PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
INSOLVÊNCIA POSTERIOR E AUTÓNOMA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
NULIDADE DE CITAÇÃO
QUESTÃO NOVA
Sumário


I Para um crédito ser pago no processo de insolvência tem de estar verificado nesse processo e devidamente graduado –art.ºs 1º, n.º 1, e 173º (e segs.) do CIRE.
II Para que tal aconteça, tem de ser oportunamente reclamado, seja nos termos dos art.ºs 128º e segs., seja nos termos do art.º 146º, sempre do CIRE.
III No âmbito do PEAP o efeito do reconhecimento e graduação de um crédito é limitado ao objetivo desse processo: a votação do plano de pagamento e aferição do quórum de aprovação.
IV Se o PEAP culminar em insolvência do devedor, nos termos do art.º 222º-G, n.º 7, CIRE, e conforme dita o seu n.º 9 “Havendo lista definitiva de créditos reclamados, e sendo declarada a insolvência do devedor por aplicação do disposto no n.º 7, os credores constantes daquela lista não necessitam de reclamar os créditos ali relacionados nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 36.º”.
V Não é o caso quando a insolvência é decretada num outro processo autónomo e posterior.
VI A falsidade da citação, que pode conduzir à sua falta ou nulidade, deve ser suscitada através do incidente previsto no art.º 451º do C.P.C., não podendo ser invocada, pela primeira vez, no recurso, já que o Tribunal de recurso não pode conhecer “questão nova”.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO (com consulta eletrónica dos autos e apensos).

Nos autos principais, iniciados com requerimento de AA, foi decretada a insolvência de BB e CC em 6/12/2022, a qual veio a transitar com a prolação do acórdão desta Relação de 16/2/2023.
Nessa data foi enviada carta para citação de DD, identificado como um dos cinco maiores credores pelos requeridos/insolventes.
Em 27/12/2022 foi junto aos autos o aviso de receção, com a informação de que foi entregue ao próprio em 14/12/2022.
No apenso E, em 14/11/2023, foi proferida sentença de graduação de créditos.
Nos autos principais, em 27/3/2023, foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação.
Em 23/4/2024 o referido DD veio apresentar requerimento do seguinte teor:
“O Requerente é credor dos aqui insolventes BB e CC.
No âmbito do processo 1594/19.... (Processo Especial para Acordo de Pagamento) que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão – Juízo de Comércio - juiz ... o requerente tinha um crédito reconhecido no valor de 41.887,26 com penhor sobre bens dos devedores.
Não obstante, no processo de insolvência o credor, nos termos da lista de credores não tem o seu crédito reconhecido, apesar de constar no processo como um dos 5 maiores credores e não compreende qual a razão.
O crédito em questão foi relacionado e reconhecido no processo 1594/19.... e evidenciava-se na respetiva contabilidade dos devedores, e também se pode considerar que chegou em momento próprio ao conhecimento do administrador judicial pelo que devia ter sido reconhecido.
Nestes termos, venho requerer que o meu crédito seja pago em virtude de ser credor dos devedores insolventes.”
Em 30/4/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento de 24/4/2024:
Informe que o requerente não reclamou créditos nestes autos, nem impugnou atempadamente a lista a que alude o artigo 129.º do CIRE.
Mais informe que o eventual reconhecimento em sede de PEAP anterior apenas fez caso julgado naqueles autos, não implicando qualquer reconhecimento automático neste processo, tanto mais que o valor poderia ter sido já liquidado.
Mais informe que o requerente poderá intentar acção de verificação ulterior de créditos, caso se verifiquem os pressupostos legais.”

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Inconformado, DD diz que vem interpor recurso do despacho de indeferimento de reconhecimento automático do seu crédito, apresentando alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1º No âmbito do processo 1594/19.... (Processo Especial para Acordo de Pagamento) que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão –Juízo de Comércio – Juiz ..., o aqui recorrente era um dos cinco maiores credores e foi reconhecido o seu crédito no valor de €41.887,26 (quarenta e um mil oitocentos e oitenta e sete euros e vinte e seis cêntimos) com penhor sobre bens do devedor, Cfr. Doc. 1 que se junta em anexo e se dá por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
2º No dia 31.07.2019, foi proferido despacho de homologação relativo ao acordo entre os devedores e os credores, entre eles o aqui recorrente DD. Cfr. Doc. 2 que se junta em anexo e se dá por reproduzido para os devidos e legais efeitos.
3º Por sentença datada de 06.12.2022, foi proferida sentença de declaração de insolvência de BB e CC.
4º Só após ter pedido a consulta do processo e a mesma ter sido deferida em 12.04.2024 é que o aqui recorrente teve conhecimento que não constava como credor reconhecido, apesar de ser um dos cinco maiores credores. Cfr. Doc. 3 que se junta e m anexo e se dá por reproduzida para os devidos e legais efeitos
5º O aqui recorrente enviou um requerimento aos presentes autos, a requerer que o crédito fosse reconhecido em virtude de ser um dos cinco maiores credores dos insolventes. Cfr. Doc. 4 que se junta e m anexo e se dá por reproduzida para os devidos e legais efeitos.
6º Tendo o seu pedido sido inferido pelo despacho de que agora se recorre.
7º Dos autos consta uma carta de citação endereçada ao aqui recorrente com Código ...93... e aviso de receção com a sua assinatura, Cfr. Doc. 5 que se junta em anexo e se dá por reproduzida para os devidos e legais efeitos.
8º Contudo, a assinatura do aqui recorrente, não foi por ele aposta, pelo que não compreende como o AR se encontra assinado.
9º Em resultado do invocado vício, a citação enferma de nulidade por não ter sido assinada pelo aqui recorrente, com manifesto prejuízo para o exercício dos seus direitos.
10º Motivo pelo qual, o prazo que lhe foi fixado para reclamar créditos, não pode iniciar-se antes que chegue ao seu conhecimento o processo o que não se verificou.
l1º Sendo que só a partir de então, deverá iniciar-se o lapso temporal fixado por lei para o exercício do seu direito de reclamar créditos.
12º Pelo que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, tal nulidade implica a repetição da citação, por a mesma não ter sido assinada pelo aqui recorrente e ele possa intentar ação de verificação ulterior de créditos.
13º Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se concebe, o aqui recorrente, sendo um dos cinco maiores credores no âmbito do processo 1594/19.... (Processo Especial para Acordo de Pagamento) evidenciando-se seu crédito na respetiva contabilidade dos insolventes e tendo chegado em momento próprio ao conhecimento do administrador judicial deveria ter o seu crédito reconhecido automaticamente.
14º O aqui recorrente no âmbito do processo 1594/19.... (Processo Especial para Acordo de Pagamento) tinha uma garantia real {penhor) sobre bens do devedor.
15º Ora sendo um credor com garantia real, o credor tem o direito de ser pago com prioridade face a todos os credores através do produto da venda.
16º Os bens sobre os quais o aqui recorrente tinha o penhor já foram vendidos, não tendo o aqui recorrente recebido qualquer valor.
17º Refere o douto despacho de que se recorre que "mais informe que o eventual reconhecimento em sede de PEAP anterior apenas fez caso julgado naqueles autos, não implicando qualquer reconhecimento automático neste processo".
18º A Doutrina e jurisprudência é unânime quanto à eficácia do caso julgado no que respeita ao reconhecimento do direito real de garantia.
19º Ou seja, o caso julgado material produz-se quanto ao reconhecimento do direito real de garantia, ficando também por ele reconhecido o crédito reclamado na medida em que este se funda na existência atual desse mesmo direito real (um implica a existência do outro).
20º Transpondo este entendimento para o presente caso concreto, conclui-se que a sentença que julgou verificado o crédito do recorrente em sede de PEAP é eficaz quanto ao reconhecimento do direito real de garantia.
21º Existindo CASO JULGADO MATERIAL quanto à existência do direito real de penhor, obrigatoriamente, terão de ser reconhecidos os factos em que o mesmo se funda, mais concretamente, a existência do crédito.
22º E, na verdade, não faz qualquer sentido o reconhecimento do direito real de penhor sem a existência de um crédito imputável ao devedor ora insolvente.
23º No presente caso concreto, a própria eficácia do CASO JULGADO MATERIAL formado pela sentença de verificação e graduação de créditos impõe igualmente se reconheça a existência do crédito e o seu crédito.
24º Para prova do crédito foi alegada na reclamação de créditos em sede de PEAP a proveniência, a natureza e o montante.
25º Esta decisão, proferida muito tempo antes da declaração de insolvência, impõe-se também pela força do caso julgado material que se formou com o reconhecimento da garantia real.
26º Se o crédito e a garantia que o acompanha encontra-se já reconhecido por sentença transitada em julgado proferida antes da declaração de insolvência, a eficácia do caso julgado mantêm-se no processo de insolvência, devendo julgar-se verificado o crédito do aqui recorrente no valor reconhecido no PEAP como garantido com o direito de real de penhor.
27º Pelo que o crédito do aqui recorrente deveria ter sido reconhecido pelo Administrador de lnsolvência nos presentes autos.”
E termina “Nestes termos e nos demais de direito se requer a V. Exa. se digne ordenar a repetição da citação ou caso assim não se entenda seja o crédito do aqui recorrente reconhecido em virtude do caso julgado material do PEAP.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se a posição/participação que o recorrente teve no processo n.º 1594/19.... implica que o crédito lá invocado fosse neste processo dado como reconhecido “automaticamente”, sem necessidade de reclamação, por força do caso julgado material que se formou relativamente ao crédito com o reconhecimento da garantia real;
-se é tempestiva a arguição desta questão, face ao momento em que teve acesso ao processo e conhecimento do não reconhecimento do seu crédito;
-se ocorreu nulidade da (sua) citação neste mesmo processo, caso a mesma possa ser conhecida.
O recorrente termina as suas alegações pedindo primeiro a repetição da citação, e depois o reconhecimento do crédito.
Afigura-se mais lógica a ordem supra referida, pois se o crédito tivesse reconhecimento automático, tal prejudicava a necessidade de citação.
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Para a apreciação e decisão do objeto do recurso relevam os atos processuais elencados no relatório e seu conteúdo.
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IV MÉRITO DO RECURSO.

A questão que o recorrente colocou ao Tribunal recorrido não foi a mesma, nem os termos foram os mesmos, do que vem agora colocado neste recurso, como melhor veremos.
O recorrente não pediu o reconhecimento automático do seu crédito; o que pediu foi o seu pagamento, pressupondo que devia ter sido reconhecido.
Foi o Tribunal que se referiu ao não reconhecimento automático, decorrente do anterior PEAP.
Efetivamente o Tribunal não acatou a pretensão do recorrente. E é sobre esse indeferimento que recai o recurso.
Ora, para um crédito ser pago no processo de insolvência tem de estar verificado nesse processo e devidamente graduado –art.ºs 1º, n.º 1, e 173º (e segs.) do CIRE.
Para que tal aconteça, tem de ser oportunamente reclamado, seja nos termos dos art.ºs 128º e segs., seja nos termos do art.º 146º, sempre do CIRE.
Essa mesma conclusão, em diferente contexto, vem expressa no Ac. desta Relação de 20/01/2022, em que foi relator José Alberto Moreira Dias e em que a relatora do presente foi 2ª adjunta, proferido no processo nº. 588/21.2T8VCT-A.G1 e não publicado, e que passamos a citar: “Deste modo, independentemente dos credores da insolvência terem ou não visto o seu crédito sobre o devedor/insolvente reconhecido, por sentença transitada em julgado, proferida em ação instaurada fora do processo de insolvência, uma vez declarada a insolvência do devedor, os mesmos não se encontram dispensados do ónus de reclamação dos seus créditos e apenas poderão obter pagamento, caso estes venham a ser julgados verificados e graduados, na sentença de verificação e graduação de créditos, devidamente transitada em julgado.
Destarte, o trânsito em julgado de sentença que reconheça direitos de crédito e as respetivas garantias a determinado credor ou credores sobre o devedor/insolvente em ações intentadas fora do processo de insolvência, não opera caso julgado material quanto aos demais credores do devedor/insolvente, não ficando estes dispensados do ónus de reclamar os seus créditos, no âmbito do processo de insolvência, caso pretendam obter o pagamento, o que se compreende, dado que não tendo esses credores da devedora, entretanto declarada insolvente, sido partes na ação que culminou com a prolação da sentença, transitada em julgado, que reconheceu ao credor determinado crédito sobre o devedor/insolvente, sendo a insolvência uma execução universal, que tem por objetivo satisfazer os direitos de todos os credores da devedora/insolvente, de acordo com as regras enunciadas no CIRE, se esses restantes credores do insolvente que não foram partes nessa ação eram, em princípio, terceiros juridicamente indiferentes em relação ao discutido e decidido naquelas anteriores ações, uma vez declarada a insolvência do devedor, estes passam a ser terceiros juridicamente interessados em relação ao que nelas foi discutido e decidido, e daí que, o trânsito em julgado da decisão de mérito proferida no âmbito dessas anteriores ações, não lhes possa ser oponível. (…).
Antes de mais, dir-se-á que estatuindo o n.º 1 do art 128º do CIRE que, “dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que representa, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhando de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem: (…)”, e acrescentando-se no seu n.º 3 que, “a verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se ele quiser obter pagamento”,  em que, consequentemente, conforme infra melhor se desenvolverá, todos os credores da insolvência, incluindo aqueles que tenham visto o seu crédito reconhecido, por sentença já transitada em julgado, por razões de segurança e de equidade de todos os credores da insolvência, e por forma a possibilitar que o pagamento desses seus créditos seja efetuado de acordo com as regras estabelecidas o CIRE, não havendo favorecimento no pagamento de determinados credores em relação aos restantes, têm de reclamar o seu crédito no âmbito do processo de insolvência, dentro do prazo estabelecido para o efeito na sentença declaratória de insolvência, em que a sentença, transitada em julgado, que lhes reconheça esse seu crédito, antes proferida num outro processo, não opera caso julgado em relação aos demais credores da insolvente, e daí, que estes possam questionar, impugnando os créditos reclamados pelos respetivos credores, incluindo, reafirma-se, aqueles que já tinham sido reconhecidos, por sentença transitada em julgado, proferida antes da declaração da insolvência do devedor. 
Com efeito, todos os credores da insolvência, incluindo os que disponham de sentença, transitada em julgado, que lhes reconheça o crédito sobre aquela, têm de reclamar o seu crédito, onde terão de alegar (e em caso de impugnação, provar) os factos constitutivos do crédito reclamado, isto sem prejuízo de também, conforme infra se verá, independentemente dessa reclamação, em determinadas condições, o A.I. poder reconhecer créditos não reclamados pelos respetivos credores, os quais, contudo, em caso de impugnação desses créditos, não ficam dispensados do ónus da prova dos factos constitutivos dos mesmos.
Deste modo, é no próprio processo de insolvência, mais concretamente, no âmbito do apenso de verificação e graduação de créditos, que se forma o título (sentença de verificação e graduação de créditos, devidamente transitada em julgado), e é esse título que permite o pagamento dos créditos devidos aos credores da insolvência.
Qualquer título que esses credores já disponham, incluindo, sentença transitada em julgado, proferida em anterior ação, que lhes reconheça os créditos reclamados sobre o insolvente, é totalmente irrelevante para esse efeito, na medida em que não os dispensa do ónus de reclamar esses créditos no âmbito do processo de insolvência e de nela terem de alegar os factos constitutivos desses créditos que reclamam e, em caso de impugnação, do ónus da prova desses factos constitutivos.”
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, 2015, p. 520 (anotação ao art.º 128º), “Da articulação do nº1 com o nº3, primeira parte, do artigo em anotação resulta que todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito, devem reclamá-lo no processo de insolvência, para aí poderem obter satisfação. / A formulação ampla da primeira parte do nº3 é corroborada pela sua segunda parte que, à semelhança do que estatuía o nº3 do art. 188º do CPEREF, não dispensa a reclamação dos créditos que tenham sido reconhecidos por decisão definitiva, se os seus titulares pretenderam ser pagos no processo, à custa da massa insolvente.”.
Também no corpo do Ac. Uniformizador de Jurisprudência nº. 1/2014 de 8/5/2013 (DR 39, 1ª série, 25/2/2014) podemos ler: “Na sentença que declarar a insolvência, o Juiz – se não concluir pela presumível insuficiência da massa insolvente, no condicionalismo a que alude o art. 39.º/1 – designará, além do mais, um prazo, até 30 dias, para a reclamação de créditos, nos termos art. 36.º/1, j).
(Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, destinando -se a massa insolvente — que abrange, por regra, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que adquira na pendência do processo — à satisfação dos seus créditos, ‘ut’ arts. 46.º/1 e 47.º/1).
E, dentro do prazo fixado, devem os credores da insolvência (…) reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, com as indicações discriminadas, sendo que a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e, mesmo que o credor tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento – art. 128.º, n.ºs 1 e 3.
O efeito da declaração de insolvência sobre os créditos que se pretendam fazer pagar pelas forças da massa insolvente vem categoricamente proclamado no art. 90.º:
Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.
(Luís Carvalho Fernandes e João Labareda 10, em anotação a esta norma injuntiva do CIRE, consignam, com reconhecida proficiência, o seguinte:
“Este preceito regula o exercício dos direitos dos credores contra o devedor no período da pendência do processo de insolvência. A solução nele consagrada é a que manifestamente se impõe, pelo que, apesar da sua novidade formal, não significa, no plano substancial, um regime diferente do que não podia deixar de ser sustentado na vigência da lei anterior.
Na verdade, o art. 90.º limita -se a determinar que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos ‘em conformidade com os preceitos deste Código’.
Daqui resulta que têm de o exercer no processo de insolvência e segundo os meios processuais regulados no CIRE.
É esta a solução que se harmoniza com a natureza e a função do processo de insolvência, como execução universal, tal como a caracteriza o art. 1.º do CIRE.
Um corolário fundamental do que fica determinado é o de que, para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem já reconhecidos em outro processo (…).
Neste ponto, o CIRE diverge do que, a propósito, se acolhia no citado art. 188.º, n.º 3, do CPEREF.
Por conseguinte, a estatuição deste art. 90.º enquadra um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores.” – Bold agora).”.
Assente que tal não sucedeu no caso em apreço, o crédito do recorrente não poderia obter satisfação por força da liquidação em curso nos autos.
Entroncando na questão que está implícita no requerimento, o decurso do PEAP anterior e seus termos não tem qualquer efeito nestes autos, não constituindo qualquer exceção à regra que ficou enunciada.
Aliás, mesmo no âmbito do próprio PEAP, o efeito do reconhecimento e graduação de um crédito é limitado ao objetivo do processo: a votação do plano de pagamento e aferição do quórum de aprovação.
Isso mesmo foi explicado, com maior desenvolvimento, no Ac. desta Relação, também relatado por José Alberto Moreira Dias e em que a relatora do presente foi 1ª adjunta, proferido no processo nº. 459/23.8T8VNF-D.G1, publicado em www.dgsi.pt nestes termos (com destaque e negrito nosso): “Com efeito, o facto do administrador judicial provisório ter reconhecido os montantes invocados pelos apelantes como passivo daqueles, à data em que foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, no âmbito dos identificados processos especiais para acordo de pagamento (PEAP), não permite concluir que a lista de créditos reconhecidos pelo administrador no âmbito desses processos não tenha sido objeto de impugnação e que essa impugnação tenha obtido êxito, na sequência de decisão judicial, transitada em julgado, que sobre ela recaiu, julgando a reclamação procedente (cfr. art. 222º-D, n.º 3 do CIRE).
Depois, mesmo que a lista de créditos reconhecidos pelo administrador judicial provisório que exerceu funções em cada um dos identificados processos não tivesse sido alvo de impugnação, ou, tendo-o sido, que essa impugnação tivesse sido julgada procedente ou improcedente, por decisão judicial transitada em julgado, tal não significa que os débitos dos apelantes (aí devedores) para com os seus credores sejam efetivamente os que foram reconhecidos pelo administrador judicial provisório ou pelo tribunal por decisão judicial, transitada em julgado, que recaiu sobre as reclamações que aí foram apresentadas, nem que esses seus débitos ascendam apenas aos que aí foram reconhecidos (pelo administrador ou decisão judicial, transitada em julgado, que tivesse recaído sobre as eventuais reclamações apresentadas).
Na verdade, o PEAP, tal como o PER, são processos especiais de cariz urgentíssimo, que têm em vista o encetamento de negociações entre o devedor e os seus credores com vista à aprovação de, respetivamente, plano de pagamento ou plano de recuperação, com o objetivo de evitar que o devedor incorra numa situação de insolvência.
A circunstância de, no caso de impugnação de créditos constantes da lista de créditos provisórios elaborada pelo administrador judicial provisório, ao credor titular do crédito impugnado não assistir (diversamente do que acontece no processo de insolvência) o direito a responder à impugnação do seu crédito[18]; o curto espaço de tempo que o juiz dispõe para proferir decisão sobre a impugnação de créditos (escassos cinco dias úteis – art. 222º-D, n.º 3, parte final ); o facto de no PEAP e no PER não existir sentença de verificação e graduação de créditos, nem apreensão e liquidação do património do devedor, a fim de se proceder ao pagamento, a título principal, dos débitos da massa insolvente (massa essa que é inexistente em sede de PEAP e de PER) e, secundariamente, dos débitos da insolvência que tenham sido julgados verificados e graduados, por sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado; bem como o facto de, no caso de, na sequência desses processos, ser requerida a insolvência do devedor, os créditos constantes da lista definitiva aprovada em sede de PEAP ou de PER poderem ser impugnados pelos interessados no processo de insolvência que venha a ser instaurado contra o devedor, e, bem assim, o facto de os credores que não tenham reclamado os seus créditos, ou que viram esses seus créditos a serem julgados não reconhecidos, por decisão judicial proferida no âmbito do PEAP ou do PER, não estarem impedidos de os reclamar no âmbito do processo de insolvência que venha a ser instaurado contra o devedor, torna evidente que o processo concursal de reclamação de créditos no âmbito do PEAP e do PER não se destina a dirimir litígios sobre a existência ou a amplitude de quaisquer créditos com vista a viabilizar qualquer futuro pagamento dos mesmos.
Assim, embora, nos termos do n.º 8, do art. 222º-F, a decisão de homologação do plano de pagamento aprovado (por unanimidade ou por maioria dos credores) vincule o devedor e os seus credores, mesmo que não tenham reclamado os seus créditos, ou não tenham participado nas negociações quanto aos créditos constituídos à data em que foi proferido despacho nomeando administrador judicial provisório, havendo conflito entre devedor e um ou mais credores quanto à existência, montante ou garantia dos créditos que estes detêm sobre aquele, a homologação do plano de pagamento (em caso de PEAP) ou do plano de recuperação (em caso de PER), por sentença transitada em julgado, não impede que aqueles tenham de instaurar ação entre eles com vista a dirimir esse conflito[19].
No âmbito do PEAP e do PER, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a lista definitiva de créditos tem por exclusiva finalidade a identificação dos créditos para efeitos de votação do plano de pagamento (PEAP) ou do plano de recuperação (PER) e, acessoriamente, de os qualificar, discriminando os créditos subordinados, que são relevantes para aquilo a que se chama segundo quórum de aprovação.
A lista definitiva de crédito não é, aliás, absolutamente indispensável para o desempenho daquela primeira função, posto que, nos casos em que tenha havido impugnação de créditos, se no momento da votação do plano de pagamento (no PEAP) ou do plano de recuperação (no PER), essa reclamação ainda não estiver decidida, esses créditos impugnados não entram no quórum deliberativo, salvo se o juiz entender que existe probabilidade séria de esses créditos virem a ser reconhecidos (n.º 3, do art. 222º-F e n.º 5, do art. 17º-F).
Daí que a reclamação de créditos, no âmbito do PEAP (ou do PER), não visa satisfazer os créditos dos reclamantes (ao contrário do que acontece nas reclamações de créditos em processo executivo ou em processo de insolvência), mas tem como objetivo, por um lado, legitimar a intervenção do credor no PEAP ou no PER, e, por outro, calcular o quórum deliberativo e a maioria prevista no n.º 3 do art. 222º-F e no n.º 5 do art. 17º-F[20].”
Portanto, se o PEAP culminar em insolvência do devedor, nos termos do art.º 222º-G, n.º 7, CIRE (“7 - Caso o devedor não deduza oposição, a insolvência deve ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, sendo o processo especial para acordo de pagamento apenso ao processo de insolvência.”), e conforme dita o seu n.º 9 “Havendo lista definitiva de créditos reclamados, e sendo declarada a insolvência do devedor por aplicação do disposto no n.º 7, os credores constantes daquela lista não necessitam de reclamar os créditos ali relacionados nos termos da alínea j) do n.º 1 do artigo 36.º”.
Esta situação não se verifica in casu já que, naquele processo que correu anteriormente e em que o recorrente viu o seu crédito reconhecido, foi homologado acordo de pagamento. Não foi nesse processo que “nasceu” o atual processo em que foi decretada a insolvência, o qual é autónomo e posterior. Aliás, o acordo de pagamento sempre modificaria o crédito nos termos do respetivo plano, podendo inclusive ter sido cumprido, pelo que o crédito que o recorrente tinha àquela data pode não existir ou ter valor diverso; o que reforça a necessidade de reclamação em posterior processo de insolvência, como é este caso.
O facto de o recorrente apenas ter tido conhecimento através da consulta dos autos de que o seu crédito não foi reconhecido pelo AI não releva para esta forma de reação, que incide sobre o despacho proferido que lhe nega a pretensão de obtenção de pagamento. Assim não importa assentar na data desse conhecimento.
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Havendo então necessidade de reclamar o crédito para, se este for reconhecido e conforme a sua graduação, obter pagamento nos autos após o processo de liquidação, é pertinente a questão da regularidade da citação. De facto, o recorrente foi apresentado pelo devedor como um dos seus cinco maiores credores, pelo que foi a mesma (citação) ordenada pelo Tribunal conforme obriga o art.º 37º, n.º 3, CIRE.
Vem o recorrente invocar a nulidade da citação, negando ser sua a assinatura aposta no a/r respetivo junto aos autos, cuja autoria lhe é imputada.
Verdadeiramente o que o recorrente vem suscitar é a falsidade da citação, “…consistente na atestação da verificação de requisitos do acto que, na realidade, não se verificaram e cuja omissão geraria a falta de citação ou a sua nulidade.” – cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 278 da 3ª edição - , já que o invocado não cabe diretamente em nenhuma das situações previstas como geradoras de falta de citação (art.º 188º do mesmo), ou de nulidade (cfr. art.º 191º C.P.C.).
Ora, devia tê-lo feito em 1ª instância, através do incidente previsto no art.º 451º do C.P.C..
Não o tendo feito, é pacífico que este Tribunal de recurso não pode conhecer questões novas, que são pela primeira vez aqui colocadas à apreciação do julgador, salvo se forem de conhecimento oficioso.
António Santos Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª edição, pág. 109) ensina: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Por esse motivo, e não se tratando de questão que cumpra apreciar ex officio, não se conhece dessa questão recursiva.
Esta posição em nada colide com a garantia constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva – art.º 20º da Constituição da República Portuguesa – já que esse princípio tem de ser conjugado e conviver com as regras de competência dos tribunais e o sistema de recurso.
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Nada mais tendo sido suscitado, resta concluir pelo acerto do despacho recorrido.
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As custas são de imputar ao recorrente, porque vencido (art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do C.P.C.).
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido.
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Custas a cargo do recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 14 de novembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Rosália Cunha
2º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)