CONTRATOS DE ADESÃO
ASSINATURA
CONFISSÃO
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
FALTA DE ENTREGA DE EXEMPLAR AO GARANTE
NULIDADE DA GARANTIA
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I. As declarações pré-elaboradas, genéricas e inalteráveis imputadas ao «CLIENTE» e ao «GARANTE», relativas ao alegado cumprimento, quanto aos mesmos, de diversas obrigações legais (nomeadamente, dos deveres de comunicação e de informação do clausulado e de entrega de um exemplar do contrato), impostas no âmbito de um contrato de crédito ao consumo, consubstanciam cláusulas contratuais gerais.

II. A mera aposição, após o dito clausulado contratual geral, de uma assinatura do cliente e/ou garante não pode valer como qualquer confissão sua do respectivo teor (nomeadamente, de que lhes foi entregue uma cópia do contrato), já que o dito clausulado não consubstancia declarações das concretas partes, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 376.º, n.º 1, do CC (e sim, e apenas, declarações atribuídas ao seu autor, que as pré-elaborou).

III. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.

IV. Todos os contraentes de um contrato de crédito ao consumo (incluindo os seus garantes), celebrado presencialmente, devem receber um exemplar no momento da respectiva assinatura (por forma a acautelar a reforçada ponderação por parte do consumidor/garante que se vincula, nomeadamente o seu direito ao arrependimento, pela livre revogação do contrato ou da garantia prestada nos 14 dias subsequentes à sua vinculação).

V. A falta de entrega de exemplar de contrato de crédito ao consumo ao respectivo garante presume-se imputável ao credor; e comina de nula a garantia prestada, invalidade atípica, porque só pode ser invocada pelo garante (e não também pelo credor).

VI. O abuso do direito pressupõe a existência do direito e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes, instrumentalizando-os para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido; e na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe uma situação objectiva de confiança, um investimento na confiança criada, de carácter irreversível, e a boa fé da contraparte que confiou.

VII. Não age em abuso de direito o garante a quem não foi entregue um exemplar de um contrato de crédito ao consumo quando invoca a nulidade da garantia por si prestada, por não ter concorrido ele próprio para essa omissão; e ainda que antes tenha feito um único pagamento que lhe foi exigido pelo credor, intimidado pela possibilidade de penhora sobre os seus bens.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA, residente na Rua ... ... e Além ..., em ..., ... (aqui Recorrente), propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01..., Unipessoal, Limitada, com sede na Rua ..., em Braga, contra EMP02..., Unipessoal, Limitada, com sede na Avenida ..., Escritório A, em ..., e contra Banco 1..., S.A., com sede em ..., Edifício ..., ..., em Porto ..., Lisboa, pedindo que:

· (a título principal) se reconhecesse a nulidade de uma garantia/fiança prestada por si, que se anulasse o contrato onde a mesma consta (respectivamente, nos termos dos art.ºs 13.º, n.º 2 e 3.º, ambos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho);

· (a título subsidiário) se considerasse excluída a garantia/fiança referida, por violação de deveres de comunicação e informação (previstos no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro);

· (a título subsidiário, prevenindo a improcedência dos pedidos anteriores) se declarasse a nulidade do acto que a constituiu como garante/fiadora, por falta e consciência na declaração que emitiu (nos termos do art.º 246.º do CC).

Alegou para o efeito, em síntese, que, tendo acompanhado em 10 de Dezembro de 2020 uma sobrinha sua a um stand de automóveis, onde a mesma comprou um deles, foi-lhe na ocasião solicitado que assinasse um documento, sendo-lhe dito que era um mero formalismo e que não envolvia qualquer responsabilidade sua, não lhe tendo o seu teor sido explicado, nem fornecido uma cópia.
Mais alegou que, tendo a sua sobrinha deixado em 06 de Junho de 2022 de pagar as prestações devidas pelo financiamento contraído para a dita aquisição, veio ela própria, intimidada e envergonhada com uma penhora sobre os seus bens, a proceder ao pagamento de € 1.848,27.
Alegou ainda que, persistindo o incumprimento da sua sobrinha, vem sendo incomodada desde Fevereiro de 2023 com tentativas por parte da 3.ª Ré de obter o pagamento da totalidade integral do crédito concedido para financiar a aquisição da viatura referida.
Defendeu, face ao exposto, que o contrato de crédito ao consumo celebrado pela sua sobrinha: é nulo, nomeadamente por não lhe ter sido fornecido um exemplar do referido contrato (conforme art.ºs 12.º, n.º 2 e 13.º, n.º 3, ambos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho); é anulável, por não ter sido informada do direito à livre revogação do mesmo (conforme art.ºs 12.º, n.º 3, al. h), e 13.º, n.º 3, do mesmo diploma); possui cláusulas com complexidade jurídica que terão que ser excluídas do mesmo, por não lhe terem sido comunicadas e esclarecidas pormenorizadamente (conforme art.ºs 8.º, als. a) e b), do Decreto-Lei n-º 446/85, de 25 de Outubro); possui uma declaração sua de fiança nula, por a ter proferido em erro, já que nunca configurou que, por meio dela, estava a assumir uma obrigação (conforme art.º 246.º do CC). 
 
1.1.2. Regularmente citadas, todas as Rés contestaram.

1.1.2.1. A 1.ª Ré (EMP01... Unipessoal, Limitada) e a 2.ª Ré (EMP02... Unipessoal, Limitada) fizeram-no conjuntamente, pedindo que a acção fosse julgada improcedente, por não provada, sendo as Rés absolvidas dos pedidos.
Alegaram para o efeito, em síntese, que antes da celebração do contrato de crédito invocado nos autos a 2.ª Ré (EMP02... Unipessoal, Limitada) prestou à Autora (AA) e à sobrinha desta todos os esclarecimentos quanto ao teor do documento (fazendo-o inclusivamente duas vezes, já que existiu um primeiro contrato de crédito, exactamente igual ao segundo, mas onde se verificou um erro na identificação da matrícula do automóvel vendido); ter sido entregue à Autora (AA) um exemplar do contrato por ela assinado, conforme consta expressamente do seu texto; e ter a mesma fornecido previamente informações de índole pessoal (nomeadamente bancária), o que invalidaria qualquer pretensão sua de ter assinado um documento a título meramente informal, inconsciente do que por ele assumia.
Mais alegaram que só conhecendo a Autora (AA) o teor do contrato celebrado se justificaria o pagamento imediato que fez do valor em dívida, meramente referido na carta de interpelação que lhe foi dirigida e sem indicação do título de constituição da dívida; e se justificaria aqui a demanda por si da 2.ª Ré (EMP02... Unipessoal, Limitada), mera intermediária de crédito e só passível de conhecimento por ser ali referida.
Por fim, defenderam agir a Autora (AA) em abuso do direito, já que só quando lhe foi exigido o pagamento das prestações em dívida (e estando até então o contrato a ser reiteradamente observado) veio invocar a omissão ou deficiência de comunicação de cláusulas contratuais.

1.1.2.2. A 3.ª Ré (Banco 1..., S.A.), na sua contestação, pediu que a acção fosse julgada improcedente, por não provada, sendo ela própria absolvida do pedido.
Alegou para o efeito, em síntese, agir a Autora (AA) em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, já que nos inúmeros contactos que manteve consigo, com vista a obter o cumprimento das obrigações de fiadora por ela assumidas, nunca alegou que não tivesse conhecimento do contrato de crédito, ou que não lhe tivesse sido fornecido um exemplar do mesmo; e procedeu inclusivamente ao pagamento da quantia de € 1.848,27, que lhe foi exigia face ao incumprimento da sobrinha nele mutuária.
Mais alegou que, no momento da assinatura do contrato de crédito, a Autora (AA) fez-se acompanhar dos seus documentos de identificação pessoal; e o teor do clausulado do acordo não só não envolve o exigente conhecimento de conceitos técnico-jurídicos, como lhe foi explicado (não tendo ela própria formulado qualquer pedido de esclarecimentos adicionais), sendo-lhe ainda entregue um exemplar do mesmo (conforme, aliás, consta expressamente do seu texto).

1.1.3. A Autora (AA), sob prévio despacho nesse sentido, respondeu à excepção de abuso do direito, pedindo que a mesma fosse julgada improcedente.
 Reiterou para o efeito o já alegado na sua petição inicial, isto é, que procedeu ao pagamento da quantia de € 1.848,27 por amedrontamento e pânico; e que nada lhe foi explicado, crendo que assinava um documento por mero formalismo inócuo de responsabilidades futuras, e sem que lhe tivesse sido fornecido um exemplar do mesmo.

1.1.4. Foi proferido despacho: dispensando a realização de uma audiência prévia; fixando o valor da causa em € 22.082,58; saneador (certificando a validade e a regularidade da instância); definindo o objecto do litígio («determinar se o contato de fiança celebrado é nulo por violação dos deveres de informação e por falta de consciência da declaração») e enunciando os temas da prova («a) Sobre a nulidade da fiança por violação do disposto nos arts. 13º, n.º 2 e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02/06, «b) Sobre a nulidade por violação dos deveres de informação, nos termos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25/10», «Sobre a nulidade da fiança por falta de consciência da declaração, nos termos do art. 245º do Cód. Civil» e «d) Sobre o abuso de direito da autora»); apreciando os requerimentos probatórios das partes e designando dia para realização da audiência de julgamento.

1.1.5. Em 29 de Fevereiro de 2024 iniciou-se a audiência final (tendo a Autora prestado declarações nessa primeira sessão); e em 02 de Abril de 2024 (tendo a sua sobrinha BB sido inquirida como testemunha), no final da produção de toda a prova arrolada, o Tribunal a quo advertiu as partes da possibilidade de vir a condenar a Autora (AA) como litigante de má fé, indeferindo de seguida um pedido seu de acareação entre duas testemunhas, lendo-se nomeadamente na acta da referida diligência:

«(…)
Finda a inquirição da testemunha, pelo Mmo. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Tendo-se acabado a produção probatória, verifica-se que existe aqui uma contradição flagrante entre a posição assumida pela autora em sede de declarações de parte e a demais produção probatória, nomeadamente a testemunha BB, na parte em que a autora referiu que não sabia para que motivo se deslocou ao stand para assinar o contrato e que achava que era unicamente para ser testemunha da aquisição,
Sem prejuízo de uma melhor avaliação da prova, entendemos que a autora deve ser condenada em multa e indeminização à parte contrária, consistente no reembolso dos honorários dos Ilustres Mandatários, por litigância de má fé, com base no disposto nos artigos 542.º n.º1 e n.º 2 als..a e b) e 543.º n.º 1 al.)a, nº 2 e nº 3 do C.P.C..
Por uma questão de economia processual dá-se desde já a palavra aos Ilustres Mandatários para exercerem o contraditório.
Pelo Ilustre Mandatário da autora foi pedida a palavra e no uso da mesma requereu o prazo de 10 dias para se pronunciar e requereu ainda a acareação da testemunha BB e a testemunha CC.

*
Dada a palavra aos Ilustres Mandatários para se pronunciarem, pelo Ilustre Mandatário da ré Banco 1..., foi dito opor-se uma vez que a produção de prova já se encontrava encerrada.
*
De seguida pelo MMo. Juiz foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Posteriormente ao despacho anterior veio o Ilustre Mandatária da autora peticionar a acareação entre a testemunha BB e a testemunha CC. O Ilustre Mandatário da ré Banco 1... opôs-se à mesma por já estar finda produção probatória.
Uma vez que efetivamente a produção probatória já estava encerrada e o Tribunal ia passar para alegações, indefere-se o requerido.
Não havendo oposição dos Ilustres Mandatários, concede-se aos mesmos o prazo de10 dias para alegarem por escrito, após o que conclua para proferir sentença
Notifique.
**
Foram os presentes devidamente notificados., tendo a diligência sido encerrada quando eram 10:48 horas.
(…)»

1.1.6. A Autora (AA) veio pronunciar-se sobre a possibilidade de condenação respectiva como litigante de má-fé, defendendo inexistir fundamento para tanto (nomeadamente, por ninguém ter confirmado em audiência final o depoimento prestado pela sua sobrinha, desconforme com o dela própria).

1.1.7. Apenas a Autora (AA) apresentou alegações escritas de direito, onde, reiterando a versão dos factos alegada na sua petição inicial, defendeu que a prova produzida seria suficiente para a confirmar; e, face ao direito aplicável, dever ser declarada a nulidade da fiança por si prestada.

1.1.8. Em 13 de Maio de 2024 foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente e condenando a Autora (AA) como litigante e má-fé, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
IV. Dispositivo
Termos em que o Tribunal julga: 
1. a presente acção totalmente improcedente, absolvendo as rés do peticionado; 
2. condena a autora numa multa de 6UC e no pagamento de uma indemnização a cada uma das rés no valor de €1000,00+IVA, enquanto litigante de má-fé; 
*
Custas pela autora (art 527º n.º 2 do Cód de Proc Civil).
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada, em 26 de Junho de 2024 a Autora (AA) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

A. A Sentença é nula.
 
B. O Tribunal a quo ao não permitir um meio de prova - acareação - e ao condenar a Autora como litigante de má-fé, sem admitir a produção de prova cabal ao exercício do contraditório e a descoberta da verdade material, violou a al. d) do art.º 615º do CPC. 
 
C. O Tribunal a quo condenou a Autora como litigante de má-fé, sem elementos suficientes de prova.
 
D. Não existe qualquer fundamento nem se ve    rificam os requisitos para a Autora/Recorrente ser condenada como litigante de má-fé.
 
E. O Tribunal Recorrido incorreu em erro de julgamento ao dar como provados os factos constantes de 6.) a 12.), da Fundamentação de facto.
 
F. O Tribunal Recorrido incorreu ainda em erro de julgamento ao considerar como não provados os factos 16. a 19 da Fundamentação de facto.
 
G. Da prova testemunhal produzida resulta que o Legal Representante da Segunda  Ré, CC, afirmou que esteve presente  no ato da assinatura do contrato. 
 
H. O legal representante da segunda Ré, CC, afirmou que o contrato foi assinado a um sábado.
 
I. Do contrato consta que foi assinado a 10 de dezembro de 2020, quinta-feira.
 
J. A Autora/Recorrente afirmou em julgamento nunca ter visto o Legal Representante da Segunda Ré.
 
K. A Autora referiu que no dia da assinatura do contrato apenas estavam presentes no ato três pessoas.
 
L. A testemunha BB afirmou que estiveram presentes no ato da assinatura do contrato; a própria, a Autora/Recorrente, e o filho do Legal Representante da segunda Ré.
 
M. Existem flagrantes contradições entre os depoimentos do Legal Representante da primeira Ré, EMP01... e o Legal Representante da segunda Ré, CC.
 
N. Existem flagrantes contradições entre os depoimentos dos Legais Representantes da primeira e segunda Ré e o depoimento da testemunha BB.
 
O. Dos depoimentos das testemunhas inquiridas em julgamento resulta a nulidade da garantia prestada pela Autora.
 
P. Dos depoimentos das testemunhas inquiridas em julgamento resulta a violação dos deveres de comunicação e informação.

Q. Da análise da prova, resulta que a Autora/Recorrente, no ato de assinatura do contrato, não exibiu os seus documentos de identificação pessoal. 
 
R. O Legal Representante da primeira Ré, confirmou que os documentos da Autora/Recorrente foram enviados por Whatsapp pela BB e que a Autora/Recorrente nunca exibiu nem entregou os seus documentos de identificação pessoal. 
 
S. A testemunha BB confirmou a existência de um erro no contrato e que o erro foi detetado apenas no dia seguinte à assinatura, tendo sido contactada, por telefone, para o efeito.
 
T. A testemunha BB afirmou que foi apenas reproduzida a página onde constava o erro e só ulteriormente se deslocou ao stand da Primeira Ré para assinar a folha do contrato que continha o erro.
 
U. A testemunha BB referiu que, dias depois, se deslocou, sozinha, à casa da Autora para recolher a assinatura desta!
 
V. Nessa altura, ninguém comunicou ou informou a Autora do conteúdo do contrato (folha reproduzida). 
 
W. A autora só tomou ciência do conteúdo do contrato e das obrigações assumidas quando recebeu uma carta da Ré, Banco 1..., para pagar uma dívida. 
 
X. A Autora, pessoa de avançada idade e com baixo nível de instrução, não sabe o  que é ser fiador, nem o que é uma taxa de juro, nem as obrigações decorrentes da assinatura do contrato.
 
Y. Não foi entregue à Autora nenhuma cópia do contrato de crédito coligado.
 
Z. Resulta do depoimento de legal representante da primeira Ré, EMP01..., que não viu ser entregue uma cópia do contrato à Autora/Recorrente: “À senhora AA, não vi e estou certo de que nada lhe foi entregue.”
 
AA. Da prova documental e testemunhal resulta que devem ser dados como não provados os factos constantes dos números 6.) a 12.) dos factos provados.
 
BB. Da prova documental e testemunhal resulta que devem ser dados como provados os factos constantes dos números 16.) a 19.) dos factos não provados.
 
CC. De acordo com o artigo 289.º n.º 1 - “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”
 
DD. A restituição dos 1848,27€ (mil oitocentos e quarenta e oito euros e vinte e sete cêntimos) pagos, ocorre ope legis, a partir do momento é que declarada nula a garantia prestada ou do contrato celebrado.
 
EE. O pedido principal (nulidade da fiança) consome, isto é, já implica, a restituição integral de tudo o que foi pago pela Autora/Recorrente! 
 
FF. Deverá ser dado provimento ao recurso e a sentença ser revogada e substituída por uma outra que:
a) declare a nulidade da garantia prestada ou a nulidade do contrato de crédito;
b) que absolva a Autora/Recorrente da condenação em pagamento em multa de 6UC e no pagamento de indemnização a cada uma das Rés no valor de 1000,00€ +IVA, enquanto litigante de má-fé !
*
1.2.2. Contra-alegações
Todas as Rés contra-alegaram.
*
1.2.2.1. A 1.ª Ré (EMP01... Unipessoal, Limitada) e a 2.ª Ré (EMP02... Unipessoal, Limitada) fizeram-no conjuntamente, pedindo que fosse negado provimento ao recurso e se mantivesse a sentença recorrida.

Concluíram as suas contra-alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

A - Nenhum reparo merece a sentença lavrada pelo tribunal recorrido, ao qual se adere sem qualquer reserva,
 
B - Razão pela qual terão de improceder todas as conclusões, doutas, da recorrente.
*

1.2.2.2. A 3.ª Ré (Banco 1..., S.A.), nas suas contra-alegações, pediu que se negasse provimento ao recurso.

Concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

A. O prazo para interposição de recurso do Despacho que não admite a acareação terminou no dia 17/04/2024, podendo o acto ter sido praticado com multa nos dias 18, 19 e 22 de Abril de 2024, nos termos do artigo 638.º, n.º 1, do CPC.
 
B. Não tendo sido interposto recurso daquele Despacho dentro do prazo, o recurso ora apresentado deve ser improceder por extemporâneo, quanto àquela matéria.
 
No entanto, por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que,
 
C. A produção de prova havia terminado, tendo apenas a autora apresentado o pedido de acareação das testemunhas como reacção ao Despacho no qual o Senhor Juiz dá a conhecer o seu entendimento de que teria sido produzida prova bastante de que a autora havia incorrido em litigância de má-fé, sendo, por isso, esse pedido extemporâneo - assim tendo andado bem o Tribunal a quo ao indeferi-lo.
 
D. A Douta sentença não enferma de nulidade por excesso de pronúncia, uma vez que se limitou a conhecer das questões suscitadas pelas partes, em nada extravasando o objecto do litígio.
 
E. Tendo a autora confirmado ter assinado o contrato de mútuo, nos termos dos artigos 376º, n.ºs 1 e 2, 356º, n.º 1, ambos do Código Civil, considera-se provado mediante confissão judicial provocada que a autora assinou pelo próprio punho o contrato de mútuo e a documentação que o acompanhava.
 
F. Consequentemente, resulta igualmente inequívoco que apenas resta dar como provado que foi entregue uma cópia do contrato de mútuo à autora, conforme a própria assim declarou, devendo, assim, manter-se os factos dados como provados n.ºs 10 e 11.
 
G. O contrato de mútuo foi assinado pela Autora nas instalações da 1.ª ré, conforme a própria assim confirmou, a par do legal representante da 1.ª ré e da testemunha DD, e na presença deste, sendo de manter o facto provado n.º 6.
 
H. A autora apresentou os seus documentos de identificação originais no acto de assinatura do contrato de mútuo, conforme, de resto, se pode comprovar pela cópia do cartão de cidadão da mesma junto aos autos pelas 1.ª e 2.ª rés, o qual não foi sequer impugnado, assim devendo manter-se nos factos provados o facto n.º 7.
 
I. Também o facto provado n.º 8 e os factos não provados foram assim devidamente classificados pelo Tribunal “a quo”, porquanto não só resulta das declarações dos garantes na página do contrato que a autora confessa ter assinado que, de facto, lhe foram explicadas as condições contratuais, bem como pelo que resultou provado em sede de audiência de discussão e julgamento através dos depoimentos coerentes e fidedignos das testemunhas CC e BB.
 
J. Devido a um erro no contrato, foi necessário corrigi-lo e imprimir novamente o contrato na íntegra, o que fez com a autora e a sua sobrinha tivessem de permanecer no local durante horas, o que, para além da disponibilidade já antes demonstrada para o esclarecimento de qualquer questão, significa que não faltou à autora qualquer oportunidade de ler o contrato e de se inteirar do seu conteúdo, pelo que se a mesma não o fez só de si se pode queixar, tendo andado bem o Tribunal “a quo” ao dar como provado o facto n.º 9.
 
K. A condenação da autora como litigante de má-fé resulta da análise e valoração da prova produzida nas audiências de discussão e julgamento, nomeadamente, das declarações de parte da própria autora, que tropeçou nas suas próprias artimanhas.
 
L. Desde logo, veja-se como bem sabia o que é um fiador e que tinha aposto a sua assinatura no contrato de mútuo, não obstante, posterior e estrategicamente, questionar se aquela era a sua letra, mas prosseguindo com a confirmação de que era a sua assinatura…
 
M. Acresce que o contrato de mútuo foi lido e explicado, tendo sido entregue uma cópia do contrato à autora, que, aliás, teve de esperar algumas horas pela finalização do processo, dado a uma gralha que se verificava na primeira página do contrato.
 
N. Caso assim não fosse, os códigos de barras nas páginas do contrato não coincidiriam e o Banco réu, ao detectar essa discrepância, não avançaria com a concessão do crédito, por não ser certo que as condições gerais aceites pelo mutuário se referiam às condições particulares (1.ª página do contrato) com o código de barras diferente.
 
O. A autora deslocou-se ao stand da 1.ª ré, tendo reunido com a 2.ª ré, intermediária de crédito, apresentando os originais dos seus documentos de identificação e assinando o contrato de mútuo na parte que lhe competia, assim sendo válida a constituição de fiança.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nºs. 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [1], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
2.2.1. Questões incluídas no objecto do recurso
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela Autora (AA), 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

1.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, nomeadamente porque  

. não permitia que se dessem como demonstrados os factos provados enunciados na sentença recorrida sob o número 6 («O “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62” foi assinado e rubricado pela Autora e por BB nas instalações do stand vendedor, EMP01..., Unipessoal, Limitada, na presença dos representantes deste e dos representantes da sociedade intermediária de crédito, EMP02..., Unipessoal, Limitada»), sob o número 7 («Na altura da assinatura do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62” a Autora fez-se acompanhar dos seus documentos de identificação pessoal, os quais foram exibidos»), sob o número 8 («Foram explicitamente referidos a BB e à Autora os termos e condições do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”,   nomeadamente a TAEG, as condições de reembolso do crédito (número e montante das prestações mensais), a descrição do bem adquirido e seu fornecedor, o preço do produto, o valor total das prestações, o seu número, montante e data de vencimento, e inclusivamente as consequências do incumprimento do mesmo»), sob o número 9 («Foi concedida à Autora a oportunidade de ler o contrato de crédito e de tomar ciência do seu conteúdo»), sob o número 10 («A Autora apôs a sua assinatura no “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”, a fls. 6, onde se lê “DELARAÇÕES DO(S) GARANTE(S)”, declarando que: “Antes de o assinar, foi-me individualmente prestada assistência, designadamente, os esclarecimentos necessários à compreensão do contrato, seus efeitos e consequências do seu eventual incumprimento” e  “Foi-me entregue individualmente exemplar do contrato, na data de assinatura”»), sob o número...1 («A Autora ficou com uma cópia do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”») e sob o número 12 («Antes da assinatura do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62” ocorreu a assinatura de um primeiro acordo, que foi dado sem efeito por erro na identificação da viatura»);

. e impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados na sentença recorrida sob o número 16 («Que BB tenha solicitado à Autora que apusesse a sua assinatura num documento, sem que esta percebesse que documento era e a que fim se destinava»), sob o número 17 («Que em momento algum tenha sido explicado à Autora o teor do documento que esta estava a assinar, as responsabilidades/obrigações que assumia, não lhe tendo sido entregue nenhum exemplar do referido “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”»), sob o número 18 («Que a única informação prestada tenha sido a de que a assinatura da Autora no referido contrato não passava de um formalismo e que não envolvia nenhuma responsabilidade para esta») e sob o número 19 («Que a Autora tenha aposto a sua assinatura no “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62” sem qualquer noção ou conhecimento do seu teor e das responsabilidades que assumia ao assiná-lo»)?

2.ª - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, face ao prévio sucesso da impugnação de facto feita), por forma a que se julgue a acção totalmente procedente (nomeadamente, declarando a invalidade da fiança em causa nos autos) e se absolva a Autora da condenação respectiva como litigante de má-fé ?
*
2.2.2. Questão excluída do objecto do recurso

Veio ainda a Autora (AA) recorrente, no corpo das suas alegações e nas respectivas conclusões, pretender sindicar a «rejeição de meio de prova (acareação)», o que se teria repercutido numa «nulidade da sentença».
Com efeito, e segundo ela a «omissão deste meio de prova [acareação entre as testemunhas BB e CC], salvo melhor opinião, inviabiliza o Tribunal a quo de se pronunciar sobre a litigância de má-fé, por falta de elementos de prova suficientes e essenciais à descoberta da verdade material, o que configura a nulidade da sentença por excesso de pronúncia».
Defendeu, por isso, dever «o despacho de indeferimento da acareação ser revogado e substituído por um outro que defira a acareação entre as testemunhas CC e BB, por se mostrar útil à descoberta da verdade material e imprescindível a uma eventual condenação da Autora como litigante de má-fé».
Contudo, salvo o devido respeito por opinião contrária e tal como a 3.ª Ré (Banco 1..., S.A.) o defendeu nas suas contra-alegações, já não está em tempo para efectuar a pretendida sindicância ao despacho que lhe indeferiu a acareação que impetrara.

Com efeito, consubstanciando o mesmo o indeferimento de um meio de prova, teria de ter sido imediatamente recorrido, conforme art.º 644.º, n.º 2, al. d), do CPC; e tê-lo-ia que ter sido nos 15 dias seguintes ao da sua prolação, conforme art.º 638.º, n.º 1, do CPC.
Ora, tendo a mesma ocorrido na sessão de julgamento realizada no dia 02 de Abril de 2024, apenas no dia 26 de Junho de 2024 a Autora (AA) o sindicou, sendo certo que praticou antes diversos actos nos autos (nomeadamente, em 10 de Abril de 2024 pronunciou-se sobre o pedido de condenação respectiva como litigante de má-fé, e no dia 13 de Abril de 2024 apresentou alegações de direito sobre o julgamento dos autos). Logo, quando pretendeu sindicar o referido despacho, já o mesmo transitara em julgado, tornando-se doravante inalterável nos autos, conforme art.º 620.º do CPC.

Conclui-se, assim, não integrar o objecto útil do recurso interposto pela Autora (AA) a sindicância do despacho que lhe indeferiu a acareação impetrada (entre as testemunhas CC e BB); e, de forma conforme, a alegada nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, radicada precisamente no indeferimento daquela diligência de prova.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1.ª Instância
3.1.1. Factos Provados
Realizada a audiência final no Tribunal de 1.ª Instância, o mesmo considerou que, com «relevância para a decisão da causa, apuraram-se os seguintes factos» (aqui apenas completados, nos termos do art.º 607.º, n.º 4, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC):

1 - Em 10 de Dezembro de 2020, AA (aqui Autora) acompanhou uma sobrinha, BB, a pedido desta, até à cidade ..., a qual se dirigiu a um stand de venda de automóveis, sito na Avenida ..., em Braga, propriedade de EMP01... Unipessoal, Limitada (aqui 1.ª Ré).
 
2 - Aí chegadas, BB observou uma viatura ali exposta e revelou à Autora (AA) que era sua intenção adquirir um carro naquele estabelecimento comercial.

3 - A escolha de BB recaiu sobre o veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RF-...

4 - Em 10 de Dezembro de 2020, BB, na qualidade de «CLIENTE», e a Autora (AA), na qualidade de «GARANTE», acordaram com Banco 1..., S.A. (aqui 3.ª Ré) nos termos do documento escrito intitulado «CONTRATO DE CRÉDITO», ao qual foi aposto o n.º ...62 (documento que aqui se dá por integralmente reproduzido), disponibilizando esta à primeira o montante de € 22.082,58, a ser reembolsado em 120 prestações mensais e sucessivas, de € 284,50 cada uma, para a aquisição de uma viatura de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RF-.., sendo fornecedor do bem EMP01..., Unipessoal, Limitada (aqui 1.ª Ré) e intermediário de crédito EMP02..., Unipessoal, Limitada (aqui 2.ª Ré). 

5 - O referido «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» foi celebrado no stand situado no estabelecimento comercial designado «...», localizado na Avenida ..., em Braga.

6 - O «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» foi assinado e rubricado pela Autora (AA) e por BB nas instalações do stand da vendedora, 1.ª Ré (EMP01..., Unipessoal, Limitada), na presença dos representantes desta e dos representantes da intermediária de crédito, 2.ª Ré (EMP02..., Unipessoal, Limitada).

7 - Aquando da assinatura do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» a Autora (AA) fez-se acompanhar dos seus documentos de identificação pessoal, os quais foram exibidos. 

8 - Foram explicitamente referidos a BB e à Autora (AA) os termos e condições do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», nomeadamente a TAEG, as condições de reembolso do crédito (número e montante das prestações mensais), a descrição do bem adquirido e seu fornecedor, o preço do produto, o valor total das prestações, o seu número, montante e data de vencimento, e inclusivamente as consequências do incumprimento do mesmo.

9 - Foi concedida à Autora (AA) a oportunidade de ler o «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» e de tomar ciência do seu conteúdo.

10 - A autora (AA) apôs a sua assinatura no «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», a fls. 6, onde se lê «DECLARAÇÕES DO(S) GARANTE(S)», declarando que: «Antes de o assinar, foi-me individualmente prestada assistência, designadamente, os esclarecimentos necessários à compreensão do contrato, seus efeitos e consequências do seu eventual incumprimento.
Mais declaro(amos): Foi-me(nos) entregue individualmente exemplar(es) do Contrato, na data de assinatura».

11 - A Autora (AA) ficou com uma cópia do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62»

12 - Antes da assinatura do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», ocorreu a assinatura de um primeiro contrato, que foi dado sem efeito por erro na identificação da viatura. 

13 - Em 06 de Junho de 2022, BB deixou de cumprir as obrigações decorrentes do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», não mais liquidando as prestações que se iam vencendo.

14 - Em 11 de Dezembro de 2022, após ter sido intimidada com uma penhora sobre os seus bens, a Autora (AA) efetuou um pagamento no valor de €1848,27.

15 - No «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» as condições do exercício do direito de livre revogação constam da cláusula 5.1. 
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3.1.2. Factos não provados
Na mesma decisão, o Tribunal de 1.ª Instância considerou que não se provou:

16 - Que BB tenha solicitado à Autora (AA) que apusesse a sua assinatura num documento, sem que esta percebesse que documento era e a que fim se destinava.

17 - Que em momento algum tenha sido explicado à Autora (AA) o teor do documento que esta estava a assinar, as responsabilidades/obrigações que esta assumia, não lhe tendo sido entregue nenhum exemplar do referido contrato de crédito.

18 - Que a única informação prestada tenha sido a de que a assinatura da Autora (AA) no «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» não passava de um formalismo e que não envolvia nenhuma responsabilidade para esta.

19 - Que a Autora (AA) tenha aposto a sua assinatura no «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62» sem qualquer noção ou conhecimento do teor do contrato e das responsabilidades que assumia ao assiná-lo.
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto
3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação
Lê-se no art.º 607.º, n.º 5, do CPC que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no CC, nos seus art.º 389.º (para a prova pericial), art.º 391.º (para a prova por inspecção) e art.º 396.º (para a prova testemunhal).
Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art.º 607.º, do CPC citado).

Mais se lê, no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (art.ºs 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), ou quando exista acordo das partes (art.º 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art.º 358.º, do CC, e art.ºs 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos art.ºs. 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.2. Incorrecta livre apreciação da prova
3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação
Lê-se no n.º 2, als. a) e b), do art.º 662.º, do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art.º 662.º representa uma clara evolução [face ao art.º 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, págs. 29 e segs.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação
Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art.º 640.º, n.º 1, do CPC, que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art.º 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art.º 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor [2] enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
 «Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a «censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não» possa «assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de Março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. 
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).
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3.2.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto
Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior CPC], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo).
Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo) [3].
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3.2.2.4. Caso concreto (cumprimento do ónus de impugnação)
Concretizando, considera-se que a Recorrente (Autores) cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art.º 640.º, n.º 1, do CPC (conclusão distinta de saber se existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados e como não provados).

Com efeito, a Recorrente (Autora) indicou, no corpo das alegações e nas conclusões do seu recurso: os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados (os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, e os factos não provados aí enunciados sob os números 16, 17, 18 e 19); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (uma diferente ponderação da prova pessoal produzida em sede de audiência final); as exactas passagens das gravações dos depoimentos seleccionados para fundar a sua sindicância (que inclusivamente reproduziu); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como não demonstrados os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, e darem-se como demonstrados os factos não provados aí enunciados sob os números 16, 17, 18 e 19).

Já relativamente ao juízo crítico próprio dos Recorrentes (Autores), assentou o mesmo na reclamação de uma diferente valoração a fazer das declarações de parte e dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede da audiência final, e da prova documental junta aos autos.
Recorda-se, a propósito, que os art.ºs 640.º, n.º 1, al. b), e 662.º, n.º 1, do CPC afirmam inequivocamente que a matéria de facto previamente julgada deverá ser alterada quando a prova produzida imponha decisão diversa da recorrida, e não apenas quando a admita, permita ou consinta. Ora, para esse efeito, o recorrente terá que contrariar a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas.
Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente as declarações e os depoimentos escolhidos, e examinou os documentos selecionados, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face à demais prova produzida e às regras da experiência. Assim, pretendendo o recorrente sindicar este juízo, importará que indique as razões objectivas pelas quais entende que à prova que seleccionou (já antes vista e apreciada pelo Tribunal a quo) deveria ter sido dada outra relevância, o que a simples reiteração do seu conteúdo, e a reclamação conclusiva da respectiva suficiência, é claramente inidónea para este efeito.
No caso dos autos, a Recorrente (Autora) fê-lo grosso modo, sem prejuízo de, a propósito de parte da matéria sindicada, ter reiterado as considerações já antes expendidas nas suas alegações finais, concluindo (subjectivamente) pela suficiência da prova produzida para o sucesso da respectiva tese.
Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem defendendo que a menor suficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação [4].
Está, assim, este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art.º 640.º, do CPC, à reapreciação da matéria de facto pretendida pela Autora (AA), aqui recorrente.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto
3.3.1. Entrega de uma cópia do contrato no momento da sua assinatura
Veio a Recorrente (Autora) defender que a prova produzida não permitia que se desse como provado que, no momento da assinatura do «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», lhe foi entregue uma cópia do mesmo, devendo antes ficar como demonstrado não lhe ter sido entregue qualquer exemplar do mesmo.
Esta matéria encontra-se vertida no facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número...1 («A Autora ficou com uma cópia do ”CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”») e na parte final do facto não provado enunciado na sentença recorrida sob o número 17 («Que em momento algum tenha sido explicado à Autora o teor do documento que esta estava a assinar, as responsabilidades/obrigações que esta assumia, não lhe tendo sido entregue nenhum exemplar do ”CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”»).
Invocou a Autora (AA), para o efeito, a total ausência de prova que tivesse certificado a dita entrega de um exemplar do contrato em causa a ela própria, no acto da respectiva assinatura, tendo inclusivamente a prova pessoal produzida a propósito demonstrado o contrário.
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente (Autora).
Assim, ponderou a mesma para este efeito (com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais relevantes):
«(…)
O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida tendo valorado o depoimento de parte/declarações de parte do legal representante da 1ª ré, as declarações de parte da autora, os depoimentos das testemunhas e a documentação constante dos autos. 
(…)
- (pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15) o Tribunal valorou aqui as declarações de parte do legal representante da ré, das testemunhas CC, BB, bem como a cópia do contrato de mútuo junto como doc 1 da contestação das 1ª e 2ª ré e da 3ª ré.
(…)
Por último, o Tribunal mais considera que a autora ficou com uma cópia do contrato referido em 4) com fundamento nos depoimentos das testemunhas CC e do legal representante da 1ª ré, as quais referiram que entregaram uma cópia do contrato à autora através de BB (entregaram as duas copias a BB, para esta dar à autora); por outro lado, na medida em que estamos na presença de mecanismos estandardizados, de contratação em massa, consideramos inteiramente credível que tenha sido entregue uma cópia à autora, ainda que não directamente mas através da adquirente da viatura (ter-lhe-iam dado as duas cópias do contrato, na presença da autora, para aquela dar uma cópia a esta, ainda que não tenha entregue directamente em mão, facto que nos parece inteiramente verosímil); a isto acresce que tendo a autora reconhecido, em sede de declarações de parte que a assinatura constante da última folha do contrato de mútuo junto como doc 1 da contestação da 3ª ré e constando dele que a autora declarava ter recebido uma cópia, este facto considera-se provado mediante confissão judicial provocada, nos termos previstos no art 376º, n.º 1 e n.º 2 e 356º, n.º 1 do Cód Civil (ponto 11);
(…)»

Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência final, bem como compulsados todos os documentos juntos aos autos, afirma-se desde já que não se sufraga o juízo de prova do Tribunal a quo, no que ao que agora diz respeito.
*
Com efeito, nem EMP01... (legal representante da 1.ª Ré), nas declarações de parte que prestou, nem a testemunha CC, no depoimento que produziu, em parte alguma afirmaram ter sido dada uma cópia do contrato em causa à Autora (através da sua sobrinha BB), ou sequer que tivesse chegado a ser emitida uma cópia para esse efeito.

Precisando, o legal representante da 1.ª Ré (EMP01..., Unipessoal, Limitada), EMP01..., depois de reiteradamente ter afirmado que não teria estado presente no momento da apresentação, explicação e assinatura do contrato de crédito em causa (ausência que procura intencionalmente e de forma reiterada) [5], disse categoricamente que apenas foram emitidas três cópias do mesmo, uma destinada ao seu stand, outra destinada à cliente compradora e outra destinada à própria empresa financiadora; e que assim foram efectivamente entregues [6]

Já a testemunha CC nada referiu, ou confirmou, quanto a ter sido dada à Autora (AA) uma cópia do contrato de crédito em causa, directamente ou por intermédio da sua sobrinha, BB.
*
Considerando agora a demais prova pessoal produzida a propósito desta concreta questão, quer a Autora (AA), nas declarações de parte que prestou, quer as testemunha EE (seu irmão) e BB (sua sobrinha), confirmaram, directa ou indirectamente, a falta de entrega de um exemplar do contrato àquela.

Precisando, a Autora (AA) afirmou, categórica e reiteradamente, não lhe ter sido entregue, no acto da assinatura do contrato de crédito em causa, qualquer cópia ou exemplar do mesmo [7].

Precisando agora o depoimento da testemunha EE (irmão da Autora), o mesmo afirmou que, não conseguindo a irmã tomar conta das suas coisas sozinha, e estando a ser vítima do aproveitamento económico de terceiros, passou a ajudá-la (nomeadamente, a partir do momento em que a mesma lhe pediu ajuda, por estar a ser alvo da cobrança extrajudicial deste crédito). Ora, tendo organizado e arquivado os seus papéis, entre os mesmos não encontrou qualquer cópia ou exemplar do contrato de crédito em causa, que apenas conheceram quando lhes foi enviado posteriormente pela 3.ª Ré (Banco 1..., S.A.) [8]

Por fim, e relativamente ao depoimento prestado pela testemunha BB (sobrinha da Autora) a mesma limitou-se a afirmar que, a ela própria, foi entregue uma cópia do contrato de crédito, desconhecendo, porém, se outro tanto foi feito relativamente à Autora (AA) [9]. Logo, e apoditicamente, nunca poderia ter sido feito por seu intermédio (conforme juízo probatório do Tribunal a quo).

Conclui-se, assim, que não só não foi produzida a prova pessoal referida pelo Tribunal a quo como demonstrando que foi entregue à Autora (AA), no acto da respectiva assinatura, um exemplar do contrato de crédito em causa, como a prova pessoal efectivamente produzida demonstra precisamente o contrário.
Precisa-se que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, defendem que a prova da entrega do exemplar do contrato de crédito cabe ao credor, segundo uns porque a primeira parte do art.º 13.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 02 de Junho, isenta o consumidor de provar que não lhe foi entregue uma cópia do contrato [10], e segundo outros porque aplicam a teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova, considerando que é muito mais fácil para o credor fazer a prova da entrega da dita cópia do que ao consumidor provar o contrário [11].
*
Considerou, porém, e ainda o Tribunal a quo que tendo a Autora (AA) aposto a sua assinatura após o campo impresso do contrato apôs a sua assinatura no «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62», a fls. 6, onde se lê «DECLARAÇÕES DO(S) GARANTE(S)», declarando que: «Antes de o assinar, foi-me individualmente prestada assistência, designadamente, os esclarecimentos necessários à compreensão do contrato, seus efeitos e consequências do seu eventual incumprimento.
Mais declaro(amos): Foi-me(nos) entregue individualmente exemplar(es) do Contrato, na data de assinatura».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, consubstanciando o dito texto impresso igualmente um clausulado contratual geral (independentemente da folha onde se insere estar epigrafada de «Proposta /Contrato n.º ...62»), não pode a mera aposição, e após o mesmo, de uma assinatura da Autora (AA) valer como qualquer confissão sua daquele teor; e só por isso se tendo antes considerado e valorado a prova testemunhal, atento o disposto no art.º 393.º, n.º 2, do CC.

Precisando, da dita fls. 6 do contrato de crédito em causa (que nenhuma das partes contestou tratar-se de um contrato de adesão [12]) constam, com a mesma mancha gráfica das antecipadamente epigrafadas «CONDIÇÕES GERAIS» (tipo e tamanho de letra, espaçamento de parágrafos, existência e forma das epígrafes dos diferentes corpos de texto), declarações genéricas e inalteráveis imputadas ao «CLIENTE» e ao «GARANTE», relativas ao alegado cumprimento, quanto aos mesmos, de diversas obrigações legais (nomeadamente, de cumprimento do dever de comunicação e informação do clausulado e de entrega de um exemplar do contrato).
Consubstanciam, assim, as epigrafadas e pretendidas declarações cláusulas contratuais gerais, isto é, «elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se» limitam, «respectivamente, a subscrever ou aceitar» (art.º 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro). Todas elas se caracterizam pela sua generalidade ou pré-elaboração, pela sua rigidez, e pela sua indeterminação: «são pré-elaboradas, existindo antes de surgir a declaração que as perfilha; apresentam-se rígidas, independentemente de obterem ou não a adesão das partes, sem possibilidade de alterações; podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários» (Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro, Cláusulas Contratuais Gerais, Anotações ao Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 17).
Ora, com tais características presentes, presumir-se-á que as cláusulas que as possuam não resultaram de negociação prévia entre as partes (art.ºs 1.º, n.º 2 e 2.º, ambos do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro), presunção que, no caso dos autos, não foi ilidida.
Sendo assim, aquelas concretas cláusulas (nomeadamente, a imputada ao garante, declarando que lhe foi entregue uma cópia do contrato) não podem ser tidas como declarações das concretas partes, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 376.º, n.º 1, do CC [13], e sim, e apenas, como declarações atribuídas ao seu autor (no caso, à aqui 3.ª Ré, que as pré-elaborou) [14].

Dir-se-á ainda que «a entrega da cópia dos contratos se traduz num acto material concreto, posterior e logo exterior à elaboração (aqui preenchimento e assinatura) e ao texto de tais documentos, que, como tal, não pode ser considerada abrangida, enquanto acto material ao qual o Direito atribui particular relevância, no funcionamento de regras probatórias estruturadas em função do conteúdo dos próprios documentos. Serve isto para sublinhar que a prévia impressão num formulário contratual, (…) de uma declaração do tipo “foi-me entregue cópia deste contrato”, nunca poderia bloquear, não obstante a não impugnação da letra e da assinatura desse documento, a produção de prova, designadamente de prova testemunhal, relativamente à efectiva ocorrência desse acto material de entrega de um exemplar do contrato» (Ac. da RC, de 26.02.2008, Teles Pereira, Processo n.º 295/06.6TBCNT.C1).

Por fim, dir-se-á que se entende, em geral, que uma cláusula contratual geral confirmatória idêntica à aqui em causa é absolutamente proibida nos termos do art.º 21.º, n.º 1, al. e), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, ao atestar «conhecimentos das partes relativos ao contrato, quer em aspectos jurídicos, quer em questões materiais»; e, por isso, nula (art.º 12.º do mesmo diploma) [15].

Não vale, assim, como reconhecimento de entrega do exemplar por parte do consumidor a inserção de uma cláusula contratual geral com esse conteúdo no documento contratual [16].

Mantém-se, por isso, a conclusão anterior (de que não só não foi produzida a prova pessoal referida pelo Tribunal a quo como demonstrando que foi entregue Autora, no acto da respectiva assinatura, um exemplar do contrato de crédito em causa, como a prova pessoal efectivamente produzida demonstra precisamente o contrário).
*
 Deverá decidir-se em conformidade, julgando nesta parte procedente o recurso sobre a matéria de facto; e, em consequência, dar agora como:

· não demonstrado o facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número...1 - «A Autora ficou com uma cópia do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”».

· demonstrada a parte final do facto não provado enunciado na sentença recorrida sob o número 17 - «Não foi fornecido à Autora qualquer exemplar do “CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62”».
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3.3.2. Remanescente matéria de facto impugnada
Tendo ficado provado que não foi entregue à Autora (AA), no acto de assinatura do contrato de crédito em causa nos autos, uma cópia do mesmo, ficou, do mesmo passo e inelutavelmente, determinada a procedência da sua pretensão recursiva (como melhor se explicitará infra).
Assim, tornou-se desnecessário/inútil, por absolutamente irrelevante para o desfecho da acção, o conhecimento do remanescente objecto do seu recurso sobre a matéria de facto.

Declara-se, em conformidade, prejudicado o remanescente objecto do recurso interposto sobre a matéria de facto. (art.º 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Contrato de crédito ao consumo
4.1.1.1. Definição

Lê-se no art.º 4.º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho (como já antes se lia no art.º 2.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro), que disciplina o contrato de crédito ao consumo, e no que ora nos interessa, que contrato de crédito é aquele «pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de deferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante» [17].
Está-se, assim, não perante um novo tipo contratual, mas sim perante uma categoria definida por duplo critério (ou, se se preferir, uma subcategoria dos contratos de crédito e dos contratos de consumo) [18], a que se reconduzir-se-ão várias estruturas contratuais (típicas - v.g. mútuo e utilização de cartão de crédito - ou atípicas - v.g. diferimento de pagamento e acordo de financiamento semelhante), que partilhem das características de crédito e de consumo.
Este diploma procedeu à transposição para o direito interno da Directiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, desenvolvendo e aperfeiçoando o processo iniciado com o Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro (este, na transposição das Directivas do Conselho das Comunidades Europeias n.º 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e n.º 90/88/CEE, de 22 de Fevereiro de 1990).
Com efeito, lia-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, que o mesmo surgia face ao «significativo desenvolvimento do fenómeno do crédito ao consumo, a que corresponde um crescimento notório da oferta e a adopção de novas formas de crédito», visando «instituir regras mínimas de funcionamento, de modo a assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores» (bold apócrifo).
Reconhece-se, deste modo, que na origem do crédito ao consumo «encontramos o fenómeno da popularização da banca e as próprias necessidades de concorrência entre os banqueiros. Os particulares são, assim, facilmente aliciados a contraírem créditos improdutivos - créditos ao consumo - que, depois, terão de ressarcir e de remunerar.
(...) As vantagens são evidentes: ele [crédito ao consumo] permite o acesso das camadas da população economicamente mais débeis a múltiplos bens de equipamento e de consumo. Mas o reverso não o é menos: sobre-exploração financeira dessas mesmas camadas, que podem ser levadas a assumir débitos superiores às suas possibilidades de pagamento.
O crédito ao consumo exige, assim, redobrados deveres de informação: além da sua delicadeza intrínseca ele dirige-se, muitas vezes, a particulares sem experiência de contratos bancários. Há, ainda, que introduzir factores de moderação no próprio ritmo de concessão de crédito (...)» (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2.ª edição, Almedina, 2001, págs. 595 e 596, com bold apócrifo).
Lê-se agora no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, que o mesmo surge face à necessidade de reflectir a evolução verificada no mercado ao longo de duas décadas, que o transformou radicalmente - nomeadamente, com «consumidores mais informados e exigentes, novos actores e agentes intermediários, novos métodos na oferta e novas ferramentas - designadamente a Internet»; e pretende responder à «urgência na realização e um mercado comunitário de produtos e serviços financeiros, quer prevendo a uniformização da forma de cálculo e dos elementos incluídos na TAEG, quer reforçando os direitos dos consumidores, nomeadamente ao nível da informação pré-contratual».

Compreende-se, assim, que o contrato de crédito ao consumo: seja precedido de informação pré-contratual, que habilite o consumidor a tomar uma decisão esclarecida e informada, nomeadamente face a diferentes ofertas (art.º 6º), devendo o credor esclarecê-lo devidamente (art.º 7º); exista uma ficha específica e normalizada sobre a informação europeia em matéria de crédito a consumidores relativa a descobertos, às ofertas de certas organizações de crédito e à conversão de dívidas; o credor esteja obrigado a avaliar a solvabilidade do consumidor no momento prévio à celebração do contrato (art.º 10º); dele conste a T.A.E.G. - taxa anual de encargos efectiva global -, a qual nomeadamente identifica os reembolsos e encargos a suportar pelo consumidor, bem como as condições em que aquela pode ser alterada, e as condições de reembolso do crédito, sob pena de nulidade, só invocável pelo consumidor (art.ºs. 5.º e 13.º) [19]; exista um período de reflexão, de catorze dias de calendário subsequentes à respectiva assinatura, em que o consumidor pode revogar a sua declaração negocial, vulgo direito de arrependimento, sem necessidade de invocar qualquer motivo (art.º 17.º); e haja uma protecção do consumidor em caso de contratos coligados, configurando-se uma migração das vicissitudes de um contrato para o outro (art.º 18º).
Caso se trate de contrato de crédito ao consumo que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o pagamento em prestações, terá ainda que: conter a descrição do bem ou serviço, a identificação do fornecedor do mesmo, o preço a contado, o valor total das prestações, e o número, montante e data de vencimento das mesmas, sob pena de nulidade (art.ºs 12.º, n.º 3 e 13.º); e existir um mínimo de duas prestações sucessivas em atraso, que excedam 10% do montante total do crédito, e ter sido concedido ao consumidor um prazo suplementar de quinze dias para as regularizar, antes de o credor poder invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato (art.º 20º).
Por fim, todos estes direitos do consumidor são irrenunciáveis, sendo nula qualquer convenção que os exclua ou restrinja (art.º 26º).
*
4.1.1.2. Formação - Entrega de um exemplar
De forma conforme, lê-se no art.º 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, que os «contratos de crédito devem ser exarados em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade».
Exclui-se, assim, a regra geral da liberdade de forma, prevista no art.º 219.º do CC, «entendendo-se que, como noutros contratos de consumo, é necessária a existência de um documento para que o consumidor tome consciência da celebração do contrato e tenha a possibilidade de reflectir sobre o seu conteúdo. A existência de um documento escrito permite, ainda, a prova da celebração do contrato», o que «pode ser muito relevante para o financiador, especialmente nos casos, infelizmente bastantes comuns, em que o consumidor, apesar de assinar o documento contratual, não tem consciência da celebração do contrato de crédito» (Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 297).

Mais se lê, no art.º 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho, que todos «os contraentes, incluindo os garantes, devem receber um exemplar do contrato de crédito, sendo que, no caso de contratos de crédito celebrados presencialmente, o exemplar deve ser entregue no momento da assinatura do contrato de crédito» [20].
Compreende-se que assim seja, na assumida pretensão do legislador de uma reforçada ponderação por parte do consumidor/garante que se vincula, tendo particularmente em vista nesta norma a salvaguarda do exercício do seu direito ao arrependimento, pela livre revogação do contrato ou da garantia prestada nos 14 dias subsequentes à sua vinculação [21].

Lê-se ainda, no art.º 13.º do mesmo diploma, que a «garantia prestada é nula se, em relação ao garante, não for observado o prescrito no n.º 2 do artigo anterior» (n.º 2); e a «inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor» (n.º 5).
Está-se, assim, perante uma nulidade atípica, porque apenas invocável por uma das partes; que não é de conhecimento oficioso, uma vez que o consumidor pode pretender a manutenção do contrato nulo [22]; e que, sendo arguida exclusivamente pelo garante relativamente à garantia por si prestada, esta será reconhecida como nula, mas não o próprio contrato [23].
Dir-se-á ainda que a entrega de um exemplar do contrato num momento posterior ao legalmente exigido (no momento da celebração presencial do contrato, ou logo que possível nos contratos celebrados à distância) não constitui um meio apto para a sanação da invalidade, sob pena de qualquer sentido útil da exigência legal oposta [24].
*
4.1.2. Abuso do direito
4.1.2.1. Definição
Lê-se no art.º 334.º, do CC, que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Dir-se-á assim, e antes de mais, que o instituto do abuso do direito assenta na existência de limites indeterminados à actuação jurídica individual, resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito exercido.
Trata-se de uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalecente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, pág. 63) [25].
Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar a possibilidade de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 346).

A lei utiliza aqui, propositadamente, conceitos indeterminados («boa fé», «bons costumes», «fim social ou económico do direito») como modo privilegiado de atribuir ao aplicador intérprete - maxime ao juiz - instrumentos capazes de promover, no caso concreto, uma busca mais apurada da justiça (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 198) [26]

Adoptou-se, ainda, uma concepção de abuso de direito «objectiva», isto é, «não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.
Isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso de direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 298).

Exige-se, porém, que o excesso cometido seja «manifesto», isto é, que o direito em causa tenha sido exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, por a invocação e aplicação de um preceito concreto da lei, válida para o comum dos casos, resultar na hipótese concreta intoleravelmente ofensiva do sentido ético-jurídico dominante na colectividade (boa fé e bons costumes), ou desvirtuar os juízos de valor positivamente nele consagrados (fim social ou económico).

Concluindo, o abuso do direito pressupõe, logicamente, a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes. «A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deva ser exercido» (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 300).
*
4.1.2.2. Modalidades - Venire contra factum proprium / Inalegabilidades formais
Encontram-se já identificadas, pela doutrina e pela jurisprudência, as figuras mais típicas de manifestação de abuso do direito, contando-se entre elas: o venire contra factum proprium; as inalegabilidades formais; a supressio e a surrectio; o tu quoque; e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
*
Precisando, relativamente à «locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente», pelo que «se está perante dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo» (António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da Boa Fé No Direito Civil, Colecção Teses, Almedina, Volume II, págs. 742 e 745).
Com efeito, a todos os negócios jurídicos deve presidir um princípio de confiança que, levando à expectativa de certa conduta futura, implica uma auto vinculação. Logo, «a confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. (...). Basta que o confiante ignore a instabilidade do factum proprium, sem ter desacatado os deveres de indagação que ao caso caibam» (ibidem, págs. 756 e 758).
Assim, «a proibição de venire contra factum proprium representa um modo de exprimir a reprovação por exercícios inadmissíveis de direitos e posições jurídicas. Perante comportamentos contraditórios, a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa. O factum proprium impõe-se não como expressão da regra pacta sunt servanda, mas por exprimir, na sua continuidade, um factor acautelado pela concretização da boa fé» (ibidem, págs. 769 e 770).
Pode, pois, dizer-se que serão pressupostos exigíveis de aplicação da modalidade venire contra factum proprium do instituto em causa (condicionantes da sua actuação como instrumento de realização da justiça, e impeditivos da sua indevida banalização, por caucionadora de pretensões juridicamente infundamentadas):

i) uma situação objectiva de confiança - uma conduta de alguém que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura (v.g. mera conduta de facto - nalguns casos mesmo simples passividade -, ou declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz, mas que revele directa ou indirectamente a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro); 

ii) um investimento na confiança criada, de carácter irreversível - o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando uma contraparte, com base na situação criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe advirão danos, se a sua confiança vier a ser frustrada.
Torna-se, assim, necessário, não só uma relação de causalidade entre o facto gerador da confiança e o investimento da contraparte (o investimento foi feito apenas com base na dita confiança), como ainda que o dano que provocaria a conduta violadora da fides não seja removível através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória (v.g. ou porque não existe, ou porque o investimento feito não é economicamente recuperável, ou porque a situação criada não pode ser removida, ou só pode sê-lo em condições muito onerosas).

iii) boa fé da contraparte que confiou -  nos casos em que a base da confiança é uma aparência (porque a intenção real do responsável pela aparência diverge da sua intenção aparente), a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esteja de boa fé (por desconhecer aquela divergência), e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
Logo, o cuidado e as precauções exigíveis da contraparte que reivindica a protecção da sua boa-fé serão tanto maiores quanto mais vultuosos forem os «investimentos» (iniciativas, actos de disposição, decisões) feitos com base na confiança; e sê-lo-ão sobretudo quando circunstâncias particulares suscitem dúvidas sobre a verdade da situação aparente (v.g. nos negócios de grande vulto, que exigem uma actividade preparatória rodeada de muitas precauções, será menos desculpável a crença nos poderes de um procurador aparente do que nos negócios correntes da vida» (tudo apud Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, págs. 415 a 418).
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Relativamente às inalegabilidades formais, traduz-se aqui o abuso do direito na alegação, em termos contrários à boa fé, da nulidade derivada da inobservância prescrita para a forma de certos negócios jurídicos.
Com efeito, «desde que o Direito adquiriu a capacidade de complementar internamente o próprio sistema, os juristas ponderaram a possibilidade de, em certos casos e em nome da boa fé, bloquearem a invocação das invalidades formais. Imagine-se que alguém induz outrem a celebrar um negócio sem observância de forma legal, beneficia da aparência daí resultante e, supervenientemente, quando lhe convier, invoca a nulidade que causou. A actuação seria contrária ao sistema, exigindo um correctivo ex bona fide.
E na verdade, em situações clamorosas, a jurisprudência alemã veio admitir a posição da exceptio doli contra a invocação de nulidades formais.
Cedo, porém, a doutrina reagiria, arrastando, com ela, a jurisprudência. Admitir um bloqueio das normas relativas à forma seria pôr em causa um vector estruturante do sistema. Apenas circunstâncias de verdadeira excepção poderiam dar azo à inalegabilidade.
Quando admitidas, as inalegabilidades formais podem alicerçar-se em dois tipos de construção: a tutela da confiança e a ilicitude própria do alegante» (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Livraria Almedina, 1999, págs. 204 e 205).
Contudo, a jurisprudência portuguesa tem vindo a permitir o bloqueio directo, ex bona fide, de normas formais, quer por decisão directa, quer por invocação do venire contra factum proprium.
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4.1.3. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.1.3.1. Contrato de crédito ao consumo - Omissão de entrega de exemplar
Concretizando, verifica-se que todas as partes aceitam a celebração no caso dos autos de um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de financiamento concedido pela 3.ª Ré (Banco 1..., S.A.) a BB, por forma a que a mesma adquirisse um veículo automóvel; e sendo garante/fiadora nesse contrato a sua tia, aqui Autora (AA).
Mais se verifica que, tendo o dito contrato sido celebrado por escrito e assinado pelos seus intervenientes, não foi, porém, fornecido um exemplar do mesmo, no acto da respectiva assinatura, à Autora (AA) fiadora.
  Essa omissão, que se presume imputável à 3.ª Ré (presunção que não foi ilidida nos autos), comina de nulidade a fiança prestada, tendo a Autora (AA) pedido expressamente nos autos o respectivo reconhecimento; e, por força do mesmo e do art.º 289.º do CC, deverá ser-lhe restituído tudo o que, no seu âmbito, tenha prestado/pago.
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4.1.3.2. Abuso do direito (na invocação da nulidade resultante da falta de entrega de exemplar do contato)
Concretizando novamente, vieram, porém, qualquer das Rés defender, logo nas respectivas contestações, agir a Autora (AA) em abuso do direito, naquela invocação da nulidade do contrato, na modalidade de venire contra factum proprium, nomeadamente por ter aceite antes a sua celebração e eficácia, procedendo inclusivamente ao pagamento da quantia de € 1.848,27 (quando lhe foi exigida na sua qualidade de fiadora).

Dir-se-á, antes de mais, que quer a doutrina, quer a jurisprudência, defendem que esta «faculdade apenas deve ser conferida ao financiador em situações extremas e em que a sua conduta aquando da celebração do contrato e da inobservância da forma e das formalidades legalmente prescritas não tenha sido, por sua vez, atentatória da boa-fé». Pondera-se, para o efeito, que «a nulidade do contrato também constitui uma sanção para o financiador, não podendo depois vir a ser beneficiado pela circunstância de o consumidor ter agido como se o contrato fosse válido, em especial nos casos em que  desconhece essa invalidade no momento da celebração do contrato» (Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 301) [27].
Logo, a concreta questão que se suscite a este respeito só poderá ser adequadamente apreciada e decidida pela ponderação das circunstâncias do caso concreto [28].

Dir-se-á ainda que o singelo pagamento pela Autora (AA), da quantia de € 1.848,27, quando lhe foi exigida, não consubstancia só por si a criação de uma situação objectiva de confiança, já que ficou igualmente provado que se deveu ao facto de «ter sido intimidada com uma penhora sobre os seus bens». Logo, o dito, singelo e único pagamento, neste concreto circunstancialismo, não pode ser tido como uma tomada de posição vinculante da Autora (AA) em relação à não arguição futura da nulidade referida [29].
Acresce que, ainda que assim se não entendesse, não alegaram as Rés, nem os autos o documentam, que tenham fundado naquela actuação da Autora (AA) uma actuação própria que, de outro modo, não teriam tido, e da qual resultarão agora danos para si [30].

Por fim, dir-se-á que, não sendo devida à Autora (nomeadamente, à sua má-fé) a falta de entrega à mesma de uma cópia do contrato, e tendo a nulidade que daí resulta sido expressamente cominada pelo legislador como protecção do consumidor/garante, único que a pode invocar, o tê-lo aquela feito no circunstancialismo descrito não se subsume igualmente à figura da inalegabilidade formal.
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Mostra-se, assim, procedente nesta parte o recurso da Autora (AA), isto é, deverá ser declarada a nulidade da fiança por si prestada no contrato de crédito ao consumo invocado nos autos.
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4.2. Litigância de má-fé
4.2.1. Definição de conduta
Lê-se no art.º 542.º, n.º 2, als. a), b), c) e d), do CPC, que será considerado litigante de má-fé «quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, ou tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, ou tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
Assim, age de má-fé quem maliciosamente pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida (má-fé material ou substancial), bem como quem, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (má-fé instrumental) [31].
O dever de cooperação (referido na alínea c) citada) encontra-se definido no art.º 7.º, n.º 1, do CPC, aí se afirmando que «na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio».
Tutela, assim, o instituto da litigância de má-fé «o interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, e visa assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça» (Ac. da RG, de 30.11.2017, Jorge Teixeira, Processo n.º 1570/15.4T8GMR-A.G1).
           
Importa dizer que, antes da redacção conferida ao CPC de 1961 pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (na altura, ao seu art.º 456.º, n.º 2), tanto a jurisprudência como a doutrina entendiam que a condenação por litigância de má-fé pressupunha a existência de dolo, neste caso a voluntária dedução de uma pretensão cuja falta de fundamento se não ignorava, ou a voluntária e consciente alteração da verdade dos factos. Era, pois, necessária a consciência de não se ter razão (Ac. da RC, de 11.01.1983, CJ, Tomo 1, pág. 28).
Por outras palavras, então o que importava é que existisse uma «intenção maliciosa (má-fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má-fé em sentido ético)» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 358). Estas leviandade e imprudência, bem como o erro, ou a falta de justa causa, seriam insuficientes para caracterizarem a má-fé processual, exigindo-se a consciência (o saber) e a vontade (o querer) de se estar a actuar contra a verdade, ou com propósitos ilegais.
Assim, «no dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida - dolo directo - ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial - dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável» (Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1984, pág. 380).
O fundamental era, pois, a equiparação ou aproximação do dolo à má-fé, sendo que «na base da má-fé está este requisito essencial, a consciência de não ter razão. Não basta pois o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição infundada» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, 1982, pág. 263) [32].
No mesmo sentido se foi concertadamente pronunciando a jurisprudência [33].

Com o Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, consagrou-se um regime mais exigente no CPC de 1961, em conformidade com o reforço dos deveres de colaboração das partes, consagrados nomeadamente no seu art.º 266.º-A (dever de boa fé processual) e no seu art.º 266.º-B (dever de recíproca correcção).
Assim, admitiu-se expressamente que, ao lado do dolo, figurasse igualmente a negligência grave, por isso se substituindo o necessário conhecimento da falta de fundamento da pretensão/oposição deduzida, pela obrigação de conhecer a falta de fundamento da pretensão/oposição deduzida [34].
Esse regime passou para o actual CPC [35], que inclui assim na litigância de má-fé, não só a lide dolosa, como a lide gravemente negligente (art.º 542.º, n.º 2, do CPC) [36].
Integram nomeadamente o conceito de negligência grave as seguintes situações: lide temerária ou ousada (a parte, embora convencida da sua razão, incorreu em erro grosseiro, ajuizando a acção ou a defesa com desconsideração de motivos ponderosos, de facto ou de direito, que comprometiam a sua pretensão); a demanda por mero capricho, com espírito de emulação ou com erro grosseiro; a lide leviana ou imprudente; a falta grave do dever de diligência; a pertinaz e contundente oposição, clara e decisivamente infundada, por incorrecta interpretação e aplicação da lei e por desajustamento aos factos provados; a pretensão ou defesa manifestamente inviáveis, constitutivas do abuso do direito de acção; e a deficiência técnica grave [37].
Com efeito, qualquer «litigância processual exige responsabilidade, probidade e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização desenfreada e sem critério de todos os meios e expedientes de que a parte se lembre para a prossecução e obtenção dos fins que a possam favorecer». Compreende-se, por isso, que a lei apenas admita «o exercício das faculdades processuais que assentem, em termos razoáveis, na realidade revelada objectivamente nos autos; proíbe, por sua vez, o uso dos meios processuais que se fundam naquilo que nunca aconteceu, e de que a parte, actuando com a prudência e diligência medianas e exigíveis, disso poderia e deveria perfeitamente aperceber-se, não atirando para os articulados pretensões assentes unicamente no que é aparente ou ilusório» (Ac. do STJ, de 13.07.2021, Luís Espírito Santo, Processo n.º 1255/13.6TBCSC-A.L1-A.S1).
Ora, se é certo que na lide dolosa «nos encontramos perante uma intenção maliciosa», enquanto na lide temerária ou ousada nos encontramos perante «uma negligência», é igualmente certo é que esta negligência é «de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva».
É que, assentando a «condenação como litigante de má fé (…) num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito», qualquer daquelas duas situações o justifica (Ac. do STJ, de 12.11.2020, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 279/17.9T8MNC-A.G1.S1).
Não se torna, porém, necessário, em qualquer dessas situações, a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e/ou da intenção de conseguir um objectivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua actuação [38].
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Contudo, a condenação como litigante de má-fé pressupõe prudência e cuidado do julgador, bem como a correcta destrinça entre lide infundada e a actuação dolosa ou gravemente negligente, sob pena de se poder estar a cercear indevidamente o direito de acção.
O mesmo integra-se no direito fundamental de acesso aos tribunais (art.º 20.º, n.º 1, da CRP), constituindo um direito subjectivo autónomo e distinto do direito material que se pretende fazer actuar em juízo, pelo que o seu exercício não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial. Exigir isso, seria fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm, e aos que têm razão. Assim, o recurso aos tribunais judiciais representa um facto lícito, mesmo que se venha a demonstrar que o direito que se pretendeu fazer valer em juízo não existia. O direito de acção só é ilegítimo quando se litiga com má-fé [39].
Logo, a litigância de má-fé não pode confundir-se com: a pretensão ou a oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da prova respectiva, de não se ter logrado convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento; a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar; a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos; ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, lograr convencer [40].

Compreende-se, por isso, que se afirme que a «sanção por litigância de má fé apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, como também ao seu antagonista no processo»; e, para «tal, exige-se que o julgador seja prudente e cuidadoso, só devendo proferir decisão condenatória por litigância de má-fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte» (Ac. do STJ, de 26.11.2020, Ilídio Sacarrão Martins, Processo n.º 914/18.1T8EPS.G1.S1).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, verifica-se que o Tribunal a quo condenou a Autora (AA) como litigante de má-fé por considerar que «deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar» e por considerar que «alterou a verdade dos factos».
Contudo, e face ao decidido antes, não pode essa condenação manter-se agora.

Com efeito, e face ao prévio sucesso do seu recurso, mostra-se fundada a sua pretensão, de ver reconhecida a invalidade da fiança por si prestada.
           
Mostra-se, ainda, parcialmente alterada a matéria de facto antes dada como provada pelo Tribunal a quo, tendo a Autora demonstrado, nessa parte, a verdade da sua alegação inicial; e a remanescente não alterada não pode ser aqui considerada, uma vez que, também ela, foi objecto de sindicância pela sua parte.
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Conclui-se, assim, que procede igualmente nesta parte o recurso da Autora (AA), isto é, deverá ser revogada a condenação respectiva como litigante de má-fé.
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Deverá decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso de apelação da Autora (AA).
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela Autora (AA), e, em consequência,

· Revogam integralmente a sentença recorrida, substituindo-a por decisão a julgar a acção procedente, nomeadamente reconhecendo a nulidade da fiança por ela prestada no «CONTRATO DE CRÉDITO n.º ...62».
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Custas da acção e da apelação pelas Rés (art.º 527.º, n.º 1, do CPC).
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Guimarães, 14 de Novembro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Rosália Cunha;
2.º Adjunto - Gonçalo Oliveira Magalhães.


[1] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem -, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[2] A exigência de rigor, no cumprimento do ónus de impugnação, manifestou-se igualmente a propósito do art.º 685º-B, n.º 1, al. a), do anterior CPC, de 1961, conforme Ac. da RC, de 11.07.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 781/09, onde expressamente se lê que este «especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor», constituindo «simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso».
[3] No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.3TBLRA.C1, onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação».
Ainda Ac. do STJ, de 09.02.2021, Maria João Vaz Tomé, Processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1, onde se lê que «nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil».
[4] Neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1.   
[5] Reprodução parcial do depoimento de EMP01... (legal representante da 1.ª Ré):
«(…)
(…)»
[6] Reprodução parcial do depoimento de EMP01... (legal representante da 1.ª Ré):
«(…)
(…)»
[7] Reprodução parcial do depoimento do depoimento da Autora:
«(…)
 (…)»
[8] Reprodução parcial do depoimento da testemunha EE (irmão da Autora):
«(…)
(…)»
[9] Reprodução parcial do depoimento da testemunha BB (sobrinha da Autora):
«(…)
 (…)»
[10] Neste primeiro sentido, Fernando de Gravato Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, 2007, Almedina, pág. 101.
Na jurisprudência: Ac. da RC, de 12.02.2008, Costa Fernandes, Processo n.º 366/05.6TBTND-A.C1; Ac. da RP, de 26.01.2009, Marques Pereira, Processo n.º 0852451; ou Ac. da RL, de 15.10.2009, Manuel Gonçalves, Processo n.º 59659/05.4YYLSB-A.L1-6.
[11]  Neste segundo sentido, Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, págs. 297 e 298.
Na jurisprudência: Ac. do STJ, de 02.06.1999, Quirino Soares, Processo n.º 99B387; Ac. da RP, de 08.07.2004, Alberto Sobrinho, Processo n.º 0423910; Ac. da RE, de 25.10.2007, Tavares de Paiva, Processo n.º 883/07-2; Ac. do STJ, de 07.01.2010, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n.º 08B3798; Ac. da RL, de 27.03.2014, Ana de Azeredo Coelho, Processo n.º 8493/03.8TVLSB.L1-6; ou Ac. da RP, de 19.05.2020, Ana Lucinda Cabral, Processo n.º 1107/10.1TBESP-A.P1.
[12] Precisando, o contrato de adesão pressupõe a prévia estipulação, por parte de um dos contratantes, em forma geral e abstracta, das cláusulas ou condições contratuais, com vista à sua futura incorporação no conteúdo dos contratos do tipo em causa (v.g. seguro, locação, mútuo bancário).
Assim, a aplicação uniforme dessas mesmas cláusulas ou condições é assegurada posteriormente através da recusa do seu predisponente em negociá-las, colocando a contraparte perante a alternativa, ou de se sujeitar às condições prefixadas, ou de desistir do contrato, renunciando à pretendida prestação.
Optando pela sujeição, passará a «dar vida a um contrato cujo processo formativo não reproduz a sua imagem ideal» (Joaquim Sousa Ribeiro, Cláusulas Contratuais Gerais e o Paradigma do Contrato, Almedina, 1990, pág. 39); e, por isso, presume que o contrato negociado poderá corresponder apenas à vontade de uma das partes.
No mesmo sentido, António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Colecção Teses, Almedina, 1990, pág. 748, onde se lê que, quando estão em causa cláusulas contratuais gerais, «a liberdade da contraparte fica praticamente limitada a aceitar ou rejeitar, sem poder realmente interferir, ou interferir de forma significativa, na conformação do conteúdo negocial que lhe é proposto, visto que o emitente das “condições gerais” não está disposto a alterá-las ou a negociá-las; se o cliente decidir contratar terá de se sujeitar às cláusulas previamente determinadas por outrém, no exercício de um law making power de que este de facto desfruta, limitando-se aquele, pois, a aderir a um modelo pré-fixado».
[13] Recorda-se que, os termos dos art.ºs 375.º e 376.º, ambos do CC, estando reconhecida a assinatura imputada ao declarante, esta tem-se por verdadeira; e o documento particular em que tal reconhecimento é efectuado faz prova plena à veracidade da assinatura e também às declarações que do mesmo constem e que possam ser atribuídas ao seu autor.
Logo, a regra é a de que o documento faz prova plena (desde que não seja demonstrada a respectiva falsidade) quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas sendo tal declaração indivisível nos mesmos termos prescritos para a prova por confissão.
[14] Neste sentido:
. Ac. da RG, de 25.05.2012, Maria Purificação Carvalho, Processo n.º 3808/09.8TBBRG-A.G1 - onde se lê que, impendendo «sobre o credor a prova de ter efectuado a entrega de um exemplar do contrato ao subscritor/consumidor, no momento da respectiva assinatura (artigos 6º, nº 1 e 7º, nº 4 do DL nº 359/91), e traduzindo essa entrega um acto material posterior e exterior à elaboração (preenchimento e assinatura) do documento, não pode essa prova decorrer do simples funcionamento de regras probatórias estruturadas em função do conteúdo do próprio documento (caso do artigo 376º do CC), que prescindam da demonstração concreta dessa entrega».
.  Ac. da RC, de 10.09.2013, Albertina Pedroso, Processo n.º 968/09.1TBCBR-A.C1 - onde se lê que, num «contrato de crédito ao consumo que é simultaneamente um contrato de adesão, a cláusula onde conste que a adquirente recebeu cópia do contrato, não faz prova plena da efectiva entrega do mesmo ao consumidor, ainda que não tenha sido arguida a falsidade quer do contrato quer da assinatura nele aposta e notarialmente reconhecida»
«Efectivamente, nos casos sobreditos, tal cláusula previamente elaborada não pode ser tida como declaração da contraente adquirente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 376.º, n.º 1, do CC», já que, «atenta a prévia elaboração do contrato pela financiadora, as cláusulas contratuais gerais ali apostas, só podem valer como “declarações atribuídas ao seu autor” relativamente a esta»; e, nessa medida, «é admissível a prova testemunhal sobre a esta questão produzida».
[15] Neste sentido, Ac. da RL, de 13.10.2016, Pedro Martins, Processo n.º 28382/15.2YIPRT.L1-2, com indicação de doutrina e jurisprudência conformes.
[16] Neste sentido, Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 298, onde se lê que não «vale, naturalmente, como reconhecimento de entrega do exemplar por parte do consumidor a inserção de uma cláusula contratual geral com esse conteúdo no documento contratual».
[17] O que seja consumidor e credor, para efeitos da aplicação do regime do diploma, encontra-se nas alíneas anteriores: consumidor é «a pessoa singular que, nos negócios jurídicos abrangidos pelo presente decreto-lei, atua com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional»; e credor é «a pessoa, singular ou coletiva, que concede ou que promete conceder um crédito no exercício da sua atividade comercial ou profissional».
[18] No mesmo sentido: Carlos Ferreira de Almeida, Direito do consumo, Coimbra, Almedina, 2005, pág. 87; ou José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Setembro de 2009, pág. 511.
[19] Compreende-se que assim seja, uma vez que um «dos aspetos mais relevantes para a decisão de contratar do consumidor de crédito consiste na possibilidade de comparar as propostas apresentadas por eventuais financiadores». Ora, «a consagração da figura da TAEG é fundamental para o esclarecimento efetivo do consumidor, uma vez que o fornecimento deste elemento garante simultaneamente o conhecimento da taxa proposta e a comparação com outras taxas de mercado, tratando-se de um elemento mais objetivo» (Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 277). 
[20]  No sentido de que a cópia do contrato deve ser entregue no momento da respectiva assinatura, quando celebrado presencialmente, Ac. da RP, de 14.11.2011, Ana Paula Amorim, Processo n.º 13721/05.2YYPRT-A.P1; ou Ac. da RL, de 22.11.2012, Pedro Martins, Processo n.º 9108/10.3TBCSC.L1-2 (com extensa indicação de jurisprudência conforme).
[21] Neste sentido:
.  Ac. da RL, de 23.10.2014, Carla Mendes, Processo n.º 85/10.1TBMTJ-A.L1-8 - onde se lê que só «com a entrega de um exemplar do contrato no momento da sua perfeição é que o consumidor pode inteirar-se do seu conteúdo, sopesar as vantagens e desvantagens do contrato, ajuizar da informação prestada pelo proponente, dissipar dúvidas e assegurar-se da transparência da negociação».
. Ac. da RC, de 27.04.2017, Jaime Carlos Ferreira, Processo n.º 406/12.2TBBBR-A.C1 - onde se lê que este «conjunto de formalidades impostas por este tipo de contrato [nomeadamente, a entrega de um exemplar no momento da sua assinatura] tem a ver com a proteção dos seus destinatários, pessoas nem sempre preparadas e eventualmente sem conhecimentos suficientes para uma apreciação imediata do referido tipo de contrato, pelo que necessitarão de algum tempo para refletir e se poderem aconselhar sobre o mesmo».
. Ac. da RE, de 21.10.2020, Mário Coelho, Processo n.º 641/08.8TBPSR-A.E1- onde se lê que a «entrega do referido exemplar é imperativa e tem por finalidade possibilitar ao consumidor o exercício do direito de revogação, após ter possibilidade de reflectir sobre o conteúdo do contrato e das suas implicações».
. Ac. da RP, de 08.06.2022, Paulo Duarte Teixeira, Processo n.º 23888/17.1T8PRT-A.P1 - onde se lê que a «exigência de entrega de um exemplar no contrato de crédito ao consumo visa, essencialmente, informar e possibilitar o exercício do direito de retratação do consumidor».
[22] Há, porém, quem defenda que a nulidade, passa, porém, a poder ser conhecida pelo Tribunal quando o consumidor pretenda desvincular-se do contrato mas não a invoque, não obstante apresente factos que o demonstrem.
Neste sentido, Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 300.
Contudo, em sentido contrário, Ac. da RP, de 21.09.2006, Ana Paula Lobo, Processo n.º 0632114; Ac. da RE, de 25.10.2007, Tavares de Paiva, Processo n.º 883/07-2; ou Ac. da RL, de 04.03.2010, Luís Correia de Mendonça, Processo n.º 257168/08.6YIPRT.L1-8.
[23] Neste sentido, Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 302.
[24] Neste sentido: Fernando de Gravato Morais, Crédito aos Consumidores, Almedina, 2009, pág. 67; ou Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2014-2.ª edição, Almedina, Setembro de 2014, pág. 301.
[25] No mesmo sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição, Almedina, 1979, pág. 60; e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 298.
[26] Contudo, pode dizer-se que:
. boa fé - objectiva-se em regras de actuação (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, págs. 180 e 182): é a consideração razoável e equilibrada dos interesses dos outros, a honestidade e a lealdade nos comportamentos e, designadamente, na celebração e execução dos negócios jurídicos (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 2.ª edição, Almedina, 1989, pág. 78), reporta-se à correcção e lealdade (Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso de Direito, CEFDGCI, Lisboa, 1973, pág. 193). Por isso, agir de boa fé é «agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesse da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar» (Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, n.º 412, pág. 460).
A este propósito deverá ser tido em consideração o disposto nos arts. 227.º e 762.º, ambos do CC, que se referem à exigência da actuação de boa fé nos preliminares e formação do contrato, no cumprimento da obrigação e exercício do direito.
. os bons costumes - é conjunto de regras de comportamento sexual, familiar e deontológico, acolhidas pelo Direito, em cada momento histórico, que, não estando codificadas, provocam consenso em concreto, pelo menos nos casos limite, encontrando-se na sua concretização um grupo que se prende com princípios cogentes da ordem jurídica e outro que se liga à moral social (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 193. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 10.12.1991, BMJ, n.º 412, pág. 460, onde se lê que os bons costumes são «um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social»).
Logo, para se determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 299).
. o fim/função social ou económico do direito - tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação; se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá direito quando o titular desrespeite tal norma constitutiva (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I - Parte Geral, Tomo I, Almedina, pág. 283).
[27] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho e Micael Teixeira, «Crédito ao Consumo - Ónus da Prova da Entrega de Exemplas do Contrato e Abuso do Direito de Invocar a Nulidade», Cadernos de Direito Privado, n.º 42, 2013, pág. 51.
Na jurisprudência:
. Ac. do STJ, de 30.10.2007, Fonseca Ramos, Processo n.º 07A3048 - onde se lê que, na «ponderação de saber se houve abuso do direito – art.º 334.º do Código Civil – excepção material de conhecimento oficioso – o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a autora, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma os princípios da boa-fé».
. Ac. do STJ, de 28.04.2009, Fonseca Ramos, Processo n.º 2/09.1YFLSB - onde se lê que a «pretensão do aderente não deve ser paralisada pela invocação do abuso do direito, por parte do proponente, por nas relações de consumo a regra ser a protecção do consumidor, só devendo ser desconsiderada, em casos de conduta, a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte, o que aqui não é evidente, sendo de acentuar que a actuação da Autora evidencia grosseira violação das regras da boa-fé o que conduz a considerar que a actuação do Réu não cai na alçada daquele moderador instituto. Entendemos que, sopesada a gravidade do comportamento da Autora, profissional no mercado de crédito com o arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade, de que dispõe, o quadro factual em que o Réu (a parte mais fraca no contexto negocial, repetimos) invocou a nulidade, não exprime abuso do direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa-fé».
. Ac. do STJ, de 07.01.2010, Maria dos Prazeres Beleza, Processo n.º 08B3798 - onde se lê que «haveria de ter sido alegada e provada matéria de facto que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade por falta de entrega oportuna de um exemplar da proposta de contrato tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar na recorrente a confiança de que a nulidade não seria suscitada, tornado claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram».
. Ac. da RC, de 14.05.2010, Gonçalves Ferreira, Processo n.º 328/09.4TBGRD.C1 - onde se lê que, vista «a regra de protecção do consumidor, que subjaz às relações de consumo, não age em abuso do direito o mutuário que invoca a nulidade do mútuo, por falta da entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato».
. Ac. da RE, de 08.09.2011, João Gonçalves Marques, Processo n.º 1277/09.1TBBJA - onde se lê que na «ponderação do abuso de direito por parte do consumidor que invoca vícios do contrato, após o início da execução, “deve o Tribunal actuar com particular prudência já que, na relação de financiamento à aquisição de bens de consumo, é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos serviços e do consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a entidade financiadora da aquisição, prevalecendo-se da superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, não infringiu, ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, em suma os princípios da boa fé”, caso em que não deve ser paralisado o direito do consumidor a invocar a nulidade».
. Ac. da RP, de 28.03.2012, José Carvalho, Processo n.º 3585/09.2TBPRD.P1 - onde se lê que a «circunstância do consumidor ter pago quatro prestações e apenas ter invocado a nulidade do contrato quando foi demandado não basta para se concluir que actuou com abuso de direito».
. Ac. da RG, de 25.05.2012, Maria Purificação Carvalho, Processo n.º 3808/09.8TBBRG-A.G1 - onde se lê que vista «a regra de protecção do consumidor que subjaz às relações de consumo, não age em abuso de direito o mutuário que invoca a nulidade do múuo, por falta da entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato».
. Ac. da RP, de 25.10.2012, Pinto de Almeida, Processo n.º 15/08.0TBCDR-A.P2 - onde se lê que não «exprime abuso de direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa fé, a invocação, pelo consumidor, da nulidade do contrato de crédito ao consumo, por falta de entrega de um exemplar da proposta do contrato e pela inobservância dos deveres de informação e de comunicação a cargo do proponente, quando aquele o cumpriu durante substancial lapso de tempo, de modo consentâneo com a sua validade, e o tempo decorrido não foi de molde a criar neste último uma confiança, objectivamente justificada, de que a nulidade não seria invocada».
. Ac. da RC, de 21.10.2014, Freitas Neto, Processo n.º 4334/10.8T2AGD-A.C1 - onde se lê que num «contrato de crédito ao consumo, pré-formatado pelo mutuante como contrato de adesão, não é susceptível de ser invocado abuso do direito do mutuário quando este lance mão da nulidade de tal contrato por violação de normas de interesse público atinentes à protecção do aderente».
. Ac. da RL, de 23.10.2014, Carla Mendes, Processo n.º 85/10.1TBMTJ-A.L1-8 - onde se lê que a «pretensão do aderente só deve ser desconsiderada nos casos em que a sua conduta for a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo para a contraparte, a não ser assim, afastada está a invocação do abuso de direito por parte do proponente, uma vez que nas relações de consumo a regra é a da protecção do consumidor.
. Ac. da RG, de 04.02.2016, Jorge Seabra, Processo n.º 8732/12.4TBBRG-A.G1 - onde se lê que a «exclusão das aludidas condições gerais não é afastar por aplicação do instituto do abuso de direito se apenas se apurou que os mutuários pagaram cerca de metade das prestações previstas no contrato de financiamento e que o mesmo contrato teve a duração de cerca de 4 anos e meio, sendo certo que, tais factos de per si e sem mais, não revelam uma conduta dos mutuários, ostensiva ou clamorosamente, atentatória da boa-fé, dos bons costumes e do fim social e económico do direito por si exercido, direito este atinente à comunicação e informação cabal e efectiva do clausulado de contrato de financiamento em que outorgaram».  
. Ac. da RC, de 07.02.2017, Maria João Areias, Processo n.º 1288/11.7TBVIS-A.C1 - onde se lê que «que a financiadora possa invocar o abuso de direito decorrente da invocação da falta de entrega de um exemplar do contrato, será necessário, para além do mais, a boa-fé por parte da financiadora». 
. Ac. da RC, de 04.04.2017, Vítor Amaral, Processo n.º 3753/13.2TJCBR.C1 - onde se lê que a «análise prudente quanto ao abuso do direito por parte do consumidor que invoca vícios formais do contrato de crédito ao consumo, após período de execução contratual, não prescinde, ante a desigualdade manifesta de meios entre as partes, sendo o consumidor a parte tipicamente débil, da ponderação quanto à conduta do financiador, mormente se, pela forma como atuou, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, infringiu, em termos censuráveis, os deveres cooperação, lealdade e informação impostos pelo princípio da boa-fé, caso em que, assim tendo ocorrido, é de afastar a inalegabilidade da invalidade».
Ora, sendo a «regra, no âmbito das relações de consumo (…)a da proteção do consumidor (normalmente um não especialista, designadamente em questões de contratação de crédito ao consumo, face a um profissional apetrechado), só» devem «ser desconsiderada perante conduta manifestamente censurável e injustificada, com grave prejuízo para a contraparte»; e, por isso, não «é de ter por contraditória ou desproporcionada/desequilibrada – ao menos em termos clamorosamente ofensivos da boa-fé objetiva, de molde a constituir abuso do direito – a invocação da nulidade do contrato de crédito pelo consumidor, em caso de inobservância da forma escrita e do dever de entrega de cópia do contrato, mesmo se durante anos houve entrega das prestações de reembolso verbalmente acordadas, com restituição de montante até superior ao emprestado, e o consumidor apenas invocou a invalidade na ação de cumprimento, onde, porém, é pedido o pagamento de quantia superior à que havia sido emprestada».
. Ac. da RC, de 27.04.2017, Jaime Carlos Ferreira, Processo n.º 406/12.2TBBBR-A.C1- onde se lê que «não se diga que tendo o duplicado do contrato de crédito sido posteriormente remetido ao Oponente, que este não solicitou à Exequente qualquer esclarecimento sobre o conteúdo do mesmo, que fez uso do veículo desde então e que pagou algumas das prestações mensais acordadas, relevam tais factos para se poder entender que estará a agir em manifesto abuso de direito, ao invocar a nulidade do contrato de crédito em consumo, com base na falta de entrega do duplicado do dito contrato no momento da sua outorga pelo Oponente».
. Ac. da RL, de 29.06.2017, Pedro Martins, Processo 78/15.2T8VFC-A.L1-2 e Ac. da RL, de 14.09.2017, Pedro Martins, Processo n.º 9065/15.0T8LSB-2 - onde se lê que não «constitui abuso de direito a conduta do aderente do contrato que, decorridos vários anos após a celebração do contrato, pretende a exclusão de cláusulas contratuais por falta do cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, “sendo completamente natural e nada contraditório, que o cidadão assine o contrato, confiando que não vai encontrar percalços na sua execução, e reaja apenas quando esses percalços, normalmente imprevisíveis na data da celebração do contrato, surgem.”».
. Ac. da RG, de 19.06.2019, José Amaral, Processo n.º 3455/07.9TBGMR-A.G2 - onde se lê que o abuso de direito não obsta à invocação da nulidade «pela embargada»: estando «em causa, nos embargos, apenas a validade e exequibilidade de tal livrança e apesar de o embargante ter pago 58 das 72 prestações convencionadas e não ter reagido à comunicação de resolução do contrato por incumprimento, o certo é que, só tendo sido citado para a execução, com base naquela deduzida, cerca de 10 anos depois de ter deixado de cumprir, não se demonstra que antes tivesse consciência daqueles vícios e direito deles adveniente nem da cláusula relativa à autorização de preenchimento da livrança e consequente criação do título válido e apto a poder ser com base nele executado nem que, pelo passar do tempo, tivesse contribuído, em atitude de má-fé, para gerar na embargada a crença de que não os invocaria».
. Ac. da RP, de 19.05.2020, Ana Lucinda Cabral, Processo n.º 1107/10.1TBESP-A.P1 - onde se lê que a especifificadade do regime de arguição de nulidade por falta de entrega de «um exemplar do contrato aquando da sua assinatura (…) visa compensar a enorme fragilidade do consumidor no período pré-contratual, pelo que não constitui um abuso de direito a invocação da nulidade pelo consumidor que apesar disso pagou algumas ou até grande parte das prestações».
[28] Neste sentido, Ac. da RL, de 22.06.2023, Ana Paula Nunes Duarte Olivença, Processo n.º 8911/13.7TCLRS-A.L1-8, onde se lê que  é «pela análise das circunstâncias do caso concreto que se poderá concluir se os executados, ao alegarem a nulidade do contrato de adesão por violação por parte da exequente do dever de entrega de um exemplar ao consumidor no momento da assinatura, ou do dever de comunicação/explicação do clausulado, estão ou não a agir em manifesto abuso de direito».
[29] Resultou ainda da audição do registo áudio do depoimento da testemunha EE (irmão da Autora) que foi por sua iniciativa que esse pagamento foi feito; e que só após a reiteração de novo pedido por parte da 3.ª Ré foi consultado um advogado (tornando verosímil que apenas nessa ocasião a Autora tenha ficado a saber quais os direitos que lhe assistiam e de que forma os poderia fazer valer).
Contudo, como esta matéria não integrou o elenco dos factos provados, não se valorou aqui para afastar o pretenso abuso do seu direito de invocar a nulidade da fiança prestada (por falta de entrega de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura).
[30] Neste sentido:
. Ac. da RP, de 21.04.2016, Jorge Leal, Processo n.º 187/14.5TBTLD.L1-2 - onde se lê que «sendo a nulidade um vício cognoscível a todo o tempo, em que a passagem do tempo não interfere com a operatividade da omissão ocorrida, e emergindo a nulidade da atuação imputável ao financiador, cujo investimento no negócio é, afinal, contemporâneo da nulidade, dificilmente se poderá encontrar, da parte do financiador, um “investimento da confiança”, decorrente da inércia da contraparte na arguição da nulidade, que justifique a proteção do financiador, em detrimento do consumidor, derrogando-se os mecanismos de proteção do consumidor à luz do padrão da boa-fé».
. Ac. da RC, de 04.04.2017, Vítor Amaral, Processo n.º 3753/13.2TJCBR.C1 - onde se lê que podendo «a nulidade ser invocada e conhecida a todo o tempo e resultando de atuação imputável ao financiador, cuja prestação é contemporânea do vício (invalidade), não ocorre relevante “investimento de confiança” por aquele – perante a conduta adimplente, e de não invocação da invalidade, da contraparte –, que devesse ser tutelado, no âmbito do abuso de direito, em prejuízo do consumidor, o que levaria ao afastamento da instituída ordem pública de proteção, dirigida à defesa deste».
. Ac. da RP, de 19.05.2020, Ana Lucinda Cabral, Processo n.º 1107/10.1TBESP-A.P1 - onde se lê que as «modalidades do abuso de direito que aqui adequadamente se poderiam invocar: - venire contra factum proprium e a inegalidade da forma - implicam sempre que haja um investimento de confiança muito grande por parte de um contraente de que o outro nunca irá exercer o seu direito que torna ilícito esse exercício.
Ora é a própria especificidade do regime aqui analisado que desautoriza essa confiança apenas porque o consumidor pagou algumas ou até grande parte das prestações. Para que se reconheça essa fundada convicção é necessário um comportamento muito mais clamoroso, manifesto do consumidor a criar essa confiança no não exercício do seu direito, um comportamento que ultrapasse, como diz a lei, os limites da boa-fé tendo em conta as circunstâncias específicas dos contraentes.
É evidente que a situação passiva de credulidade (do que é convencido) e a posição activa de credibilidade (do que convence, persuade) são completamente díspares entre as partes neste tipo de contratos».
. Ac. da RP, de 08.06.2022, Paulo Duarte Teixeira, Processo n.º 23888/17.1T8PRT-A.P1 - onde se lê que o «contrato de crédito ao consumo (…), pela sua regulamentação especial, não impede a aplicação dos mecanismos gerais da boa fé e abuso de direito», sendo que a «posição maioritária entre nós exige, porém, que exista um investimento da confiança que não se limita ao simples decurso do tempo e pagamento de prestações».
[31] Neste sentido, Ac. do STJ, de 12.11.2020, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 279/17.9T8MNC-A.G1.S1, onde se lê que a «má fé substancial verifica quando a atuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 542º, do CPC, enquanto a má fé instrumental se encontra prevista nas als. c) e d) do mesmo artigo».
[32] Na doutrina, com utilidade: Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Almedina, 1984, pág. 382; Luso Soares, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina, 1987, em especial, págs. 178-182, 269-286; ou Cunha de Sá, Abuso do Direito, reimpressão da edição de 1973, Almedina, 1997, págs. 268 a 274.
[33] Compreende-se, assim, que se tenha decidido: há má fé «quando facto negado pela parte é verdadeiro e pessoal» (Ac. da RC, de 29.07.1958, Jurisprudência das Relações, 1958, 1029); «má fé é incompatível com ignorância ou imperfeito conhecimento da verdade» (Ac. da RL, de 09.01.1959, Jurisp. Rels., 1959, 9); «para haver má fé exige-se o conhecimento e não só a mera presunção do conhecimento de que a pretensão ou a oposição deduzida são infundadas» (Ac. da RP, de 18.11.1966, Jurisp. Rels., 1966, 909); «é requisito da má fé o dolo» (Ac. do STJ, de 28.10.1975, BMJ, n.º 250, pág. 156); «má fé tem como pressuposto o dolo, que é a consciência de se não ter razão» (Ac. da RC, de 14.01.1983, CJ, Tomo 1, pág. 28). 
[34] Esta intenção foi claramente assumida e explicitada no Relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), onde se lê que se consagrou «expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos».
[35] Neste sentido, Ac. da RE, de 12.03.2015, Bernardo Domingos, Processo n.º 119631/12.3YIPRT-A.E1, onde se lê que a «actual redacção do art.º 542.º, n.º 2, do CPC, corresponde ipsis verbis ao artigo 456º n.º 2 do anterior CPC, na sua última versão, que veio pôr fim às divergências de opinião e consagrar a tese de que só o dolo ou a negligência grave são relevantes para efeitos de má-fé».
[36] Pode definir-se a «negligência grave ou grosseira» como  «a omissão das precauções exigidas pela mais vulgar prudência ou das medidas de cautela aconselhadas pela mais rudimentar previsão cuja observância é exigida nos actos correntes da vida, ou como uma conduta de indesculpável, de manifesta irreflexão ou ligeireza, tomando-se como ponto de referência a precaução ou a previsão de um homem normal, medianamente prudente e cuidadoso, suposto pela ordem jurídica» (Ac. da RE, de 31.05.2005, Manuel Nabais, Processo n.º 985/05-1).
[37] Neste sentido, Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I Volume, Almedina, 1998, pág. 317.
[38] Neste sentido, Ac. da RC, de 28.05.2019, Isaías Pádua, Processo n.º 3303/11.5TBLRA-A.C1.
Compreende-se, por isso, que na lide temerária, em que o litigante deduz pretensão ou oposição «cuja falta de fundamento não devia ignorar», não seja necessário, para a respectiva condenação como litigante de má-fé, que o mesmo tivesse efectiva consciência de não ter razão, sendo suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização.
Neste sentido, Ac. do STJ, de 20.03.2014, Salazar Casanova, Processo n.º 1063/11.9TVLSB.L1.S1; ou Ac. da RP, de 14.03.2022, Jerónimo Freitas, Processo n.º 2881/20.2T8AVR.P1.
[39] Neste sentido, e mais desenvolvidamente, Ac. da RL, de 16.12.2003, Arnaldo Silva, Processo n.º 8263/2003-7.
Ainda Ac. da RG, de 30.11.2017, Jorge Teixeira, Processo n.º 1570/15.4T8GMR-A.G1, onde se lê que, encontrando-se «a proibição da litigância de má fé o seu fundamento num princípio de natureza puramente processual, que é o princípio da cooperação consignado no artigo 7º e seguintes do C.P.C., não estão nela em causa violações de posições de direito substantivo, mas sim e apenas ofensa a posições ou deveres processuais, com vista a prosseguir e acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, em ordem a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça».
[40] Neste sentido, Ac. da RP, de 13.03.2008, Fernando Baptista, Processo n.º JTRP00041193.
Compreende-se, por isso, que já se tenha decidido que:
. «Não havendo a parte logrado provar os factos por si articulados, nem por isso se pode concluir pela falsidade ou a desconformidade com a verdade da alegação respectiva, de forma a tornar legítima uma pronúncia de litigância de má-fé com base na alínea b) do nº2 do Artigo 456º do Código de Processo Civil» (Ac. do STJ, de 11.12.2003, Lucas Coelho, Processo n.º 03B294).
«Ou seja, o juízo sobre a má fé não deve ser mera decorrência da prevalência de uma das teses factuais em confronto, devendo, antes, basear-se num convencimento assente em dados irrefutáveis» (Ac. do STJ, de 19.9.2002, Quirino Soares, Processo n.º 02B1949). 
. «A falta de razão da parte, segundo o entendimento do tribunal, não chega para caracterizar a má-fé. Se estivermos no âmbito duma interpretação dos factos e do direito em que seja ainda aceitável divergência de opiniões e discordância das partes, estando estas genuinamente convictas da sua razão substantiva, então será de reconhecer que nos situamos no domínio do exercício (lícito) do direito de acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente protegido» (Ac. da RP, de 27.01.2009, Mário Serrano, Processo n.º 0827486).
. Em matéria de direito, designadamente o processual, a mera sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei, não implica, em regra, por si só, a litigância de má-fé por quem as sustenta (Ac. do STJ, de 26.2.2009, Salvador da Costa, Processo n.º 09B0347).