I - O Código das Sociedades Comerciais, no seu art. 257.º, n.º 3, prevê a livre destituição dos gerentes, ao permitir que os sócios possam deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
II - O art. 24.º do CSC, não fornece a noção de “direito especial”, não existindo outro preceito legal que preveja ou defina o “direito especial à gerência”.
III - Os direitos especiais caracterizam-se por traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral, resultarem, necessariamente, dos estatutos, não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária.
IV - O fim pretendido com a sua criação é a tutela dos interesses da sociedade e não a ideia de concessão de privilégios aos sócios.
V - Tendo sido atribuído, pelo presente contrato de sociedade, um direito especial à gerência ao autor e não existindo qualquer outra cláusula estatutária que defina o aludido conceito ou o concretize, sem prejuízo do previsto nos arts. 24.º e 55.º do CSC, apenas se concede o privilégio de não poder ser destituído em assembleia geral, quem tiver tal direito especial, sem invocação de justa causa e por via judicial.
VI - Em assembleia geral, os sócios não podiam destituir ou substituir o gerente, com direito especial à gerência, mas, podiam deliberar, em consonância com os estatutos, intentar ação de destituição com justa causa, como fizeram.
VII - Não proibindo os estatutos da sociedade que possam ser nomeados mais do que dois gerentes, o direito especial à gerência de um gerente, não sofre restrições com a deliberação de nomeação de um outro gerente.
VIII - Compete ao STJ, como tribunal de revista, verificar se a interpretação encontrada pelas instâncias para determinada cláusula estatutária foi feita com base em circunstâncias reconhecíveis através do próprio pacto e ainda, atento o disposto no n.º 1 do art. 238.º do CC e se essa interpretação tem um mínimo de correspondência no texto da cláusula.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
6ª Secção
1-Relatório:
O Autor, AA intentou ação declarativa contra a Ré, Cosvalinox - Indústria Metalúrgica e Equipamentos, Lda., pedindo a título principal:
- Que se decrete a nulidade de todas as deliberações tomadas a coberto dos pontos 2 a 9 da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré no passado dia 23 de junho de 2022, por ofensivas dos bons costumes e violação de conteúdo de norma inderrogável e o cancelamento de qualquer registo que venha a ser apresentado e lavrado com fundamento na ata dessa Assembleia Geral;
E a título subsidiário:
- Que se decrete a anulabilidade de todas as deliberações tomadas a coberto dos pontos 2 a 9 da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré, datada de 23.06.2022 e o cancelamento de qualquer registo que venha a ser apresentado e lavrado com fundamento na ata dessa Assembleia Geral.
Alegou, para tanto, em suma, que é sócio da sociedade Ré, juntamente com outras cinco pessoas, com quotas iguais.
O A. desde a sua constituição, sempre exerceu as funções de gerente, sendo gerente executivo. Em Assembleia Geral realizada no dia 16.11.2016, os sócios, por unanimidade, deliberaram e decidiram reconhecer e atribuir ao autor um direito especial à gerência.
No dia 26.04.2022, ocorreu uma assembleia geral extraordinária.
Os sócios, por maioria, apenas com o seu voto contra, deliberaram, decidiram e aprovaram a nomeação de um novo gerente, BB, em cumprimento do ponto 3. da ordem de trabalhos do aviso convocatório da respetiva Assembleia Geral.
O A. instaurou procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, que corre termos.
Foi agendada nova assembleia geral para o dia 23.06.2022, pelas 10h.30m, pelo gerente não executivo CC e a gerente nomeada na referida assembleia geral.
Sustenta o A. a existência de irregularidades na convocação da dita assembleia e a existência de pontos dos trabalhos que são ilegais.
A R. deduziu contestação, pugnando pela improcedência dos pedidos deduzidos pelo autor e pela sua condenação como litigante de má-fé.
Alegou em síntese, que as deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral de 23.06.2022, foram aprovadas por unanimidade de votos emitidos, sendo que todas as questões, constantes da Ordem de Trabalhos, para além de devidamente explicitadas, foram devidamente discutidas por todas as partes presentes na dita Assembleia. Que o aviso convocatório não padece de qualquer irregularidade ou imprecisão.
Após a realização da audiência prévia, foi proferida sentença, julgando totalmente improcedente a ação, nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a presente ação e, em consequência, decido:
Absolver a ré do pedido de declaração de nulidade das deliberações sociais aprovadas na Assembleia Geral de sócios da sociedade ré, realizada em 23.06.2022;
Absolver a ré do pedido de declaração da anulabilidade da deliberação aprovadas na Assembleia Geral de sócios da sociedade ré, realizada em 23.06.2022;
Absolver a ré dos pedidos de cancelamento dos registos lavrados com fundamento nas referidas deliberações;
Absolver o autor do pedido de condenação como litigante de má-fé, deduzido pela ré».
Inconformado recorreu o autor para o Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido acórdão com o seguinte teor na sua parte decisória:
«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida».
Uma vez mais inconformado, veio o autor interpor recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil.
Alegou em síntese nas suas conclusões de recurso:
- O aqui Revisante, em sede de recurso de revista excepcional, pretende ver apreciadas as seguintes duas questões jurídicas, a saber:
- Como se está a tratar de relações internas entre os sócios, é possível produzir, em sede de audiência de discussão e julgamento, todo o tipo de prova: declarações de parte, depoimento de parte, documental, testemunhal e outras para se saber qual a vontade real dos declarantes quando introduziram o clausulado no pacto social na assembleia geral datada de 16/11/2016 – art.º 236.º e 238.º do CC, máxime, o conteúdo do seu direito especial à gerência e ainda a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais;
- Qual o conteúdo e o alcance do direito especial à gerência de um sócio minoritário em confronto com o direito dos sócios nomearem gerentes – artigos 24.º; 246.º, n.º 2, alínea a); 256.º; 257.º; n.º 3; 259.º; 260.º; 261.º todos do CSC.
- É possível a substituição de um gerente com direito especial à gerência sem a obrigatória decisão judicial de destituição mediante nomeação, em substituição do destituído, de novo gerente – artigos 253.º, 257.º do CSC e 1053.º e seguintes do CPC.
- Quanto à relevância jurídica das questões em causa e sua necessidade à melhor aplicação do direito, ambas as decisões das instâncias não se pronunciaram sobre a questão de saber se é admissível produzir prova, todo o tipo de prova, em sede de instrução da causa e de audiência de discussão e julgamento para averiguar a vontade real das partes quanto ao teor das cláusulas do pacto social que importava interpretar, à luz do art.º 236.º e 238.º do CC para decidir as questões de direito sob juízo;
- Está em causa, com fundamento na vontade real dos sócios expressa nas cláusulas do contracto social saber, qual o conteúdo do direito especial à gerência atribuído a um sócio minoritário e por outro saber se os sócios quiseram com o teor das cláusulas que introduziram nos estatutos consagrar uma regra de unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais, nomeadamente, na deliberação de designação de gerentes.
- E isto porque, tendo o grupo constituído pelos 5 sócios maioritários, decidido nomear um quarto gerente, sem o voto favorável, do Revisante, sócio minoritário, gerente efectivo, com direito especial à gerência, da forma como o tribunal balizou a questão, ou seja, não estando o conteúdo do direito especial definido no contracto social, este direito especial não é restringido, contra a vontade do seu titular, por prevalecer acima dele o direito dos sócios a nomear gerentes.
- O que incorpora relevância jurídica e à necessidade de melhor aplicação do direito é o facto deste direito pertencer a um sócio e não a um terceiro, que no todo que constitui a cifra do capital social é minoritário, direito especial esse que numa gerência, plural e conjunta, não disjunta, é a única forma de poder ter voz para constituir o todo que é o interesse e a vontade da sociedade.
- Quanto à relevância social, independentemente do caso aqui em crise não se encontrar no âmbito das relações societárias, dúvidas não podem evitar restar que nos encontramos neste ponto com intuição de decisões contraditórias”, sem prescindir do facto que sociedades com ou sem atribuição de direitos especiais se encontram em todos os tipos de sociedades, nomeadamente do tipo por quotas, que se encontram em actividade no nosso tecido empresarial.
- Tal como este sócio minoritário, no âmbito das sociedades comerciais por quotas, por este país, temos sócios ou até terceiros, em que os sócios por maioria ou em unanimidade atribuíram um direito especial à gerência e que se vêm colocados à margem da gestão da sociedade, em prejuízo desta, pela simples nomeação de gerentes que possam obrigar a sociedade sem a sua intervenção.
- Nestas seguramente existem muitos gerentes, sócios ou não, cujos direitos especiais, in casu, o direito especial à gerência, se vê ultrapassado e ostracizado pela cifra maioritária do capital social, quando são surpreendidos pela nomeação de novos gerentes que lhe esvaziam o conteúdo do seu direito.
- Como tal, é absolutamente crucial esclarecer qual o conteúdo desse direito especial, in casu, do direito especial à gerência e o que deve prevalecer é o interesse da sociedade e o do titular desse direito ou se a cifra maioritária do capital social expressa através de vontade egoística dos sócios pode atirar às malvas esse direito especial.
- O confronto entre o direito especial à gerência do sócio minoritário em contraposição com o direito de os sócios designar gerentes é uma situação complexa e nova.
- Como tal, interesses de especial relevância social, pelo número de situações a que se podem aplicar, bem como quanto à complexidade e novidade das questões jurídicas imanentes.
- Estão nestes casos em causa o direito fundamental à igualdade de direitos entre sócios – artigos 13.º e 18.º da CRP, e da democracia económica e social – artigos 61.º e 62º da CRP, uma vez que, o direito de propriedade privada abarca as participações sociais com a dimensão fundamental de liberdade, nele se incluindo, não só o direito de poder exercer todos os direitos societários, conferidos por lei ou convencionalmente estipulados, conferindo a dimensão de liberdade de uso, fruição e disposição, sem limites ou intromissão de terceiros, nem que sejam consócios.
- Ora, no caso em apreço, nas instâncias inferiores, apesar de alegados esses motivos, o tribunal não quis produzir prova quanto à sua existência proferindo decisão de mérito, sem ter em conta essas circunstâncias ou interpretando-as de acordo apenas de acordo com a solução jurídica que admitiu plausível para a causa.
- Esquecendo que, a participação social de sócios minoritários envolve significativos custos resultantes das disposições legais que protegem as minorias, estando aqui em causa que é a participação do sócio minoritário que assegura a gestão da empresa e a torna estável.
- No caso em apreço, o direito específico dos sócios minoritários não pode ser coarctado pelo direito geral dos sócios nomearem gerentes, porque este direito geral não é afectado na medida em que a sociedade possui gerentes suficientes para poder se obrigar nas suas relações interna e externas.
- Formalmente os sócios beneficiam de iguais direitos, mas, ainda assim, os sócios maioritários na vida da sociedade não podem afectar os direitos dos sócios minoritários, sobretudo quando esses direitos são direitos especiais atribuídos por unanimidade de todos os sócios e nenhuma justificação factual é adiantada pela sua restrição.
-Existe, pois, uma desigualdade patrimonial com efeitos sobre o rumo da sociedade, porque o sócio com direito especial à gerência não poder exercer as suas funções, e por, isso, existe violação do princípio de igualdade de tratamento.
- Ora, é incontestável que a restrição do direito especial à gerência, impedindo o sócio minoritário seu titular de praticar actos de gestão a favor da sociedade e como eventual contrapoder até, coloca em causa o objectivo prosseguido pelo legislador, quando o instituto foi criado em termos de lei geral e nos termos do convencionado no contracto social.
- Assim, estamos perante normas de natureza societária e adjectiva civil relativa a interesses de particular relevância, ou seja, todos os sócios das sociedades por quotas.
- O acórdão referido encontra-se também em clara e inequívoca contradição com jurisprudência da mesma instância, já transitada em julgado, que aprecia a mesma questão aqui invertida: a deliberação para destituição, suspensão de gerente e consequente nomeação de um gerente substituto.
- Preenchendo assim, a alínea c) do n.º1 do 672.º do CPC.
- Concretamente, onde é proferido pela Relação: “Tendo presente os considerandos doutrinais e jurisprudenciais, não há dúvidas o que efectivamente foi sujeito a votação e deliberado pelos sócios na assembleia geral da R. do dia 23 de Junho de 2022. Não tem assim fundamento o argumento factual usado pelo apelante nas conclusões (18ª), de que o apelante foi destituído de gerente da R., antecipando assim uma qualquer acção judicial. Claramente, não é o caso. Foi deliberado que seria intentada acção judicial de destituição de gerente com fundamento em justa causa, com pedido de suspensão imediata da gerência” e “como se afirmou e decidiu, supra, na assembleia geral da R. do dia 23 de Junho de 2022, não foi deliberada a destituição de gerente do apelante, mas sim que fosse intentada a competente acção judicial com tal finalidade. (…) O teor literal da deliberação não permite outra qualquer interpretação, que não seja a que irá ser intentada acção judicial visando a destituição do apelante da gerência com justa causa, com pedido de suspensão imediata do gerente, aqui recorrente. ” está-se a admitir e permitir que os sócios de uma sociedade por quotas possam deliberar instaurar (ou não) uma acção judicial de destituição por justa causa de um gerente com direito especial à gerência, e de o suspender e de nomear um novo gerente em sua substituição.
- Indo contra o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto do dia 2 de Outubro de 2001 (Relator: Mário Cruz) que para o seu conteúdo acima transcrito nas Alegações prontamente se remete!
- Indica a instância inferior que as questões a decidir são (1) das nulidades processuais e (2) a destituição e substituição efectiva de gerente por necessitar de decisão judicial viola disposição legal – cfr. página 67 e 68 do douto Acórdão.
- Tanto o tribunal ad quo como a 1ª instância entenderam que o artigo 8.º do pacto social da sociedade Ré/Recorrente deveria de ser interpretado à luz de um critério objectivista dado pelos artigos 236.º e 238.º do Código Civil.
- Atendendo aos factos dados como provados por ambas as instâncias inferiores, por mera cautela de patrocínio – e na esperança de o Supremo Tribunal de Justiça entenda o contrário – assumamos que nos autos constam todos os elementos probatórios necessários para que a acção disponha de uma decisão de mérito no despacho saneador.
- O Tribunal interpreta fria, literal e objectivamente o pacto social – remetendo para canto e desconsiderando a relevâncias de outras cláusulas do contracto social que, interpretadas no seu conjunto, oferecem uma conclusão completamente distinta – falamos, claro está, das cláusulas 2.º n.º2; 5.º; 7.º n.º2; 8.º n.º1, n.º2, n.º3 e n.º4; 10.º, 11.º, 13.º e 14.º - ditas cujas que estabeleceram o direito especial à gerência e a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais, votadas por unanimidade na assembleia geral.
- A supressão ou coarctação de qualquer direito especial, validamente inscrito no contracto social e atribuído pela prática, pelos usos e costumes da Recorrida, só é possível mediante o consentimento do seu titular (artigo 24º, nº 5 do CSC), dada a sua natureza intuitu personae, por serem conferidos ou atribuídos, em concreto, a sócios determinados, in casu, apenas ao recorrente, atentas as especificidades da matéria factual alegada e com fundamento na qual foram constituídos
- O aqui Revisante está conferido pelo pacto social a um direito especial à gerência que não poderá ser retirado da sua titularidade sem o seu consentimento, excepto no caso concreto, a única situação concreta que podia levar à destituição com justa causa, prevista no art.º 8.º, n.º 4 dos Estatutos, se existir uma deliberação social que “requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa” (art.º 257º, nº 3, in fine, do CSC).
- O que constitui em termos práticos, por um lado, a forma que os sócios encontraram de valorizar o direito especial à gerência e a gerência de facto do Recorrente, e, por outro, a impossibilidade de nomear novos gerentes, dado que, estes jamais podiam ser remunerados, sem o voto concordante de todos os sócios.
- Limitação da destituição com justa causa do gerente com direito especial, limitada a quatro anos consecutivos de resultados negativos, constitui uma derrogação à lei das sociedades por quotas, nomeadamente, a norma específica do art.º 257º, nº 3 do CSC, onde se consagra em termos gerais a possibilidade de destituição do gerente, com direito especial, por qualquer motivo que constituía justa causa.
- Da análise destas duas normas, resulta que não pode existir limitação nem supressão do direito especial à gerência de que é titular determinado sócio, sem que este dê o seu consentimento, salvo se existir justa causa para essa destituição ou limitação e no caso concreto destes autos, na situação única prevista no art.º 8.º, n.º 4 dos Estatutos da Ré.
- Assim, o tribunal ao não permitir ao Recorrente a produção de prova sobre os factos que importava para se descortinar qual a real vontade dos sócios ao incluir as clausulas 2.ª, n.º 2; 5.ª; 7.ª, n.º 2; 8.ª, n.ºs, 1, 2, 3, 4; 10.ª, 11.ª, 13.ª e 14.ª nos estatutos, quando estabeleceram o direito especial à gerência e a regra da unanimidade na aprovação de todas as deliberações sociais, votadas por unanimidade da assembleia geral datada de 16/11/2016, violou os comandos legais dos art.º 236.º e 238.º do CC, pelo que, deve ser proferido acórdão que possibilita a produção de prova sobre tais factos. O tribunal não pode analisar esta questão apenas pela leitura e interpretação do que está escrito no contracto, tem de perscrutar e ouvir a vontade real das partes e a prova que as partes possam produzir a tal respeito. Ao não fazê-lo, ainda que ao abrigo dos artigos 236.º e 238.º do CC, ultrapassa os seus limites jurisdicionais e viola o principio do dispositivo
- No acórdão de que se recorre, o Tribunal da Relação balizou os seguintes subtemas:
a. Vícios do aviso convocatório da Assembleia Geral da Ré/Recorrida
b. O aviso convocatório, no seu ponto 9, deveria ter identificado quem iria ser nomeado gerente.
c. A deliberação do ponto 8, i.e., a destituição de gerente com direito especial à gerência e a sua substituição efectiva, sem decisão judicial, é uma violação do direito especial à gerência.
d. A invalidade da deliberação do ponto 8 e 9 da Assembleia Geral da Ré porquanto violação da necessidade de aprovação por unanimidade – condição decorrente do contracto social, dos usos e costumes.
e. A nomeação de um novo gerente viola e esvazia o direito especial à gerência do aqui Autor/Recorrente.
- Entende o Tribunal da Relação do Porto que, confrontando o aviso convocatório e acta da AG, “o que foi deliberado foi a propositura da competente acção judicial de destituição de gerente do apelante, com pedido de suspensão imediata do gerente/apelante” terminado por aderir integralmente ao decidido na 1ª Instância, citando que os assuntos sujeitos à ordem do dia estão contidos de forma expressa, descriminados os que tendem à discussão e os que, por outro lado, tendem a uma avaliação/verificação e, ainda, os que se destinavam a uma tomada de posição ou deliberação pelos sócios. Invoca como fundamento a aplicação das regras gerais de interpretação do Código Civil (236.º e 238.º).
- Do aviso convocatório resulta que os sócios, naquele plenário, expor e votar as seguintes propostas (nas palavras exactas: discutir e deliberar): elaboração da acta por notário (que se veio a verificar, atente-se o documento junto aos autos), destituir o sócio-gerente AA, aqui Revisante, instaurar acção judicial de destituição e proceder criminalmente contra o mesmo; por último, nomear novo gerente em substituição de DD.
- Não só do texto literal resulta que todos os pontos adjectivados de discussão e deliberação foram efectivamente decisões tomadas – incluindo a própria destituição – como também o enquadramento dos pontos 8 e 9 oferecem uma resposta clara (e em sentido oposto aos tribunais a quo): se foi nomeado – ou estava planeado nomear – novo gerente em substituição de AA era porque estava planeado pelos gerentes que a convocaram destituí-lo, deixando o Autor/Recorrente, a partir daquele dia, de ser gerente. Se assim não fosse, bastava ter colocado no aviso convocatório, por exemplo, apenas “discutir e deliberar sobre entrada de acção de destituição”. Não o fazendo, e dado o seguimento lógico presente e evidente, um declaratário normal percepciona que esta Assembleia era sim para a verdadeira destituição de gerente do Autor/Recorrente, em notária fraude à lei!
- O artigo 238.º n.º2 estipula que “Esse sentido [o sentido sem mínimo de correspondência no texto do respectivo documento] pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” -Tese que é confirmada por referências doutrinais e jurisprudenciais que fundamentam de direito o Acórdão da Relação do qual se interpõe recurso!
- Dessas referências concluiu-se que 1) se o Tribunal se recusa a fazer prova em audiência de discussão de julgamento nunca poderá conhecer da vontade real dos declarantes; (2) fazendo e permitindo a sobredita prova constatará o tribunal que entrarão em contradição com o estipulado no contracto social e o praticado nas assembleias gerais e outros eventos da vida corrente da Ré; (3) os usos e costumes e outras práticas após a elaboração do pacto social e da deliberação de 16/11/2016 serão sempre importantes para fazer um atestado verdadeiro nesta causa!
- Em particular, quanto aos vícios da convocatória para a Assembleia Geral, bastava o tribunal ter permitido a prova nas suas diversas modalidades para rapidamente deparar-se que o que foi escrito e praticado era tudo menos coincidente.
- Logo, concluiu-se que o Tribunal não conhecia a vontade real do declarante nem o quis conhecer!
- Com efeito, entende o Recorrente que os tribunais ad quo não utilizaram, na sua completa extensão, os critérios dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, embora deles tenham feito estandarte para decisão apressada do mérito da causa. Resulta daqui que, perante o exposto nos articulados destes autos, haveria matéria suficiente para em primeiro lugar, decidir em sentido oposto ao que decidiu e, em segundo lugar, no mínimo, colocar em dúvida o Tribunal sobre a suficiência do alegado naqueles e, perante tal necessidade, levar o caso a audiência de discussão e julgamento.
- Quanto ao facto de o aviso convocatório não ter identificado quem iria ser nomeado, de igual forma aderiu a Relação ao entendimento da 1ª Instância apesar de apenas derivar da lei que “quando estiver incluída na ordem do dia a eleição de membros dos órgãos sociais, sejam facultados aos sócios, na sede da sociedade, os nomes das pessoas a propor, as suas qualificações profissionais, a indicação das actividades profissionais exercidas nos últimos cinco anos, designadamente no que respeita a funções exercidas noutras empresas ou na própria sociedade, e do número de acções da sociedade de que são titulares – e da posição assumida nos autos pelas partes e da análise da acta não resulta que o autor haja solicitado tais informações e que as mesmas lhe tenham sido negadas.”. E, segundo ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, “O artigo 289.º, nos seus n. º1 e n. º2, permite ao accionista a consulta na sede da sociedade de um conjunto de informações preparatória das assembleias gerais. Agora, não está pressuposta a formulação de pedido ou requerimento pelo accionista”.
- Ora, se a lei indica que não deve constar da convocatória a informação – por mais mínima que seja – sobre o novo gerente (ou sequer sobre as causas de destituição por justa causa), deve, ao menos, ser concedida essa informação a qualquer sócio que a queria!
- Não estando essa disponibilizada na sede da sociedade incorre a Assembleia no vício da anulabilidade disposta no artigo 58.º n.º1 c)!
- Mesmo que se entenda que deva ser de aplicar o artigo 214.º n.º1 e não o 289.º, importa esclarecer que o primeiro artigo quando refere direito à informação está tal a revestir sentido amplo, abrangendo três direitos parcelares do sócio de sociedade por quotas: o direito à informação em sentido estrito que se consubstancia no pedido de conhecimento da vida societária, a concretizar através de perguntas que entenda formular sobre os actos substantivos e concretos de gestão, praticados ou a praticar pelos gerentes, e respectivas consequências, obrigando-os a fornecer respostas verdadeiras, completas e elucidativas; o direito à consulta da documentação da sociedade (escrituração, livros e outros documentos), com a exigência da sua exibição, a efectuar na sede da sociedade, com o auxílio de perito ou especialista contratado pelo sócio interessado se assim o entender; e o direito à inspecção concretizada através da actividade necessária para que o sócio vistorie os bens sociais.
- E circunscreve-se nesse direito o sócio poder deslocar-se à sede da sociedade no período que antecede a assembleia geral e consultar as informações necessárias para um voto esclarecido!
- Por outro lado, entende o Revisante que a deliberação do Ponto 8 da AG, sem deliberação judicial, é uma violação do direito especial à gerência.
- Neste ponto, o Tribunal da Relação do Porto considerou, novamente, que a Assembleia Geral de 23 de Junho de 2022 serviu para deliberar a instauração ou não de uma acção judicial que visaria a destituição do aqui Recorrente.
- Se é certo que o Código das Sociedades Comerciais prevê a livre deliberação da destituição dos gerentes, verdade também será afirmar que, no caso de o gerente ter direito especial à gerência essa livre deliberação e essa posição especial, nas palavras de COUTINHO DE ABREU, está particularmente protegida.
- A própria suspensão e a possível de destituição só pode ocorrer mediante decisão judicial, havendo mesmo previsão processual para essa finalidade – nomeadamente os artigos 1053.º e seguintes do CPC, em especial o 1055.º!
- Não podem os sócios substituir-se ao papel de um juiz e proferir sentença de um processo especial em Assembleia Geral. Ao fazê-lo, não estão só a violar o direito especial à gerência do Revisante como estão a agir contrariamente ao que a lei define como os processos adequados para estes casos.
- A argumentação da Relação parece-nos contraditória. Até porque, e assumamos o raciocínio proferido, se o que efectivamente aconteceu no dia 23/06/2022 foi uma deliberação sobre se se deveria intentar uma acção judicial destituição de um gerente com direito especial a ser gerente e votado esse ponto nunca poderiam fazê-lo nos moldes que se sucedeu, isto é, nomear um gerente para substituir um outro suspenso!
- Ainda, a deliberação do Ponto 8 e do Ponto 9, a ver do Revisante, é violadora do contracto social e dos usos e costumes da Sociedade Revisada.
77. Para a interpretação de um pacto social, de uma acta da Assembleia Geral, de uma convocatória e de qualquer acto respeitante à vida normal de uma pessoa colectiva, na sua esfera interna e externa, é sempre necessário o julgador não se fixar na letra daqueles. O que o autor pretende não é, como tem vindo a ser erradamente interpretado, dirigir a sociedade por si e para si, exclusivamente, nem o autor (em consciência de que quem invoca o direito tem de o provar), de livre e espontânea vontade se subsume à tutela jurisdicional sem qualquer tipo de fundamento ou de prova. Quer isto dizer que a decisão a final, depois de produzida a prova e realizada audiência de julgamento, até poderia ser igual no sentido em que a pretensão do mesmo carecia de fundamento. Sucede que e - aqui sim reside a principal pretensão - deve o autor ter a possibilidade de provar em juízo, com declarações e depoimentos de parte, com testemunhas e com documentos que atestem ao facto de durante a vida societária da Ré e durante todo o período em que o autor se viu com obrigação de encabeçar e gerir, todas as decisões tomadas em sede de deliberações societárias foram resultado de uma votação unânime. Mais, predispunha-se a provar que até esta data todas as actas e todas as assembleias foram realizadas nesses termos. E também nesses termos residiram as razões pelas quais as alterações ao estatuto em 2016 consagravam indirectamente essa unanimidade.
- A mais, produzindo-se a prova que o autor recorrente se proporia (e propõe) a provar, inevitavelmente chegaria ao Tribunal à conclusão de que na Ré existem 2 blocos de sócios, o primeiro constituído pelo autor, e o restante constituído por 5 familiares, cuja direcção de voto nunca mudou nem nunca mudará tendo também em conta a existência de uma sociedade concorrente e detida exclusivamente por este segundo bloco, de maior envergadura, de, à primeira vista, capacidades superiores, mas que acaso dos acasos, não conta com a intervenção do autor e apresenta resultados financeiros e económicos que deixam a desejar e a invejar. A própria formação da sociedade e o enquadramento que foi dado na sua constituição, a própria concessão de um direito especial à gerência por unanimidade ou uma pessoa que só poderia ser destituída caso apresentasse resultados negativos (o que nunca aconteceu), as alterações ao pacto social em 2016 e todo o conhecimento da vida corrente e prática da sociedade estar toda centrada numa pessoa, o facto de quando existiram divergências no rumo da sociedade, discutidas em Assembleia Geral, o sentido de voto contrário foi sempre 5 contra um -é tudo indicador 2 realidades distintas que caracterizam a sociedade Ré: a que se abstrai de uma leitura de passagem do Pacto social e a que efectivamente vigorou durante anos e anos.
- Estas conclusões apresentam-se como essenciais para a boa decisão da causa. Havendo este enquadramento feito e provado ao Tribunal tudo o resto e tudo o alegado se tornaria mais claro e directo.
- É verdade que na interpretação dos estatutos se deve ter em conta o que decorre dos artigos 236.º e 238.º do CC quanto à interpretação da vontade das partes. Mas para o tribunal para chegar ao 236.º e 238.º do CC não pode passar por cima de tentar perceber qual era a vontade real dos contratantes, nas relações internas deles enquanto sócios, quando clausularam o que clausularam nos estatutos porque a sua vontade pode estar deficitariamente expressa, para mais ou para menos.
- Na verdade, regra jurídica pode não existir, mas existe seguramente o consentimento pretérito dos sócios, a prática, os usos e costumes e os estatutos da Ré, a actuação interna e externa dos sócios, e o conhecimento do mercado, pelo que, tais realidades tem subsunção jurídicas e deverão ser apreciadas pelo tribunal, ainda que o tribunal entenda que essa não é a normalidade nas restantes sociedades.
- Mas como conclui, e muito bem, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 25/10/2007, Processo nº 0734156 (Relator: Pinto de Almeida), disponível em www.dgsi.pt, “o tribunal deve interpretar a cláusula social no sentido de verificar qual foi a intenção dos sócios ao incluí-la no pacto social. Essa interpretação deve ser feita com base nos elementos contidos no pacto social, tendo em atenção todos os meios de prova suficientes e relevantes para determinar a vontade real dos sócios quando elaboraram tal cláusula e atribuíram a gerência a determinado sócio e instituíram a regra da unanimidade na tomada de deliberações sociais, “admitindo-se o recurso a quaisquer elementos interpretativos, contemporâneos do negócio, anteriores ou posteriores à sua conclusão” e ANTÓNIO CAEIRO “As cláusulas do pacto social devem ser interpretadas com base em elementos constantes no contracto social e com base em elementos exteriores a ele, sendo admissíveis todos os meios de prova não proibidos por lei, sendo importante descobrir a vontade real dos sócios fundadores, a sua intenção ao proceder à constituição de um direito especial à gerência e uma regra de unanimidade da aprovação de todas as deliberações sociais, à prática aos usos e costumes da sociedade, desde que haja uma correspondência dessa vontade real com o espelhado no texto do pacto social” a solução deveria ser obrigatoriamente distinta à proferida nas instâncias inferiores.
- Por último, a nomeação de um novo gerente (DD) viola e esvazia o direito especial à gerência.
- Argumentam as duas instâncias que a sociedade Ré teve, durante os anos de 2016 a 2019, três gerentes, o que contraria a versão do Autor de que a sociedade Ré sempre foi gerida exclusivamente por este e que, nesse caso, será de se aplicar o artigo 261.º do Código das Sociedades Comerciais, isto é, obrigando-se a sociedade com a intervenção de um número plural de gerentes, a decisão maioritária entre estes será a vinculativa.
- Desde logo, quanto ao primeiro argumento, mais uma vez, a decisão padece de prematuridade porquanto não foi dado ao Autor Revisante a possibilidade de provar que o terceiro gerente nesse período (EE) era simplesmente gerente de direito, não participando em qualquer actividade rotineira do objecto e acção social da Ré. E tal razão aplica-se ao gerente CC e ao agora gerente DD.
- É fundamental entender-se que embora o pacto social diga que a sociedade se obriga com a intervenção de dois gerentes, estes eleitos em Assembleia Geral, a realidade prática nunca correspondeu a essa previsão. Atente-se que o Autor é o único gerente, um, com direito especial à gerência e, dois, com o cargo remunerado, tal possibilitado por votação unânime em Assembleia Geral da Sociedade. Ora, disso influi que este gerente, de facto, tinha uma relevância superior à dos restantes pois era o único gerente (e até sócio) que estava ligado à vida corrente da sociedade em todas as suas variantes! E esse universo decorreu dos usos e costumes! Se os usos e costumes são práticas sociais reiteradas não acompanhadas da convicção de obrigatoriedade, em cuja noção está ínsita ou implícita a ideia de uma reiteração ou repetição dum comportamento ao longo do tempo é legítimo concluir que os mesmos são criadores de fontes de direito e de expectativas jurídicas que devem ser protegidas àqueles que da sua revogação e negação são afectados!
- O direito especial à gerência quando, como é o caso, apenas está previsto a sua estatuição e não o que o integra, não pode ser interpretado como apenas um direito do sócio-gerente titular do mesmo a simplesmente existir, tem, para fazer qualquer espécie de sentido, de efectivamente significar alguma ou algumas prerrogativas de valor. E é precisamente essa interpretação que os tribunais inferiores, infelizmente e erradamente, tomaram em consideração: parece que o gerente com direito especial à gerência, não pratica acto nenhum de gerência, para obrigar a sociedade, subentendendo-se que parece um direito vazio, aliás, em contradição, com o que acima refere, quando diz que numa sociedade que se obriga com dois gerentes, aquele que não tem o direito especial deve intervir sempre nos actos de gestão, não podendo a sociedade obrigar-se só com a actuação de um deles, o que no caso, como se demonstraria em audiência de discussão e julgamento, era a do gerente executivo, de facto, com direito especial à gerência.
- A própria essência ou razão de ser da existência da figura do gerente, independente da figura do sócio, é precisamente para agilizar e operacionalizar a gestão da empresa, sob pena de poderem existir decisões inaptas, contraditórias ou demoradas, entre outras, que, dependam da vontade expressa de todos os sócios, caso os sócios, não pactuem que todos podem ser gerentes ou outra forma que impeça um desgoverno, pelo facto de existirem vários gerentes nomeados, e, todos terem visões diferentes quanto aos actos de gestão a praticar e não se entendam, e, ainda porque a maioria dos actos de gestão da sociedade não necessita da aprovação da assembleia geral para poderem ser praticados pelos gerentes – 246.º, “a contrario senso” do CSC.
- Os direitos especiais conferem uma posição de vantagem aos sócios que deles são titulares em relação aos demais sócios que não possuem esses direitos e, em princípio, serão direitos inderrogáveis, pelo art.º 24.º do CSC, sem prejuízo de o contracto social poder determinar de forma diversa.
- Sendo o direito especial, um direito inderrogável sem o consentimento do(s) seu(s) titular(es), este(s) não podem ver a sua posição e o seu direito afectado pela tomada de uma qualquer deliberação maioritária. Nesse sentido, o direito especial visa proteger o interesse, a posição e o direito do(s) seu(s) titular(es) na sociedade.
-No nosso entender, os direitos especiais à gerência são os direitos preferenciais atribuídos pelo pacto social a um sócio em tal qualidade, pelo que haverá que analisar o sentido e validade do pacto social, em particular na zona onde se formula a atribuição dessas preferenciais. Assim, as instâncias inferiores deveriam ter apurado qual o sentido desse direito especial à gerência e qual o seu conteúdo e extensão e depois, atinente à nomeação de um quarto gerente, se esse conteúdo se demonstraria afectado ou não!
- A estipulação estatutária pela qual são nomeados gerentes deve ser interpretada recorrendo a todos os elementos disponíveis, quer constem do pacto quer lhe sejam estranhos. Mais do que aquilo que as partes declaram, importa aqui descobrir a sua intenção comum, desde que essa intenção tenha um mínimo de correspondência no texto da escritura, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238º do CC). E do texto, no mínimo, surgiriam várias questões que se bem deparadas com certas cláusulas, resultaria numa decisão de mérito diferente: qual a razão de ser o único gerente com direito especial? Qual a razão de ser o único com direito a remuneração? A resposta a ambas é clara: porque decorre do contracto, dos usos e dos costumes da sociedade que o Autor Revisante era o único gerente de facto da empresa e que, não havendo motivos para o destituir, tentaram inutilizar o bloco dos outros sócios minimizar e inutilizar a sua actuação!
- Assim, no caso concreto, a deliberação de 23/06/2022, sem prejuízo das irregularidades formais da convocatória e da assembleia, em termos substanciais, sendo uma deliberação que nomeia um quarto gerente, quando a sociedade apenas pode ter dois e só se obriga com a assinatura de dois gerentes, limita, coarcta e derroga o direito especial à gerência, consagrado estatutariamente, em 2016, em assembleia geral unânime, decorrente da prática, dos usos e costumes, da vontade e daquilo que os sócios sempre quiseram desde a constituição da Ré no ano de 2009, pelo que, é nula abusiva e de forma a beneficiar o interesse do bloco de sócios maioritários em prejuízo do bloco do sócio minoritário, mas na prática igualitário, atento o seu direito especial à gerência e a regra da unanimidade na aprovação das deliberações com o voto favorável de todos os sócios, aqui do Autor e como tal são nulas – art.º 56.º, n.º 1, d) do CSC ou anuláveis – art.º 58.º, n.º 1, a), b) e c) do CSC.
- Este entendimento não é abalado e contrariado pelo direito de os sócios nomearem gerentes, entre outras, porque a Recorrida tem nomeados gerentes em número suficiente para se obrigar externa e internamente.
- O acórdão a quo ofendeu, assim, entre outros, o disposto nos artigos 3.º; 4.º, 5.º, n.ºs 1 e 2; 6.º; 547.º; 595.º; 596.º; 607.º; 615.º, n.º 1, alíneas c) e d); todos do Código Processo Civil e art.º 9.º, n.º 3; 236.º, 238.º, 342.º do Código Civil; artigos 22.º, 24.º; 55.º, 56.º, n.º 1, alínea d); 58.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), 190.º, n.º 1, 213.º, n.º4, 257.º, 259.º, 260.º, 261.º, 265.º; 248.º n.º 1, n.º 2, a); 289.º; 321º, 344º, nº 2; 346º, nº 3; 377.º, n.º 8; 384º, nº 1 do CSC; o pacto social na sua globalidade, nomeadamente, as cláusulas 5.º; 7.º, n.º 2; 8.º, n.º 3; 10.º e 11.º e artigos 2.º; 13.º; 18.º; 20.º; 29.º, 61.º e 62.º da CRP.
Por seu turno, contra-alegou a ré, em síntese:
- No que respeita ao pressuposto previsto na alínea a) do referido preceito legal (da relevância jurídica das questões em causa e a sua necessidade à melhor aplicação do direito), o Recorrente quedou-se a afirmar que tais questões são relevantes e que, em suma, importa apurar o papel e o valor do direito especial à gerência que lhe foi conferido, contudo, tais questões, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não exigem uma uniformização de jurisprudência ou sequer uma pronúncia exaustiva por parte deste Supremo Tribunal de Justiça.
- Desde logo, nunca foi posto em causa que o Recorrente detém um direito especial à gerência, contudo, diferente questão seria se este tivesse um poder especial de designar gerentes ou tivesse ficado convencionado inter partes que as deliberações da gerência tivessem sempre de ser tomadas com a sua expressa aprovação e intervenção.
- Não é isso que consta do pacto social, nem foi essa, naturalmente, a vontade das partes (leia-se sócios) quando atribuíram o direito especial à gerência ao Recorrente, nem quando fixaram os termos das cláusulas estatutárias constantes do pacto social.
- O pacto social não define concretamente os poderes especiais atribuídos ao autor/apelante na administração/gerência da sociedade ré, mas serão aqueles que resultam do preceituado no Art.º 259.º do CSC, ou seja, todos “os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios” e respeitando o disposto no N.º 1 do Art.º 260.º do CSC, ou seja, “praticados em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere”.
- Conforme concluíram (e bem) ambos os Tribunais A Quo, “o que se verifica é que o autor/apelante confunde ou pretende confundir direito especial à gerência que detém, com a atuação de gerente único, absoluto e TODO-PODEROSO da sociedade ré, isso, sim situação contrária ao que prescreve os estatutos e a lei, cfr. Art.º 261.º do CSC”.
- Verifica-se, portanto, que aquilo que o Recorrente pretende é desvirtuar e extravasar os reais poderes associados ao seu direito especial à gerência, pretendendo governar a sociedade Ré a seu bel-prazer - isso sim, contra os estatutos e contra a própria lei!
- Já no que respeita à produção de prova, crê-se que o Recorrente confunde novamente conceitos, na medida em que, em momento algum, o Tribunal A Quo frisou que não era possível que as questões fossem discutidas em julgamento, porém, o dever de gestão processual que incumbe ao Julgador leva-o inelutavelmente a prescindir de tal produção de prova, quando já reúne elementos suficientes no processo que o permitam formar um juízo convicto e seguro sobre a causa, como se verificou IN CASU.
- Esquece-se o Recorrente que os sócios é que compõem e representam o interesse da sociedade e não os gerentes (que apenas a representam)!
- Alega também o Recorrente que o presente recurso de revista excepcional, preenche todos os requisitos do n.º 1, do artigo 671.º do C.P.C., incluindo a alínea c), limitando-se a invocar e transcrever alguns acórdãos, sem contudo, juntar cópia/certidão de nenhum acórdão, o que deverá determinar, sem mais, a imediata rejeição de tal recurso, nos termos do 637.º, N.º 2, in fine do c.p.c., pelo que se esgrime.
- Mesmo que assim não se entendesse, o recorrente pretende, aparentemente, saber:
se “É POSSÍVEL A SUBSTITUIÇÃO DE UM GERENTE COM DIREITO ESPECIAL À GERÊNCIA SEM A OBRIGATÓRIA DECISÃO JUDICIAL DE DESTITUIÇÃO MEDIANTE NOMEAÇÃO, EM SUBSTITUIÇÃO DO DESTITUÍDO, DE NOVO GERENTE”.
- Mais uma vez, o Recorrente insiste em deturpar a realidade, em seu proveito: o Recorrente não foi destituído pelos demais sócios, na Assembleia-Geral de 23/06/2022 - repete-se: foi apenas deliberado avançar com uma acção judicial com vista a requerer a sua suspensão imediata e destituição do cargo de gerente, com fundamento em justa causa (o que os sócios já fizeram, encontrando-se tal acção em curso).
- Quanto à nomeação do Sr. DD, igualmente deliberada em tal Assembleia-Geral de 23/06/2022, ainda não foi sequer levada a registo, nem será, antes de estar decidida a referida acção judicial de destituição do Recorrente do cargo de gerente na sociedade.
- Contudo, mesmo que assim não fosse, nada impedia esta Recorrida (leia-se os sócios) de deliberarem a nomeação de um novo gerente para a sociedade, como fizeram - deliberação social essa já declarada válida e regular pelos Tribunais.
- Servindo-se este Recorrente de um recurso meramente dilatório, que foge completamente ao cerne da questão controvertida e em análise, para lograr protelar os efeitos de uma decisão judicial e os concomitantes efeitos das deliberações sociais, infundadamente impugnadas.
- Como tal, as questões de que o recorrente se serve para sustentar o recurso de revista excepcional carecem de qualquer sentido:
• Isto porque, resumidamente, as duas primeiras questões, com todo o respeito, foram devidamente exaradas e escrutinadas pelos tribunais a quo;
• No que respeita ao direito especial à gerência, o mesmo não saiu coartado com a nomeação de mais um gerente, nem foi o recorrente destituído do cargo, mas sim deliberado pelos sócios avançar com a acção que visa a sua destituição judicial, com fundamento em justa causa.
A revista excecional foi admitida em sede de Formação, estribando-se no pressuposto previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Questões a dirimir:
Tendo por base o teor do Acórdão da Formação, incumbe apreciar:
- Se é válida a deliberação de destituição do gerente, ora recorrente, e, ainda, se a nomeação de mais do que dois gerentes, atenta contra o direito especial à gerência do autor e contra o artigo 8.º, n.º 2, dos Estatutos em vigor, na medida em que todos os atos societários podem ser decididos, sem intervenção, contra a vontade e o consentimento do gerente com direito especial e executivo e contra o interesse geral da sociedade.
- Tal questão suscita em primeiro lugar, a interpretação das normas estatutárias da ré sociedade, exigindo-se que, previamente, se tome posição sobre a possibilidade de se atender à vontade real dos declarantes nos termos preconizados pelo recorrente, uma vez que estão em causa as relações internas entre os sócios e não as relações com terceiros.
- Em segundo lugar, está em causa a conjugação dessas normas estatutárias da ré sociedade com a interpretação das normas legais que preveem o direito especial à gerência e a proteção que é concedida ao respetivo titular, em confronto com as normas legais que permitem, em geral, aos sócios nomearem gerentes da sociedade.
A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:
1.A sociedade Cosvalinox - Indústria Metalúrgica e Equipamentos, Lda. foi constituída, em 28.05.2009, com o capital social € 10.500,00, composto por seis quotas com o valor nominal de € 1.750,00 cada uma, pertencendo cada uma dessas quotas a AA, EE, FF, GG, CC e HH.
2. No ato da constituição ficou registado o seguinte:
«Forma de obrigar: Com a intervenção conjunta de dois gerentes
Estrutura da gerência: Será exercida por gerentes eleitos em assembleia geral».
3. Em 28.05.2009 foram nomeados como gerentes da sociedade, AA e EE.
4. Em 19.02.2010 foi inscrito no registo comercial o aumento de capital e alterações ao contrato de sociedade, em resultado do que a sociedade ré passou a ter um capital social de € 300.000,00, composto por seis quotas, no valor nominal de € 50.000,00, pertencendo cada uma dessas quotas a: AA, EE, FF, GG, CC e HH.
5. Por deliberação de 21.06.2016, CC foi nomeado gerente da sociedade ré.
6. No dia 16.11.2016 realizou-se uma assembleia geral de sócios da sociedade ré, tendo sido lavrada ata da mesma, nos termos constantes do documento junto com a petição inicial [cf. ata n.º 14, de 16.11.2016], que aqui se dá por integralmente reproduzido, ali se fazendo constar, para além do, o seguinte:
«(..)
Ponto único: Deliberar quanto à alteração do pacto social.
Depois de ponderada a situação foi aceite por unanimidade alterar o pacto social que passa a ter a seguinte redacção:
(…)
Artigo 8.º
Gerência
1. A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.
2. A sociedade obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes.
3. A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada, por deliberação unanime dos sócios.
4. O sócio AA exerce com direito especial à gerência a qualidade de gerente social no âmbito do C.S.C., mas poderá ser livremente destituído por deliberação da assembleia geral se verificada a ocorrência de prejuízos acumulados em quatro exercícios consecutivos.
(…)
Artigo 10.º
Alterações do contrato
As alterações do contrato social quanto a aumento de capital, redução do capital social, fusão com outras sociedades, cisão, dissolução de sociedade bem como a constituição de prestações suplementares obrigam à deliberação aprovada por unanimidade dos votos dos sócios.
Artigo 11.º
Admissão de novo sócio
A admissão de novos sócios só pode ser deliberada por aprovação unanime dos votos dos sócios.
Artigo 14.º
Participação nos lucros
Os gerentes remunerados em exercício têm direito à participação nos lucros, como prémio de gestão, desde que cumpridos os objectivos comerciais ou financeiros estipulados para cada exercício, aprovado por maioria simples em assembleia geral.”.
7. Pela inscrição 53 de 27.01.2017, procedeu-se ao registo de alterações aos artigos 4.º, n.º 1, 3.º, n.º 3, 7.º, n.ºs 3 e 4, e 8.º do pacto social e ao aditamento dos artigos 10.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º, tendo-se ali consignado que o gerente AA tem direito especial à gerência.
8. EE renunciou à gerência em 16.05.2019.
9. Por carta datada de 19.05.2022, foi remetido ao autor um aviso pelos gerentes CC e BB, convocando-o para uma assembleia geral extraordinária da sociedade ré, a realizar em 23.06.2022, nos termos que resultam do documento junto com a petição inicial [cfr. aviso convocatório datado de 19.05.2022], que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo-se ali consignado, entre o mais, a seguinte ordem de trabalhos:
«1.– Discutir e deliberar sobre a elaboração da ata da presente Assembleia por Notário, nos termos do n.º 6 do art. 63.º do Código das Sociedades Comerciais, estando para o efeito presente tal profissional;
2.– Discutir e avaliar a atuação do sócio e gerente AA (com direito especial à gerência da Cosvalinox) relativamente à criação de duas sociedades, a saber: I...Lda., NIPC ...400, tendo como únicos sócios e gerentes AA (75% do Capital Social) e II (25% do Capital Social) e ainda da Ib...Lda. (anteriormente designada como P...Lda.), NIPC ...038, tendo como sócios JJ (50% do Capital Social) e a I...Lda. (50% do Capital Social) e o AA como gerente, conjuntamente com JJ;
3. – Discutir e avaliar o envolvimento destas sociedades com a própria Cosvalinox e/ou com os respetivos clientes e fornecedores, bem como a natureza e propósito de tais relações;
4. – Discutir e verificar as representações de marcas detidas pela Cosvalinox;
5. – Discutir e avaliar eventuais situações de concorrência desleal;
6. – Discutir e avaliar a violação grave dos deveres a que o gerente AA está adstrito, concretamente deveres de conduta, deveres de cuidado, de lealdade de fidelidade;
7. – Discutir e avaliar se a atuação do gerente AA, diretamente ou por via de empresas onde detém interesses (diretos ou indiretos), ou ainda de terceiros, relativamente à apropriação das marcas junto dos fornecedores, algumas delas anteriormente detidas pela Cosvalinox, além de violação dos deveres, traduz uma responsabilidade criminal;
8. – Discutir e deliberar sobre a destituição do gerente (com direito especial à gerência) com fundamento em justa causa, com a consequente entrada em juízo da competente ação judicial, bem assim eventualmente proceder criminalmente contra o mesmo AA, com base nos mesmos factos;
9. – Discutir e deliberar sobre a nomeação de gerente substituto de AA na Cosvalinox;
10. – Outros assuntos de interesse da sociedade.»
10. No dia 23.06.2022 realizou-se uma assembleia geral de sócios da sociedade ré, tendo sido lavrada ata da mesma, nos termos constantes do documento junto com a petição inicial [cfr. ata avulsa lavrada por notário, de 23.06.2022], que aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. Encontrando-se presentes e representados todos os sócios da sociedade foi, então, deliberado, quanto ao ponto 8 da ordem de trabalhos, com os votos a favor de todos os sócios, com exclusão do autor, que não votou, intentar contra este ação de destituição com pedido de suspensão imediata do cargo de gerente.
12. No que respeita ao ponto 9. da ordem de trabalhos, todos os sócios presentes e representados, com exceção do autor, indicaram para o cargo de gerente a nomear, DD, o que foi aprovado com os votos a favor daqueles sócios e com o voto contra do autor.”.
Vejamos:
A questão essencial de direito a dirimir na presente revista excecional assenta em saber se é válida a deliberação de destituição do gerente, ora recorrente e se a nomeação de um outro gerente, num total de três, exigindo o pacto social a assinatura de dois gerentes (podendo, assim, os restantes dois gerentes tomar decisões sem a anuência do aqui recorrente), poderá esvaziar de conteúdo o direito especial à gerência do aqui recorrente antes de estar decidida a ação judicial que os sócios devem instaurar para a sua destituição por justa causa ou mesmo antes de ser decidida a sua suspensão imediata de funções no âmbito dessa ação judicial.
No caso concreto, estamos perante a destituição e substituição de um gerente com direito especial à gerência, em assembleia geral, sem a competente decisão judicial para o efeito, estando concretamente em causa as deliberações tomadas a propósito dos pontos 8 e 9 da ordem de trabalhos da Assembleia Geral da ré de 23-06-2022.
Conforme resulta da factualidade apurada, tais deliberações consistiram no seguinte:
- Na decisão de intentar contra AA ação judicial de destituição com justa causa e com pedido de suspensão imediata do cargo de gerente; e
- Na decisão de nomeação de DD para o cargo de gerente, em substituição de AA.
Nos termos invocados pelo autor, ora recorrente, importa decidir se tais deliberações aprovadas na Assembleia Geral da ré, em 23-06-2022, são nulas ou anuláveis.
Vejamos as principais normas que integram o quadro normativo específico, à luz do qual se procurará a solução do caso concreto.
Estabelece o art. 24.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), com a epígrafe “Direitos Especiais”:
«1- Só por estipulação no contrato de sociedade podem ser criados direitos especiais de algum sócio.
2 - Nas sociedades em nome coletivo, os direitos especiais atribuídos a sócios são intransmissíveis, salvo estipulação em contrário.
3 - Nas sociedades por quotas, e salvo estipulação em contrário, os direitos especiais de natureza patrimonial são transmissíveis com a quota respetiva, sendo intransmissíveis os restantes direitos.
4 - Nas sociedades anónimas, os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de ações e transmitem-se com estas.
5 - Os direitos especiais não podem ser suprimidos ou coartados sem o consentimento do respetivo titular, salvo regra legal ou estipulação contratual expressa em contrário.
6 - Nas sociedades anónimas, o consentimento referido no número anterior é dado por deliberação tomada em assembleia especial dos acionistas titulares de ações da respetiva categoria.”.
Por seu turno, alude o art. 257º, n.ºs 3 e 5 do CSC:
«3 - A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode ser alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
(…)
5 - Se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro.»
No tocante à falta de consentimento dos sócios, estatui o art.55º do CSC:
«Salvo disposição legal em contrário, as deliberações tomadas sobre assunto para o qual a lei exija o consentimento de determinado sócio são ineficazes para todos enquanto o interessado não der o seu acordo, expressa ou tacitamente».
Quanto às deliberações nulas e anuláveis, importa atentar no que dispõem os arts. 56.º e 58.º do CSC.
Dispõe o art. 56.º do CSC, sob a epígrafe “deliberações nulas”:
1. São nulas as deliberações dos sócios:
a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados;
b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto.
c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios.
d) Cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
2 - Não se consideram convocadas as assembleias cujo aviso convocatório seja assinado por quem não tenha essa competência, aquelas de cujo aviso convocatório não constem o dia, hora e local da reunião e as que reúnam em dia, hora ou local diversos dos constantes do aviso.
3 - A nulidade de uma deliberação nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 não pode ser invocada quando os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem posteriormente dado por escrito o seu assentimento à deliberação.
Por sua vez, o art. 58.º do CSC, respeitante às deliberações anuláveis, prescreve que:
1 - São anuláveis as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;
b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos;
c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos de informação.
2 - Quando as estipulações contratuais se limitarem a reproduzir preceitos legais, são estes considerados diretamente violados, para os efeitos deste artigo e do artigo 56.º.
3 - Os sócios que tenham formado maioria em deliberação abrangida pela alínea b) do n.º 1 respondem solidariamente para com a sociedade ou para com os outros sócios pelos prejuízos causados.
4 - Consideram-se, para efeitos deste artigo, elementos mínimos de informação:
a) As menções exigidas pelo artigo 377.º, n.º 8;
b) A colocação de documentos para exame dos sócios no local e durante o tempo prescritos pela lei ou pelo contrato.
Do direito especial à gerência
Conforme resulta do quadro factual apurado na presente ação, consta do artigo 8.º dos estatutos da sociedade ré, sob a epígrafe “gerência” o seguinte:
1. A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.
2. A sociedade obriga-se com a intervenção conjunta de dois gerentes.
3. A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada, por deliberação unanime dos sócios.
4. O sócio AA exerce com direito especial à gerência a qualidade de gerente social no âmbito do C.S.C., mas poderá ser livremente destituído por deliberação da assembleia geral se verificada a ocorrência de prejuízos acumulados em quatro exercícios consecutivos.
Os estatutos da ré preveem, assim, um direito especial à gerência concretamente atribuído ao autor, ora recorrente, o que se mostra redigido de forma clara e em conformidade com o regime legalmente previsto no Código das Sociedades Comerciais.
E o que resulta do art. 55.º do CSC, tendo em conta o art. 24.º, n.º 5 do mesmo diploma legal é que:
“Uma deliberação dos sócios que suprima ou limite um direito especial de um sócio sem o consentimento deste será uma deliberação ineficaz em relação a todos os sócios: mesmo em relação aos que deram o consentimento.”.
Já no tocante à destituição dos gerentes, o Código das Sociedades Comerciais, no seu art. 257.º, n.º 3, prevê a livre destituição dos gerentes, ao permitir que os sócios possam deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
Dispõe, por sua vez, o n.º 5 do mesmo normativo que “se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em ação intentada pelo outro.”.
Ora, na tese do recorrente, a deliberação de 23/06/2022, sendo uma deliberação que nomeia um terceiro gerente, quando a sociedade apenas pode ter dois e só se obriga com a assinatura de dois gerentes, limita e derroga o direito especial à gerência, consagrado estatutariamente em 2016, em assembleia geral unânime.
Alega, a este propósito, que a interpretação do contrato social, apenas por referência ao teor literal da cláusula 8.ª dos estatutos, impediu que o tribunal alcançasse o verdadeiro sentido, alcance e conteúdo do direito especial à gerência que os sócios quiseram atribuir ao autor, assim como o sentido e alcance da regra da unanimidade da aprovação das deliberações sociais que os sócios pretenderam introduzir na assembleia geral de 16/11/2016.
Vejamos:
Perscrutado o normativo constante do citado art. 24.º do CSC, constata-se que o mesmo não fornece a noção de “direito especial”, não existindo outro preceito legal que preveja ou defina o “direito especial à gerência”.
Como consta da anotação ao art. 24º do CSC, in Código Das Sociedades Comerciais Anotado, António Menezes Cordeiro, 4º. Ed., Almedina «os direitos especiais caracterizam-se por: traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral, resultarem, necessariamente, dos estatutos; não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária.
(…) na prática, os direitos especiais não vêm referidos com essa qualidade e de modo explícito nos estatutos. Concluir por esta qualificação será sempre o resultado da interpretação do contrato de sociedade.
O fim pretendido com a sua criação é a tutela dos interesses da sociedade e não com a ideia de concessão de privilégios aos sócios, como forma de tutela dos seus interesses».
Paulo Olavo Cunha, in Direito das Sociedades Comerciais, 6ª. ed., pág. 332, afirma ter sérias dúvidas em qualificar o referido direito como verdadeiramente especial, já que ele “pode caber a todos os sócios, e que apresenta como principal caraterística assegurar ao seu titular só poder ser destituído com justa causa (…).”
Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, Das Sociedades, vol. II, 7º. Ed., pág. 212, pronunciando-se sobre o âmbito e abrangência do direito especial à gerência, refere que “o direito especial à gerência garante a cada um deles [aos sócios] que a respetiva cláusula contratual não pode ser eliminada ou modificada sem o seu consentimento ou que a destituição sem ou contra a sua vontade só pode efetivar-se judicialmente e com base em justa causa.”
Donde decorre que, tendo sido atribuído ao ora recorrente, pelo contrato de sociedade, um direito especial à gerência e não existindo qualquer outra cláusula estatutária que defina o aludido conceito ou o concretize em termos concretos, forçoso é concluir que, sem prejuízo do previsto nos arts. 24.º e 55.º do CSC, a que já aludimos, ao mesmo foi tão só atribuído o privilégio de não poder ser destituído sem invocação de justa causa e judicialmente.
Neste sentido, nomeadamente, o Acórdão do STJ de 23-09-1997 (processo n.º 881/96, relator: Sampaio da Nóvoa), em cujo sumário, se deixou plasmado que:
« (…)
V - Quando há um direito especial à gerência, a respetiva destituição tem de se processar pela via judicial e fundamentar-se em justa causa - n.º 3 do art.º 257º do CSC -, mas quando não é esse o caso, nada impede que se delibere a destituição do gerente em assembleia geral da sociedade.
VI - A convocatória para a assembleia geral tem em vista dar a conhecer aos sócios os assuntos a deliberar, e também permitir que os eventuais visados com essas deliberações se preparem para as rebater, nunca sendo necessário especificar na convocatória todas as razões justificativas das propostas».
Tendo em conta os contornos fácticos do caso concreto, consta do ponto 8. da ordem de trabalhos da convocatória para a assembleia geral de 23.06.2022 que uma das temáticas em apreciação seria a de “discutir e deliberar sobre a destituição do gerente (com direito especial à gerência) com fundamento em justa causa, com a consequente entrada em juízo da competente ação judicial, bem assim eventualmente proceder criminalmente contra o mesmo AA, com base nos mesmos factos.”.
Compulsada a ata dessa mesma assembleia geral, tal como também consta dos factos dados como provados, constata-se que o que foi votado e deliberado foi justamente o que consta daquele ponto 8. da ordem de trabalhos, “a destituição do gerente (com direito especial à gerência) com fundamento em justa causa, com a consequente entrada em juízo da competente ação judicial, bem assim eventualmente proceder criminalmente contra o mesmo AA, com base nos mesmos factos.”.
Afigura-se-nos, pois, inequívoco que o que foi deliberado foi a propositura da competente ação judicial de destituição do gerente, ora recorrente, o que se mostra em conformidade quer com o disposto no art. 257.º, n.ºs 3 e 5 do CSC, quer com o art. 8.º dos Estatutos da sociedade ré.
A deliberação dos sócios expressa na ata não nos oferece outra interpretação que não a acabada de referir, pelo que, nesta sede, não se exige outro exercício interpretativo que não seja o que resulta da respetiva literalidade (in claris non fit interpretativo).
Concorda-se, pois, com o acórdão recorrido quando conclui que «o teor literal da deliberação não permite outra qualquer interpretação que não seja a que irá ser intentada ação judicial visando a destituição do apelante da gerência com justa causa, com pedido de suspensão imediata do gerente, aqui recorrente».
Os sócios não deliberaram destituir o autor por justa causa, mas, em observância ao seu direito especial à gerência, apenas deliberaram intentar ação de destituição com justa causa.
A deliberação dos sócios restringe-se somente a poder suspender e destituir o gerente por via judicial, com fundamento em justa causa.
Assim, a argumentação do recorrente, no sentido de que a deliberação do ponto 8. visou a sua destituição imediata e a sua substituição efetiva, sem decisão judicial, é errónea e não encontra apoio na factualidade aprovada sobre esta matéria.
Diga-se, aliás, como resulta da análise dos autos, o autor ainda se mantém investido nas exatas funções e condições que exercia, quer antes, quer depois da deliberação.
De igual modo, falecem as questões suscitadas pelo mesmo a propósito da invocada errónea interpretação do pacto social e da ata da assembleia geral, no que respeita às deliberações dos pontos 8. e 9. da ordem de trabalhos, por parte do acórdão recorrido, quando em confronto com os artigos 8.º e 11.º (este respeitante à regra da aprovação por unanimidade da admissão de novos sócios) dos estatutos, regra esta que o recorrente alega decorrer da prática e dos usos e costumes da sociedade.
O recorrente chama, assim, à colação a questão relativa às regras de interpretação e integração dos estatutos sociais, defendendo que ao mesmo deveria ter sido dada a possibilidade de provar em juízo, com declarações e depoimentos de parte, com testemunhas e com documentos, que todas as decisões tomadas pela sociedade ré foram sempre tomadas unanimemente, para o que seria necessário ao tribunal conhecer da vontade real dos declarantes.
A propósito da interpretação das regras estatutárias de natureza societária, a jurisprudência do STJ já se pronunciou no sentido de que a mesma é objetiva e, como tal, faz-se com recurso apenas ao próprio texto dos estatutos e às circunstâncias conhecidas da generalidade das pessoas, não sendo possível lançar mão de quaisquer elementos extrínsecos (como as negociações preliminares, por exemplo).
Nessa medida, “compete ao STJ, como tribunal de revista, verificar se a interpretação encontrada pelas instâncias para determinada cláusula estatutária foi feita com base em circunstâncias reconhecíveis através do próprio pacto e ainda, atento o disposto no n.º 1 do art. 238.º do CC, se essa interpretação tem um mínimo de correspondência no texto da cláusula.” – cf. Acórdão do STJ de 27-09-2007 (revista n.º 3989/06).
O mesmo entendimento aparece sufragado pelo já longínquo Acórdão do STJ de 14-03-1991 (processo 079658), em cujo sumário consta:
I - A interpretação de cláusulas de pacto social constitui matéria de direito por ter de ser efetuada de harmonia com os critérios legais definidos nos artigos 236º. n. º1 e 238 n. º1 do Código Civil.
II - Em matéria de interpretação de estatutos sociais não são atendíveis elementos estranhos aos próprios estatutos e não referidos por estes.
No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 12-06-1996, in https://www.dgsi., onde se defendeu que o contrato de sociedade, por não interessar apenas aos contraentes, não pode ser interpretado no sentido de apurar a vontade real dos sócios originários, ao darem vida à sociedade, mas apenas no sentido de apurar a vontade objetivada e percetível por todos quantos possam vir a ter relações com o novo ente.
A este propósito, importa, ainda, assinalar o Acórdão do STJ de 1-03-2023, in https://www.dgsi.pt., que defende que «embora o elemento literal de uma cláusula do pacto social possa não ser, por si só, decisivo para se concluir pela natureza do direito, no caso a que respeitam os presentes autos, ele assume, porém, um significativo relevo interpretativo”, rejeitando o requerido pelo aí recorrente de que os autos deveriam ser devolvidos à primeira instância para se apurar, em julgamento, a vontade real dos sócios ao estabelecerem um direito especial à gerência».
Nesta sequência, o mesmo Acórdão conclui que «procurar as razões subjetivas pelas quais cada um dos quatro sócios emitiu as respetivas declarações de vontade (tendo sido, provavelmente, razões distintas) revelar-se-ia um exercício cujo resultado seria absolutamente destituído de qualquer relevo normativo autónomo, dado não ter sido alegado qualquer vício da vontade que tivesse de ser corrigido. Também não consta da factualidade provada, nem tal foi alegado, que o direito de gerência atribuído à autora tivesse sido submetido a alguma condição resolutiva, cuja verificação importasse apurar».
Estas considerações são igualmente transponíveis para o caso vertente.
Também em termos doutrinais, Almeida Costa e Henrique Mesquita, in Natureza Imperativa do art. 184º do CC. Elementos atendíveis na interpretação de cláusulas estatutárias, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVII, nº. 1, pág. 52, defenderam o entendimento de que as cláusulas estatutárias «se devem interpretar prescindindo da indagação da vontade das partes e apenas segundo o significado que as expressões neles usadas têm na linguagem técnica da categoria profissional em que se enquadra a atividade da sociedade. Parece-nos, de facto, ser esta uma consequência da publicidade imposta pela lei para tutela dos terceiros que entrem em relações com a sociedade (…)».
Sobre esta temática também José Engrácia Antunes, in Os Estatutos Sociais. Noção, Elementos e Regime Jurídico, pág. 263 e segs., a propósito da questão da interpretação e integração dos estatutos sociais, alude que «a respetiva resolução há de arrancar da consideração fundamental da natureza dúplice ou compósita dos estatutos sociais: expressão lídima da matriz simultaneamente negocial e organizacional do próprio instituto societário, os estatutos sociais são fruto de um negócio jurídico (unilateral, bilateral ou plurilateral) celebrado pela parte ou partes no exercício da respetiva autonomia privada que tem por finalidade a criação de um novo sujeito de direitos distinto dos seus próprios criadores.
Assim se compreende que tais estatutos sejam usual e simultaneamente compostos por cláusulas de duas diferentes espécies, que haverão também de obedecer, em princípio, a parâmetros hermenêutico‑integradores diferenciados: cláusulas de cariz jurídico‑negocial e cláusulas de cariz jurídico‑organizativo».
Concretizando, o autor que relativamente às cláusulas de cariz exclusiva ou predominantemente negocial, não repugna recorrer a um método “subjetivo” assente nas regras dos arts. 236.º a 239.º do Código Civil aplicáveis aos negócios jurídicos em geral: tal significa dizer, no essencial, que a interpretação dessas cláusulas estatutárias deverá ser feita de modo a permitir reconstituir a vontade dos sócios outorgantes do pacto social (art. 236.º do Código Civil) e que a integração das suas eventuais lacunas se poderá fazer (na falta de preceitos legais que permitam a sua integração: cf. também art. 2.º do CSC) mediante o recurso à vontade hipotética desses sócios e aos ditames da boa fé (art. 239.º do Código Civil).
Já quanto às cláusulas de cariz organizativo que “constituem na verdade regras de direito objetivo, de aplicação geral e abstrata, indistintamente aplicáveis aos sócios atuais, aos sócios futuros, aos investidores, aos membros dos órgãos de administração e fiscalização, aos credores sociais, e aos terceiros em geral”, o mesmo autor entende não fazer sentido o recurso à citada metodologia hermenêutica contratual, impondo-se, antes, “um método “objetivo” assente nas regras gerais de interpretação e integração das leis (arts. 9.º a 11.º do Código Civil): tal vale por dizer que a interpretação das cláusulas estatutárias deve atribuir primazia ao sentido objetivado no respetivo texto (sem prejuízo da consideração de alguns dos tradicionais elementos hermenêuticos, “maxime”, o elemento racional e sistemático) e que a integração de eventuais lacunas será realizada através do recurso às normas jurídicas das sociedades comerciais, subsidiária ou analogicamente aplicáveis (cf. art. 3.º do Código Comercial, art. 2.º do CSC)».
O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7-12-2023, in https://www.dgsi.pt., adere a esta posição, concluindo que, para a interpretação das normas estatutárias que possam ser qualificadas como sendo de cariz negocial, devem ser aplicáveis as regras de interpretação dos negócios jurídicos, previstos nos artigos 236.º a 239.º do CC.
Volvendo ao caso dos autos, entendemos, porém, que, quer se defenda que as normas sociais invocadas pelo recorrente devam ser interpretados mais objetivamente, de acordo com as regras de interpretação da lei (art. 9.º do CC) por se tratarem de normas de cariz organizativo, quer se defenda que devem ser interpretados de acordo com as regras de interpretação do negócio jurídico (art. 236.º a 238.º do CC) – o certo é que as referidas regras estatutárias, pela sua clareza no caso concreto, não oferecem dúvidas quanto à sua ratio e alcance hermenêutico.
Com efeito, decorre da letra dos estatutos da ré que é exigida a regra da unanimidade para questões específicas – como é o caso das alterações ao contrato ou a admissão de novos sócios (cf. arts. 10.º e 11.º dos estatutos).
Mas não decorre dos estatutos da ré que a regra da unanimidade deva ser observada quanto à deliberação de intentar ação de destituição de gerente, quer esteja ou não em causa um direito especial à gerência.
Nem uma tal regra faz sentido à luz do impedimento do voto do gerente cuja destituição é objeto de deliberação, fundado num manifesto conflito de interesses – cf. art. 251.º, n.º 1, al. f) do Código das Sociedades Comerciais - conflito extensível à deliberação que nomeou novo gerente.
E nem se pretenda, como parece fazer o recorrente, atribuir, nesta sede, relevância jurídica aos usos e costumes, que, porque não reduzidos a escrito, sempre seriam de ser considerados ineficazes ou nulos, conforme perspetiva positivista plasmada no art. 2.º do CSC e, ainda, artigos 7.º e 9.º do mesmo diploma legal.
As sociedades comerciais regem-se pelos estatutos e pelas regras gerais do Código Civil e do Código das Sociedades Comerciais (cf. art. 2.º do CSC), mal se compreendendo que uma sociedade comercial se pudesse reger por usos e costumes, sem que os mesmos estejam transpostos para o pacto social ou encontrem sustento na lei.
Acrescenta o recorrente que a nomeação do novo gerente é inválida por esvaziar o seu direito especial à gerência, defendendo que, enquanto não for, por justa causa, destituído judicialmente, não pode ser nomeado um terceiro gerente.
Também aqui acompanhamos o explanado no acórdão recorrido, quando, analisada a certidão relativa ao registo comercial da sociedade, evidencia o facto de que, entre 21-06-2016 e 16-06-2019, i.e., durante três anos consecutivos, a sociedade ré teve três gerentes.
Tal situação de facto não só demonstra a fragilidade da argumentação do recorrente, quando invoca que a nomeação de um terceiro gerente viola os “usos e costumes da sociedade ré”, como decorre do cumprimento do que se mostra expressamente previsto nos estatutos da ré, já que aí se prevê que a administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em Assembleia Geral, obrigando-se esta com a intervenção conjunta de dois gerentes.
Por outro lado, como assinala o acórdão recorrido, o art. 8.º dos estatutos apenas prevê que a sociedade se obriga com a assinatura de dois gerentes e que o autor tem um direito especial à gerência, cujo conteúdo foi acima explicitado. Nada se estabeleceu, pois, quanto à possibilidade ou impossibilidade de nomeação de mais gerentes, nem o direito especial à gerência tem a amplitude que, neste caso, o autor lhe pretende conferir.
Com efeito, contrariamente ao defendido pelo autor, o direito especial à gerência tal como definido nos estatutos societários não lhe confere qualquer direito a obstaculizar a nomeação de mais gerentes, nem a sua assinatura ou voto assumem um valor acrescido perante os demais gerentes.
Mais se diga que, podendo ter sido previsto, não se acautelou em nenhuma regra estatutária que a sociedade se obrigava com a assinatura de dois gerentes, sendo uma dessas assinaturas obrigatoriamente a do autor.
No sentido acabado de argumentar, veja-se o Acórdão do STJ de 19-10-2021, in https://www.dgsi.pt. onde se defendeu o seguinte:
«Sendo o contrato de sociedade obrigatoriamente reduzido a escrito, como deflui do artigo 7º, nº 1 do C.S. Comerciais, a interpretação das suas cláusulas obedecerá ao princípio da impressão do declaratário.
A propósito da interpretação da declaração negocial o art. 236.º, do Código Civil no seu nº 1 preceitua: A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante salvo se este não puder razoavelmente contar com ele., acrescentando o nº2, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Ora, o que decorre da apontada cláusula é que a gerência ficaria a pertencer a ambos os sócios, o Recorrente e o Recorrido, impondo-se como exigência para obrigar a sociedade, a intervenção e assinatura de ambos.
Contudo, não se exigiu que a gerência apenas fosse exercida por aqueles dois específicos sócios, nem se excluiu a possibilidade de a gerência ser assumida por outras pessoas estranhas à sociedade, aliás de harmonia com o preceituado no artigo 252º, nº1 do C.S. Comerciais, nem se antolha que naquela cláusula se tivesse consignado algum direito especial, nos termos do artigo 24º, nº1 do mesmo diploma, máxime, estabelecendo, quiçá, a imposição de que a gerência da sociedade ..., apenas tivesse sido cometida àqueles ad eternum, sem possibilidade de intervenção de outrem, sendo que esta interpretação é a que tem correspondência com o texto do documento, nos termos do artigo 238, n.º 1, do CCivil».
Seguindo idêntico argumento, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-02-2015, in https://www.dgsi.pt. sustentou a posição de que «a titularidade de um direito especial de gerência não era, nem é, válido para anular a deliberação de nomeação de M… para o cargo de gerente; que a sociedade pode nomear tantos gerentes quantos entender, daí que, independentemente da vontade da destituição de gerente do autor, os sócios sempre podem nomear quem bem entenderem para exercer as funções de gerente».
Entende tal acórdão que, «a deliberação dos sócios ao atribuir um direito especial à gerência não condicionou a sociedade de nomear outros gerentes».
Donde se conclui que a leitura efetuada pelo recorrente quanto ao direito especial à gerência que lhe foi atribuído excede o texto constante dos estatutos da sociedade, não tendo o mínimo de correspondência no mesmo.
Como se escreveu no acórdão recorrido, «a regra aplicável à gerência no CSC, no art. 261º, impõe que caso haja mais do que um gerente, prevalecendo a regra da maioria. No caso da ré com o terceiro gerente, a sociedade vincula-se com o decidido pela maioria formada em cada caso, não tendo o recorrente, direito de veto ou direito especial de voto.
Existindo três ou mais gerentes e obrigando-se a sociedade com a assinatura de apenas dois deles, poderão vir a considerar-se válidas as deliberações do órgão de gerência que reúnam apenas os votos de dois deles contra o voto do autor.
E no art. 8º dos estatutos apenas se prevê que a sociedade se obriga com a assinatura de dois gerentes e que o autor tem um direito especial à gerência. Nada se estabeleceu quanto à possibilidade ou impossibilidade de nomeação de mais gerentes».
Efetivamente, o que consta do Artigo 8º dos Estatutos é que a administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral e que a sociedade se obriga com a intervenção de dois gerentes.
Os estatutos não proíbem que possam ser nomeados mais do que dois gerentes, nem que, o direito especial do autor possa impedir, a nomeação de mais do que dois gerentes.
A nomeação de mais gerentes, jamais esvazia o direito especial do autor à gerência.
O que foi deliberado quanto ao ponto 8. da ordem de trabalhos, com os votos a favor de todos os sócios, com exclusão do autor, que não votou, foi intentar contra aquele, ação de destituição com pedido de suspensão imediata do cargo de gerente, o que, como resulta dos autos, será decidido em ação judicial própria.
Assim, não se verifica qualquer invalidade da deliberação de destituição do gerente, nem foi esvaziado de conteúdo, o direito especial à gerência.
Destarte, não assiste razão ao recorrente, no concernente às questões objeto desta revista, não merecendo censura o acórdão proferido.
Sumário:
- O Código das Sociedades Comerciais, no seu art. 257.º, n.º 3, prevê a livre destituição dos gerentes, ao permitir que os sócios possam deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
- O art. 24.º do CSC, não fornece a noção de “direito especial”, não existindo outro preceito legal que preveja ou defina o “direito especial à gerência”.
- Os direitos especiais caracterizam-se por traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral, resultarem, necessariamente, dos estatutos, não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária.
- O fim pretendido com a sua criação é a tutela dos interesses da sociedade e não a ideia de concessão de privilégios aos sócios.
- Tendo sido atribuído, pelo presente contrato de sociedade, um direito especial à gerência ao autor e não existindo qualquer outra cláusula estatutária que defina o aludido conceito ou o concretize, sem prejuízo do previsto nos arts. 24.º e 55.º do CSC, apenas se concede o privilégio de não poder ser destituído em assembleia geral, quem tiver tal direito especial, sem invocação de justa causa e por via judicial.
- Em assembleia geral, os sócios não podiam destituir ou substituir o gerente, com direito especial à gerência, mas, podiam deliberar, em consonância com os estatutos, intentar ação de destituição com justa causa, como fizeram.
- Não proibindo os estatutos da sociedade que possam ser nomeados mais do que dois gerentes, o direito especial à gerência de um gerente, não sofre restrições com a deliberação de nomeação de um outro gerente.
- Compete ao STJ, como tribunal de revista, verificar se a interpretação encontrada pelas instâncias para determinada cláusula estatutária foi feita com base em circunstâncias reconhecíveis através do próprio pacto e ainda, atento o disposto no n.º 1 do art. 238.º do CC e se essa interpretação tem um mínimo de correspondência no texto da cláusula.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão proferido.
Custas a cargo do recorrente.
Lisboa, 29-10-2024
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Luís Espírito Santo
Maria Olinda Garcia