Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DIREITOS SOCIAIS
ACÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
CAUSA PREJUDICIAL
ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário
I - Estando em causa situações de responsabilidade obrigacional, fundada na culpa, a ação social “ut universi”, proposta pela sociedade autora contra os seus gerentes representa a via para a defesa dos seus interesses. Verificados os pressupostos de que depende a obrigação de indemnização, sempre se terá de entender que o julgamento desta ação não está dependente do que se vier a decidir em ação de anulação de deliberação social previamente intentada na qual é peticionado que sejam declaradas nulas as deliberações tomadas na assembleia geral, na qual foi deliberado, além do mais, a destituição dos gerentes, pois que a sociedade lesada, do ponto de vista substantivo, será sempre credora do direito à indemnização. II – Sendo a administração o órgão responsável por toda a gestão da vida societária e ainda pela representação da mesma, existe um conjunto complexo de deveres que os seus membros devem observar sob pena de virem a ser responsabilizados, deveres que são legais e contratuais, tendo estes últimos como fonte o contrato social ou as deliberações da assembleia-geral e de outros órgãos sociais. III - Para efetivar a responsabilidade, existem vários tipos de ações sociais: ação sub-rogatória dos credores sociais: ação em que os credores se substituem à sociedade para exigirem dos administradores a indemnização que compete à sociedade (art.º 78.º n.º 2, do CSC); a ação social “ut universi”: proposta pela própria sociedade, sendo o procedimento natural para obter o ressarcimento dos danos causados à sociedade, verificados os pressupostos da responsabilidade civil dos administradores (art.º 75.º do CSC); a ação social “ut singuli”: ação subsidiária em que os sócios que representem, pelo menos, 5% do capital social, ou 2% no caso de sociedade emitente de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado, pedem a condenação dos administradores na indemnização pelos prejuízos causados à sociedade e não diretamente a eles próprios (art.º 77.º do CSC). IV – Em causa nos presentes autos está, atentos os sujeitos, o pedido e causa de pedir, a ação social “ut universi”, prevista no art.º 75º do CSC no âmbito da qual o administrador pode ser responsabilizado perante a sociedade pelo exercício das suas funções durante a vida da sociedade - art.º 72º do CSC, nos termos do qual «os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa. V - São pressupostos desta responsabilidade: a conduta do administrador; a ilicitude dessa conduta; a culpa do agente; e a existência de um dano causado à sociedade, ligado por um nexo de causalidade com a conduta do administrador. É exigido que a conduta ilícita e culposa do administrador seja causadora de danos na esfera da sociedade. VI - A sociedade beneficia de presunção de culpa prevista no art.º 72º, n.º 1, parte final, presunção de culpa que é manifestação do carater obrigacional desta modalidade de responsabilidade civil pela administração e implica inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade autora de provar a culpa, conforme o art.º 344º, n.º 1 do Cód. Civil. VII - Em face do que se dispõe no art.º 74º do CSC, em regra, a deliberação social pela qual os sócios aprovem as contas ou a gestão dos administradores não implica renúncia aos direitos de indemnização da sociedade (art.74º, n.º 3, 1ª parte). Só há renúncia (deliberação tácita de renúncia) se os factos constitutivos da responsabilidade houverem sido expressamente levados ao conhecimento dos sócios antes da aprovação e esta tiver obedecido aos requisitos de voto exigidos” pelo n.º 2 do art.º 74º, n.º 3 do CSC.
Texto Integral
*
I. Relatório
A “AA”, Lda., intentou a presente ação declarativa de condenação, na forma comum, contra “BB” (1.º Réu) e seu cônjuge, “CC” (2.ª Ré), “DD” (3.º Réu) e seu cônjuge, “EE” (4.ª Ré), pedindo a condenação solidária dos Réus, nos termos seguintes:
- A pagar à Autora a quantia de € 1.697.149,95 (um milhão, seiscentos e noventa e sete mil, cento e quarenta e nove euros e noventa e cinco cêntimos), a título de danos causados por atos ilícitos praticados no exercício da sua gerência;
- A pagar à Autora o valor dos juros de mora sobre a quantia supra, calculados à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- A pagar à Autora, também a título de danos patrimoniais causados por atos ilícitos praticados enquanto gerentes que se vierem a apurar posteriormente à propositura da presente ação, a relegar para liquidação em execução de sentença;
- Em custas e demais encargos legais.
Alegou, em suma, que o 3.º Réu fez levantamentos diários no ATM com os cartões multibanco da conta titulada pela sociedade Autora, que incorporou no seu património e no património dos demais Réus, sem reflexo na contabilidade da Autora. Os Réus fizeram levantamentos em dinheiro da caixa do estabelecimento comercial da Autora, em benefício próprio, sem justificação e sem devolução a esta de tais quantias. A 2.ª Ré, com o conhecimento dos demais Réus, nunca exerceu funções enquanto trabalhadora da sociedade ora demandante. No entanto, foram pagas retribuições e contribuições pela sociedade Autora à predita Ré, entre os meses de julho de 2016 e janeiro de 2020. Os Réus jamais fizeram o controlo de caixa da sociedade, nem o registo da movimentação das receitas apuradas. Os Réus, quando gerentes da Autora, pagaram a fornecedores sem justificação para tal, e deixaram de pagar ao Fundo de Compensação Salarial.
Ademais, os Réus descontaram mensalmente o valor das quotizações aos trabalhadores sindicalizados no Sindicato dos Trabalhadores (…), mas não entregaram tais valores ao sindicato em presença. Fizeram pagamentos das despesas pessoais (consumos de água, eletricidade, habitações e férias) com as receitas da sociedade Autora. Forneceram, em nome da sociedade Autora, sem garantia e plano de pagamento, à “JJ”, Lda., bens no montante de € 232 060,01. Financiaram, em nome da Autora, e sem garantia e formalização contratual, a “JJ”, Lda., no montante de € 161.055,66. Contabilizaram o montante de € 100.000,00, registado em investimentos financeiros e/ou outros ativos financeiros, sem evidência de realização. Os Réus transferiram a propriedade de dois veículos automóveis da Autora para o 1.º Réu e para a filha do 3.º Réu, sem qualquer contrapartida para a sociedade. Não depositaram nas contas bancárias da Autora os apuros diários recebidos e faziam os pagamentos aos fornecedores, funcionários e restantes entidades através do dinheiro de caixa. No ano de 2019, em virtude do já descrito, existia uma diferença entre os valores recebidos e os depositados nas contas bancárias da sociedade Autora, no montante de € 629.479,70. Os Réus deixaram de entregar à administração fiscal quantias diversas, com consequências negativas para a sociedade Autora. E deixaram de entregar à segurança social diversas quotizações e contribuições, com consequências negativas para a sociedade Autora.
Na decorrência da sua atuação, está contabilizado um saldo de caixa e depósitos à ordem, em 31 de dezembro de 2019, no montante de € 1.240.062,12, sem a existência de tais montantes. E como consequência da atuação dos Réus, está contabilizado um saldo de clientes no montante de € 177.926,26 e um saldo de outras contas a receber no montante de € 181.491,46, sem a existência de tais montantes.
Por fim, as Rés agiram em conluio e conscientemente com os Réus, usando em vantagem própria os proventos da sociedade Autora e integrando-os no seu património, em benefício exclusivo.
Pessoal e regularmente citados, os Réus contestaram conjuntamente por exceção e por impugnação, tendo suscitado, além do mais, a incompetência do Tribunal em razão da matéria, a ilegitimidade das Rés/cônjuges e a questão prévia da suspensão da presente instância, por prejudicialidade, ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com vista à sua absolvição da instância ou dos pedidos.
Alegaram, em suma, que as Rés são desconhecedoras de toda a matéria alegada na petição inicial, bem como dos documentos correspondentes, sem a obrigação de conhecimento da mencionada factualidade. Não são, e jamais foram, gerentes da Autora, pelo que não praticaram qualquer ato de gestão na mesma sociedade, nem participaram em nenhum dos atos ou factos que são assacados aos Réus maridos. E os documentos apresentados na petição inicial não foram elaborados pelas Rés/cônjuges, que não tiveram qualquer intervenção nos mesmos.
Por seu lado, os Réus maridos disseram, em suma, que, no período de 2016 a 2019, foram gerentes de direito da Autora, mas não exerceram, real e efetivamente, a gerência da mesma. Quem tomava as decisões e geria efetivamente a Autora eram as gerentes de facto (irmãs dos Réus), “MO” e “ME”. A atual situação económica da Autora é, pois, uma consequência da atuação das gerentes de facto acima mencionadas: situação esta que era conhecida e foi consentida pelos sócios da Autora. O atrás exposto significa que os Réus não violaram os seus deveres legais ou contratuais, nem atuaram com nenhuma culpa, não lhes podendo ser imputada a prática de qualquer ato ilícito e não estando reunidos os pressupostos constantes do artigo 72.º do Código das Sociedades Comerciais, para que eles possam ser responsabilizados perante a Autora pelos prejuízos que esta empresa reclama.
Acresce que a Autora excluiu, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 74.º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, a responsabilidade dos gerentes, ora Réus, porquanto os sócios da Autora, até dia 2 de março de 2020, sempre aprovaram por unanimidade as contas e a forma de gestão da mesma. A nova sócia maioritária da Autora (“CH”, Lda.), ao emitir a declaração mencionada no artigo 35.º da contestação, mais não fez do que preterir a responsabilidade das gerentes de facto, porque sabia serem as mesmas as responsáveis pelos prejuízos que agora reclama contra os Réus.
Com efeito, a aquisição de 60 % do capital social da Autora, em março de 2020, foi precedida por uma Due Diligence (diligência prévia), pois revela ter conhecimento dos valores de caixa alegadamente em falta e adquiriu as referidas participações sociais tendo em conta a não correspondência dos valores que ora peticiona.
Ademais, os Réus, a partir do mês de janeiro de 2011, não tomavam decisões na sociedade Autora, limitando-se a seguir as indicações das sócias “MO” e “ME”.
A sociedade “CH”, Lda., tinha conhecimento da situação, que agora alega, quando adquiriu 60 % do capital social da Autora.
Por último, o direito da Autora contra os gerentes já prescreveu, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 174.º, n.º 1, do Código das Sociedade Comerciais.
Concluem alegando que os Réus não têm qualquer responsabilidade para com a Autora pelos prejuízos que esta invoca em juízo, o que é determinativo da sua absolvição dos pedidos (sem prejuízo das exceções dilatórias deduzidas).
A final, solicitaram a intervenção acessória provocada de “MO” e de “ME”, por disporem os Réus, em caso de condenação, de alegado direito de regresso sobre as mesmas e peticionaram a condenação da Autora por litigância de má fé, no pagamento de uma indemnização de montante pecuniário não inferior a € 10 000,00 (dez mil euros).
No exercício do contraditório, a Autora pugnou pela improcedência da matéria excetiva e pelo indeferimento da suspensão da instância e da intervenção de terceiros, conforme deflui dos sucessivos requerimentos apresentados nos autos em 15 de julho de 2021, 19 de dezembro de 2022 e 26 de fevereiro de 2023.
O incidente da intervenção acessória provocada foi indeferido pelo Tribunal, por ausência de fundamento legal.
Seguiu-se a prolação de despacho saneador, com a dispensa de realização da audiência prévia, no âmbito do qual se fixou o valor da ação, as exceções dilatórias foram julgadas improcedentes e se indeferiu a suspensão da instância por causa prejudicial, por ausência de fundamento legal.
Desta decisão interpôs a ré recurso de apelação que não veio a ser admitido conforme despacho de 26/06/2023.
Prosseguiram os autos com o proferimento do despacho a que alude o artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (com reclamação, deferida, na parte atinente à litigância de má fé) e, após, foram apreciados os requerimentos probatórios oferecidos pelas partes no decurso dos articulados.
Teve lugar a audiência final após o que foi proferida sentença, em 10.01.2024, que julgou a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
a) Condenou os 1.º e 3.º Réus no pagamento à Autora da quantia de € 1 697 149,95 (um milhão, seiscentos e noventa e sete mil, cento e quarenta e nove euros e noventa e cinco cêntimos), a título de danos causados por atos ilícitos praticados no exercício da sua gerência;
b) Condenou os 1.º e 3.º Réus no pagamento à Autora do valor dos juros de mora sobre a quantia acima indicada, calculados à taxa supletiva legal de 4 % (cfr. Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril), desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
c) Condenou os 1.º e 3.º Réus no pagamento à Autora dos danos patrimoniais causados por atos ilícitos praticados enquanto gerentes, danos que se vierem a apurar posteriormente à propositura da ação, a relegar para liquidação em execução de sentença;
e) Absolveu as 2.ª e 4.ª Rés (cônjuges) de todos os pedidos formulados pela Autora;
f) E absolveu a Autora do pedido de condenação por litigância de má fé, contra si deduzido pelos Réus.
Inconformados com a sentença proferida, vêm os réus “BB” e “DD” interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença recorrida, concluindo-se pela improcedência da ação nos termos manifestados na contestação pugnando pela condenação da recorrida como litigante de má fé.
Formulam, para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a) Entendem os Recorrentes existir uma relação de prejudicialidade entre as acções de declaração de nulidade e a presente acção que pode gerar uma contradição insanável entre as decisões das acções em causa, pelo que esta questão, por ser de conhecimento oficioso, deve ser apreciada e julgada pelo Tribunal «ad quem». Entendem os recorrentes que uma análise mais ponderada da mesma, atentando-se na materialidade das relações subjacentes entre todas as questões em causa permitirá concluir que se as acções de declaração de nulidade, no qual se pede a declaração de nulidade da transmissão a favor da sociedade “CH”, for julgada procedente todas as deliberações tomadas quer em assembleia geral onde a nova sócia “CH” intervenha quer os actos praticados pela nova gerência ( nomeadas pela nova socia “CH”, cuja qualidade de sócia será invalida) serão declarados nulos e/ou anuláveis.
b) Ou seja, a nulidade das deliberações da assembleia de 2/3/2020 ferem de nulidade qualquer deliberação posterior e põe em causa os actos praticados pela nova gerência. Ora os sócios e gerentes da Autora, em consequência dessa declaração de nulidade, serão os recorrentes “BB” (sócio e gerente) e “DD” (gerente), os quais obviamente não irão dar seguimento a presente acção.
Assim como se os sócios da Recorrida passam a ser os anteriores e se os mesmos sempre deliberaram, actuaram e geriram a Autora de forma consensual, resulta claro que não vão dar seguimento à presente acção, acusando-se a si próprios de praticarem, directa ou indirectamente, actos ilícitos.
c) A decisão final da presente acção poderá, pois, ser incompatível com a decisão das acções de nulidade e criar uma impossibilidade legal, o que reforça a existência de uma causa prejudicial e justifica atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso.
d) Julgam ainda os Recorrente que a decisão na matéria dada como provada/não provada não está correcta, por violação das regras de experiência comum. Com efeito, na apreciação da matéria de facto vigora o princípio da livre convicção do julgador, nos termos do disposto no artigo 607, nº 5 do CPC. O princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.
e) Ora atendendo as regras da experiência, à documentação junta aos autos e à prova produzida testemunhalmente a matéria dada como não provada sob os pontos X (parte) a XII deveria ter sido dada como provada.
A Autora era uma sociedade familiar que se pautava por uma gestão pouco organizada, mas em que todos os sócios concordavam e aceitavam e sem qualquer intenção de prejudicar a sociedade uma vez que sendo sócios e beneficiários, estariam a prejudicar-se a si mesmos, o que não faz qualquer sentido.
Tendo em atenção o acima exposto, atendendo a prova documental (declaração de 2 de Março e relatório de auditoria junto com a pi) e recorrendo às regras da experiência comum os pontos X a XII deviam ter sido dados como provados.
f) No que respeita aos pontos VII e VIII, a matéria aí alegada também deveria ter sido dada como provada.
Em bom rigor, a matéria provada sob os artigos 33, 34, 35 e 36 permitirá, concluir, numa valoração critica e atendendo às regras da experiência, que esta matéria deveria ter sido dada como provada.
E a alegada cooperação verificada entre os sócios (que são irmãos) - facto declarado no ponto VI – demonstra bem que o modus operandi a Autora, à data, era conhecida e consentida por todos.
g) Julgam ainda os Recorrentes que o Juiz a quo não fez a mais correta aplicação dos artigos 65º, 72.º, 74.º, nº 3 e 80 º do CSC ao caso em apreço.
Com efeito, a situação económica da Autora, como resulta já do acima exposto, à data, era conhecida e foi consentida pelos sócios da Autora.
Os Recorrentes actuaram sempre com o consentimento dos sócios e até o capital da Autora ser vendida, a gestão da mesma era uma gestão familiar, sem formalismos e assente na confiança existente entre os sócios e gerentes, irmãos e sobrinhos, conforme acima mencionado.
O acima exposto significa que os Recorrentes não violaram os seus deveres legais ou contratuais nem actuaram com culpa, não lhes podendo ser imputado a prática de qualquer acto ilícito.
Acresce que a Recorrida excluiu, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 74º/3 CSC, a responsabilidade dos gerentes ora Recorrentes pois os sócios da Autora até 2 de Março de 2020 sempre aprovaram por unanimidade as contas e a forma de gestão da mesma.
Não estando assim reunidos os pressupostos do art.º 72º do CSC para que os Recorridos possam ser responsabilizados perante a Autora pelos prejuízos que a mesma reclama,
h) Entendem ainda os Recorrentes que a Recorrida litiga assim de má fé, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 2 do Artº. 542.º do C.P.C..
A presente acção intentada pela Recorrida é uma peça numa estratégia que a alegada sócia maioritária da mesma, a sociedade “CH” Lda, iniciou aquando da compra da maioria do capital social da Recorrida, em prejuízo dos sócios minoritários.
A recorrida, através da sua nova sócia, apresenta uma versão distorcida dos factos, esquecendo-se intencionalmente que a mesma, até a entrada da nova sócia, era uma sociedade de estrutura familiar. E que a aquisição da mesma, pelo preço que pagou, teve em consideração todo o circunstancialismo que agora invoca para vir reclamar prejuízos. A Recorrida (através da nova sócia ”CH”) continua a praticar actos, como seja o da presente acção, parecendo ignorar a pendência das acções de nulidade referidas que caso sejam julgadas procedentes implicarão a nulidade da sua qualidade de sócia e, consequentemente, dos actos praticados desde 2 de Março de 2020.
A Recorrida está, pois, a criar uma situação que pode originar na ordem jurídica sentenças contraditórias, fazendo deste modo um uso reprovável do processo.
Terminam pedindo a atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
A autora/recorrida apresentou contra-alegações, concluindo por pedir que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida, para o que formula as seguintes conclusões:
A) - Não pode ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso, porquanto nos termos e para os efeitos do nº 1, do Art.º 647º, do CPC “As apelações têm efeito meramente devolutivo, excepto nos casos previstos nos números seguintes.”
B) - Nesta conformidade, constata-se que a presente apelação não se enquadra quer no nº 2, quer em qualquer uma das alíneas do nº 3, da citada disposição legal.
C)- E, fora dos casos previstos nos nºs 2 e 3, do Art.º 647º, do CPC, segundo os seu nº 4, só pode ser atribuído efeito suspensivo à apelação se “…o recorrente… requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução…”
D)- Ora, a presente apelação não se enquadra na previsão do nº 2, nem nas alíneas do nº 3 do Art.º 647º, do CPC e não lhe é aplicável o disposto no seu nº 4, em virtude de os recorrentes não terem cumpridos com os requisitos, cumulativos, exigidos nesse normativo.
E) – Porquanto, naquele normativo além de se exigir que seja alegado prejuízo com a execução da decisão recorrida, exige-se também, que cumulativamente, o recorrente se ofereça para prestar caução.
F) - Na verdade, e não obstante os recorrentes tenham invocado, ainda que infundadamente, prejuízo com a não atribuição do efeito suspensivo ao presente recurso, não prestaram e nem vieram oferecer-se para prestarem caução, como deviam por imposição do Art.º 647º, nº 4, do CPC., e, ao não o fazerem, a pretensão dos recorrentes não pode ser admitida e nessa conformidade, não deverá ser atribuído efeito suspensivo à presente apelação.
G) - Assim e em face de todo o atrás exposto, deverá ser indeferida a pretensão dos recorrentes no que concerne a ser atribuído efeito suspensivo à presente apelação, a qual terá um efeito meramente devolutivo, nos termos e para os efeitos do disposto no Art.º 647º do CPC.
H) - A douta sentença recorrida, fez uma correcta valoração da matéria de facto e uma correcta aplicação do direito aplicável, contrariamente ao afirmado pelos recorrentes.
I)- Quanto à alegada causa prejudicial, também aqui não assiste qualquer razão aos recorrentes, pelos motivos e por toda a fundamentação constante do douto despacho saneador proferido nos autos, já transitado em julgado e com a qual se concorda inteiramente e que aqui se reproduz: -“…Compulsado eletronicamente o processo n.º (..), verifica-se que se trata de acção de anulação de deliberação social intentada, em 29.06.2020, por “BB” contra “AA, Lda., “ME”, “MO”, “AJ”, “AF” e “CH”, Lda., na qual é peticionado, além do mais, serem declaradas nulas as deliberações tomadas na assembleia geral de 2 de Março de 2020, na qual foi deliberado, além do mais, a destituição dos gerentes “BB” e “DD” e o consentimento de cessão de quotas à “CH”, Lda. Por sua vez, compulsado eletronicamente o processo n.º (…), verifica-se que se trata de acção de anulação de deliberação social intentada, em 27.01.2021, por “BB” contra “AA”, Lda. e “CH”, Lda., na qual é peticionado, além do mais, serem declaradas nulas as deliberações tomadas na assembleia geral de 29 de dezembro de 2020, referindo o autor desconhecer as deliberações que foram tomadas. Defendem os Réus que se as referidas acções forem julgadas procedentes, a composição societária da Autora será diferente e o 1.º e 3.º Réus manter-se-ão na qualidade de gerentes e, consequentemente, a sociedade “AA”, Lda. não prosseguirá com a presente acção. Ora, dispõe o artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”. No caso concreto, estamos perante um acção intentada pela sociedade que visa a responsabilidade dos membros da administração para com a sociedade, dispondo o artigo 75.º do Código das Sociedades Comerciais que: “a acção de responsabilidade proposta pela sociedade depende de deliberação dos sócios, tomada por simples maioria”. Assim, mesmo que os Réus venham a ocupar a posição de gerentes, tal não significa que a presente acção não prosseguirá. Acresce que, nesta fase, desconhece o Tribunal se a eventual alteração societária da Autora terá o mesmo efeito. Nessa medida, entendemos que não há uma verdadeira causa prejudicial ou motivo justificado que justifique a suspensão da instância.”
J) - Nesta conformidade, tanto a Doutrina como a Jurisprudência, têm considerado que uma causa é considerada prejudicial em relação a uma outra, quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda.
L)- - Com efeito, verifica-se que tal não se verifica nos presentes autos, pois a decisão que vier a ser proferida naqueles autos que correm termos no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 5, sob o Proc. nº (…) e no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 7, sob o Proc. nº (…), pois para além das partes não serem as mesmas, em nada afectará a decisão que for tomada nos presentes autos, prejudicando-a de modo a destruir ou modificar os fundamentos em que estes assentam.
M) - Porquanto, nestes autos foram peticionadas quantias a título de danos patrimoniais, efectivamente causados por actos ilícitos praticados pelos réus, aqui recorrentes, suprarreferidas assembleias gerais de 2 de março de 2020 e de 29 de dezembro de 2020, as quais independentemente da declaração da nulidade das mencionadas deliberações têm de ser ressarcidos à sociedade autora e aqui recorrida.
N) - Pelo que e em face de todo o acima transcrito e de todo o exposto, não se mostrando preenchidos os pressupostos de admissibilidade de causa prejudicial e por conseguinte, concorda-se inteira e totalmente com a decisão constante do douto despacho saneador, proferido nos autos e já transitado, o qual aliás, veio a indeferir a então requerida suspensão dos autos por inexistência de causa prejudicial.
O) - Acresce que não deve de ser conhecida a questão da prejudicialidade invocada pelos recorrentes nesta sede, porquanto a decisão da improcedência da causa prejudicial já foi tomada no douto despacho saneador, proferido nos autos, o qual já transitou e com o qual os recorrentes se conformaram.
P) - Deste modo, essa decisão há muito que está transitada em julgado, não podendo, evidentemente, ser objecto do presente recurso, por intempestiva, e, assim sendo, a improcedência da causa prejudicial não pode e não deve sequer ser conhecida nesta sede.
Q) – A douta sentença recorrida não padece de erro notório na apreciação da prova porquanto, na sua fundamentação para além da enumeração de todos os factos dados como provados e não provados, consta uma exposição muito completa e exaustiva, dos motivos de facto que fundamentam a decisão recorrida, com indicação e exame critico das provas que serviam para formar a convicção do tribunal, em obediência ao principio da livre convicção - Art.º 607º, nº 1, do CPC – e não contrariam as regras da experiência comum ou encerram conclusões ilógicas ou arbitrárias conforme alegado pelos recorrentes.
R) - O erro notório na apreciação da prova, consiste num vício de apuramento da matéria de facto, o qual só poderá ser apreciado e sindicado pelo tribunal superior, no caso de recurso com impugnação da matéria de facto.
S) -Porém os recorrentes pretendem por via do presente recurso, alterar a matéria de facto dada como não provada nos pontos VII, VIII, IX (parte), X a XII, alegando para o efeito o erro notório na sua apreciação, sem que, contudo, refiram expressamente que de facto a estão a impugnar a matéria dada como provada e o que efectivamente pretendem é a sua reapreciação nesta sede.
T) - Contudo, os recorrentes não cumpriram com os requisitos impostos no artigo 640º do CPC e nomeadamente com o ónus de impugnação especificada que aí é exigido, uma vez que os recorrentes nas suas alegações, limitam-se apenas a manifestar discordância quanto à circunstância de na sentença recorrida os pontos VII, VIII, IX (parte), X a XII da matéria de facto dada como não provada não ter sido considerada provada, bem como fazer alusão à prova documental junta ( sem mencionar qual) e à prova testemunhal produzida, sem que para o efeito tenham identificado os autores dos depoimentos em causa e tenham junto as respectivas transcrições desses depoimentos, para que o tribunal superior tivesse meios de sindicar a decisão da matéria de facto.
U)- Sendo que em sede de recurso, não basta alegar a mera discordância com a matéria dada como provada ou não provada e pretender a sua alteração invocando para o efeito o erro notório na sua apreciação, conforme fizeram os recorrentes, pois se pretendiam a alteração daquela matéria que entendem deveria ter sido julgada provada e não o foi, deveriam de a ter impugnado nos termos e para os efeitos do disposto no Art.º 640º, do CPC e cumprirem com todos os requisitos aí impostos, o que não fizeram e, ao não o fazerem, impedem que que o tribunal superior a reaprecie.
V) - Nessa conformidade, para além de os recorrentes, apenas invocarem a matéria com a qual discordavam que não tenha sido dada como provada, deveriam ainda, ter referido relativamente a essa matéria que pretendiam ver alterada, quais as provas documental ou testemunhal – identificando os documentos juntos e apresentando as transcrições dos depoimentos produzidos - que impunham decisão diferente, o que não fizeram.
X)- Em rigor e no que respeita à impugnação da matéria de facto, importa referir que o recurso apresentado não obedece aos requisitos impostos no artigo 640º do CPC e, por conseguinte, deverá ser rejeitado, uma vez que numa impugnação da decisão da matéria de facto deve constar das conclusões a indicação dos concretos pontos de facto tidos por incorretamente julgados., de modo a resultar com clareza e identificada, a matéria que se quer pôr em causa.
Z) - Porém os recorrentes não o fizeram, limitando-se a referir de forma genérica os pontos em que discordavam da matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida e nada mais, e, assim sendo, deverá ser rejeitada a apreciação do recurso sobre reapreciação da matéria de facto.
AA) - Porém e unicamente por dever de patrocínio, sempre se dirá que os pontos VII, VIII, IX (parte), X a XII da matéria de facto dada como não provada, foram devidamente julgados na sentença ora recorrida, não existindo, por conseguinte, qualquer erro notório de apreciação da prova quanto a eles, que mereça a sua reapreciação e, consequente alteração, conforme pretendem os recorrentes.
BB)- Da sentença recorrida, consta na sua fundamentação para além da enumeração dos factos dados como não provados, uma exposição muito completa e exaustiva, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviam para formar a convicção do tribunal, em obediência ao principio da livre convicção - Art.º 607º, nº 1, do CPC – e não contrariam as regras da experiência comum ou encerram conclusões ilógicas ou arbitrárias conforme alegam os recorrentes.
CC)- Nessa conformidade, bem andou a douta sentença ora recorrida ao considerar não provados os pontos VII, VIII, IX (parte), X a XII da matéria de facto dada como não provada, com o que se concorda inteiramente e, por conseguinte, deverá manter-se, porquanto inexiste erro notório na apreciação da prova, conforme alegam os recorrentes.
DD) – Contrariamente ao alegado pelos recorrentes, o Mto. Juiz a quo, atendendo à matéria de facto dada como provada nos autos, fez uma correta interpretação e aplicação dos a Arts. 65º, 72.º, 74.º, nº 3 e 80 º do CSC, com a qual aliás, se concorda inteiramente.
EE) - A sentença recorrida fez uma correcta aplicação do direito, porquanto sendo os recorrentes os únicos gerentes da recorrida, conforme resultou provado, terão estes de responder perante esta pelos danos, que efectivamente causaram, com sua actuação ilícita, dolosa e lesiva dos interesses da recorrida, que igualmente resultaram provados – Cf. Arts. 71º a 73º, 78º e 79º do CSC -
FF) - Deste modo, não deverá merecer qualquer acolhimento a pretensão dos recorrentes a este propósito, porquanto a sentença ora recorrida, não padece de errada interpretação e aplicação do direito, conforme alegam os recorrentes, não merecendo, pois, qualquer censura o decidido na douta sentença recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, nem fez errada interpretação e aplicação do direito, conforme alegado pelos recorrentes.
GG) - Assim a ora recorrida, face aos factos dados como provados nos autos, não pode deixar de concordar totalmente com a, aliás, douta sentença, ora recorrida que decidiu bem, não é contraditória em relação aos factos nela dados como provados e nem existe contradição entre os seus fundamentos e a decisão nela proferida, a qual aplicou devidamente o direito.
HH) - Deste modo, não se verifica qualquer contradição entre os factos dados como provados e a decisão proferida, porquanto, a matéria dada como provada nos autos, foi tida em consideração e foi refletida na decisão proferida e ora recorrida, sendo esta decisão a conclusão lógica de toda a matéria dada como provada nos autos e de toda a fundamentação expendida na sentença recorrida.
II) - Não merece, pois, qualquer censura o decidido na douta sentença recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, nem fez errada interpretação e aplicação do direito, conforme alegado pelos recorrentes.
JJ) – A recorrida, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, não litigou de má fé, mas no exercício de um direito legal e legítimo que exerceu com a instauração dos presentes autos e fê-lo em obediência aos princípios de boa fé processual e de colaboração com a justiça, com vista à obtenção da verdade dos autos e, por conseguinte, não deverá ser condenada como litigante de má fé.
LL) - O pedido de condenação por litigância de má fé da recorrida feito pelos recorrentes, é desprovido de qualquer fundamento legal, uma vez que estes parecem confundir litigância de má fé com o exercício do direito de acção, que a aqui recorrida exerceu nos presentes autos, sendo que ao fazê-lo não omitiu factos, não deduziu pretensão sem fundamento, como aliás se comprova pela procedência total da acção, e, muito menos, entorpeceu a acção da justiça ou usou de expedientes dilatórios, como afirmam.
MM)- Não existindo, por conseguinte, qualquer má fé por parte da recorrida, a qual se limitou a exercer o seu direito, deduzindo para o efeito pretensão que considerou e considera legítima e, pugnando pela aplicação da lei e, de tal forma a pretensão deduzida pela recorrida nos autos, no âmbito do exercício do direito de acção, é legítima, que a recorrida demonstrou nos autos e em sede de julgamento, a veracidade de tudo quanto alegou a esse propósito.
NN) - Assim e ao contrário do que alegam os recorrentes, a recorrida não omitiu qualquer facto, não distorceu a verdade dos factos e nem fez um uso reprovável dos autos, conforme infundadamente alegam os recorrentes, pelo que não deverá ser condenada como litigante de má-fé.
OO) - Assim sendo, conclui-se que a recorrida não litigou de má fé, e, por conseguinte, não deve de ser condenada a esse título, concordando-se inteiramente com a douta sentença recorrida, que entendeu que: “ o Tribunal entende inexistirem fundamentos de facto e de direito para uma eventual condenação da aqui demandante por litigância de má fé, e/ou que um juízo de culpa grave ou dolosa recaia sobre a respetiva conduta processual em juízo, em nenhuma das fases da presente demanda e até à sua etapa atual.”
PP) - Nessa conformidade, bem andou a douta sentença ora recorrida ao proferir a decisão constante dos autos, a qual não padece de nenhum dos vícios apresentados pelos recorrentes, mostra-se correctamente elaborada, é legal e justa e com a qual se concorda inteiramente e, por conseguinte, deverá manter-se.
O recurso foi regularmente admitido, tendo sido negado a atribuição de efeito suspensivo ao mesmo como requerido pelos recorrentes.
Foram colhidos os vistos legais.
II. Objeto do recurso
Sendo o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), a que acrescem as questões compreendidas no âmbito preventivo da ampliação do objeto do recurso, a apreciar a requerimento da parte vencedora com respeito pela previsão do art.º 636º, n.º1 do Código de Processo Civil, importa apreciar e decidir:
1) da suspensão da presente instância por se verificar existir causa prejudicial;
2) se o julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido deve ser alterado;
3) se a sentença recorrida efetuou uma incorreta aplicação do direito aos factos.
4) se a apelada deve ser condenada como litigante de má fé.
*
1) A questão prévia da suspensão da instância por verificação de causa prejudicial.
Para apreciação desta questão objeto do recurso relevam as seguintes incidências processuais que os autos documentam e a que se teve acesso por via da consulta do processo eletrónico:
1. Em 29/06/2020, o primeiro réu/recorrente “BB” interpôs contra a autora/recorrida e os sócios desta, “ME”, “MO”, “AJ”, “AF” e “CH”, Lda., ação para declaração de nulidade e anulabilidade de deliberação social tomada em Assembleia Geral Extraordinária da recorrida de 2 de Março de 2020 no âmbito da qual foi deliberado o consentimento da cessão de quotas a terceiro, a sociedade “CA”, Lda., e a destituição dos gerentes “BB” e “DD”, 1º e 3º réus, ora recorrentes, a qual corre os seus termos sob o n.º (…) do Juízo de Comércio de Lisboa - Juiz 5.
2. Em 27/01/2021 o primeiro réu/recorrente “BB” interpôs contra a autora/recorrida e a sócia desta “CH”, Lda. ação para declaração de nulidade e anulabilidade de deliberação social tomada em Assembleia Geral Extraordinária da recorrida de 29 de dezembro de 2020, a qual visou renovar as deliberações tomadas na assembleia geral de sócios do dia 2 de Março de 2020, a qual corre os seus termos sob o n.º (…) do Juízo de Comércio de Lisboa - Juiz 7, alegando ali o autor, ora réu/recorrente, desconhecer o teor das deliberações tomadas por não ter estado presente.
Inconformados com a decisão de improcedência do pedido de suspensão da instância, por pendência de causa prejudicial, pedem os réus/recorrentes no âmbito do presente recurso, que seja aquela revogada, sendo substituída por outra, que declare verificada a prejudicialidade alegada, determinando a conforme a suspensão da instância.
Defende a recorrida que a questão da prejudicialidade invocada pelos recorrentes não deve de ser conhecida pelo Tribunal ad quem, porquanto a decisão da improcedência da causa prejudicial já foi tomada no despacho saneador proferido nos autos, o qual já transitou e com o qual os recorrentes se conformaram (conclusão O das contra alegações).
Ora, com a alteração ao Código Processo Civil operada pela Lei 6/2007 foi consagrada a regra geral da impugnação das decisões interlocutórias apenas no recurso que venha a ser interposto da decisão final e de um regime comum de recurso das decisões que ponham termo ao processo, sejam elas de mérito ou de forma. Assim, na sequência do disposto no art.º 2.º, n.º 1, al. e), da Lei 6/2007, instituiu-se um “monismo recursório” (cf. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, pág. 29), caracterizado pela unificação dos recursos ordinários na 1.ª e na 2.ª instâncias, tendo-se eliminado o agravo interposto em 1.ª e 2.ª instância, bem como pela unificação dos recursos extraordinários de revisão e de oposição de terceiro, tendo-se eliminado este último do elenco dos recursos extraordinários. Mais do que uma eliminação do agravo, o que realmente foi consagrado na última reforma do Código de Processo Civil foi uma absorção do agravo pela apelação.
Em termos sistemáticos, a reforma manteve inalterada a distinção entre os recursos ordinários – que são aqueles que são interpostos de decisões ainda não transitadas em julgado – e os recursos extraordinários – que são aqueles que são interpostos de decisões já transitadas –, pelo que, tal como se dispõe no art.º 627º, n.º 2, os recursos ordinários passaram a ser a apelação e a revista. Por seu turno, o recurso de apelação conjuga e absorve a antiga apelação e o antigo agravo interposto em 1.ª instância, o que implica que a nova apelação tem de abranger os recursos interpostos quer de decisões finais de procedência ou de improcedência, quer de despachos de indeferimento liminar, quer de decisões de absolvição da instância, quer ainda de decisões interlocutórias, isto é, de decisões que não ponham termo ao processo.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa, in Reflexões sobre a reforma dos recursos, disponível para consulta na seguinte ligação da internet: https://awr.pt/trc2020/wp-content/uploads/2008/02/confintmts.pdf.: «A solução é, pois, a seguinte: – cabe apelação da decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo (art.º 691.º, n.º 1), isto é, de uma decisão de procedência, de improcedência, de indeferimento liminar ou de absolvição da instância quanto à totalidade do objecto da causa e quanto a todas as partes; – quanto às decisões interlocutórias, de algumas – aquelas que estão enumeradas no art.º 691.º, n.º 2 – cabe apelação com subida imediata e de outras – que são aquelas a que se refere o art.º 691.º, n.º 3 – cabe apelação que só é interposta e apenas sobe em conjunto com o recurso que venha a ser interposto da decisão final. Assim sendo, com exceção da apreciação da competência (absoluta ou relativa) do tribunal (cfr. art.º 691.º, n.º 2, al. b)), nenhuma decisão que considera preenchido um pressuposto processual é impugnável através de uma apelação com subida imediata: é o que resulta da conjugação dos n.ºs 2 e 3 do art.º 691.º. Assim, se, por exemplo, o réu alegar a excepção de litispendência (cfr. artºs 497.º, n.º 1, e 498.º) e o tribunal de 1.ª instância considerar que essa excepção não se verifica, esta decisão só pode ser impugnada na apelação que venha a ser interposta da decisão final (art.º 691.º, n.º 3). Note-se que isto significa que a decisão que considera preenchido um pressuposto processual nunca transita em julgado até ao momento da possibilidade da sua impugnação em conjunto com o recurso da decisão final.
Isto mesmo sucede com a questão da suspensão da instância por causa prejudicial, que, por não ser recorrível de modo autónomo, mas apenas com a apelação a interpor a decisão que ponha termo à ação (arts. 641.º, n.º 2, alínea a) e 644.º, n.º 1, alínea b) a contrario, todos do Código de Processo Civil), conforme decidiu o Tribunal a quo no despacho que não admitiu o recurso interposto em 8/05/2023, não transitou em julgado ao invés do entendimento da apelada.
Isto posto.
Entendem os recorrentes (conclusão b) que entre estas duas ações e a presente existe uma relação de prejudicialidade, pelas seguintes razões: i) a nulidade das deliberações da assembleia de 2/3/2020 ferem de nulidade qualquer deliberação posterior e põe em causa os atos praticados pela nova gerência; ii) os sócios e gerentes da Autora, em consequência dessa declaração de nulidade, serão os recorrentes “BB” (sócio e gerente) e “DD” (gerente), os quais obviamente não irão dar seguimento a presente ação; iii) se os sócios da Recorrida passam a ser os anteriores e se os mesmos sempre deliberaram, atuaram e geriram a Autora de forma consensual, resulta claro que não vão dar seguimento à presente ação, acusando-se a si próprios de praticarem, direta ou indiretamente, atos ilícitos; iv) a decisão final da presente ação poderá pois ser incompatível com a decisão das ações de nulidade e criar uma impossibilidade legal.
Na decisão proferida quanto a esta questão entendeu o Tribunal a quo e bem, a nosso ver, como se verá de seguida, que mesmo que os réus, na sequência da procedência das ações impugnatórias venham a reocupar a posição de gerentes, tal não significa que a presente ação não prosseguirá, desconhecendo-se se a eventual alteração societária da Autora terá o mesmo efeito.
Vejamos.
Dispõe o art.º 272.º, n.º 1 do CPC que «o tribunal pode ordenar a suspensão [da instância], quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
Ensina o Prof. Alberto dos Reis, in “Comentário ao Código de Processo Civil", vol. 3º, Coimbra, 1946, pág. 268 que "uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda".
E ensina o Prof. Manuel de Andrade, in "Lições de Processo Civil", págs. 491 e 492 que, "verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é a reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal".
Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada, ou seja, quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar numa ação possa influenciar ou afetar o julgamento ou decisão da outra, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser. Como referem A. Geraldes e Paulo Pimenta in Código de processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 350: “o nexo de prejudicialidade define-se assim: pendência de duas ações, verificando-se que a decisão de uma pode afetar o julgamento da outra (…) uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da outra.”
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 6/05/2021, há «efectivamente casos em que a questão pendente na causa prejudicial não pode discutir-se na causa subordinada; há outros em que pode discutir-se nesta, mas somente a título incidental. Na primeira hipótese o nexo de prejudicalidade é mais forte, na segunda, mais frouxo; na primeira há uma dependência necessária, na segunda, uma dependência meramente facultativa ou de pura conveniência», constituindo exemplo desta segunda modalidade a «acção de dívida e a acção pauliana proposta pelo autor daquela» Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, afirma (in Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3.ª edição, Lisboa, 2000, Almedina, pág. 43) que «a decisão de uma causa depende da decisão de outra (…) quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que deve ser considerada para decisão de outro pleito.
Mas, quer num caso, quer noutro, como refere José Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, Limitada, págs. 268, 269, 270, 272, 288 e 206, a «razão de ser da suspensão por pendência de causa prejudicial é a economia e coerência dos julgamentos».
Contudo, e não «obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens» (n.º 2, do art.º 272.º citado). «É que não pode ignorar-se que a suspensão obsta a que a instância prossiga naturalmente, o que pode revelar-se gravoso para os interesses que o autor procurou acautelar» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 315).
Importará, por isso, evitar que a suspensão da instância se traduza num benefício concedido ao transgressor em detrimento da parte contrária, «que pode ter interesse no andamento do processo, sem que o benefício tenha como justificação a necessidade de salvaguardar a defesa ou evitar a perda do direito substancial» (Professor José Alberto dos Reis, ibidem).
No caso concreto, o 1º réu “BB” intentou ação de anulação de deliberação social, em 29.06.2020, contra a aqui autora/recorrida – “AA”, Lda., “ME”, “MO”, “AO”, “AF” e “CH”, Lda., na qual é peticionado que sejam declaradas nulas as deliberações tomadas na assembleia geral de 2 de Março de 2020, na qual foi deliberado, além do mais, a destituição dos gerentes “BB” e “DD” (ora recorrentes/apelante) e o consentimento de cessão de quotas à “CH”, Lda.
Por sua vez, no processo n.º (..), consubstancia ação de anulação de deliberação social intentada, em 27.01.2021, por “BB” (aqui primeiro réu/apelante) contra “AA”, Lda. e “CH”, Lda., na qual é peticionado, além do mais, serem declaradas nulas as deliberações tomadas na assembleia geral de 29 de dezembro de 2020, referindo o autor desconhecer as deliberações que foram tomadas.
Defendem os Réus que se as referidas ações forem julgadas procedentes, a composição societária da Autora será diferente e o 1.º e 3.º Réus manter-se-ão na qualidade de gerentes e, consequentemente, a sociedade “AA”, Lda. não prosseguirá com a presente ação.
Não vemos como.
A presente ação tem em vista a efetivação da responsabilidade dos gerentes, concretamente, tem em vista, por parte da sociedade, obter o ressarcimento dos danos que lhe foram causados com fundamento na responsabilidade civil dos administradores (art.º 75.º do CSC). É a denominada ação social “ut universi” prevista nos art.º 75º e 76º do CSC, com referência ao período em que o 1º e 3º réus foram gerentes da ré, ou seja, circunscrita aos anos de 2016 a março de 2002, data em que foram destituídos da gerência por deliberação social impugnada nas ações que correm os seus termos sob os n.ºs (…) e (…) e que o recorrentes entendem ser prejudiciais a esta.
Ao contrário do que defendem em sede recursória, as ditas ações no âmbito da qual se impugnam as deliberação tomadas em Assembleia Extraordinária de sócios e que os destituíram de funções, caso venham a ser julgadas procedentes, e, por via delas os recorrentes reintegrem as funções de gerente, não modificam a situação jurídica que deve ser considerada para decisão desta ação, pois que, é inquestionável naquelas e nesta o pressuposto da assunção da gerência pelos réus até ao momento em que foram destituídos de funções por via das deliberação impugnadas.
De igual modo, não antevemos de que modo a alteração da composição da sociedade possa ter qualquer influência na apreciação dos concretos factos que são imputados aos recorrentes enquanto seus administradores durante o período em que exerceram tais funções e que são suscetíveis de os constituir na obrigação de indemnizar, apenas porque os sócios da recorrida passam a ser os anteriores que, alegadamente, nunca puseram em questão a atuação dos recorrentes enquanto gerentes.
No caso dos autos, está em causa uma ação cuja finalidade é social (e não pessoal), já que se pretende a condenação dos gerentes/administradores no pagamento de indemnização pelos prejuízos causados diretamente à sociedade. Demonstrada que fique a atuação ilícita dos recorrentes, enquanto gerentes, e em consequência a ocorrência de um dano patrimonial para a sociedade, estando em causa situações de responsabilidade obrigacional, fundada na culpa, a ação social “ut universi”, proposta pela recorrida representa a via para a defesa dos seus interesses. E, assim sendo, verificados os pressupostos de que depende a obrigação de indemnização pelos recorrentes, sempre se terá de entender que o julgamento da presente ação não está dependente do que se vier a decidir nas primeiras, pois que a sociedade lesada, do ponto de vista substantivo, será sempre credora do direito à indemnização. Se o direito subjetivo à indemnização por atos ilícitos praticados pelos apelantes nasceu e se mantém na esfera da autora, não vemos, pois, de que modo, a decisão final da presente ação possa criar uma impossibilidade legal, como concluem os apelantes nas suas alegações.
Em face do exposto, concluímos que bem andou o Tribunal a quo ao não suspender a instância com fundamento em existência de causa prejudicial, mantendo este Tribunal, por consequência, o despacho recorrido.
*
2) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Importa, agora, apreciar a impugnação dirigida pelos recorrentes ao julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido.
O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
Fundamentação de facto
Discutida a causa, e com interesse para a respetiva decisão, o Tribunal considera provados os factos seguintes:
1. A Autora é uma sociedade por quotas que tem como objeto a exploração do estabelecimento comercial denominado “AA”; (…) (cfr. documento n.º 1 da petição);
2. Devido a diversas alterações societárias, a partir de 21 de junho de 2016, foram os 1.º e 3.º Réus os únicos gerentes da Autora – casados respetivamente, no regime da comunhão de adquiridos, com as 2.ª e 4.ª Rés –, se bem que, pelo menos desde o ano de 2001, eram os ditos Réus os únicos gerentes a administrar, sem qualquer colaboração ou oposição, a sociedade Autora;
3. Isto porque, os demais gerentes constantes da certidão comercial até ao ano de 2016, há muito haviam saído da gerência, sendo certo que o progenitor daqueles Réus (“J”) falecera em 15 de julho de 2001;
4. O 1.º Réu é sócio da Autora, e o 3.º Réu foi sócio da Autora até 21 de junho de 2016, data em que cedeu as suas quotas a “NN” e a “LV” (cfr. documento n.º 2 da petição);
5. Em 2 de março de 2020, foram os 1.º e 3.º Réus destituídos do cargo de gerentes que vinham exercendo na Autora (cfr. documento n.º 1 da petição);
6. Tendo sido convocada uma assembleia geral no dia 3 de agosto de 2020, de cuja ordem de trabalhos constava a seguinte deliberação: “Ponto quatro – Análise e discussão sobre as dívidas existentes para com o Estado (Autoridade Tributária e Segurança Social) no valor total aproximadamente de 242.000 euros, com deliberação sobre: apuramento de responsabilidades e de proposta de intentar acção de indemnização contra a gerência em exercício em data anterior a 2 de Março de 2020, com fundamento na responsabilidade por actos negligentes e omissões de diligência por si praticados e danos causados no exercício da gerência da sociedade” (cfr. documento n.º 15 da petição):
7. Isto porque, previamente à aquisição de 60 % do capital da Autora por parte da atual sócia (maioritária), “CH”, Lda., foi efetuada uma análise da situação patrimonial da sociedade aqui demandante, tendo-se verificado o seguinte:
- A existência de diversos débitos fiscais com antiguidade reportada a 2016, bem como a existência de uma inspeção tributária dos exercícios de 2015, 2016 e 2017;
- A existência de um valor muito elevado em cobrança duvidosa, de € 429.127,59, dos quais, a quantia de € 232.060,01 era débito da sociedade em liquidação “JJ”, Lda., da qual o 3.º Réu também era gerente;
- A existência de um saldo de caixa/bancos reportado ao ano de 2019, no valor de € 1 240 062,12, inexistindo em caixa e nas contas bancárias da sociedade tal montante;
8. Com a entrada em exercício de funções dos gerentes nomeados em 2 de março de 2020 e o possível desenrolar das atividades da Autora, foram sendo detetadas diversas condutas dos 1.º e 3.º Réus, indiciadoras da violação dos deveres a que estavam obrigados como gerentes e que levaram a sociedade a uma situação de difícil solvabilidade, o que determinou que a Autora promovesse a auditoria interna a que se reporta o documento n.º 3 da petição inicial;
9. Quando a nova gerência assumiu a gestão da sociedade deparou-se com dívidas e infrações fiscais, num montante de € 154.942,96, distribuídas em mais de vinte processos de execução fiscal; bem como dívidas de não pagamento de quotizações e contribuições à segurança social que, só dos anos de 2017 a 2020, chegaram ao montante de € 80.348,54, dos quais € 67.755,60, em processos executivos em aberto;
10. E foi a Autora notificada, em maio de 2020, da existência de uma condenação ao pagamento de uma multa no Processo n.º (…), no valor de € 4.000,00, tendo os anteriores gerentes – 1.º e 3.º Réus – omitido o pagamento prestacional a que se haviam obrigado (cfr. documento n.º 4 da petição);
11. (…) Que veio a apurar ter sido a condenação pela prática de quatro crimes de abuso de confiança fiscal, desconhecendo a Autora se existem anteriores e/ou posteriores processos do mesmo jaez;
12. Relativamente à detetada inexistência de disponibilidades nas contas bancárias da Autora, verificou-se ser prática corrente dos Réus gerentes não depositarem os apuros diários em dinheiro do estabelecimento nas contas bancárias da Autora, impossibilitando o seu efetivo controlo;
13. O 3.º Réu, como único detentor de cartões multibanco das contas tituladas pela Autora, fazia levantamentos diários nas caixas de multibanco ATM, atingindo o máximo de €400,00 permitido por dia, inexistindo qualquer evidência de tais valores terem sido usados para pagamentos de despesas da sociedade, nem os inscrevendo na contabilidade da sociedade Autora;
14. Ambos os 1.º e 3.º Réus fizeram levantamentos em dinheiro da caixa do estabelecimento comercial da Autora, em seu benefício próprio, sem justificação e sem devolução a esta de tais quantias;
15. O valor dos levantamentos referidos no ponto 13 supra (multibanco ATM) cifrou-se em cerca de € 82.000,00; e o valor dos levantamentos referidos no ponto 14 supra (dinheiro em caixa do estabelecimento, no ano de 2019) cifrou-se em cerca de € 37.800,00 (pelo 1.º Réu) e em cerca de € 18.700,00 (pelo 3.º Réu);
16. A 2.ª Ré “CC”, com o conhecimento dos demais Réus, jamais exerceu funções enquanto trabalhadora da sociedade Autora, desde o ano de 2016;
17. Apesar disso, a sociedade Autora pagou as contribuições à segurança social (de montantes não concretamente apurados), entre os meses de julho de 2016 e janeiro de 2020, relativamente à (inexistente) prestação laboral da 2.ª Ré nesse período de tempo;
18. Os 1.º e 3.º Réus jamais fizeram o controlo de caixa da sociedade Autora, nem o registo da movimentação das receitas apuradas;
19. Os 1.º e 3.º Réus fizeram pagamentos a fornecedores sem justificação para tal;
20. Os 1.º e 3.º Réus deixaram de pagar ao designado Fundo de Compensação Salarial, ascendendo tais montantes (não pagos) ao valor global de € 3.331,73, no período de tempo compreendido entre junho de 2014 e janeiro de 2020;
21. Os 1.º e 3.º Réus descontaram mensalmente os valores das quotizações aos trabalhadores sindicalizados no designado Sindicato dos Trabalhadores na Indústria (…), mas não os entregaram ao dito sindicato, no período temporal compreendido entre julho de 2019 e fevereiro de 2020; no montante de quotizações sindicais em falta (ou em atraso) de € 756,71;
22. Os referidos Réus fizeram pagamentos de despesas pessoais com receitas da sociedade Autora, para além de levantarem os seus vencimentos mensais;
23. Os mesmos Réus forneceram, em nome da sociedade Autora, sem garantia e plano de pagamento, à sociedade “JJ”, Lda., bens no montante de € 232.060,01 (por referência a 31 de dezembro de 2019);
24. Os 1.º e 3.º Réus financiaram, em nome da sociedade Autora, sem garantia e formalização de contrato, a sociedade “JJ”, Lda., no montante global de € 161.055,66 (saldo registado na contabilidade da Autora a 31 de dezembro de 2019);
25. Os 1.º e 3.º Réus contabilizaram o montante de € 100.000,00 registado em investimentos financeiros e/ou outros ativos financeiros, sem evidência de realização;
26. Os 1.º e 3.º Réus transferiram a propriedade de dois veículos automóveis da Autora para o 1.º Réu e para a filha do 3.º Réu, sem qualquer contrapartida para a ora demandante; a saber, o veículo de matrícula (…), da marca (…), atualmente registado em nome do 1.º Réu, e o veículo de matrícula (…), da marca (..), atualmente registado em nome de “VV”;
27. Os 1.º e 3.º Réus não depositaram nas contas bancárias da sociedade Autora os apuros diários recebidos, e faziam os pagamentos aos fornecedores, funcionários e restantes entidades através do dinheiro de caixa do estabelecimento comercial;
28. No ano de 2019, em virtude do descrito no ponto 27, existia uma diferença entre os valores recebidos e os depositados nas contas bancárias da sociedade Autora, tendo entrado em contas bancárias, movimentadas por esta, apenas o montante global de € 629.479,70 (somente 34 % dos valores recebidos foram objeto de depósitos em bancos);
29. Os 1.º e 3.º Réus deixaram de entregar à administração fiscal quantias num montante total (reportado a 31 de dezembro de 2019) de € 154 943,00, por dívidas relativas a IVA e a retenções na fonte de IRC, coimas e juros de mora – atuação/omissão daqueles Réus que acarretou a que fossem instaurados diversos processos executivos tributários contra a sociedade Autora, num total de 27 processos executivos instaurados;
30. Os 1.º e 3.º Réus também deixaram de entregar à segurança social quotizações e contribuições num montante total (reportado a 31 de dezembro de 2019) de € 67.756,00 – atuação/omissão que levou à instauração de execuções fiscais contra a sociedade Autora num total, computado até janeiro de 2020, de € 80.348,54;
31. Como consequência da atuação dos 1.º e 3.º Réus, está contabilizado um saldo de caixa e depósitos à ordem, em 31 de dezembro de 2019, no montante de € 1.240.062,12 (balanço ajustado a 2019), sem a existência desse valor global;
32. Como consequência da atuação dos 1.º e 3.º Réus, está contabilizado um saldo de clientes no montante de € 177.926,26, bem como um saldo de outras contas a receber no montante de € 181 491,46, sem a existência de tais valores;
33. Com a data aposta de 2 de março de 2020, a sociedade “CH”, Lda. (atual sócia maioritária da Autora), na esteira da aquisição do capital social de 60 % da Autora, mediante as cessões de quotas, emitiu a declaração seguinte:
“1- Tem conhecimento que o saldo de caixa/bancos de «”AA”, Lda.», na presente data contabilizado em € 1.243.891,58 (reportado a 2019) é inexistente, nomeadamente no caixa ou em saldos bancários da sociedade;
2- Considerando o referido em 1- e os termos do acordo global das cessões de quotas hoje efectuadas, a Declarante, por si e na qualidade de sócia de «”AA”, Lda.», obriga-se a não exigir, por qualquer forma, aos cedentes, “ME”, “MO”, “AF” e “AC”, qualquer responsabilidade ou pagamento de qualquer valor pela situação descrita em 1-“ (cfr. documento n.º 3 da contestação);
34. (…) A sobredita declaração escrita encontra-se assinada por “AQ”, representante da sociedade declarante e com poderes para o ato;
35. Nos processos de execução fiscal instaurados pela autoridade tributária e em processo criminal (de abuso de confiança fiscal contra a Autora), os 1.º e 3.º Réus e as referidas sócias, suas irmãs, foram considerados como gerentes, de direito e de facto, da sociedade Autora e no exercício fiscal de 2014 (cfr. documentos n.º 4 a 7 da contestação);
36. Tendo resultado o processo criminal na condenação de todos os arguidos, por sentença de 27 de outubro de 2015, no Processo Comum Singular n.º (…) (da Instância Local Criminal de Lisboa, Juiz 7 – cfr. documento junto na resposta da Autora de 15 de julho de 2021);
37. Os 1.º e 3.º Réus apresentaram a sua contestação à ação judicial que a Autora intentou contra os mesmos e mencionada no artigo 49.º da petição inicial (Processo n.º(…), do Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 5 – anulação das compras e vendas e retorno da propriedade das viaturas identificadas – cfr. documento n.º 8 da contestação);
38. A presente ação foi instaurada no dia 1 de fevereiro de 2021, vindo os Réus a ser citados para os seus termos entre 10 e 12 de fevereiro de 2021 (talões postais juntos).
Com relevância para a decisão da causa, e com a exclusão da matéria conclusiva e/ou de direito, os factos que o Tribunal considera como não provados são os seguintes:
I. Os valores das retribuições e contribuições pagas pela Autora à 2.ª Ré, ou que lhe foram pagas retribuições salariais pela Autora entre julho de 2016 e janeiro de 2020; ou que ambas as Rés tivessem agido em conluio e conscientemente com os Réus (maridos);
II. As despesas pessoais constantes do ponto 22 supra foram, em concreto, com consumos de água, eletricidade, habitações e férias;
III. A partir do mês de janeiro de 2011, os 1.º e 3.º Réus não tomavam decisões na sociedade Autora, limitando-se a seguir as indicações das sócias (suas irmãs) “MO” e “ME”;
IV. A partir de janeiro de 2011, só as aludidas sócias passaram a gerir, de facto, a Autora, sendo as mesmas que diariamente se deslocavam ao estabelecimento comercial e tomavam todas as decisões respeitantes ao funcionamento e gestão do estabelecimento comercial “AA”;
V. Foram apenas as ditas sócias que, desde aquela data, assumiram a gestão da sociedade Autora e supervisionavam toda a atividade do estabelecimento “AA”, praticando todos os atos necessários à sua gestão, nomeadamente: contratar pessoal; comprar os produtos alimentares; decidir a forma e datas de pagamentos a fornecedores, trabalhadores, etc.; decidir a forma e datas de pagamentos de despesas correntes, com eletricidade, água, comunicações, etc.; controlar diariamente a entrada de dinheiro na caixa e dispor sobre o respetivo montante; coordenar a contabilidade da sociedade demandante; e decidir sobre os pagamentos de impostos e contribuições para a segurança social e outras obrigações legais;
VI. Os 1.º e 3.º Réus, a partir desse período, embora gerentes de direito da Autora, não tomavam quaisquer decisões, limitando-se a cooperar com as suas irmãs “MO” e “ME” quando tal lhes era solicitado e seguindo as indicações dadas pelas mesmas;
VII. A forma como a Autora foi gerida até dia 2 de março de 2020 foi sempre aceite por todos os sócios da Autora, os quais tinham conhecimento sobre o modo como a sociedade funcionava e dispunham de toda a informação relacionada com a situação económica e fiscal da referida empresa;
VIII. As contas dos exercícios e restante documentação relacionada foram sempre aprovadas por todos os sócios da Autora, de modo informal, os quais jamais colocaram em causa a atuação dos respetivos gerentes, tanto de direito como de facto;
IX. Foi no referido contexto que a sociedade Autora exerceu a sua correspondente atividade e foi dirigida pelos sócios desde 2001 até 2 de março de 2020; a saber:
- Desde 2001 até dezembro de 2010, apenas pelos (sócios) 1.º e 3.º Réus;
- Desde janeiro de 2011 até 2 de março de 2020, apenas pelas (sócias) “MO” e “ME”;
X. A sociedade denominada de “CH”, Lda. (atual sócia maioritária da Autora) tinha um inteiro conhecimento das situações alegadas na petição inicial quando adquiriu 60 % do capital social da Autora (a 2 de março de 2020);
XI. (…) E sabia que eram as duas irmãs, “MO” e “ME”, as sócias que geriam de facto a Autora;
XII. A referida sociedade comercial negociou toda a operação de aquisição de posição maioritária na Autora, direta e exclusivamente, com as gerentes de facto em apreço, delas obtendo todas as informações fiscais, contabilísticas e legais que entendeu necessárias à concretização do sobredito negócio.
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Na contra-alegação à apelação a Autora/recorrida pugnou pela rejeição da impugnação da decisão de facto apresentada pelos apelantes, por entender que os recorrentes não cumpriram os ónus a que o impugnante da decisão de facto está sujeito porquanto para além de os recorrentes, apenas invocarem a matéria com a qual discordavam que não tenha sido dada como provada, deveriam ainda, ter referido relativamente a essa matéria que pretendiam ver alterada, quais as provas documental ou testemunhal – identificando os documentos juntos e apresentando as transcrições dos depoimentos produzidos - que impunham decisão diferente, o que não fizeram; deveriam constar das conclusões a indicação dos concretos pontos de facto tidos por incorretamente julgados, de modo a resultar com clareza e identificada, a matéria que se quer pôr em causa, limitando-se os recorrentes a referir de forma genérica os pontos em que discordavam da matéria de facto dada como não provada na sentença recorrida e nada mais, devendo ser rejeitada a apreciação do recurso sobre reapreciação da matéria de facto.
Apreciando.
Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso.
Preceitua o artigo 640º, n.ºs 1 e 2, do CPC:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015, processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt: “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”.
Também no Acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, disponível www.dgsi.pt, se lê que: “(...), a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no nº 1 do artigo 662º do CPC.
É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640º, nº 1, proémio, e nº 2, alínea a), do CPC.
Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada”.
Relativamente à interpretação da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do CPC, refere Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª Edição, pág. 156), que: “O Recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem no reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.
Com este novo regime, em contraposição com o anterior, pretendeu-se que fosse rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto.
Nessa medida, o recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erradamente decididos e indicar, também com precisão, o que entende que se dê como provado.
A imposição de tais indicações precisas ao recorrente, visou impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 153).
Também por esses motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos, tem igualmente que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 155).
Assim, quanto a cada um dos factos que pretende obter diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, discriminadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada, evitando-se assim que sejam apresentados recursos inconsequentes, e sem fundamentação que possa ser apreciada e analisada.
A este ónus de impugnação, soma-se um outro não menos importante, que é o ónus de conclusão, previsto no artigo 639.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
Este ónus de conclusão para além de visar a síntese das razões que estão subjacentes à interposição do recurso, visa também a definição do seu objeto.
Como se refere no sumário do Acórdão do STJ de 16.05.2018, processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt: “I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração. II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art.º 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso. III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art.º 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte.”
Assim, pretende-se que o recorrente indique de forma resumida, através de proposições sintéticas, os fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão, para que seja possível delimitar o objeto do recurso de forma clara, inteligível, concludente e rigorosa (neste sentido, veja-se ainda o Acórdão do STJ de 18.06.2013, processo n.º 483/08.0TBLNH.L1.S1, disponível no mesmo sítio).
Revertendo para a situação dos autos, vemos que sob a conclusão e) os apelantes impugnam a factualidade contida nos pontos X (parte) a XII que deveria ter sido dada como provada, atendendo às regras da experiência, à documentação junta aos autos e à prova produzida testemunhalmente (…) atendendo à prova documental (declaração de 2 de março e relatório de auditoria junto com a pi) e recorrendo às regras da experiência comum. Na conclusão f) impugnam a factualidade dada como não provada nos pontos VII e VIII, que deveria ter sido dada como provada, dizendo que a matéria de facto provada sob os artigos 33, 34, 35 e 36 permitirá concluir, numa valoração critica e atendendo às regras da experiência comum, que esta matéria deveria ter sido dada como provada. E a alegada cooperação verificada entre os sócios (que são irmãos) – facto declarado no ponto VI demonstra bem que o modus operandi da autora, à data, era conhecida e consentida por todos.
Ou seja, os apelantes identificam nas conclusões os pontos da matéria de facto provada e não provada impugnados, e indicam a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto a cada um deles, devendo ser dados como provados, cumprindo, assim, o ónus de delimitação do recurso, quanto a estes concretos factos que julgam incorretamente julgados.
Com efeito, nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita da motivação (neste sentido, os Acórdãos do STJ de 19/02/2015, proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, de 01/10/2015, proc. nº 824/11.3TTLRS.L1.S1 e de 11/02/2016, proc. n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1).
Todavia, por referência à prova testemunhal, os apelantes aludem “à prova produzida testemunhalmente” sem que, estando em causa depoimentos gravados, no corpo das alegações indiquem quais as testemunhas que depuseram e cujo depoimento haveria de ser valorado criticamente de forma diversa, as passagens da gravação em que alicerçam o seu recurso e muito menos procedem à transcrição dos excertos de quaisquer depoimentos que consideram relevantes.
Ora, como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/09/2019, proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2, disponível in www.dgsi.pt): “ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso.”
Isto posto, percorrido o corpo das alegações recursivas vemos que, no que contende com a alteração dos pontos X a XII e que os recorrentes pretendem ver dados como provados, referem tão só como meios probatórios a ponderar em sentido diverso a prova documental junta aos autos – declaração de 2 de março e relatório de auditoria junto com a PI como doc. 6 – no confronto com as regras da experiência comum. No que respeita aos pontos VII e VIII, dizem que deveriam ter sido dados como provados, no confronto com os factos provados sob os pontos 33, 34, 35 e 36, “numa valoração critica e atendendo às regras da experiência”; no que respeita ao ponto VI a alegada cooperação verificada entre os sócios/gerentes (que são irmãos) – facto declarado no ponto VI – demonstra bem o que o modus operandi da autora era consentida por todos.
No fundo, as conclusões constantes dos pontos e) e f) reproduzem o corpo das alegações recursivas, de modo que é forçoso considerar que para qualquer destes concretos factos impugnados os recorrentes abstêm-se de cumprir o ónus imposto no art.º 640º, n.º 1, al. b) com referência à prova testemunhal produzida.
Reitera-se o que acima se afirmou que, a propósito da prova pessoal produzida, tendo a mesma sido gravada, impunha-se que os recorrentes tivessem indicado as exatas passagens da gravação das testemunhas arroladas aptas a fundar a sua sindicância; ou, pelo menos, que tivessem transcrito nas suas alegações de recurso o seu concreto teor, na parte idónea a fundamentar a sua pretensão. De outro modo, estar-se-ia a obrigar o Tribunal de recurso a proceder a uma nova e global avalização da prova pessoal produzida, já que só pela audição integral dos depoimentos selecionados (alguns, ou mesmo todos) poderia confirmar ou infirmar a sua idoneidade para alterar a decisão de facto do Tribunal a quo, bem como a exatidão ou falta dela das parcelares transcrições que tivessem merecido.
Acresce que esta exigência, expressa e inequivocamente imposta por lei, também não redunda num ónus excessivo para o recorrente, que precisamente para o efeito dispõe de uma majoração de dez dias para interposição do seu recurso, face àquele outro em que não impugne a matéria de facto (art.º 638.º, n.º 1 e n.º 7, do CPC).
Ora, não o tendo feito (isto é, não tendo cumprido este particular ónus de impugnação que a lei lhes impõe), não poderia agora a prova pessoal (na sua globalidade) ser aqui reponderada, pelo que será de rejeitar o recurso da matéria de facto, com este fundamento.
Tendo esta conclusão por assente, quanto ao mais, vemos que no corpo das alegações e também nas conclusões, para o corpo dos factos elencados sob os não provados nos n.ºs X a XII, os quais os recorrentes enunciam como tendo sido mal julgados, indicam como fundamento da sua impugnação a prova documental – declaração de 2 de março (doc. 3 junto com a contestação) e relatório de auditoria (junto com a PI como doc. 6), recorrendo às regras da experiência comum, considerando que terá forçosamente de se concluir que a sociedade “CH” teve o conhecimento que considerou ser suficiente para avançar com o negócio e que se sentiu confiante negociando a aquisição de 60% do capital com as sócias “MO” e “ME”, pois, como notório que é, sabia que as mesmas estavam atualmente à frente da sociedade e dispunham de toda a informação que considerou relevante para efetuar o negócio em causa, especificando, por fim, a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, que deveriam ser levadas ao rol dos factos provados.
Já no que respeita aos pontos VI, VII e VIII limitam-se a alegar (e a concluir de idêntica forma) que “a matéria de facto provada sob os artigos 33, 34, 35 e 36 permitirá concluir, numa valoração critica e atendendo às regras da experiência comum, que esta matéria deveria ter sido dada como provada. E a alegada cooperação verificada entre os sócios (que são irmãos) – facto declarado no ponto VI demonstra bem que o modus operandi da autora, à data, era conhecida e consentida por todos.”
Neste segmento de factos impugnados - VI, VII e VIII - é claramente ausente de fundamentação a impugnação deduzida, tanto mais quando os factos em questão não são exatamente e apenas a versão contrária dos factos provados convocados pelos recorrentes.
Aqueles factos reportam-se ao documento assinado pelo representante da Sociedade “CH”, ao processo de execução fiscal instaurado pela autoridade tributária e ao processo crime que correu os seus termos sob o n.º (…) no âmbito do qual os apelantes foram condenados, não tendo sido excluídos da gerência de direito e de facto da apelada.
Em concreto, os recorrentes não apontam para cada facto os meios probatórios que impõem decisão diversa, omitindo, nas alegações da apelação, qualquer indicação especificada do(s) meio(s) probatório(s) que deveria levar a um juízo probatório em sentido diverso do decidido na sentença.
A isto acresce que, e sem prejuízo do acima exposto, sobre os recorrentes recaía o ónus de efetuar uma análise crítica sobre a prova produzida, só assim justificando o seu desacordo quanto à valoração da prova formulada pelo tribunal a quo e evidenciando o erro de julgamento que ao mesmo imputam. Especialmente, e como é o caso, quando o tribunal a quo justificou de forma extensa, pormenorizada e coerente a valoração da prova, efetuando da mesma uma análise crítica global e circunstanciada, dando nota das razões por que deu credibilidade ou não aos depoimentos de parte, aos depoimentos das testemunhas ouvidas, de forma conjugada com a prova documental também aos oferecida nos autos.
Tal como ao tribunal é imposta uma análise crítica da prova produzida como forma de tornar as suas decisões claras e sindicáveis nomeadamente em segunda instância, também aos recorrentes que imputam erro de julgamento na decisão de facto é exigido um juízo critico sobre essa mesma prova, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa. Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 595 (citada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/02/2021, processo 9977/20.9T8PRT.P1 ) afirma que “tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas) também o Recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos…”. Do mesmo modo, e aplicando este entendimento ao caso dos autos, não basta a referência genérica a determinada factualidade provada, justificando que, de acordo com as regras da experiência comum, a matéria de facto dada como não provada, deverá antes sê-lo como provada, sem que, em simultâneo emita o seu juízo critico, valorativo, que permitisse alcançar solução diversa. Ou seja, os recorrentes, pela forma como alegaram e que acima já deixámos enunciada, abstêm-se de formular um juízo crítico, circunstanciado e concreto sobre a prova produzida e valoração da mesma por parte do tribunal a quo que permita concluir violar a mesma as regras da lógica ou das regras da experiência.
Esta análise crítica da prova produzida é uma exigência que tem vindo a ser reconhecida quer pela doutrina quer pela jurisprudência (Cfr. Ana Luísa Geraldes in ob. cit. p. 592 citada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/02/2021, supra citado), a justificar também por esta via a rejeição da reapreciação da decisão de facto no que aos factos não provados sob os n.ºs VI, VII e VIII respeita.
Isto posto e concluindo, no contexto da impugnação dirigida ao julgamento da matéria de facto, resta avaliar se os pontos X a XII dos factos não provados, deveriam ter sido dados como provados, atendendo à prova documental junta – declaração emitida pela sociedade “CH”, junto sob o n.º 3 da contestação e o relatório de auditoria junto com a PI sob o doc. n.º 6. Embora se refira nas alegações o doc. 6, cremos que se trata de um lapso dos recorrentes porquanto o referido documento se mostra junto com a PI sob o doc. 3.
Constam sob os pontos X a XII dos não provados os seguintes factos: X. A sociedade denominada de “CH”, Lda. (atual sócia maioritária da Autora) tinha um inteiro conhecimento das situações alegadas na petição inicial quando adquiriu 60 % do capital social da Autora (a 2 de março de 2020); XI. (…) E sabia que eram as duas irmãs, “MO” e “ME”, as sócias que geriam de facto a Autora; XII. A referida sociedade comercial negociou toda a operação de aquisição de posição maioritária na Autora, direta e exclusivamente, com as gerentes de facto em apreço, delas obtendo todas as informações fiscais, contabilísticas e legais que entendeu necessárias à concretização do sobredito negócio.
Estes concretos factos foram alegados pelos réus na contestação por si apresentada sob os n.ºs 35, 36 e 37, a fim de com eles ser demonstrado que a atual sócia maioritária da autora tinha conhecimento de que eram as sócias “MO” e “ME” que geriam de facto a Autora, com quem negociou a aquisição das participações sociais.
No que contende com a declaração emitida pela sociedade “CH”, junto sob o n.º3 da contestação, deu-a o Tribunal recorrido como provada sob o facto 33 nos seguintes termos: Com a data aposta de 2 de março de 2020, a sociedade “CH”, Lda. (atual sócia maioritária da Autora), na esteira da aquisição do capital social de 60 % da Autora, mediante as cessões de quotas, emitiu a declaração seguinte: “1- Tem conhecimento que o saldo de caixa/bancos de «“AA”, Lda.», na presente data contabilizado em € 1.243.891,58 (reportado a 2019) é inexistente, nomeadamente no caixa ou em saldos bancários da sociedade; 2- Considerando o referido em 1- e os termos do acordo global das cessões de quotas hoje efectuadas, a Declarante, por si e na qualidade de sócia de «“AA”, Lda.», obriga-se a não exigir, por qualquer forma, aos cedentes, “ME”, “MO”, “AF” e “AC”, qualquer responsabilidade ou pagamento de qualquer valor pela situação descrita em 1-“ (cfr. documento n.º 3 da contestação); E, conforme dado como provado em 34, a sobredita declaração escrita mostra-se assinada por “TQ”, representante da sociedade declarante e com poderes para o acto.
Relativamente ao relatório da auditoria, foi ele junto com a PI sob o doc. n.º 3 e destinava-se à comprovação dos factos alegados pela autora. Este relatório tem a data de novembro de 2020, ou seja, data posterior à aquisição das participações sociais pela autora e da cessão das funções dos apelantes como gerentes e nomeação de nova gerência. Àquele documento foi feita menção nos factos provados da sentença recorrida sob o ponto 8), nos seguintes termos: “Com a entrada em exercício de funções dos gerentes nomeados em 2 de março de 2020 e o possível desenrolar das atividades da Autora, foram sendo detetadas diversas condutas dos 1.º e 3.º Réus, indiciadoras da violação dos deveres a que estavam obrigados como gerentes e que levaram a sociedade a uma situação de difícil solvabilidade, o que determinou que a Autora promovesse a auditoria interna a que se reporta o documento n.º 3 da petição inicial.”
A propósito do conhecimento prévio da situação patrimonial da requerida escreveu-se o seguinte no facto 7): “(…) previamente à aquisição de 60 % do capital da Autora por parte da atual sócia (maioritária), “CH”, Lda., foi efetuada uma análise da situação patrimonial da sociedade aqui demandante, tendo-se verificado o seguinte:
- A existência de diversos débitos fiscais com antiguidade reportada a 2016, bem como a existência de uma inspeção tributária dos exercícios de 2015, 2016 e 2017;
- A existência de um valor muito elevado em cobrança duvidosa, de € 429 127,59, dos quais, a quantia de € 232 060,01 era débito da sociedade em liquidação “JJ”, Lda., da qual o 3.º Réu também era gerente;
- A existência de um saldo de caixa/bancos reportado ao ano de 2019, no valor de € 1 240 062,12, inexistindo em caixa e nas contas bancárias da sociedade tal montante.
Mais se acrescentou no facto 8 (factualidade que não foi objeto de qualquer impugnação) que “com a entrada em exercício de funções dos gerentes nomeados em 2 de março de 2020 e o possível desenrolar das atividades da Autora, foram sendo detetadas diversas condutas dos 1.º e 3.º Réus, indiciadoras da violação dos deveres a que estavam obrigados como gerentes e que levaram a sociedade a uma situação de difícil solvabilidade, o que determinou que a Autora promovesse a auditoria interna a que se reporta o documento n.º 3 da petição inicial”.
Ora, os novos gerentes nomeados, foram-no em Assembleia Geral Extraordinária de 2 de março de 2020, na sequência da deliberação de destituição dos recorrentes como gerentes, o que significa que a auditoria interna a que se reporta o documento n.º 3 junto com a PI só foi levada a cabo após a aquisição de 60% do capital social pela sociedade “CH”. Assim tendo sido, só a partir daquela data, e pese embora a análise previamente efetuada da situação patrimonial da sociedade como provado em 7), foi possível a esta última, através da auditora interna que levou a cabo, tomar conhecimento de toda a extensão da situação patrimonial da autora e por consequência das situações alegadas na petição inicial e que se deram como provadas na sentença recorrida. Não vemos, pois, de que maneira as regras da experiência comum invocadas pelos recorrentes, - que constituem juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstrata, sem ligação a factos concretos sobre que há que decidir, mas concretamente observáveis pela experiência anterior de casos semelhantes -, possam contrariar a decisão de considerar o facto vertido no ponto X como não provado.
Da mesma sorte os restantes factos provados sob os pontos XI e XII.
Na sentença recorrida deu-se como assente sob o ponto 33 o teor do documento junto sob o n.º 3 da contestação.
Dispõe o art.º 362.º, do Código Civil que prova «documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto». Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, pág. 321; Está-se perante uma noção ampla de documento, abrangendo um escrito, «uma fotografia, um disco granofónico, uma fita cinematográfica, um desenho, uma planta, um simples sinal convencional, um marco divisório, etc., etc.». O que se exige, porém, como essencial «à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objecto».
Por seu turno, art.º 341.º, do Código Civil dispõem que as «provas têm por objecto a demonstração da realidade dos factos».
Do artigo 376.º, n.º 1, do Código Civil decorre que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos da norma antes citada (bem como da norma do artigo 375.º do CC) faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
O n.º 2, do mesmo artigo 376.º, acrescenta que «[o]s factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão».
De acordo com este regime legal, o valor probatório dos documentos particulares cuja letra e/ou assinatura sejam reconhecidas pela contraparte, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 1, do CC, releva em duas vertentes ou dimensões distintas, ainda que complementares, e com alcances diferenciados. O seu valor probatório formal, regulado no artigo 376.º, n.º 1, do CC, diz respeito ao conteúdo extrínseco do documento, isto é, à proveniência ou autoria do mesmo e, por conseguinte, à materialidade das declarações nele vertidas. O seu valor probatório material, regulado no n.º 2, do mesmo artigo 376.º, embora seja consequente ao referido valor probatório formal, diz respeito ao conteúdo intrínseco do documento, isto é, ao valor ou veracidade das referidas declarações. Como é fácil de ver, é este valor probatório material que se relaciona diretamente com o thema probandum.
No caso, o valor probatório formal do documento invocado pelo recorrente não suscita qualquer dúvida, cujo reconhecimento da sua autoria não foi impugnado. Nestes termos, embora a sentença recorrida não o afirme de modo explícito, não restam dúvidas de que foi em obediência a esta prova legal que o Tribunal a quo julgou provado o facto descrito no ponto 33.
Não obstante, perante esta análise do valor probatório material do documento invocado pelos recorrentes, a força probatória da declaração nele vertida não abrange todos os factos que os recorrentes pretendem ver aditados ao elenco dos factos provados e que constam sob os pontos X a XII dos não provados.
Com efeito, daquele documento, que consubstancia apenas uma declaração negocial consentânea com as cessões de quotas realizadas, não é possível extrair como pretendem os apelantes, por recurso às regras da experiência comum, mais do que nele consta, máxime, que a sociedade “CH” sabia que eram as duas irmãs, “MO” e “ME”, as sócias que geriam de facto a Autora e que a referida sociedade comercial negociou toda a operação de aquisição de posição maioritária na Autora, direta e exclusivamente, com as gerentes de facto em apreço, delas obtendo todas as informações fiscais, contabilísticas e legais que entendeu necessárias à concretização do sobredito negócio.
Em conclusão, não existe fundamento para alterar a decisão relativa à matéria de facto constante dos pontos X a XII dos não provados, improcedendo nos termos supra expostos a propugnada alteração da matéria de facto impugnada.
Finalmente, impõem-se uma palavra mais, ainda que breve, ante o que acima se expôs quanto aos requisitos da impugnação da matéria de facto, relativa ao facto 22 dos provados.
Quanto a este facto, consta do corpo das alegações recursivas dos apelantes que “a presunção judicial que permitiu dar como provada a matéria constante do ponto 22 foi incorretamente presumida.
Sucede que, perscrutadas as conclusões, nas suas alíneas a) a h) verifica-se que, pese embora impugnada a matéria de facto vertida no facto 22 no corpo das alegações de recurso, nos termos referidos, essa indicação não foi reiterada nas respetivas conclusões, tendo o recorrente limitado desse modo o seu objeto aos concretos pontos da matéria de facto já analisados. Servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, o que não sucedeu, situação que nos reconduz, também quanto a este ponto da matéria de facto, pela inadmissibilidade da sua reapreciação por este Tribunal de recurso.
*
B.
Mostrando-se definitivamente assente a matéria de facto que foi apurada pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar a pretensão dos apelantes em matéria de direito.
*
Entendem os recorrentes em defesa da revogação da sentença proferida que o Tribunal a quo não fez uma correta aplicação dos arts. 65º, 72º, 74º, n.º 3 e 80º do CSC e isto porque a situação económica da recorrida era conhecida e consentida pelos sócios; os recorrentes atuaram sempre com o consentimento dos sócios e até o capital da recorrida ser vendido, a gestão da mesma era um gestão familiar, sem formalismos e assente na confiança existente entre os sócios e gerentes, irmãos e sobrinhos; o que significa que os recorrentes não violaram os seus deveres legais ou contratuais, nem atuaram com culpa, não lhes podendo ser imputada a prática de qualquer ilícito, não estando, por isso, preenchidos os pressupostos do art.º 72º do CSC para que os réus possam ser responsabilizados pelos prejuízos da autora.
A sentença recorrida, ante os factos provados, expôs de forma muito aprofundada, sustentada na doutrina e na jurisprudência, e concluiu pela verificação dos pressupostos da constituição da obrigação de indemnizar dos réus, enquanto gerentes, nos termos do disposto no art.º 72º do CSC, pelos atos praticados durante o período do exercício do cargo da gerência, dos danos que a sua conduta ilícita causou à autora, conclusão que não encontramos fundamento para alterar como se verá.
Convocando o art.º 72º do CSC dispõem o seu n.º 1 que «os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa».
Como é sabido, as sociedades, enquanto pessoas coletivas, atuam através de órgãos: “centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer por pessoa ou pessoas com o objetivo de formar e/ou exprimir vontade juridicamente imutável às sociedades” (Cfr. Jorge Manuel Coutinho De Abreu, in Curso de Direito Comercial, vol. II, pág. 57). Como tal, em todas as sociedades é necessária e indispensável a existência de um órgão de administração. Nas sociedades em nome coletivo, por quotas, como é o caso dos autos, e em comandita este órgão é designado por gerência (art.º 191º, 252º, 470º, 474º e 478º todos do CSC).
Ao órgão de administração cabe, desde logo e como o título indica, administrar a sociedade. Ou seja, cumpre a este órgão gerir as atividades da sociedade, devendo praticar todos os atos que se revelarem necessários ou convenientes para a realização do objeto social – com respeito para com os limites legais, estatutários e deliberativos (arts. 192º, nº 2, 259º, 373º, nº 3, 405º, 406º e 431º).
Os membros deste órgão são ainda titulares de exclusivos (regra geral) poderes de representação da sociedade. Como refere Carlos Alberto Da Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Ed., Coimbra, 2005, pág. 279, é através deles que a sociedade se faz representar perante terceiros, emitindo e recebendo declarações de vontade. Consequentemente, a sociedade ficará vinculada pelos atos por eles praticados em nome dela e dentro dos respetivos poderes.
Sendo a administração o órgão responsável por toda a gestão da vida societária e ainda pela representação da mesma, é natural, como refere Amândio José Pereira Novais, in A Responsabilidade Civil dos Administradores na Execução de Deliberações dos Sócios, pág. 14, que a isso se contraponha um complexo de deveres que os seus membros devem observar sob pena de virem a ser responsabilizados, deveres que são legais e contratuais, tendo como fonte o contrato social ou as deliberações da assembleia-geral e de outros órgãos sociais - deveres que existem para com a sociedade, sócios e terceiros (credores, trabalhadores, administração fiscal, etc.).
Desde logo, a conduta dos membros do órgão de administração sujeita-se a deveres gerais: deveres que não dizem “o que” o administrador deve fazer, mas fundamentalmente “o modo” como o deve fazer (cf. Amândio José Pereira Novais, in Ob. Cit., pág. 15).
Assim, dispõe o art.º 64º, nº 1 do CSC que: “Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses de outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”. Esta norma foi alterada pelo Dec.-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que lhe deu um conteúdo mais preciso, quanto ao conteúdo dos deveres dos gerentes e administradores.
Como refere Amândio José Pereira Novais, in Ob. Cit., pág. 15, os deveres gerais de cuidado e lealdade representam cláusulas gerais e abstratas que, caso a caso, conformam a atuação dos administradores no exercício das suas funções - são princípios orientadores da conduta dos administradores, cuja concretização casuística demonstrará a existência de deveres mais específicos relativos a um determinado caso.
Os deveres de cuidado (“duty of care”) têm implicado que o gerente ou administrador revele a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade e empregue nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado (alínea da citada disposição legal).
Os deveres de lealdade (“duty of loyalty and fair dealing”) pressupõem uma atuação no interesse da sociedade e que atenda aos interesses de longo prazo dos sócios, bem como a ponderação dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores (alínea b) da mesma norma legal).
Os gerentes e administradores de uma sociedade têm, ainda, o «dever de relatar a gestão e apresentar contas» aos sócios (artigo 65º do CSC).
De qualquer forma, o sentido a extrair do citado normativo será o de que, na sua atuação, o gerente ou o administrador tem de agir com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores. Trata-se, em suma, «do interesse coletivo ou comum dos sócios, quer no interesse dos sócios como sócios, quer o resultado da solidariedade de quaisquer interesses individuais dos sócios» – assim Raul Ventura e Brito Correia, in “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas, Suplemento aos BMJ n.ºs 192.º a 195.º, p. 101.
Este dever de diligência deve ser apreciado em cada caso concreto e situa-se acima da exigência prevista para o bonus pater familiae, critério que tem a sua importância para averiguação da responsabilidade civil.
Neste âmbito tem a doutrina convocado o padrão “do gestor criterioso e ordenado” (cf. Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, em anotação ao art.º 64º, pág. 745).
Já a questão de saber se o artigo 64º do CSC constitui, autonomamente, fonte de responsabilidade civil não é pacífica na doutrina nacional, havendo quem considere o preceito como fundamento de ilicitude e de culpa (cf. Coutinho de Abreu, in Ob. Cit., pág. 17), enquanto que outros admitem-na como fundamento de um ou outro dos pressupostos, como é o caso de Amândio José Pereira Novais, in Ob. Cit., pág. 20.
De qualquer forma, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/02/2008, proc. n.º 4318/15.0T8LRS.L1-6, disponível para consulta in www.dgsi.pt, o que está em causa neste artigo é o cumprimento do dever de actuar perante a sociedade e no seu interesse, com os reflexos (“tendo em conta”) que daí resultam para os sócios e os trabalhadores (…) esta norma visa salvaguardar o bom funcionamento da sociedade e não defender os sócios contra actos ilegais que especificamente e de forma individualizada os atinjam. A relação nela contemplada não visa salvaguardar o interesse individual do sócio perante a sociedade, mas o dever do administrador para com a sociedade e a defesa do interesse social que a sua função determina.
Desempenhando um papel nuclear na vida da sociedade, é normal que os membros deste órgão, pela sua conduta, possam vir a ser responsabilizados.
Para efetivar a responsabilidade, existem vários tipos de ações sociais: ação sub-rogatória dos credores sociais: ação em que os credores se substituem à sociedade para exigirem dos administradores a indemnização que compete à sociedade (art.º 78.º n.º 2, do CSC); a ação social ut universi: proposta pela própria sociedade, sendo o procedimento natural para obter o ressarcimento dos danos causados à sociedade, verificados os pressupostos da responsabilidade civil dos administradores (art.º 75.º do CSC), depende de deliberação prévia dos sócios tomada por simples maioria em assembleia geral e tem de ser proposta no prazo de seis meses a contar da deliberação ou, no caso de ação de responsabilidade proposta por sociedade contra sócio, gerente, etc., por exercício ilícito, por conta própria ou alheia, de atividade concorrente com a da sociedade, no prazo de 90 dias contados do conhecimento pelos sócios da atividade exercida pelo sócio, gerente, etc., prevaricador (art.º 254º, n.ºs 5 e 6, do CSC); a ação social ut singuli: ação subsidiária em que os sócios que representem, pelo menos, 5% do capital social, ou 2% no caso de sociedade emitente de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado, pedem a condenação dos administradores na indemnização pelos prejuízos causados à sociedade e não diretamente a eles próprios (art.º 77.º do CSC). A ação social ut singuli é subsidiária da anterior, uma vez que só pode ser proposta nos termos do art.º 77.º n.º 1, parte final, do CSC, quando a ação não tenha sido proposta pela sociedade ou por a respetiva assembleia geral não ter deliberado nesse sentido, ou por ter deixado correr o prazo de seis meses sobre a deliberação sem propor a ação (artigo 75º, n.º 1, do CSC).
Na ação social ut universi, prevista no art.º 75º do CSC que é a que está em causa nos presentes autos, (atento os sujeitos, o pedido e causa de pedir) o administrador pode ser responsabilizado perante a sociedade, pela sua conduta no momento da constituição da mesma (art.º 71º do CSC) e pelo exercício das suas funções durante a vida da sociedade - art.º 72º do CSC, nos termos do qual «os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa».
Assim, são pressupostos desta responsabilidade: a conduta do administrador; a ilicitude dessa conduta; a culpa do agente; e a existência de um dano causado à sociedade, ligado por um nexo de causalidade com a conduta do administrador (cf. Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias, in Ob. Cit, em anotação ao art.º 72º).
Ou seja, é exigido que a conduta ilícita e culposa do administrador seja causadora de danos na esfera da sociedade.
Trata-se de uma responsabilidade subjetiva, ou seja, exige-se que, na base do ato, origem do dano, exista culpa do agente, sendo a conduta do administrador merecedora de censura do direito, quando, atendendo às circunstâncias do caso ele podia ter agido de outro modo. Por conseguinte, não se incluem no âmbito da responsabilidade dos administradores perante a sociedade as consequências imputáveis aos riscos da empresa, que são suportados pela sociedade e mediatamente pelos sócios (cf. Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias, in Ob. Cit, em anotação ao art.º 72), impendendo sobre o administrador o ónus de provar que agiu sem culpa, já que nestes casos ela é presumida.
A sociedade beneficia de presunção de culpa prevista no art.º 72º, n.º1, parte final, presunção de culpa que é manifestação do carater obrigacional desta modalidade de responsabilidade civil pela administração (Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias, in Ob. Cit, em anotação ao art.º 72º), e implica inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade autora de provara culpa, conforme o art.º 344º, n.º 1 do Cód. Civil).
Feita este excurso pelas normas aplicáveis, face aos factos dados como não provados é incontroverso concluir, como se fez na sentença recorrida, que, no caso, se mostram verificados os pressupostos da responsabilização civil dos 1.º e 3.º Réus, enquanto gerentes da autora, para com a autora, resultando inequívoca a violação dos deveres legais gerais - os deveres de cuidado e de lealdade previstos no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais – que integra a prática de um comportamento ilícito e que, por consequência, preenchidos os restantes requisitos, acarreta também a responsabilidade civil do administrador perante a sociedade que dirige.
Com efeito, como se escreveu na sentença recorrida, resultou demonstrado, para além do mais, que, relativamente à detetada inexistência de disponibilidades nas contas bancárias da Autora, verificou-se ser prática corrente dos Réus gerentes (os 1.º e 3.º Réus) não depositarem os apuros diários em dinheiro do estabelecimento nas contas bancárias da Autora, impossibilitando o seu efetivo controlo. O 3.º Réu, como único detentor de cartões multibanco das contas tituladas pela Autora, fazia levantamentos diários nas caixas de multibanco ATM, atingindo o máximo de €400,00 permitido por dia, inexistindo qualquer evidência de tais valores terem sido usados para pagamentos de despesas da sociedade, nem os inscrevendo na contabilidade da sociedade Autora. Ambos os 1.º e 3.º Réus fizeram levantamentos em dinheiro da caixa do estabelecimento comercial da Autora, em seu benefício próprio, sem justificação e sem devolução a esta de tais quantias. O valor dos levantamentos referidos no ponto 13 (multibanco ATM) cifrou-se em cerca de € 82.000,00; e o valor dos levantamentos referidos no ponto 14 supra (dinheiro em caixa do estabelecimento, no ano de 2019) cifrou-se em cerca de € 37.800,00 (pelo 1.º Réu) e em cerca de € 18.700,00 (pelo 3.º Réu). A 2.ª Ré, com o conhecimento dos demais Réus, jamais exerceu funções enquanto trabalhadora da sociedade Autora, desde o ano de 2016. Apesar disso, a sociedade Autora pagou as contribuições à segurança social (de montantes não concretamente apurados), entre os meses de julho de 2016 e janeiro de 2020, relativamente à (inexistente) prestação laboral da 2.ª Ré nesse período de tempo. Os 1.º e 3.º Réus jamais fizeram o controlo de caixa da sociedade Autora, nem o registo da movimentação das receitas apuradas; fizeram pagamentos a fornecedores sem justificação para tal; e deixaram de pagar ao designado Fundo de Compensação Salarial, ascendendo tais montantes (não pagos) ao valor global de € 3.331,73, no período de tempo compreendido entre junho de 2014 e janeiro de 2020. Os dois referidos Réus descontaram mensalmente os valores das quotizações aos trabalhadores sindicalizados no designado Sindicato dos Trabalhadores (…), mas não os entregaram ao dito sindicato, no período temporal compreendido entre julho de 2019 e fevereiro de 2020; no montante de quotizações sindicais em falta (ou em atraso) de € 756,71. Fizeram pagamentos de despesas pessoais com receitas da Autora (não obstante levantarem os seus vencimentos). Os mesmos Réus forneceram, em nome da sociedade Autora, sem garantia e plano de pagamento, à sociedade “JJ”, bens no montante de € 232.060,01 (por referência a 31 de dezembro de 2019). Os 1.º e 3.º Réus financiaram, em nome da sociedade Autora, sem garantia e formalização de contrato, a sociedade “JJ”, Lda., no montante global de € 161.055,66 (saldo registado na contabilidade da Autora a 31 de dezembro de 2019). Tal como contabilizaram o montante de € 100.000,00 registado em investimentos financeiros e/ou outros ativos financeiros, sem evidência de realização.
Além do mais, ficou provado que os 1.º e 3.º Réus transferiram a propriedade de dois veículos automóveis da Autora para o 1.º Réu e para a filha do 3.º Réu, sem qualquer contrapartida para a ora demandante; a saber, o veículo de matrícula (..), da marca (...), atualmente registado em nome do 1.º Réu, e o veículo de matrícula (…), da marca (…), atualmente registado em nome de “VV”.
Provou-se também que os 1.º e 3.º Réus não depositaram nas contas bancárias da sociedade Autora os apuros diários recebidos, e faziam os pagamentos aos fornecedores, funcionários e restantes entidades através do dinheiro de caixa do estabelecimento comercial.
No ano de 2019, em virtude do descrito no ponto 27 supra, existia uma diferença entre os valores recebidos e os depositados nas contas bancárias da sociedade autora, tendo entrado em contas bancárias, movimentadas por esta, apenas o montante global de € 629479,70 (somente 34 % dos valores recebidos foram objeto de depósitos em bancos).
Os 1º e 3º Réus deixaram de entregar à administração fiscal quantias num montante total (reportado a 31 de dezembro de 2019) de € 154.943,00, por dívidas relativas a IVA e a retenções na fonte de IRC, coimas e juros de mora – atuação/omissão daqueles réus que acarretou a que fossem instaurados diversos processos executivos tributários contra a sociedade Autora, num total de 27 processos executivos instaurados.
Os 1.º e 3.º Réus também deixaram de entregar à segurança social quotizações e contribuições num montante total (reportado a 31 de dezembro de 2019) de € 67.756,00 – atuação/omissão que levou à instauração de execuções fiscais contra a sociedade Autora num total, computado até janeiro de 2020, de € 80.348,54.
Como consequência da atuação dos 1.º e 3.º Réus, está contabilizado um saldo de caixa e depósitos à ordem, em 31 de dezembro de 2019, no montante de € 1.240.062,12, sem a existência desse valor global.
Ainda como consequência da atuação dos 1.º e 3.º Réus, está contabilizado um saldo de clientes no montante de € 177 926,26, bem como um saldo de outras contas a receber no montante de € 181.491,46, sem a existência de tais valores.
Do que foi alegado na petição inicial, a Autora apenas não logrou comprovar os valores das retribuições e contribuições pagas pela Autora à 2.ª Ré, ou que lhe foram pagas retribuições salariais pela Autora entre julho de 2016 e janeiro de 2020 e ainda que as despesas pessoais constantes do ponto 22 foram, em concreto, com consumos de água, eletricidade, habitações e férias.
Já os réus não lograram demonstrar a factualidade em que assentou a sua defesa, alegada em sede de defesa/contestação, e que tinha como virtualidade demonstrar, uma vez provada, que não exerciam a gestão de facto da empresa desde janeiro de 2011 até 2 de março de 2020, sendo meros gestores de direito e que a partir daquela data tivessem deixado de tomar decisões na sociedade demandante, limitando-se a seguir as indicações das sócias “MO” e “ME”, não se confirmando, portanto, os requisitos para a aplicação do art.º 80º do CSC como possível base para a responsabilização das últimas em prejuízo dos réus, como defendido pela apelante.
Demonstrada a ilicitude da atuação dos 1º e 3º réus, não afastaram a presunção de culpa que se sobre eles impende, assim como não demonstraram a existência de qualquer cláusula de exclusão da primeira, designadamente a prevista no art.º 74º, n.º 3 do CSC (conclusão g), porquanto não está demonstrado (e sequer convenientemente alegado) que os factos constitutivos da responsabilidade foram expressamente levados ao conhecimento dos sócios antes da deliberação de aprovação das contas e que esta obedeceu aos requisitos de voto exigidos no n.º 2 do art.º 74º - sem voto contrário de uma minoria que represente pelo menos 10% do capital social, sendo que os possíveis responsáveis não podem votar nessa deliberação.
Com efeito, como referem J.M Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos (in Ob. Cit, em anotação ao art.º 74º, pág. 871) “em face do que se dispõem no art.º 74º do CSC, em regra, a deliberação social pela qual os sócios aprovem as contas ou a gestão dos administradores não implica renúncia aos direitos de indemnização da sociedade (art.º 74º, n.º 3, 1ª parte). Só há renúncia (deliberação tácita de renúncia) se os factos constitutivos da responsabilidade houverem sido expressamente levados ao conhecimento dos sócios antes da aprovação e esta tiver obedecido aos requisitos de voto exigidos” pelo n.º 2 do art.º 74º, n.º 3”.
Por outro lado, considerando os factos provados nos autos, temos pois por assertada a conclusão do Tribunal a quo de que, em concreto, a conduta ilicita e culposa do 1º e 3º réus, evidenciada nos factos provados, integradores de “uma violação ostensiva dos deveres de cuidado e de diligência, impostos pelo artigo 64.°, n.º 1, al. a), do Código das Sociedades Comerciais”, e de lealdade prevista no art.º 64º, n.º1, al. b), porquanto os réus “não cuidaram de salvaguardar os interesses da Autora, na medida em que, no exercício das suas funções, agiram no seu próprio interesse e em detrimento do interesse social, prejudicando desse modo a Autora, de cuja gestão e direção se encarregaram, o que não se coibiram de fazer ao longo de anos”, causou um dano patrimonial à sociedade recorrida, evidenciado pela diminuição do ativo do valor do património da sociedade, que está demonstrado contabilisticamente na inexistência física/real dos ativos que, por força dos resultados conseguidos pela apelada, deveriam estar disponíveis, mas não estão, sendo os 1.º e 3.º Réus solidariamente responsáveis, de acordo com o previsto nos artigos 513º do Código Civil e 72.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, pelo pagamento da importância em falta no ativo da sociedade apelada.
Face ao exposto, importa concluir que, a sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo efetuado correta aplicação dos factos provados ao direito aplicável, não se constatando, de nenhuma forma, o fundamento invocado pelos apelantes (conclusão h), quer de facto, quer de direito, atento o disposto no art.º 542.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e que sustente a pugnada condenação da autora como litigante de má fé, seja em face da procedência da ação, seja em face da factualidade que os recorrentes não lograram demonstrar em concreto, destacando-se os pontos X a XII da matéria de facto não provada, que neste sede recursiva se mantiveram inalterados.
Tendo a autora aduzido aos autos uma versão que mereceu adesão de prova por correspondência com a realidade dos factos e que se refletiu na procedência parcial da ação em relação aos 1º e 3º réus, não se mostram verificados quaisquer fundamentos de facto e de direito para uma eventual condenação da apelada como litigante de má fé, ao contrário do que defendem os apelados.
Em face do exposto, importa concluir pela improcedência da apelação.
*
V. Decisão
Nos termos e fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
Lisboa, 12-11-2024
Susana Santos Silva
Nuno Teixeira
Ana Rute Costa Pereira