesma forma que não se compreenderia que o devedor morador, por ser depositário do bem, nessa qualidade (por natureza, de auxiliar da justiça) pudesse obstar ou dificultar o célere cumprimento da liquidação e, assim, a mais rápida satisfação dos direitos do universo dos credores através da pronta realização da venda do bem objeto do depósito a interessado proponente que, nas negociações com o vendedor massa insolvente, estabeleceu como condição para a formalização/celebração da compra e venda a verificação da desocupação do imóvel de pessoas e bens; sendo que esta corresponde à situação de facto que, no confronto com interesses individuais do devedor ou do credor depositários, maior segurança ou garantia confere ao AI, de dar imediato cumprimento ao dever que emerge da celebração da venda, de entrega do bem ao comprador, e, na mira do adquirente, a que com maior segurança lhe garante o imediato ingresso na posse e disponibilidade material do imóvel, porque dependente única e exclusivamente da vontade e ação do AI. Poder que enquadra e cria condições para o cumprimento do disposto no art.º 158º, nos termos do qual, Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.
2. Regime que não contempla exceção quando o imóvel da massa insolvente constitui a casa de habitação do insolvente, relativamente ao qual o poder-dever de apreensão ‘material’ do AI nos moldes expostos sofre apenas as limitações – excecionais e precárias - que decorrem da aplicação dos arts. 861º, 863º a 866º do CPC, por força da remissão para o art.º 862º do mesmo diploma, diretamente operada pelo art.º 150º, nº 5 invocado pela recorrente (prevê-se aqui que À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil.).
Por força da dita remissão o insolvente pode requerer, ou a suspensão da desocupação do imóvel se esta, conforme prevê o nº 3 do art.º 863º, colocar em risco de vida pessoa com doença aguda que se encontre no local; ou o diferimento da desocupação com fundamento nas ‘razões sociais imperiosas’ previstas no art.º 864º, nº 2[3] e desde que cumulativamente com estas se verifique carência de meios do insolvente para dispor imediatamente de outra habitação, que se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção, ou que o insolvente seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. Sendo concedido, o diferimento da desocupação não pode exceder o prazo de cinco meses a contar do trânsito em julgado da decisão que o conceder (art.º 865º, nº 4 do CPC).
Na interpretação que se faz das normas citadas, especialmente do art.º 150º, nº 1 do CIRE, pela conjugação da sua inserção sistemática e respetivos elementos literais com a natureza e finalidades do processo de insolvência, aderimos ao entendimento manifestado nos acórdãos citados pela decisão recorrida, incluindo acórdãos desta secção de 28.02.2023 (este subscrito como adjunta pela aqui relatora) e 16.01.2024, no sentido de o campo de aplicação da remissão por ele operada se restringir à fase de apreensão dos bens para a massa insolvente a título de oposição ao pedido de entrega do bem pelo AI para concretização material/fáctica da apreensão, e apenas como impedimento precário ou temporalmente limitado à imediata disponibilização dos bens ao AI.
Enquadrado no Capítulo I (Providências conservatórias) do Título VI (Administração e liquidação da massa insolvente) do CIRE, o art.º 150º que, como da sua epígrafe consta, regula a Entrega dos bens apreendidos, reporta apenas e exclusivamente à fase da apreensão dos bens para a massa insolvente pelo AI, e não se vislumbram elementos que permitam a sua aplicação extensiva à fase da liquidação e, menos ainda, depois de cumprida a venda do imóvel, em que já está em causa a tutela do direito de propriedade de quem adquiriu – e das inerentes faculdades de disposição e fruição do bem adquirido -, e já não, como sucede na fase da apreensão dos bens, a satisfação coerciva de direitos de crédito por recurso ao produto da venda dos bens do devedor, fase em que o imóvel se mantém na titularidade formal do executado/devedor (ainda que sem o poder de disposição) e em que a suspensão ou o diferimento da desocupação interfere ‘apenas’ com a maior ou menor celeridade no cumprimento daquela finalidade, mas já não com o direito de propriedade de terceiro sobre o bem objeto do pedido de entrega.
A existirem são argumentos sistemáticos no sentido contrário, designadamente, o que é passível de se extrair do estabelecido pelo art.º 747º, nº 1[4] do CPC (Os bens do executado são apreendidos ainda que, por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro (…), que consagra a preferência do legislador pela tutela do interesse patrimonial do titular do direito de propriedade sobre o imóvel quando em confronto com o interesse – qualquer que ele seja - do seu ‘mero’ detentor, preferência que é corroborada pelo regime da execução para entrega de coisa certa para que remete o art.º 150º, nº 5 e que a recorrente convoca.
Com efeito, note-se que:
- no âmbito da execução para entrega de imóvel que constitui a casa de habitação principal do executado, o nº 6 do art.º 861º do CPC (estabelece que Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.) prevê apenas a aplicação dos nºs 3 a 5 do art.º 863º do CPC; ou seja, admite apenas a suspensão da entrega do imóvel, e já não o diferimento da desocupação prevista pelo art.º 864º do CPC como vem requerido pela recorrente;
- a suspensão prevista pelo art.º 863º, nº 3 e 4 do CPC tem caráter excecional e assaz precário posto que visa prevenir e atalhar ao risco de morte que sobrevém da imediata execução da desocupação do executado ou de outrem que com ele resida no imóvel por motivo de doença aguda, sendo que esta se caracteriza como doença de início súbito e inesperado, de evolução rápida e curta duração, em contraposição com a doença crónica, que se carateriza como doença de progressão lenta e duração prolongada (como é o caso da alegada doença de osteoporose da insolvente, e da situação do seu marido de 92 anos de idade que se encontra acamado 24 horas por dia);
- fora da referida situação excecional do imediato risco de vida por doença aguda, nos casos em que se suscitam sérias dificuldades no realojamento do executado, o nº 6 do art.º 861º apenas impõe ao executor da entrega a comunicação antecipada do facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes, e já não a suspensão da entrega;
- finalmente, e ao que aqui releva, o diferimento da desocupação previsto pelo art.º 864º do CPC incide sobre imóvel que é objeto de arrendamento para habitação e que é ocupado a esse título, sendo que, a ser concedido, é sem prejuízo da exigibilidade e pagamento das rendas correspondentes ao período de diferimento, contrapartida que ‘mitiga’ a compressão que o diferimento da desocupação – por período temporal limitado e até ao prazo máximo de 5 meses (cfr. art.º 865º, nº 4 do CPC)- impõe ao proprietário e/ou senhorio do imóvel.
Por referência a este ultimo argumento, a compressão do direito do proprietário que a suspensão ou o diferimento da desocupação comporta pressupõe que o ocupante que o requer seja detentor de título sobre o imóvel que juridicamente lhe legitime a ocupação que até aí dele vinha fazendo e seja oponível ao titular do direito de propriedade: no caso do arrendatário, o contrato de arrendamento celebrado com o proprietário do imóvel; no caso do executado ou do insolvente, a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel, que apenas persiste até que este seja vendido (na execução ou na insolvência). Depois de cumprida a venda coerciva do imóvel para satisfação de direitos de crédito sobre o seu proprietário, como é referido no acórdão acima indicado, “os insolventes não deduzem pedido de diferimento da desocupação com vista a obstar à entrega imediata e efetiva do imóvel que habitam, apreendido para a massa, ao administrador da insolvência, deduzem o pedido formulado com vista a obstar à entrega do imóvel ao adquirente do bem, em temos que, como a seguir se verá, não são aceitáveis.” E acrescenta, “(…) regime processual consagrado para a fase da liquidação, seja esta realizada no âmbito da execução (singular) para pagamento de quantia certa, seja no âmbito da insolvência, não se compadece com a formulação de pedidos de diferimento da desocupação como o que ora está em análise, “por razões sociais imperiosas”. Assim, o adquirente do bem em venda coerciva tem direito a receber os bens que adquire livre de ónus e encargos, devendo o bem ser entregue acompanhado do título de transmissão (art.º 824.º do Código Civil e art.º 827.º, nº1 do CPC); nos termos do art.º 828.º do CPC, o adquirente pode agir contra o detentor no próprio processo, podendo este obstar à entrega apenas por via do mecanismo a que alude o art.º 861.º, nº6 do CPC – atenta a remissão feita no citado preceito para o regime do referido art.º 861.º do CPC–, com a consequente possibilidade de suspensão da diligência executória no estrito condicionalismo indicado nos números 3 a 5 do art.º 863.º do CPC, que não se confunde com a ratio subjacente ao incidente de diferimento da desocupação.
No caso, o imóvel foi apreendido há mais de cinco anos e vendido pela massa insolvente há mais de um ano sem que até hoje o adquirente tenha ingressado na sua posse por a tanto ter vindo a obstar o facto de a recorrente e o respetivo agregado familiar nele ter permanecido ao longo de toda a tramitação da insolvência e da liquidação por ela cumprida, ocupando-o e dele fruindo sem qualquer contra-prestação e desonerada dos encargos dele emergentes - designadamente, o IMI, que na pendência da liquidação recaiu sobre a massa insolvente e após a sua venda sobre o adquirente -, situação que a recorrente conseguiu prolongar sucessivamente com os incidentes de suspensão e de diferimento da desocupação do imóvel, bem como com o presente recurso.
Surpreende por isso o tempo que decorreu desde a apresentação da recorrente à insolvência e subsequente apreensão do imóvel para a massa insolvente até à data em que o mesmo foi vendido, mais do que suficiente para que diligenciasse pela obtenção de novo alojamento, para si e para o seu marido, designadamente, e se fosse o caso, por recurso a serviços assistenciais camarários ou outros. O que a recorrente não pode pretender é libertar-se de todo o seu passivo através da apresentação à insolvência e do instituto da exoneração do passivo restante que no âmbito da mesma requereu e lhe foi concedido – com o consequente perdão dos créditos privados sobre si detidos, incluindo do crédito garantido pela hipoteca sobre o imóvel –, e manter a fruição do imóvel sem dispor de qualquer título que a legitime e contra a vontade e em prejuízo de quem o adquiriu no âmbito da liquidação que a própria recorrente requereu quando se apresentou à insolvência. Nesse contexto, que é o dos autos, mais se acrescenta que afrontaria o princípio da proporcionalidade resolver o conflito de direitos em questão – o direito à propriedade privada e o direito à saúde e à habitação -, todos com dignidade e tutela constitucional, em detrimento do exercício do primeiro, que dele já esteve privado por período superior a um ano em benefício de quem durante esse mesmo período ocupou o imóvel.
Termos em que se conclui pelo acerto da decisão recorrida, de extemporaneidade do pedido de diferimento da desocupação do imóvel apreendido para a massa insolvente e vendido no âmbito da liquidação, com consequente improcedência do recurso.
IV – Decisão
Em conformidade com o exposto, decide-se pela improcedência do recurso, com consequente manutenção da decisão recorrida.
Vencida na apelação, as custas do recurso são a cargo da insolvente/apelante.
Lisboa, 12.11.2024
Amélia Sofia Rebelo
Paula Cardoso
Elisabete Assunção
_______________________________________________________ [1] Estabelece que Na sentença que declarar a insolvência, o juiz: Decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º; [2] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, p. 227. [3] Estabelece que O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) (…); b) (…). [4] Estabelece que Os bens do executado são apreendidos ainda que, por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro (…).