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NULIDADES DE SENTENÇA
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
DEFESA
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Sumário
I - Na ação de divisão de coisa comum, cabe ao requerente alegar a compropriedade ou comunhão de que é titular com os demais consortes e, complementarmente, especificar a posição relativa de cada consorte e o volume das respetivas quotas, bem como a divisibilidade / indivisibilidade da coisa. II - Na contestação, o requerido poderá fazer uso de todos os meios de defesa previstos no art. 572, ex vi do art. 549/1, ambos do CPC, designadamente deduzir exceções dilatórias, impugnar a compropriedade, arrogando-se ele próprio titular em exclusivo da coisa, negar ao autor ou aos demais consortes requeridos o direito a qualquer quota-parte, contrariar o volume das quotas indicado pelo requerente, suscitar a questão da divisibilidade / indivisibilidade da coisa ou suscitar questões que tenham a ver com as características físico-materiais da coisa, confrontações, áreas, etc. III - Ao defender-se mediante a introdução de factos que vão além da simples impugnação da pretensão do requerente, importando, nos termos da lei adjetiva, a impossibilidade de conhecer dela (exceções dilatórias) ou, nos termos da lei substantiva, um seu efeito impeditivo, modificativo ou extintivo (exceções perentórias), o requerido submete novas questões à apreciação do tribunal. IV - Estas, juntamente com o pedido de divisão (lato sensu) formulado pelo requerente e seus termos, devem ser conhecidas, pelo tribunal, no termo da fase declarativa o que sucederá segundo um de dois modelos possíveis, cf. resulta do n.º 2 do art. 926 do CPC: se o juiz entender que as questões podem ser sumariamente decididas, mandará observar a estrutura prevista para a decisão dos incidentes da instância (arts. 292 a 295 do CPC); na hipótese contrária, mandará que sejam observados os termos do processo comum subsequentes à contestação. V - Com a decisão das apontadas questões, fica exaurida a fase declarativa. VI - A decisão que, no termo dessa fase, reconhecer a persistência da compropriedade ou comunhão e, depois de se pronunciar no sentido da indivisibilidade material da coisa e da posição relativa dos consortes, determinar o prosseguimento da ação para a fase executiva, sem se pronunciar sobre a matéria de exceção deduzida pelo requerido, é nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615/1, d), do CPC. VII - Admitindo essa decisão recurso, a nulidade apenas pode ser invocada por essa via. VIII - Se não for interposto recurso, uma vez transitada a decisão, a nulidade considera-se sanada e as referidas questões não podem mais ser conhecidas.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I.
1).1. AA e BB (Requerentes) intentaram a presente ação, sob a forma especial de divisão de coisa comum, contra CC (primeiro Requerido), DD (segunda Requerida) e Banco 1..., SA (terceira Requerida), pedindo que:
Seja declarado que as Requerentes e os dois primeiros Requeridos são titulares em comum do direito de propriedade sobre o prédio urbano, composto por casa com dois pavimentos, dependência e logradouro, sito na Av. ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...93/... e inscrito na matriz predial da União das Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ... (o qual teve origem no artigo ...95 da extinta matriz de ...);
Seja declarada a indivisibilidade de tal prédio;
Na falta de acordo quanto à adjudicação do prédio a algum dos comproprietários, seja determinada a sua venda, com repartição do valor obtido entre todos.
Alegaram, em síntese, que: as Requerentes e o primeiro Requerido, casado com a segunda Requerida segundo o regime de comunhão de adquiridos, adquiriram o direito de propriedade sobre o identificado prédio, por compra, em comum e em partes iguais (1/3 para cada um deles); constituíram sobre ele uma hipoteca para garantia de cumprimento de um crédito da terceira Requerida; as Requerentes não pretendem manter a compropriedade; pelas suas características, o prédio não é suscetível de ser dividido em substância.
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1).2. Os Requeridos foram citados, tendo apresentado contestação:
A) O primeiro Requerido, em requerimento por si próprio subscrito, com arrimo no disposto no art. 114/1 do Estatuto Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27.08, dizendo:
(i) sob a epígrafe “Por Exceção perentória”, que: os dois primeiros Requeridos acordaram com as Requerentes “a divisão do imóvel identificado nos autos já em 2019” (sic); nessa altura, acordaram que os dois primeiros Requeridos “iriam adquirir” (sic) às Requerentes “as suas quotas no imóvel (2/3 da propriedade total), mediante o pagamento de € 114 00,00 (cento e catorze mil euros), nas proporções de € 34 000,00[,] à Requerente BB, e de € 78 000[,] à Requerente AA, e liquidando o remanescente do crédito hipotecário em dívida à Banco 1...”; na sequência, os dois primeiros Requeridos “transferiram para as Requerentes, em Agosto de 2019, por conta do pagamento, os montantes de € 5 000,00 (Requerente BB) e de € 10 000,00 (Requerente AA); transferiram também € 15 000,00 para a conta da Banco 1... associada ao aludido crédito hipotecário, de forma a dotá-la de fundos e amortizar o seu pagamento”; com conhecimento e autorização das requerentes, retiraram do imóvel em questão todo o recheio que não lhes pertencia e aí colocaram os seus pertences; procederam a obras diversas no imóvel, como a colocação de caixilharia e a remodelação de aposentos; procederam à colocação de portas de entrada, com fechaduras e chaves novas, para seu uso próprio e permanente, passando a usar o imóvel em exclusivo; “apesar de não formalizada, foi celebrada uma promessa de compra e venda do imóvel em causa, com tradição da coisa, correspondente às vontades de todos”; “[a] verificação da existência de um contrato promessa de compra e venda celebrado entre requerentes e requeridos (com excepção da Banco 1...), como acontece nos autos, importa, assim, a absolvição total dos requeridos dos pedidos, nos termos do art. 576º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, porque impeditiva do efeito jurídico dos factos articulados por aquelas” (sic);
(ii) sob a epígrafe “Sem prescindir, também por exceção perentória”, que: “tendo sido convencionada, como o foi, entre Requerentes e Requeridos (com excepção da Banco 1...), a compra e venda das suas partes alíquotas relativas ao imóvel pelas primeiras aos segundos, havendo princípio de pagamento e entrega da coisa, esta perdeu a suscetibilidade de ser divisível” (sic); “[n]ão se trata de convenção expressa nesse sentido, mas de convenção tácita, por lógica legal e factual, de efeitos inter partes”; “[e]stando, assim, arredado também este efeito jurídico pretendido pelas requerentes”; e
(iii) sob a epígrafe “Também sem prescindir, por impugnação”, que: “as requerentes fazem tábua rasa do acordo que celebraram com os requeridos (com excepção da requerida Banco 1...)”; “omitem na totalidade a existência desse contrato e as suas cláusulas, como os valores que os requeridos, nessa sequência, despenderam no imóvel e transferiram para pagamento do crédito da Banco 1..., assim como os valores que receberam por conta de pagamento”; “[c]omo ainda requerem a venda do prédio, na eventualidade de falta de acordo, com repartição do respectivo valor, o que, bem sabem, sem darem conhecimento de toda a factualidade ao tribunal, pode levar a uma divisão de valores em partes absolutamente iguais, em desconsideração de tudo o que se expôs e em claro prejuízo dos requeridos, colocando-se em posição de, ao invés de aludirem ao preço que fixaram com os requeridos, poderem vir a receber outro valor, injusta e injustificadamente”, o que “consubstancia abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.” (sic)
Concluiu que deve “1) Julgar-se verificada a exceção perentória impeditiva do direito invocado pelas requerentes, absolvendo-se os requeridos do pedido; também sem prescindir, e apenas para o caso de não ser julgada verificada esta exceção, 2) Julgar-se verificada a exceção perentória impeditiva da divisibilidade peticionada pelas requerentes, absolvendo-se os requeridos do pedido; ainda sem prescindir, e apenas para o caso de não ser julgada verificada esta exceção, 3) Julgar-se a ação improcedente, por não provada, dando-se como verificado o abuso de direito pelas requerentes e apreciando-se a sua conduta processual, para efeitos do art. 524 do Código de Processo Civil, absolvendo-se os requeridos dos pedidos formulados.”
b) A terceira requerida, dizendo que: é titular de dois créditos sobre Requerentes e demais Requeridos, provenientes de empréstimos que lhes fez; sendo vendido o prédio, o produto obtido deve ser utilizado, em primeiro lugar, para o pagamento dos seus créditos.
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1).3. No dia 18 de outubro de 2023, foi proferido despacho a: fixar em € 116 065,25 o valor processual da causa; afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; declarar a indivisibilidade material do prédio; fixar os quinhões dos titulares do direito de propriedade em partes iguais; designar data para a conferência de interessados, “para os efeitos estabelecidos no art. 929/2 do CPC”.
Na fundamentação desse despacho, sob a epígrafe “Divisibilidade de fixação dos quinhões”, escreveu-se:
“A presente ação de divisão de coisa comum tem como objeto o prédio urbano, composto de casa com dois pavimentos, dependência e logradouro - sito na Av. ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...93/... e inscrito na matriz predial da União das Freguesias ..., ... e ... sob o artigo ...(o qual teve origem no artigo ...95 da extinta matriz de ...).
A propriedade da fração autónoma descrita mostra-se registada a favor das requerentes e do requerido, pela Ap. ... de 1987/02/02 e 3 de 1993/07/27.
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Sobre a divisibilidade dos prédios, dispõe o artigo 209º, do Código Civil que “são divisíveis as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”.
Estas três circunstâncias convocadas pelo normativo transcrito, ou seja, a não alteração da substância, a não diminuição do valor e a não existência de prejuízo para o uso a que a coisa se destina, desde que verificadas, cumulativamente, permitem qualificar a coisa como divisível, mas, ao invés, a falta de qualquer delas significa a sua indivisibilidade.
Por outro lado, é de salientar ser entendimento jurisprudencial que inteiramente acompanhamos o de que o fracionamento de qualquer prédio urbano implicaria necessariamente a aprovação administrativa.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/6/2008, já citado, onde expressamente se afirma que “Constitui condição de procedência da pretensão de divisão a demonstração de estarem satisfeitos os pertinentes requisitos administrativos até ao momento em que o Tribunal deva pronunciar-se sobre a questão da divisibilidade.”
Assim sendo, transpondo estes ensinamentos para o caso concreto, imediatamente se verifica que o prédio é indivisível em substância, pelo que, sem necessidade de produção de prova, declarar-se-á a indivisibilidade do prédio.
Por outro lado, da matéria de facto descrita resulta não se mostra registada quotas distintas, pelo que, nos termos do disposto no artigo 1403º, nº 2, última parte do Código Civil, fixar-se-ão as quotas em partes iguais.
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Pelo exposto:
a) Declaro a indivisibilidade material do imóvel objeto da presente ação;
b) Fixo os quinhões sobre o referido imóvel em partes iguais;
c) Para conferência de interessados, para os efeitos estabelecidos no artigo 929º, nº 2 do CPC, designo o próximo dia 5 de Dezembro, pelas 14:30 horas.”
Notifique com as advertências do nº 4 do artigo 929º do CPC.”
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1).4. O despacho acabado de referir foi notificado: às Requerentes e à terceira Requerida, na pessoa dos respetivos mandatários judiciais, por termo eletrónico elaborado, no dia 19 de outubro de 2023, na aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais; ao primeiro Requerido e à segunda Requerida, por cartas registadas na mesma data.
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1).5. Depois de sucessivos adiamentos, realizou-se, no dia 8 de janeiro de 2024, a conferência de interessados, na qual estiveram presentes: os mandatários das Requerentes e da terceira Requerida; o primeiro Requerido, tendo este apresentado procuração emitida pela segunda Requerida a conferir-lhe poderes para a representar no ato.
Nessa conferência, como resulta da ata respetiva, o primeiro Requerido, no uso da palavra, consignou que: “Os Requeridos entendem ter sido celebrado um contrato de promessa de compra e venda do imóvel em causa nos autos, pelo que o prosseguimento dos autos não deverá acontecer sem previamente ser conhecida esta questão.” (sic)
Depois de o mandatário das Requerentes, em resposta, ter negado “a celebração de qualquer contrato ou acordo com o Requerido”, foi proferido o seguinte despacho:
“Relativamente à matéria de exceção invocada pelo requerido, verifica-se que sustenta o requerido na existência de um contrato de promessa de aquisição das quotas das requerentes, contrato promessa esse não formalizado por escrito e consequentemente, não dotado de eficácia real.
O contrato promessa é, como se sabe, um contrato meramente obrigacional, cuja função é, essencialmente, preparatória, no caso, do contrato de compra e venda.
Por sua vez, o incumprimento do contrato promessa - partindo-se da sua existência nos termos alegados - poderia, no caso concreto, gerar efeitos meramente obrigacionais, mas não, com o devido respeito por entendimento contrário, impedir as requerentes de exercerem o direito legal da divisão, ou até, de venderem a sua cota a terceiros.
Com efeito, não tendo sido invocada a existência de contrato promessa dotado de eficácia real, verificando-se ainda, da própria alegação do requerido, que não foi pago o preço na sua totalidade, entendemos que nada obsta à propositura e prosseguimento desta ação.
Através da presente ação as requerentes manifestaram a intenção expressa de não cumprirem o invocado acordo, pelo que, qualquer responsabilidade que daí advier, será assacada nos meios próprios, não podendo, todavia, o requerido invocar o referido contrato promessa como impedimento à prossecução da presente ação, uma vez que o mesmo não está dotado de eficácia real.
Por outro lado, enquadrando-se a matéria invocada no âmbito do incumprimento do contrato promessa e não tendo sido alegado o pagamento da totalidade do preço acordado, entendemos ainda que não poderá invocar-se abuso de direito, uma vez que não estamos perante uma clamorosa atitude jurídica, mas perante um litígio relacionado com o incumprimento do referido contrato promessa, tendo as requerentes o direito legal de requerer a divisão.
Julga-se, por isso, improcedentes as exceções invocadas, determinando-se o prosseguimento dos autos.”
Ato contínuo, constatada a inexistência de “acordo quanto à adjudicação do imóvel”, foi determinado o prosseguimento dos “autos para a venda, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 929.º, do C.P. Civil”, com a citação da Fazenda Nacional e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, “nos termos do disposto nos artigos 549, nº 2 e 786º, ambos do CPC.”
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2) Inconformado, o primeiro Requerido (daqui em diante, Recorrente), interpôs recurso do despacho transcrito no ponto anterior (despacho de 8 de janeiro de 2024), através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“I. Constituem objeto do preciso recurso a nulidade da decisão do tribunal a quo por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos da primeira parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º, por aplicação do art.º 926º; bem como, se assim não se entender, nulidade da decisão do tribunal a quo por excesso de pronúncia, nos termos e para os efeitos da segunda parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º, por violação do poder dever constante do n.º 4 do art.º 590º, todos do CPC.
II. Atento o teor da contestação apresentada e o teor do primeiro despacho posto em crise, o tribunal a quo deixou de apreciar e decidir questões de mérito integrantes da causa de pedir, designadamente, a exceção perentória de propriedade exclusiva do imóvel pelo recorrido [e esposa] e, subsidiariamente, a exceção perentória de inexistência de alíquotas iguais.
III. Nos termos da contestação que apresenta, o recorrente arroga-se, juntamente com a sua esposa, e em exclusivo, dono e legitimo possuidor do imóvel objeto dos presentes autos; contraria/impugna o volume das alíquotas invocadas na contestação, e peticiona sejam julgadas verificadas as invocadas exceções perentórias impeditivas da divisibilidade do prédio.
IV. Para tanto, o recorrente requereu a produção de prova e arrolou testemunhas.
V. Com efeito, ao alegar que requerentes e requerido [e mulher] acordaram entre si a divisão do imóvel já em 2019. [art.º 1º da contestação], e que requerentes e requerido [e mulher] acordaram que o requerido iria adquirir as alíquotas das requerentes, mediante o preço de 114 000,00 Euros, nas proporções de 34 000,00 Euros à requerente BB, e de 78 000,00 Euros à requerente AA. [art.º 3º da contestação], o recorrente pretendia alegar que, já em 2019, as recorridas e o recorrente [e mulher] haviam acordado na adjudicação das alíquotas indivisas do prédio objeto dos presentes autos ao recorrente [e mulher]; de mameira que, o recorrente [e mulher] é, desde então, o único dono e legitimo possuidor do imóvel objeto dos presentes autos.
VI. E, nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º da contestação, o recorrente alega factos instrumentais consubstanciadores da aquisição da propriedade plena do dito imóvel.
VII. Tal factualidade é suscetível de integrar exceção perentória de inexistência de compropriedade e, por conseguinte, deve, salvo melhor opinião, ser apreciada e decidida como tal.
VIII. Ao alegar que requerentes e requerido [e mulher] acordaram que o requerido iria adquirir as alíquotas das requerentes, mediante o preço de 114 000,00 Euros, nas proporções de 34 000,00 Euros à requerente BB, e de 78 000,00 Euros à requerente AA. [art.º 3º da contestação] e que, por conta do acordo celebrado, em agosto de 2019, o requerido pagou 5 000,00 Euros à requerente BB, 10 000,00 Euros à requerente AA, e 15 000,00 Euros à credora hipotecária. [art.º 5º e 6º da contestação], o recorrente pretendia dizer que, as recorridas e o recorrente [e mulher] haviam acordado na adjudicação das alíquotas indivisas do prédio em crise na proporção de 1/5 pela requerente BB e 2/5 pela requerente AA.
IX. Tal factualidade é suscetível de integrar exceção perentória de a inexistência de alíquotas iguais, e, por conseguinte, deve, salvo melhor opinião, ser apreciada e decidida como tal, é o que aliás resulta do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/03/2023, proferido nos autos n.º 102/22.2T8VLS.L1-2.
X. Não se tendo pronunciado sobre compropriedade do imóvel, bem como a existência de alíquotas diferentes das alegadas na petição inicial, o tribunal a quo incorreu em nulidade processual por omissão de pronúncia prevista na primeira parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais
XI. Se dúvidas existissem sobre o que o recorrente pretendia alcançar com os factos que alegou na contestação, e bem assim, sobre o que o recorrente pretendia colocar à apreciação de decisão pelo tribunal, incumbia ao juiz a quo convidar o recorrente ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, cfr al. b) do n.º 3, e n.º 4 do art.º 590º do CPC, é o que pode extrair-se do Ac. do TRP, de 30/04/2020, proferido no processo 639/18.8T8PRD.P1, e do Ac. do TRP, de 11/01/2021, proferido no processo 3163/19.8T8OAZ.P1, ambos disponíveis em dgsi.pt.
XII. Havendo insuficiências e imprecisões na contestação apresentada, e tendo o tribunal a quo proferido decisão de improcedência das exceções nele invocadas, sem ter convidado o recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, a omissão desse despacho, influi no exame e decisão da causa, e, por conseguinte, constituiu nulidade processual, e, por sua vez, afeta com o vício de nulidade o despacho em crise.
XIII. Assim, ao atuar como atuou, o tribunal a quo incorreu em nulidade processual por excesso de pronúncia prevista na segunda parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais.
XIV. Afeto de nulidade o primeiro despacho proferido em ata de 8 de janeiro de 2024, dever-se-á considerar igualmente nulo o despacho subsequente que ordenou o prosseguimento dos autos para venda, nos termos do preceituado no art.º 195º do CPC, o que se requer seja reconhecido e declarado para todos os efeitos legais.
XV. Atento o teor da contestação e do despacho relativo à exceção perentória consubstanciada na existência de contrato promessa de compra e venda, o tribunal a quo deixou de apreciar e decidir questões de mérito integrantes da causa de pedir, designadamente, os direitos de crédito, de retenção e de indemnização por benfeitorias do recorrente.
XVI. Na sua contestação, o recorrido alega que que por conta do acordo celebrado, em agosto de 2019, o requerido pagou 5 000,00 Euros à requerente BB, 10 000,00 Euros à requerente AA, e 15 000,00 Euros à credora hipotecária. [art.º 5º e 6º da contestação]; o requerido [e mulher], com o conhecimento e autorização das requerentes, procedeu a diversas obras no imóvel, desde a colocação de caixilharia, remodelação de aposentes e colocação de portas de entrada. [art.º 7º, 8º e 9º da contestação]; o requerido passou, juntamente com o seu agregado familiar, a usar o imóvel em exclusivo, para sua habitação permanente, tendo para o efeito alterado o domicílio fiscal. [art.º 9º, 10º e 11º da contestação]; a realização de obras e a utilização exclusiva do imóvel em crise nos autos pelo requerido e pelo seu agregado familiar é do perfeito conhecimento e consentimento das requerentes. [art.º 11º da contestação]; houve tradição da coisa e tal tradição corresponde à vontade de todos os comproprietários inscritos. [art.º 12º da contestação], e concluiu a sua contestação, peticionando fosse verificada a exceção perentória impeditiva do direito invocado pelas requerentes, bem como, da exceção perentória impeditiva da indivisibilidade.
XVII. Para tanto, o recorrido requereu a produção de prova e arrolou testemunhas.
XVIII. Com tal alegação, o recorrente pretendia ver apreciado e decidido um conjunto de direitos, designadamente: A. Uma vez que houve tradição da coisa objeto do contrato definitivo prometido, o direito ao valor desta, objetivamente determinado ao tempo do não cumprimento, com dedução do preço convencionado, e a restituição do sinal e da parte do preço que tenha pago, cfr. artº 442º, nºs 1, 2, 2ª parte, e 3 do Código Civil; B. O direito de retenção sobre o imóvel, cfr. artº 755º, nº 1 f) do Código Civil; e C. O direito de indemnização sobre as benfeitorias realizadas no imóvel objeto dos presentes autos calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa, cfr artº 1273º do Código Civil;
XIX. Tal factualidade é suscetível de integrar exceção perentória de direito de crédito, de retenção sobre o imóvel e de indemnização [s]obre benfeitorias, e, por conseguinte, deve, salvo melhor opinião, ser apreciada e decidida como tal, é o que aliás resulta do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15/01/2023, proferido nos autos n.º 511/10.0TBSEI-E.C1.
XX. Não se tendo pronunciado sobre direito de crédito, direito de retenção e direito a indemnização por benfeitorias, o tribunal a quo incorreu em nulidade processual por omissão de pronúncia prevista na primeira parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais.
XXI. Se dúvidas existissem sobre o que o recorrente pretendia alcançar com os factos que alegou na contestação, e bem assim, sobre o que o recorrente pretendia colocar à apreciação de decisão pelo tribunal, incumbia ao juiz a quo convidar o recorrente ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, cfr al. b) do n.º 3, e n.º 4 do art.º 590º do CPC.
XXII. Situação idêntica à dos autos foi tratada no Acórdão do TRP, de 28/03/2023, proferido nos autos 8188/21.0T8VNG.P1, disponível em dgsi.pt, que, pela sua especificação e especialidade, se transcreveu na motivação e para a qual se remete.
XXIII. Havendo insuficiências e imprecisões na contestação apresentada, e tendo o tribunal a quo proferido decisão de improcedência das exceções nele invocadas, sem ter convidado o recorrente a aperfeiçoar o seu articulado, a omissão desse despacho, influi no exame e decisão da causa, e, por conseguinte, constituiu nulidade processual, e, por sua vez, afeta com o vício de nulidade o despacho em crise.
XXIV. Ao atuar como atuou, o tribunal a quo incorreu em nulidade processual por excesso de pronúncia prevista na segunda parte da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais.
XXV. Viola, assim, a decisão proferida, o preceituado nos artigos 6.º, 5º, nº3, 37.º, n.º 2 e 3, 266.º, n.º 3, 547.º, 590º, 615.º, n.º 1, al. d), 925, 926º n.º 2 e 3 e 929.º n.º 2 do Código de Processo Civil; e artigos 442º, nºs 1, 2, 2ª parte, e 3, 755º, nº 1 f), 1273º, 1316º e art.º 1412º todos do Código Civil, pelo que deve a mesma ser alterada, para o que se apela.”
Pediu que, na procedência do recurso, sejam “revogados os despachos proferidos em ata de 8 de janeiro de 2024, e, por conseguinte”, seja “substituída por outra que ordene ao recorrido o aperfeiçoamento do seu articulado de contestação.”
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3) As Requerentes (daqui em diante, Recorridas) não apresentaram resposta.
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4) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito suspensivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
Concomitantemente com o despacho de admissão do recurso, o Tribunal a quo emitiu pronúncia especificada sobre as arguidas nulidades da decisão recorrida, concluindo que as mesmas não se verificam.
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5) Colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos, realizou-se a conferência.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, no caso, constata-se que o recurso assenta, exclusivamente, em supostos vícios formais da decisão recorrida e, mais concretamente, em vícios relacionados com os limites do ato de julgamento que, na perspetiva do Recorrente, terá ficado aquém do exigido – por ter sido omitido o conhecimento das denominadas [pelo Recorrente] exceções perentórias (i) “de propriedade exclusiva do imóvel” [ou, noutra formulação, também da autoria do Recorrente] de “inexistência de compropriedade”, (ii) “inexistência de alíquotas iguais”, (iii) de “direito de crédito”; (iv) de “direito de retenção sobre o imóvel” e (v) de “direito de indemnização sobre as benfeitorias realizadas no imóvel” – ou terá ido além do permitido – por, afinal, o tribunal a quo ter conhecido aquelas mesmas exceções quando, afinal, não podia delas conhecer sem previamente convidar o Recorrente a suprir “insuficiências ou imprecisões” da sua alegação.
Estas duas hipóteses colocadas pelo Recorrente excluem-se reciprocamente. De facto, ou o tribunal a quo estava obrigado a conhecer, nadecisão recorrida, das ditas questões e não as conheceu ou não podia conhecê-las e, não obstante, conheceu-as. Tertium non datur…
Apenas conseguimos encontrar alguma lógica nesta argumentação se partirmos do pressuposto de que a questão do excesso de pronúncia pressupõe a prévia afirmação de que o Tribunal a quo conheceu, na decisão recorrida, das referidas exceções, fazendo-o, porém, sem que previamente tivesse lançado mão do poder funcional que lhe é atribuído pelo art. 590/4 do CPC.
Assim, as questões colocadas pelo Recorrente podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Saber se o Tribunal a quo estava ou não obrigado ao conhecimento, na decisão recorrida, das exceções que o Recorrente afirma, nas conclusões, terem sido suscitadas na contestação;
2.ª Definido que o Tribunal a quo estava obrigado a conhecer, na decisão recorrida, daquelas exceções, saber se omitiu esse conhecimento;
3.ª Respondida negativamente a questão anterior (ou, dito de outra forma, entendendo-se que o Tribunal a quo conheceu, na decisão recorrida, das referidas exceções), saber se previamente devia ter sido emitido um convite ao Recorrente para suprir “insuficiências ou imprecisões” da sua alegação e se a omissão desse convite importa a nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia;
3.ª Em qualquer uma das hipóteses, apurar os efeitos da anulação da decisão recorrida na tramitação processual ulterior, em especial no que tange ao prosseguimento da ação para a fase da venda.
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III.
1) Na resposta às questões enunciadas há que considerar os factos relativos ao iter processual descritos no relatório que constitui o ponto 1) da parte I. deste Acórdão.
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IV.
1).1. Avançamos com a resposta às questões enunciadas, começando por dizer que a sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in iudicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).
Com interesse, diz a alínea d) do n.º 1 do art. 615 do CPC que é nula a sentença quando “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Está em causa, na primeira parte, a denominada omissão de pronúncia e, na segunda, o denominado excesso de pronúncia.
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1).2. A omissão de pronúncia decorre da violação das normas que impõem ao tribunal o dever de tomar posição sobre certa questão, o que ocorre quer com as questões do conhecimento oficioso (v.g., os arts. 578 e 579 do CPC), quer com as questões submetidas pelas partes à sua apreciação, aspeto que chama à colação o disposto no art. 608/2 do CPC, nos termos do qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.”
Trata-se, portanto, de uma omissão de julgamento de forma ou de mérito que, obviamente, não pode ser confundida com as situações em que o tribunal decidenão decidir – ou seja, em que há uma decisão efetiva de não conhecimento de determinada questão, por inadmissibilidade ou falta de pressupostos processuais, a qual poderá configurar antes erro de julgamento.
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1).3. Sinteticamente, as questões a resolver são as questões de direito correspondentes aos pedidos, causa de pedir e exceções, tanto perentórias, como dilatórias. Já quanto às questões de facto, em cuja decisão assenta a resolução daquelas, não existe um dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, mas o “dever de selecionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor” (STA 15.05.2014, 07508/14) ou as exceções do réu (RC 16.01.2018, 1094/14.7TBLRA.C1), cuja inobservância será causa de um erro de julgamento de facto.
Com mais desenvolvimento, diremos, seguindo RG 13.07.2022 (6711/15.9T8VNF-L.G1), relatado por Maria João Matos, que “Questões”, para este efeito, são “todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer ato (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes” (Antunes Varela, RLJ, Ano 122.º, pág. 112); e não podem confundir-se “as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão” (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, pág. 143).
Como se pode ler no aresto:
“Há, pois, que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes (para sustentar a solução que defendem a propósito de cada questão a resolver): "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão" (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V Volume, Coimbra Editora, pág.143 (…).
As questões postas, a resolver, "suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)" (Alberto dos Reis, op. cit., pág. 54). Logo, "as "questões" a apreciar reportam-se aos assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões" (Ac. do STJ, de 16.04.2013, António Joaquim Piçarra, Processo n.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1); e não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (a estes não tem o Tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que diretamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido).
Por outras palavras, as "partes, quando se apresentam a demandar ou a contradizer, invocam direitos ou reclamam a verificação de certos deveres jurídicos, uns e outros com influência na decisão do litígio; isto quer dizer que a "questão" da procedência ou improcedência do pedido não é geralmente uma questão singular, no sentido de que possa ser decidida pela formulação de um único juízo, estando normalmente condicionada à apreciação e julgamento de outras situações jurídicas, de cuja decisão resultará o reconhecimento do mérito ou do demérito da causa. Se se exige, por exemplo, o cumprimento de uma obrigação, e o devedor invoca a nulidade do título, ou a prescrição da dívida, ou o pagamento, qualquer destas questões tem necessariamente de ser apreciada e decidida porque a procedência do pedido depende da solução que lhes for dada; mas já não terá o juiz de, em relação a cada uma delas, apreciar todos os argumentos ou razões aduzidas pelos litigantes, na defesa dos seus pontos de vista, embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes, como se dizia na antiga prática forense" (Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, Almedina, Lisboa, pág. 228…).
Logo, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Esta nulidade só ocorrerá, então, quando não haja pronúncia sobre pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as exceções, e não quando tão só ocorre mera ausência de discussão das "razões" ou dos "argumentos" invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas, deixando o juiz de os apreciar, conhecendo, contudo, da questão (Ac. do STJ, de 21.12.2005, Pereira da Silva, Processo n.º 05B2287…).
Já, porém, não ocorrerá a dita nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra (Ac. do STJ, de 03.10.2002, Araújo de Barros, Processo n.º 02B1844). Compreende-se que assim seja, uma vez que o conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui (Ac. do STJ, de 08.03.2001, Ferreira Ramos, Processo n.º 00A3277).”
Como resulta do que antecede, também não haverá omissão de pronúncia quanto esteja em causa questão não suscitada pelas partes e que não seja do conhecimento oficioso. Assim, Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 24.
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1).4. Por seu turno, o excesso de pronúncia ocorre quando o juizconhece de questões de que não podia tomar conhecimento, seja por violação da segunda parte do n.º 2 do art. 608, por força do qual, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes”, seja por já ter esgotado o seu poder jurisdicional, por efeito do disposto no art. 613/1, seja por violar caso julgado anterior, o que a respetiva força obrigatória o impede, enquanto proibição de repetição decisória (cf. arts 619 e 620).
Em conformidade com o que escrevemos a propósito da omissão de pronúncia, não haverá excesso de pronúncia se a questão que o tribunal decidiu, sem que tal lhe tivesse sido pedido, for do conhecimento oficioso, isto desde que a mesma ainda não tivesse sido antes decidida com força de caso julgado.
Também não haverá excesso de pronúncia se o tribunal, para decidir, usar fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes, uma vez que o art. 5.º/3 estabelece o princípio iura novit curia e, muito menos, se o tribunal, na fundamentação, aduzir argumentos que a parte não apresentara, já que, como escrevemos, uma coisa são as questões e, outra, são os argumentos que suportam a sua resolução.
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1).5. A nulidade da sentença, seja por omissão de pronúncia, seja por excesso de pronúncia, tem um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. De acordo com este, (a)) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b)) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação.
Conforme se explica em RG 15.02.2024 (548/22.6T8VNF.G1), do presente Relator, na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte).
Nesta sequência, se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Já se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.”
Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte).
Não procedendo a parte prejudicada de qualquer um desses modos, permite que a nulidade em questão fique sanada. A propósito, RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator. Diga-se, aliás, que não se trata, em rigor, de uma nulidade, mas de uma anulabilidade, uma vez que o Tribunal não pode conhecer dela ex officio. Este entendimento – do não conhecimento oficioso das referidas nulidades previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615 do CPC– estriba-se na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) preverem, em determinadas circunstâncias, a possibilidade do seu suprimento oficioso, assim indicando que o conhecimento do vício constituirá a exceção e não a regra e que, em contrapartida, há necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), RG 1.02.2018 (1806/17.7T8GMR-C.G1), RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1); na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10.
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1).7. Verificada a nulidade (por omissão de pronúncia), cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
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1).8.1. Estabelecidos estes parâmetros, vejamos a situação dos autos, começando por dizer que não suscita qualquer dúvida que estamos perante uma ação de divisão de coisa comum: as Recorridas pretendem, através dela, pôr termo à situação de compropriedade sobre o prédio identificado.
Seguindo a exposição de RG 18.04.224 (3831/22.7T8BRG-E.G1), do presente Relator, diremos, a propósito, que existe propriedade em comum ou compropriedade, de acordo com o n.º 1 do art. 1403 do Código Civil, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. O n.º 2 acrescenta que os direitos dos consortes sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes. Na falta de indicação em contrário no título constitutivo, as quotas presumem-se quantitativamente iguais, o que não corresponde a uma genuína presunção, mas a uma verdade interina (Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 9). A compropriedade diverge, portanto, de outras situações de contitularidade de direitos, em especial a comunhão conjugal de bens e a comunhão sucessória, em que o objeto do direito consiste num património e não numa coisa. É isto que explica que a forma de pôr termo estas últimas seja a partilha e não, como sucede com a compropriedade, a divisão da coisa comum.
Atualmente, afastada a ideia segundo a qual cada comproprietário é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, defendida por autores como Manuel Rodrigues (“A Compropriedade no Direito Civil Português”, RLJ, ano 58.º, pp. 17 e ss.) e Carlos Alberto Mota Pinto (Direitos Reais, Coimbra: Almedina, 1970-71, pp. 256-257), discute-se se nas situações em apreço existe (i) uma pluralidade de direitos de propriedade plena cujo exercício é reciprocamente limitado ou (ii) um direito de propriedade pertencente a uma multiplicidade de sujeitos.
A primeira conceção é defendida por autores como Menezes Cordeiro (Direitos Reais, reimpressão, Lisboa: Lex, 1993, pp. 442-443), Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 270), Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Juris, 1996, pp. 295-296) e José Alberto Vieira (Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editoral, 2008, pp. 365-366) e seguida, na jurisprudência, por exemplo, em STJ 19.09.2013 (433/2001.C1.S1), relatado por Granja da Fonseca. De acordo com ela, cada comproprietário é titular de um direito de propriedade plena sobre a coisa comum, o que equivale à afirmação de que a compropriedade constitui uma situação de concurso de direitos de propriedade sobre o mesmo bem. Há apenas uma comunhão de objeto e não de situação jurídica.
A segunda conceção, defendida por autores como Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra: UC, 1967, pp. 246-247), Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Cascais: Principia, 2007, p. 60) e Elsa Vaz de Sequeira (“Art. 1403.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp. 381-383) e seguida, inter alia, em STJ 16.06.2015 (1010/06.0TBLMG.P1.S1), STJ 29.03.2012 (680/2002.L1.S1) e STJ 7.04.2011 (30031-A/1979.L1.S1), o primeiro e o terceiro relatados por Hélder Roque e o segundo por Ana Paula Boularot, formula três críticas fundamentais em relação à anterior: a sua desarmonia com o teor do art. 1403/1 do Código Civil, que define a compropriedade como a situação em que “duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, indiciando, assim, o carácter comum não apenas do objeto, mas do próprio direito de propriedade sobre ele incidente; não explica por que razão os comproprietários têm, no seu conjunto, os mesmos poderes que tem o proprietário singular, conforme resulta do n.º 1 do art. 1405 do Código Civil; é contrária à vocação de plenitude e exclusividade típicas do direito de propriedade, que confere ao respetivo titular a totalidade do domínio sobre a coisa.
Considerando que “nada na natureza do direito subjetivo obsta à possibilidade de pluricefalia” (Elsa Vaz de Sequeira, loc. cit., p. 382), os defensores desta conceção invocam ainda em seu favor o regime da transmissão de direitos expresso no brocardo nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet: “[s]e um titular singular transmite o seu direito a uma multiplicidade de pessoas, aquilo que elas adquirem, enquanto parte plural, é exatamente o mesmo que aquele alienou. Isto é, o direito singular” (Elsa Vaz de Sequeira, idem). Concluem, em conformidade, que a complexidade subjetiva implica que cada um dos comparticipantes não pode deter o direito comum na sua totalidade, mas apenas numa parcela. Não se prescinde, portanto, da ideia de participação proporcional no direito comum, o que é expresso pelo conceito de quota. Deste modo, como escreve Elsa Vaz de Sequeira (idem), a quota “exprime a participação de cada comuneiro no direito comum, enquanto participação imediata nos poderes que o respetivo conteúdo abarca. Se, por um lado, goza de existência no mundo do Direito, podendo inclusive ser objeto de negócios jurídicos, por outro lado, essa exigência encontra-se na estrita dependência quer do direito subjetivo que lhe serve de esteio quer da presença de outras quotas. São estas que, na realidade, permitem a individualização da posição jurídica de cada consorte na titularidade do direito comum e, com isso, a acomodação recíproca de todos.”
Compreende-se assim que a finalidade da divisão da coisa comum, que é um direito potestativo de cada comproprietário, nos termos enunciados no art. 1412/1 do Código Civil, seja a dissolução da situação de contitularidade e não propriamente a divisão em substância da coisa objeto do direito. A demonstrá-lo está o facto de o poder de extinguir a comunhão existir quer no que tange às coisas divisíveis – isto é, “as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”, como proclama o art. 209 do Código Civil –, quer no que tange às coisas natural ou legalmente indivisíveis (v.g., art. 1376 do Código Civil). Isto não significa que esta distinção não assuma relevo. Na verdade, ela importa para a determinação em concreto do meio de operar a divisão. Sendo a coisa divisível, a divisão pode operar-se por um de três meios: o fracionamento da coisa, sofrendo então o direito de propriedade uma fragmentação, quer na sua titularidade, quer no seu objeto, “transmutando-se em diversos direitos de propriedade singular por tantos sujeitos quantos os consortes a quem os quinhões forem adjudicados”, na expressão de Manuel Tomé Soares Gomes (Ação de Divisão de Coisa Comum, Lisboa: CEJ, 1997, pp. 3-4); a adjudicação da coisa a um dos comproprietários; a venda da coisa, repartindo-se o produto obtido pelos comproprietários na proporção das respetivas quotas. Sendo a coisa indivisível, apenas os dois últimos meios de operar a divisão são cogitáveis.
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1).8.2. Como se retira do que antecede, a causa de pedir na ação de divisão de coisa comum consiste na existência de uma situação de compropriedade e na vontade de pelo menos um dos consortes pôr termo à indivisão, operando a modificação da compropriedade em propriedade singular. É este o facto essencial, que permite a identificação da ação. A sua falta implica a ineptidão da petição inicial (arts. 5.º/1 e 186/2, a), do CPC).
Note-se que o requerente não tem de indicar a origem da compropriedade, bastando a alegação de que a coisa é propriedade comum das pessoas indicadas. Neste sentido, escreve Nuno Pissarra (“Divisão de Coisa Comum”, AAVV, Rui Pinto / Ana Alves Leal (coord.), Processos Especiais, I, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2023, pp. 179-180), “a causa de pedir da ação de divisão de coisa comum atual é integrada pela existência (ou persistência) da situação de comunhão e não pelos factos jurídicos concretos de que derivam os direitos em comunhão ou a situação de comunhão.” Como decorrência lógica, o autor acrescenta (loc. cit., p. 182) que, “[n]ão havendo contestação da comunhão, nada obsta a que fique dada como assente a qualidade de comunheiros do autor e dos réus. Não tendo a ação por objeto a definição da compropriedade ou outra forma de comunhão, a situação de comunhão factualiza-se e pode ser tratada como matéria de facto.”
Complementarmente, o autor deve especificar a posição relativa de cada um dos consortes e a divisibilidade ou indivisibilidade da coisa. Estão aqui em causa factos complementares, indispensáveis à procedência da ação nos termos em que foi proposta. A omissão é sanável mediante despacho de convite ao aperfeiçoamento (arts. 5.º/2, f), e 590/4 do CPC). A propósito da diferença entre factos essenciais e complementares e das diferentes consequências da omissão da sua alegação, vide RG 19.12.2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1), do presente Relator.
Assim, as questões submetidas à apreciação do juiz, pelo requerente, na petição inicial, serão, a um tempo, a da existência de uma situação de compropriedade (ou de comunhão de outro direito) e, a outro, depois de verificada aquela, a da medida da quota de cada consorte e a da divisibilidade da coisa.
Na contestação, o requerido poderá fazer uso de todos os meios de defesa previstos no art. 572, ex vi do art. 549/1, ambos do CPC, designadamente deduzir exceções dilatórias, impugnar a compropriedade, arrogando-se ele próprio titular em exclusivo da coisa, negar ao autor ou aos demais consortes requeridos o direito a qualquer quota-parte, contrariar o volume das quotas indicado pelo requerente, suscitar a questão da divisibilidade / indivisibilidade da coisa ou suscitar questões que tenham a ver com as características físico-materiais da coisa, confrontações, áreas, etc. (Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas cit., p. 105)
É ampla a liberdade do requerido para estruturar sua defesa segundo a estratégia que mais lhe aprouver. Poderá mesmo aduzir fundamentos de defesa que se apresentem relativamente contraditórios entre si, desenvolvendo uma argumentação escalonada, de modo que o acolhimento de um deles prejudique o conhecimento do subsequente e assim sucessivamente, mediante o denominado sistema da eventualidade da defesa, assim chamado porque os fundamentos sucessivos só serão conhecidos se ocorrer o evento de o precedente ser afastado pelo juiz (cf. Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Novo Processo Civil, 2.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2016, pp. 120-121).
Com mais rigor, diremos que o requerido tem o ónus de assim proceder, como resulta do disposto no art. 573/1 do CPC, onde se estabelece que “[t]oda a defesa deve ser deduzida na contestação”, salvo se os seus fundamentos forem supervenientes, consagrando-se o princípio da concentração da defesa, cujo corolário é a preclusão. A esta luz, compreende-se que Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado cit., p. 566) escrevam que “[o] réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (com a única exceção das que forem supervenientes) (…) Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer.” Daqui decorre que a eventualidade se apresenta como uma consequência do princípio da concentração da defesa na contestação. É por ter o ónus de alegar todas os fundamentos de defesa de que dispõe, concentrando-os na contestação, sob pena de não mais os poder invocar (preclusão), ainda que eles sejam incompatíveis entre si, que o réu deve observar uma ordem de conhecimento sucessiva.
Ao defender-se mediante a introdução de factos que vão além da simples impugnação da pretensão do requerente, importando, nos termos da lei adjetiva, a impossibilidade de conhecer dela (exceções dilatórias) ou, nos termos da lei substantiva, um seu efeito impeditivo, modificativo ou extintivo (exceções perentórias), o requerido submete novas questões à apreciação do tribunal. Estas, juntamente com o pedido de divisão (lato sensu) formulado pelo requerente e seus termos, devem ser conhecidas, pelo tribunal, no termo da fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, o que sucederá segundo um de dois modelos possíveis, cf. resulta do n.º 2 do art. 926 do CPC: se o juiz entender que as questões podem ser sumariamente decididas, mandará observar a estrutura prevista para a decisão dos incidentes da instância (arts. 292 a 295 do CPC); na hipótese contrária, mandará que sejam observados os termos do processo comum subsequentes à contestação.
Com a decisão das apontadas questões, fica exaurida a fase declarativa.
Se, em resultado, ficar demonstrada a existência da situação de compropriedade, estando adquirida a divisibilidade / indivisibilidade do prédio e fixados os quinhões de cada um dos consortes, a ação transita para a fase executiva. As questões de natureza declarativa adrede colocadas não podem voltar a ser conhecidas pelo tribunal. A propósito, vide RP 2.05.2016 (564/10.0TBPVZ-A.P2), relatado por Carlos Gil, e RG 10.01.2019 (293/12.0TBCMN-D.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias.
Num primeiro momento, compreendido entre a prolação da decisão e o seu trânsito em julgado, opõe-se a essa possibilidade a regra do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613/1 do CPC). A decisão tem então um primeiro grau de estabilidade. Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174), que se explica pela proibição do livre arbítrio e discricionariedade, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.” As únicas ressalvas que esta regra comporta, a que já fizemos referência, são as previstas no n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.” Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616).
Num segundo momento, subsequente ao trânsito em julgado, a decisão atinge um segundo nível de estabilidade – o que é dado pelo instituto do caso julgado (arts. 619/1 e 628 do CPC). A decisão passa a ser inalterável não apenas pelo tribunal que a produziu, mas também pelas demais instâncias, vinculando as partes, dentro do processo (art. 620), ou mesmo fora dele, verificados os limites dos arts. 580 e 581, perante outros tribunais.
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1).9. Pois bem, no caso vertente, resulta do iter processual descrito que as Recorridas afirmaram, na petição inicial, que são titulares, em conjunto com o Recorrente, do direito de propriedade sobre o identificado prédio, bem como que pretendem pôr termo a essa situação. Complementarmente, afirmaram que: cada um dos comproprietários é titular de uma quota de 1/3; e que o prédio é indivisível em substância, pelo que a finalidade da ação não poderá ser alcançada mediante a formação de quinhões a adjudicar a cada um dos comproprietários, em conformidade com a sua quota, mas apenas através da adjudicação da coisa a um deles e o preenchimento das quotas dos restantes em dinheiro ou através da venda executiva da coisa e da repartição do produto obtido pelos interessados, na proporção dos respetivos quinhões.
Na contestação, o Recorrente defendeu-se, no que classificou de defesa por exceção perentória, dizendo que já havia acordado com as Requerentes a divisão do prédio, mediante a aquisição, para si, das quotas destas no direito de propriedade. Deste facto, retirou, por um lado, que cessou a situação de compropriedade e, por outro, que a coisa deixou de ser “suscetível de ser dividida” (sic). Acrescentou, ainda nessa sede, que, em cumprimento daquele acordo, pagou às Recorridas parte do preço convencionado como contrapartida da transmissão das respetivas quotas e passou a ocupar em exclusivo o prédio, no qual fez diversas obras. Depois, já no que classificou como “defesa por impugnação”, disse que as Recorridas, ao omitirem aquele acordo, pedindo a cessação da situação de compropriedade, estão a agir em abuso do direito, na modalidade do venire contra factum proprium.
Perante estes articulados, cabia ao tribunal a quo apreciar as seguintes questões: (1.ª) a existência de uma situação de compropriedade, facto essencial integrador da causa de pedir; (2.ª) a indivisibilidade da coisa em substância; (3.ª) as quotas de cada um dos comproprietários; (4.ª) a celebração de um acordo, válido e eficaz, do qual tivesse resultado a cessação daquela situação de compropriedade, através da divisão (convencional) da coisa, cf. art. 1413/1 do Código Civil), ou (5.ª) a criação de uma situação de indivisibilidade ou da alteração das quotas de cada um dos comproprietários; (6.ª) o abuso do direito.
Seguindo a lógica do Recorrido, as questões 4.ª, 5.ª e 6.ª, enquanto consubstanciadoras de raciocínios do tipo “Sim, mas”, por contraposição às afirmações que dão corpo às questões 1.ª, 2.ª e 3.ª, integram, indiscutivelmente, defesa por exceção perentória, mais concretamente de natureza extintiva (a propósito, cf. Nuno Andrade Pissarra, loc. cit., p. 183), tendo, assim, autonomia decisória em relação a estas e precedendo a sua decisão. Dito de outra forma, apenas poderia afirma-se a subsistência da compropriedade, definir-se a forma processual de lhe pôr termo e as quotas de cada um dos comproprietários, conhecendo-se assim das pretensões formuladas pelas Recorridas, depois de ultrapassados os obstáculos que a esse resultado foram colocados pelo Recorrente na contestação.
Na sequência de atos processuais, o Tribunal a quo proferiu o despacho de 18 de outubro de 2023, transcrito no ponto 1).3. da Parte I. deste Acórdão, no qual, depois de fixar o valor processual, afirmou, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais e, depois, deu como demonstrada a existência de uma situação de compropriedade, reconhecendo o direito das Recorridas a pôr-lhe termo, mediante a adjudicação do prédio a um dos comproprietários ou da sua venda a terceiro, por não ser possível a divisão material, e fixou a quota de cada comproprietário.
Como se afigura axiomático, chegou a este resultado sem conhecer das questões colocadas pelo Recorrente na contestação que havia apresentado. Isto permite-nos afirmar, sem margem para tergiversações, que aquele despacho de 18 de outubro de 2023 enferma – rectius, enfermava – de nulidade por omissão de pronúncia, ut art. 615/1, d), do CPC.
Simplesmente, uma vez que o despacho admitia apelação, que teria subida imediata e efeito suspensivo (art. 926/2, parte final do CPC), a nulidade (em rigor, uma anulabilidade)teria de ser arguida por via de recurso.
Apenas no quadro do recurso seria possível declarar a nulidade: num primeiro momento, aquando da prolação do despacho de admissão, pelo tribunal de 1.ª instância; depois, passada aquela fase, pela Relação, no julgamento.
Não tendo sido interposto o recurso – o que apenas encontra explicação na inércia do Recorrente –, a nulidade ficou sanada. A decisão que julgou a pretensão das Recorridas procedente e determinou o prosseguimento da ação para a fase executiva, agendando a conferência prevista no art. 929/2 do CPC, atingiu o segundo nível de estabilidade a que fizemos referência e passou a estar protegida pelo caso julgado.
Não ignoramos que o Recorrente invocou, na conferência realizada a 8 de janeiro de 2024, a omissão de pronúncia da decisão de 18 de outubro de 2023. Fê-lo, porém, de forma intempestiva e seguindo a via reclamatória, que não era a correta para essa finalidade. Tratou-se de uma situação de erro no meio processual, enquadrável no art. 193/3 do CPC. Os erros deste tipo podem ser sanados com base na regra de que, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação para a via adequada, posto que seja possível a utilização do requerimento apresentado. Este poder do tribunal refere-se ainda ao plano processual e insere-se, portanto, no âmbito dos poderes de condução do processo, sem afetar a relação substantiva subjacente, como frisa Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, pp. 219-232. No caso, a convolação não era, porém, possível: por lado, já estava esgotado o prazo para a interposição de recurso; por outro, o requerimento verbalmente apresentado pelo ora Recorrente não preenchia os requisitos formais do art. 639 do CPC.
Aqui chegados, a conclusão que se impõe é esta: o conhecimento das questões colocadas pelo Recorrente na contestação deixou de ser possível, de tal modo que quando, na decisão recorrida, datada de 8 de janeiro de 2024, o Tribunal a quo conheceu de parte delas incorreu num excesso de pronúncia. Este é, no entanto, processualmente inócuo: a um tempo, porque não foi arguido por qualquer uma das parte (note-se que não é confundível com aquele que foi invocado pelo Recorrente nas conclusões recursivas); a outro, porque tudo redundou na mera reafirmação do que já estava decidido res iudicata, não havendo, assim, a contraditoriedade decisória que é pressuposto da aplicação da norma do art. 625/1 do CPC, nos termos da qual “[h]avendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”, sendo a outra ineficaz.
Deste modo, concluímos que não foi cometida, na decisão recorrida, qualquer omissão de pronúncia, assim se respondendo negativamente à 1.ª questão.
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2).1. Da resposta negativa à 1.ª questão resulta prejudicado o conhecimento da 2.ª questão e, por decorrência, o da 3.ª e da 4.ª.
Com efeito, o conhecimento da 2.ª pressupunha a existência de uma obrigação de pronúncia, por parte do Tribunal a quo, na decisão recorrida; o conhecimento da 3.ª pressupunha que essa obrigação tivesse sido cumprida sem a prática de um ato prévio (o convite ao aperfeiçoamento da contestação); o conhecimento da 4.ª pressupunha a anulação da decisão recorrida.
Sem prejuízo, em benefício da clarificação, sempre diremos, sinteticamente, que a interpretação da contestação, feita segundo os cânones dos arts. 236 e 238 do Código Civil, como se impõe - uma petição inicial é, afinal, uma declaração de vontade dirigida ao tribunal e à parte contrária (cf. Paula Costa e Silva, Ato e Processo, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pp. 450-451; e E. Santos Júnior, “Ónus de impugnação e admissão por acordo de factos não impugnados (art. 490 do Código de Processo Civil”, Cadernos de Direito Privado, n.º 12, outubro / dezembro de 2005, pp. 54 e ss., maxime pp. 63-64) –, exclui a tese do Recorrente segundo a qual foram invocadas, na contestação, as por si denominadas exceções de “direito de crédito”, de “direito de retenção sobre o imóvel” e de “direito de indemnização sobre as benfeitorias realizadas no imóvel.”
Com efeito, o que se divisa nesse articulado é que o Recorrente alegou a celebração de um acordo no sentido da divisão da coisa comum para dele retirar duas únicas consequências: por um lado, a dissolução, por efeito desse acordo, da compropriedade; por outro, uma convenção tácita no sentido da indivisibilidade.
É certo que se contradisse quando afirmou que, afinal, por via daquele acordo, ele e a primeira Requerida iriam adquirir as quotas das Requerentes e quando qualificou o acordo como um “contrato-promessa de compra e venda”, significando que, pelo acordo, não foi colocado termo à situação de compropriedade, mas apenas estabelecida a obrigação de assim proceder.
É certo também que o afirmou que, na sequência daquele acordo: pagou às Recorridas parte do preço convencionado como contrapartida pela transmissão das respetivas quotas; as Recorridas deixaram de usar a coisa comum; fez obras na coisa comum.
Afigura-se, no entanto, que não retirou qualquer consequência desses factos, designadamente uma que pudesse ser relacionada com o incumprimento definitivo do dito acordo por parte das Recorridas e com o consequente surgimento, na sua esfera jurídica, de direitos de crédito, mais concretamente, de natureza indemnizatória, e de uma garantia (direito de retenção) de cumprimento do seu cumprimento. Sintomático é o facto de não ter escrito no articulado palavras como “incumprimento”, “indemnização”, “benfeitorias” ou “retenção.” Pretender que o fez, como sustenta nas conclusões, carece de qualquer suporte.
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3) Sendo o recurso totalmente improcedente, o Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 14 de novembro de 2024
Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade