EXECUÇÃO DE COIMAS E CUSTAS
COMPETÊNCIA MATERIAL
IRRECORRIBILIDADE
Sumário

Não é recorrível o despacho judicial que declara a incompetência do Tribunal, em razão da matéria, para apreciar a execução por coima instaurada pelo Ministério Público - tendo-se considerado caber essa competência à Autoridade Tributária -, decretando a absolvição da executada da instância.

Texto Integral


Realizado o exame preliminar a que se refere o artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), verifica-se existir uma questão prévia, relativa à irrecorribilidade da decisão impugnada pelo presente recurso.
Em conformidade, para a apreciar, dando cumprimento ao preceituado no artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do CPP, profere-se de imediato:

DECISÃO SUMÁRIA
I. RELATÓRIO
O Ministério Público instaurou execução contra M, para cobrança da quantia de 45,00 € (quarenta e cinco euros), relativa à coima que à mesma foi aplicada pela Polícia Municipal de Olhão (por delegação do Presidente da Câmara Municipal de Olhão), no âmbito do processo de contraordenação n.º 014337282 do Município de Olhão, por infração ao artigo 71.º, n.º 1, alínea d), do Código da Estrada (estacionamento de veículo em parque ou zona de estacionamento, para além do tempo estabelecido), punida nos termos do n.º 2, alínea a), da mesma norma.
Dando, assim, origem aos presentes autos de execução por coima administrativa no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Olhão - Juiz 2, nos quais, por decisão proferida em 5 de fevereiro de 2024, a Mma. Juíza declarou a incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal para conhecer da execução e, em consequência, absolveu a executada da instância, nos termos do disposto nos artigos 65.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil (doravante, CPC), por entender que compete à Autoridade Tributária promover a execução, atento o estatuído no artigo 35.º do Regulamento das Custas Processuais (doravante, RCP), na redação dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março.
Decisão que tem o seguinte teor (transcrição):
“Iniciaram-se os presentes autos executivos com requerimento executivo apresentado pelo Ministério Publico, para cobrança de coima no valor de 45,00€, devida ao Município de Olhão.
Estabelece o actual art.º 35º do Regulamento das custas processuais (após - Lei n.º 27/2019, de 28/03) o seguinte:
1 - Compete à administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial.
2 - Cabe à secretaria do tribunal promover a entrega à administração tributária da certidão de liquidação, por via eletrónica, nos termos a definir por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto às quantias aí discriminadas.
3 - Compete ao Ministério Público promover a execução por custas face a devedores sediados no estrangeiro, nos termos das disposições de direito europeu aplicáveis, mediante a obtenção de título executivo europeu.
4 - A execução por custas de parte processa-se nos termos previstos nos números anteriores quando a parte vencedora seja a Administração Pública, ou quando lhe tiver sido concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a execução por custas de parte rege-se pelas disposições previstas no artigo 626.º do Código de Processo Civil.
A propósito da alteração legislativa que deu origem à sobre dita norma, pronunciou-se o Ministério Publico no Parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018.
O parecer supra referido sustenta aliás a sua inteira concordância com ser retirada a competência aos tribunais judicias para proceder a cobrança de custas e coimas, manifestando unicamente a sua discordância relativamente a essa competência no que concerne à pena de multa.
Aliás e no que concerne ao disposto no art.º 89º do RGCO também o referido parecer contem menção da alteração que deveria ser feita à referida norma.
É certo que o diploma não contempla essa mesma alteração, no entanto uma interpretação sistemática do diploma (conjugada com a lei geral tributária e o código do procedimento e processo tributário) não pode deixar de considerar que a execução por coimas não cabe aos tribunais, mas antes à autoridade tributária
No âmbito aliás deste parecer, e com o intuito de de facto delimitar as competências do Ministério Publico no âmbito das execuções de origem penal ou contraordenacional, foi referido que o art.º 148º do C.P.P.T deveria conter uma alínea c) no seu número 2º, contendo as coimas emitidas por entidades administrativas.
A referida alínea c) limitou-se a custas, multas não penais e sanções pecuniárias em processo judicial.
Porém a norma constante do nº1º, alínea b) da referida norma contempla as coimas aplicadas em decisões e sentenças, onde incluímos obviamente as coimas de entidades administrativas ou as coimas aplicadas em por sentença após recurso de impugnação judicial de decisão administrativa.
É aliás tal facto também referido no 1. Parecer do Ministério Publico n.º 27/2020, de 04-10 que refere o seguinte:
“Cobrança das custas fixada na fase administrativa do processo contraordenacional.
1.ª Na sua versão original, o Regime Geral das Contraordenações remetia a execução das custas para o disposto nos artigos 171.º e seguintes do Código das Custas Judiciais, assim atribuindo ao Ministério Público competência para promover a sua execução junto dos tribunais judiciais (artigo 202.º, n.º 2, daquele Código);
2.ª Esta solução, apesar das inúmeras alterações legislativas que enfrentou, manteve-se quase inalterada até a entrada em vigor da Lei n.º 27/2019, de 28 de março, relativa a aplicação do processo de execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial;
3.ª Com efeito, considerando a natureza tributária das custas e seguindo o exemplo da jurisdição administrativa e fiscal, o legislador inverteu aquele paradigma, remetendo para a execução fiscal a cobrança coerciva das custas fixadas em processo judicial;
4.ª Para esse efeito, a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, alterou o Código de Procedimento e de Processo Tributário que passou a dispor que «Poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: [...] Custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial [artigo 148.º, n.º 2, alª c)];
5.ª Bem como o artigo 35.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, que sob a epígrafe «execução», passou a dispor que: «Compete a administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, promover em execução fiscal a cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial»;
6.ª Embora nem a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, nem as normas que ela alterou, o digam expressamente, deve entender-se que este regime é aplicável as custas fixadas na fase administrativa do processo de mera ordenação social, competindo a Administração Tributária proceder a sua cobrança coerciva;
7.ª Desde logo, porque, continuando o artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, a remeter para os preceitos reguladores das custas em processo criminal, será aqui aplicável o disposto no artigo 35.º do Regulamento das Custas;
8.ª Depois, porque, atenta a sua natureza, tais custas estão incluídas no âmbito do artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, segundo o qual o processo de execução fiscal abrange, para além do mais, a cobrança coerciva de taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e outros encargos legais;
9.ª Em terceiro lugar, porque, em vez de atribuir ao juízo ou tribunal que as tenha proferido competência para executar as decisões relativas a multas, custas e indemnizações previstas na lei processual aplicável, o legislador passou a atribuir-lhe, apenas, competência para a execução das decisões relativas a multas penais e indemnizações previstas na lei processual aplicável (artigo 131.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário);
10.ª Em quarto lugar, porque o legislador restringiu os poderes do Ministério Público, maxime o poder de promover a execução por custas, conferindo-lhe, agora, apenas, competência para promover a execução das penas e das medidas de segurança e, bem assim, a execução por indemnização e mais quantias devidas ao Estado ou a pessoas que lhe incumba representar judicialmente (artigo 469.º do Código de Processo Penal);
11.ª Finalmente, porque o legislador eliminou a referência a execução por custas, que constava do artigo 491.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, passando a mesma a ser da competência exclusiva da Administração Tributária;
12.ª Com estas alterações, para além de ter atribuído a Administração Tributária competência para proceder a cobrança coerciva das custas, o legislador eliminou as normas que antes atribuíam ao Ministério Público competência para promover a sua execução e aos tribunais judiciais competência para a tramitar;
13.ª Desta forma, o artigo 148.º, n.º 1, al.ª a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, passou a incluir a cobrança da taxa de justiça e dos encargos legais, que, por força de disposições legais especiais, antes lhe estava subtraída; e
14.ª Se as entidades administrativas remeterem ao Ministério Público expediente destinado a cobrança de custas fixadas em processo de contraordenação, tal expediente deverá, por mera economia de meios, ser reencaminhado diretamente a Autoridade Tributária, com conhecimento ao remetente.
O parecer supramente citado, descreve a restrição da competência do ministério publico, circunscrevendo-a unicamente a multas penais e indemnizações arbitradas em processo penal.
Não podemos deixar ainda de trazer à colação o seguinte:
O Código de procedimento e processo tributário, no seu art.º 148º, nº1º, alínea b), estatui: “O processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns.
A questão da competência dos tribunais ou da administração tributária para proceder à cobrança de coimas aplicadas por entidades administrativas, tem pois que ser solucionada através de um processo de interpretação, uma vez que, as alterações sugeridas pelo Ministério Publico no parecer de 24.10.2018, relativamente à norma constante do art.º 89º do RGC não sofreram acolhimento na lei.
Nesta interpretação jurídica temos em conta elementos, meios, factores ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, socorrendo-nos de elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica.
Estes elementos lógicos agrupam-se em três categorias:
a) elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
b) o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
c) elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, qual foi a sua razão de ser (ratio legis).
Aplicando estes elementos à analise da Lei Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, a qual se encontra sumariada da seguinte forma: “Aplicação do processo de execução fiscal à cobrança coerciva das custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial, procedendo à sétima alteração à Lei da Organização do Sistema Judiciário, trigésima terceira alteração ao Código de Procedimento e de Processo Tributário, sétima alteração ao Código de Processo Civil, décima terceira alteração ao Regulamento das Custas Processuais, trigésima terceira alteração ao Código de Processo Penal, quarta alteração ao Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro”, conjugando com o parecer do Ministério Publico sobre a proposta de Lei nº 149/XIII/4ª GOV enviado em 24.10.2018, com as referências já mencionadas, bem como o art.º 148º, nº1º alínea b) e nº2º alínea c) do Código do Procedimento e Processo Tributário, entendemos que o legislador quis concentrar na administração tributária toda a cobrança de valores pecuniários, com excepção da quantia relativa à pena de multa ou indemnização arbitrada em processo penal (competência que se mantêm no Ministério Publico), uma vez que estas assumem relevância penal, seja para determinação do cumprimento de condição da suspensão, seja para extinção da pena de multa ou sua conversão em prisão subsidiária.
Face ao exposto declaro os tribunais judiciais absolutamente incompetente, em razão da matéria, para executarem coimas aplicadas por entidades administrativas. (este nosso entendimento mereceu confirmação do Tribunal da relação de Évora – Ac do TRE proferido no processo 319/23.2T9OLH.E1 de 07/11/2023)
A incompetência absoluta em razão da matéria verificada constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso e a todo o tempo, e importa a absolvição do Executado da instância, nos termos do disposto nos artigos 65º, 97º, 98º, 99º e 577º, al. a) do Código de Processo Civil.
Notifique.
- Existindo alguma penhora nos autos proceda ao seu imediato cancelamento.
- Existindo valores pagos proceda a notificação do executado com informação dos respectivos valores.
- Remeta os autos à conta.
Mais se consigna que o Tribunal da Relação de Évora tem decidido sucessivamente pela irrecorribilidade do presente despacho”.

Inconformado com a decisão, o Ministério Público, invocando o disposto nos artigos 629.º, n.º 2, alínea a), 644.º, n.os 1, alínea a), e 2, alínea b), 852.º e 853.º, n.º 2, alínea a), do CPC, conjugados com os artigos 41.º e 73.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (doravante, RGCO[1]), veio interpor recurso em que extrai da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O presente recurso versa sobre matéria de direito, em concreto o despacho proferido pelo Tribunal a quo, o qual declarou a incompetência absoluta para executar a coima aplicada pela entidade administrativa.
2. O Ministério Público não se pode conformar com tal decisão.
3. O Ministério Público promoveu a execução do remanescente em dívida da coima da entidade administrativa, por não terem sido voluntariamente pagos os valores em dívida por parte do executado.
4. Para o efeito, o Ministério Público submeteu requerimento executivo que deu origem aos presentes autos.
5. Pelo despacho recorrido, o Tribunal a quo decidiu que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção executiva, considerando que tal competência recai sobre a AT.
6. O mencionado despacho é susceptível de recurso.
7. O legislador não alterou o disposto nos artigos 61.º, 88.º e 89.º, do RCP, mantendo-se a competência para a execução da coima administrativa não paga junto dos Tribunais.
8. Perante a actual redação do artigo 35.º, do RCP, apenas se considera admissível que a AT tenha competência para a execução das custas da entidade administrativa. No que respeita à coima, o legislador não atribuiu essa competência à Autoridade Tributária.
9. Ao julgar que é absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar a acção executiva que deu origem aos presentes autos, com o devido respeito por opinião contrária, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 61.º, 88.º, e 89.º, do RGCO, 35.º, do RCP, e 64.º, do CPC, por força do disposto no artigo 4.º, do CPP.
10. Numa interpretação conforme com o disposto nos artigos antecedentes e demais disposições legais aplicáveis, consideramos que o tribunal recorrido não se poderia declarar materialmente incompetente para proceder à execução da coima, por se verificar que o Juízo de Competência Genérica de Olhão, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, é territorialmente e materialmente para apreciar a presente acção executiva, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.
11. Deve, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se, consequentemente, que prossiga a presente execução relativamente à coima aplicada pela entidade administrativa.
Nestes termos, deverá o presente recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido, mas farão V.Exas., a tão costumada, Justiça”.

Por despacho proferido em 21 de fevereiro de 2024, a Mma. Juíza rejeitou o recurso, ao abrigo do disposto no artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por entender que a decisão impugnada não é recorrível.
Desta não admissão o Ministério Público deduziu reclamação que obteve provimento com a decisão que o Exmo. Vice-Presidente deste Tribunal da Relação proferiu, em 16 de setembro de 2024, tendo, em consequência, o recurso sido admitido.
Subidos os autos a esta Relação, em 7 de novembro de 2024, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer do qual se retira que acompanha a posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme dispõe o artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do CPP, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que o recurso deva ser rejeitado.
Por seu turno, segundo o artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º
A irrecorribilidade da decisão constitui uma das causas de não admissão/rejeição do recurso, sendo certo que, conforme resulta do preceituado no artigo 405.º, n.º 4 do CPP, a decisão que a tal respeito foi proferida em sede de reclamação apreciada pelo Exmo. Vice-Presidente deste Tribunal da Relação, nos termos atrás descritos, não nos vincula.
Assim sendo, uma vez que se suscita uma questão prévia que, a proceder, é fundamento da rejeição do recurso, obstando, desse modo, ao conhecimento do mesmo, cumpre, na presente sede, sujeitá-la à apreciação e decisão da relatora.
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Como já se disse, o Ministério Público interpôs o presente recurso do despacho que declarou o tribunal a quo absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer de ação executiva para cobrança de coima no valor de 45,00 €, aplicada pela Polícia Municipal de Olhão, e absolveu a executada da instância.
A questão suscitada pelo recorrente consiste em saber a quem compete a cobrança coerciva de coima aplicada pela autoridade administrativa em processo contraordenacional: se ao tribunal judicial competente para conhecer da impugnação da decisão administrativa que aplicou essa coima, caso ela tivesse sido interposta, em conformidade com o preceituado nos artigos 89.º e 61.º do RGCO, se em processo de execução fiscal promovido pela administração tributária, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, CPPT), mormente dos seus artigos 148.º, 149.º e 150.º
Este Tribunal da Relação já foi chamado a decidir sobre esta questão em diversos recursos, todos eles com origem no apontado Juízo de Competência Genérica de Olhão.
Nela entronca, porém, a questão que importa tratar a título prévio na presente decisão sumária, que é a de saber se a decisão que declarou a incompetência, em razão da matéria, do tribunal a quo, para a execução de coima aplicada por autoridade administrativa, não é recorrível.
Trata-se de um tema que tem dividido a jurisprudência da Relação de Évora, levando à prolação de decisões em ambos os sentidos, como sucedeu, designadamente, com as elencadas no Acórdão de 9 de abril de 2024 (relatora Beatriz Marques Borges)[2], além de outras, mais recentes, que em rodapé também se deixam indicadas[3].
Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, considerando as razões aduzidas no referido aresto de 9 de abril de 2024, nas decisões sumárias de 29 de novembro de 2023 (relator Moreira das Neves) e 6 de fevereiro de 2024 (relatora Ana Bacelar), e ainda no acórdão de 20 de fevereiro de 2024 (relatora Fátima Bernardes), que, no essencial, acompanhamos e seguimos de perto, entendemos que a decisão impugnada no recurso é irrecorrível.
Com efeito, está em causa uma execução por coima, aplicada por decisão da autoridade administrativa, proferida no âmbito de um processo de contraordenação, a qual, não tendo sido impugnada judicialmente, se tornou definitiva e exequível, conforme estabelece o artigo 58.º, n.º 2, alínea a), do RGCO, e sujeita ao regime executivo plasmado nos artigos 89.º a 91.º do mesmo diploma.
Neste contexto, importa, desde logo, destacar o n.º 3 do artigo 89.º, ao dispor que, quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público para a promover, significando isto que o regime aplicável à execução por coima é o mesmo, quer o título executivo seja uma sentença ou um despacho proferido em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, quer se trate de decisão da autoridade administrativa que não haja sido impugnada, tornando-se definitiva.
Depois, importa atender ao que estabelece n.º 2 do mesmo artigo 89.º, quando determina que a execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa. Remissão que não pode deixar de ser entendida como reportada, em primeira linha, ao artigo 491.º do CPP, cujo n.º 2, com as alterações que a Lei n.º 27/2019, de 28 de março, lhe introduziu, passou a estatuir que a execução da multa segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações, definindo, assim, de forma expressa, qual o regime processual a que obedece a tramitação da execução destinada ao pagamento coercivo do quantitativo da pena de multa e tornando, deste modo, desnecessário que se convoque a aplicação da norma subsidiária do artigo 510.º do CPP, reservada para o que, em matéria de execução de bens, não estiver expressamente previsto neste Código.
Seja como for, com o regime introduzido pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, não existe qualquer dúvida de que, quer pela via especialmente prevista no artigo 491.º, n.º 2, quer segundo os termos subsidiários ditados pelo artigo 510.º, a lei aplicável à tramitação da execução de bens para pagamento coercivo da pena de multa é o Código de Processo Civil, estando aqui excluída qualquer possibilidade de a sujeitar à nova disciplina da execução por custas, prescrita no artigo 35.º do Regulamento das Custas Processuais.
O mesmo sucede com a execução de bens para pagamento coercivo de coima, pois, como se sublinhou no Acórdão de 20 de fevereiro de 2024, sem querer entrar na apreciação do mérito do recurso, não pode aqui deixar de ser dito que a previsão do referido artigo 35.º, assim como a do artigo 148.º do CPPT, na redação que lhes foi dada pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, não abrange a execução por coima, seja ela oriunda de decisão administrativa que se tornou definitiva, seja ela resultado de uma decisão judicial transitada em julgado.
Donde, no que às coimas diz respeito, é perante os tribunais comuns que a sua cobrança deve ser executada, seguindo-se, com as devidas adaptações, os termos da execução por multa, ou seja, as normas do Código de Processo Civil que regem a execução por indemnizações, em conformidade com o disposto nos artigos 61.º, 88.º, 89.º do RGCO, 40.º, n.º 1 da LOSJ e 491.º, n.º 2 do CPP.
As normas do Código de Processo Civil que assim são aplicáveis à execução por coima referem-se, naturalmente, ao regime que regula o respetivo processo, com a tramitação que o mesmo deve seguir.
O que, na senda do que se sublinha no Acórdão de 9 de abril de 2024, não é relevante para solucionar a questão prévia de que aqui tratamos, pois, em vez do “regime executivo” aplicável, interessa, sim, saber qual o “regime recursório” que rege o processo executivo para cobrança de coima.
Assim, à tarefa de apurar se ocorre uma lacuna no RGCO que comporte a aplicação subsidiária do direito processual penal (artigo 41.º, n.º 2 do RGCO) ou qualquer outro direito adjetivo para a qual aquele remeta, designadamente o processual civil, conforme alguma jurisprudência tem defendido[4], o resultado a que se chega é o de que, da análise e interpretação do regime geral em matéria contraordenacional, não se verifica existir qualquer situação não prevista que suscite regulação pelas normas legalmente previstas para os casos omissos.
Pois bem.
Na sua redação inicial, resultante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o RGCO previa no n.º 2 do artigo 91.º a admissão de recurso na fase executiva, embora em termos muito limitados, sendo que, sob a epígrafe “Tramitação”, a norma do referido artigo tinha o seguinte teor (com negrito nosso):
“1 - O tribunal perante o qual se promove a execução será competente para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitados na execução, nomeadamente:
a) A admissibilidade da execução;
b) As decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento;
c) A suspensão da execução segundo o artigo 90.º
2 - Admite-se, todavia, recurso para a Relação nos seguintes casos:
a) Admissibilidade de execução de coima aplicada por via judicial;
b) Nos casos referidos na alínea b) do número anterior, quando as decisões forem da competência do tribunal da comarca.
3 - As decisões referidas nos n.os 1 e 2 serão tomadas sem necessidade de audiência oral, assegurando-se ao arguido ou ao Ministério Público a possibilidade de justificarem, por requerimento escrito, as suas pretensões”.

Da versão inicial do diploma resultava, assim, ser admissível, em casos rigorosamente delimitados, a possibilidade de recurso para a Relação das decisões proferidas pelo Tribunal no âmbito do processo de “execução da coima”.
Posteriormente, com o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, essa possibilidade foi eliminada, suprimindo-se o citado n.º 2 e passando o preceito a ter a seguinte redação, que ainda hoje vigora:
“1 - O tribunal perante o qual se promove a execução será competente para decidir sobre todos os incidentes e questões suscitados na execução, nomeadamente:
a) A admissibilidade da execução;
b) As decisões tomadas pelas autoridades administrativas em matéria de facilidades de pagamento;
c) A suspensão da execução segundo o artigo 90.º
2 - As decisões referidas no n.º 1 são tomadas sem necessidade de audiência oral, assegurando-se ao arguido ou ao Ministério Público a possibilidade de justificarem, por requerimento escrito, as suas pretensões”.

Ora, também aqui não podemos deixar de sufragar o entendimento vertido no Acórdão de 9 de abril de 2024, no qual se pode, a este respeito, ler o seguinte:
“Recorrendo a uma interpretação sistemática e histórica do artigo 91.º do RGCO, perante a supressão do anterior n.º 2, lendo o teor do preâmbulo do DL 244/95 e ainda considerando a redação do artigo 73.º do RGCO, julgamos, encontrar-se vedada a possibilidade de interpor recurso dos despachos judiciais proferidos na fase executiva da coima.
No preâmbulo do DL n.º 244/95, de 14.9 faz-se notar que perante «um crescente movimento de neopunição, (…) com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas» seria de reforçar não só as garantias dos arguidos como aperfeiçoar a coerência interna do regime geral de mera ordenação social, e a coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal, mas também acentuar a eficácia do sistema punitivo das contraordenações».
Tendo em consideração as alterações introduzidas à versão original do RGCO e o reforço das garantias de defesa do arguido na fase administrativa e judicial, compreende-se a eliminação do n.º 2 do artigo 91.º (versão original) e a consequente impossibilidade recursória na fase da “execução da coima”.
Como é sabido o processo contraordenacional tem uma 1.ª fase, a qual designaremos de administrativa, que culmina com uma decisão condenatória ou de arquivamento (artigo 54.º do RGCO).
Depois, se for interposto recurso pelo arguido (impugnação judicial) da decisão administrativa condenatória, por aquele não concordar com a sanção aplicada, o Tribunal intervém nascendo a 2.ª fase, à qual designaremos de judicial. Nesta fase o MP apresentará o recurso ao Juiz valendo este ato como acusação (artigo 62.º, n.º 1 do RGCO).
O Tribunal de 1.ª instância poderá absolver, arquivar ou condenar o arguido. A decisão de condenação (manutenção total ou parcial da decisão administrativa) quando transitada constituirá título executivo.
Se o arguido, todavia, discordar da decisão judicial, poderá, ainda, nas situações previstas no artigo 73.º, recorrer para o Tribunal da Relação.
Assim, o arguido tem sempre um grau de recurso (impugnação judicial da decisão administrativa) e em algumas situações, pontuais, poderá até ter a possibilidade de ver judicialmente reapreciada a questão pela 2.ª instância, interpondo recurso para a Relação, caso discorde do decidido pelo Tribunal da 1.ª instância.
A alteração provocada pela legislação de 1995 no RGCO, através do DL n.º 244/95, de 14.9, visou compatibilizá-lo com a necessidade de reforço das garantias de defesa e do exercício contraditório, por parte do arguido habilitando-o a melhor proteger a sua posição e a conseguir contrariar a decisão administrativa/acusação de uma forma mais garantística.
Com este reforço visou-se, naturalmente, limitar o poder sancionatório das entidades públicas, tendo por escopo o princípio da proporcionalidade e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias individuais, que devem estar na base da prossecução do interesse público.
A construção deste sistema, respeitador de um verdadeiro Estado de Direito, não olvidou, todavia, ser necessário acentuar a eficácia do sistema punitivo das contraordenações.
Assim, embora nas 1.ª e 2.ª fases (administrativa e judicial) tenha ocorrido um reforço das garantias do arguido, na fase executiva não foi pretendido pelo legislador a possibilidade de protelar a cobrança da coima, designadamente através de recurso para a Relação de decisões proferidas, pelo Tribunal, no processo de execução de coima, fosse ele interposto pelo arguido ou pelo MP.
Na verdade, ao arguido já é concedida uma ampla oportunidade de se defender e exercer o contraditório durante o processo contraordenacional propriamente dito (fase administrativa e judicial), não só apresentando oposição à decisão da entidade administrativa, como através da impugnação judicial, e na fase judicial, até por via da interposição de recurso para o Tribunal da Relação, embora com limitações».
Se bem se atentar à redação do artigo 73.º do RGCO, que rege o regime recursório na fase judicial (por nós designada 2.ª fase), nele estabelece-se o seguinte:
“Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 249,40€;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 249,40€ ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.”

Da leitura do normativo transcrito emerge desde logo que mesmo na fase judicial (2.ª fase), na qual são concedidas inúmeras garantias processuais ao arguido este apenas pode interpor recurso da decisão judicial para o Tribunal da Relação, nos casos taxativamente assinalados no artigo 73.º do RGCO.
Surgiria, pois, como desprovido de lógica admitir-se a interposição de recurso na fase executiva de toda e qualquer decisão, quando na fase judicial (por alguns também reportado como “processo contraordenacional declarativo”), muito mais garantística, essa possibilidade se encontra fortemente limitada, designadamente pelo valor da coima.
Assim, se na 2.ª fase do processo contraordenacional (fase judicial) não é admissível o recurso para o Tribunal da Relação quando a coima é igual ou inferior a 249,40 €, admitir-se o recurso na fase executiva quando aquela foi fixada em 200 € (…), surge como irrazoável atenta uma interpretação sistemática”.

Ainda a este respeito, em que a doutrina se encontra dividida, afigura-se-nos ser de sufragar o entendimento segundo o qual, com a supressão da versão original do n.º 2 do artigo 91.º, “a eliminação da consagração de um regime particular outro significado não poderá ter que não o da sujeição ao regime geral no processo contraordenacional constante do artigo 73.º do presente diploma”.[5]
O que, quanto a nós, é o mesmo que dizer que, com a eliminação da norma que previa a possibilidade de recurso para a relação das decisões proferidas pelo tribunal competente relativamente à execução da coima, “parece dever concluir-se pela inadmissibilidade de recurso de todas as decisões proferidas no processo de execução”.[6] [7]
Ora, do percurso histórico-legislativo acima descrito e da sistemática que emerge do RGCO, para a qual releva, não só o artigo 73.º, como os artigos 55.º (recurso das medidas das autoridades administrativas aplicadas no decurso do processo), 63.º, n.º 2 (recurso do despacho de rejeição da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima), 85.º, com referência aos artigos 83.º e 48.º-A (impugnação judicial da decisão administrativa de apreensão de objetos), 91.º (tramitação da execução por coima) e 95.º (impugnação da decisão relativa às custas), resulta que, no âmbito dos processos de contraordenação sujeitos à sua disciplina, incluindo, pois, o processo executivo destinado à cobrança coerciva de coima, nos termos atrás explicitados, só as decisões judiciais previstas nos artigos 63.º e 73.º admitem recurso para os Tribunais da Relação.
E delas não faz parte o despacho jurisdicional que declara a incompetência absoluta do Tribunal para conhecer da execução por coima aplicada por autoridade administrativa, como o aqui impugnado, sendo, pois, o mesmo irrecorrível.
É, assim, de afirmar, como na Decisão Sumária de 29 de novembro de 2023 que, «[c]ontrariamente à regra legal vigente no processo penal (artigo 399.º CPP) – onde é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei –, no âmbito do RGC o regime regra é o inverso: a regra é a irrecorribilidade das decisões, sendo excecionais as normas habilitadoras de recurso das decisões – id est, não comportando estas analogia (artigo 11.º Código Civil)».
Afirmação que se mostra, aliás, suportada pela circunstância de, em processo contraordenacional, não ser constitucionalmente imposta a consagração da possibilidade de recurso de todas as decisões judiciais – especialmente no que respeita a decisões não condenatórias, como é o caso da aqui em causa.
Não decorrendo da Constituição a garantia de um grau de recurso em matéria de processos contraordenacionais declarativos, por maioria de razão se deverá entender que tal garantia também não decorre para a fase executiva das sanções administrativas, como, de resto, afirmou expressamente o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 508/2016, de 21 de setembro de 2016[9]. A não se entender assim, estaria a permitir-se que, numa fase menos importante do processo contraordenacional – a executiva, em não está já em causa a condenação ou a absolvição referente ao ilícito –, se confira aos intervenientes processuais direitos (nomeadamente, o de recurso) que a fase processual anterior e predominante não consente (cf. Decisão Sumária de 6 de fevereiro de 2024).
No referido aresto de 2016, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de que não é inconstitucional a interpretação da norma ínsita no artigo 73.º, n.º 1 do RGCO, ao restringir o direito de recurso em matéria de decisões judiciais tomadas quanto ao exercício de direitos dos arguidos em execução de coimas, uma vez que da Constituição não decorre que tal matéria executiva tenha de ser sujeita a um duplo grau de jurisdição.
Nesse sentido, aponta, de resto, a letra do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição, o qual dispõe que se assegura ao arguido em processos de contraordenação os direitos de audiência e defesa, omitindo qualquer referência a demais sujeitos processuais.
Da Constituição não decorre, portanto, a garantia de que deve existir um grau de recurso na fase executiva das sanções administrativas aplicadas em processos contraordenacionais, entendimento que, no aresto referido, foi adotado numa situação em que estava em causa o direito ao recurso por parte do condenado/executado. O que, transposto para a situação dos autos, nos leva a afirmar que não existem razões para considerar que a apontada conformidade constitucional é posta em crise num recurso da autoria de outro sujeito processual, in casu, o Ministério Público, que promoveu a execução da coima (cf. Acórdão de 20 de fevereiro de 2024).
Em suma, como se concluiu na Decisão Sumária de 29 de novembro de 2023, o «artigo 73.º do RGC serve justamente para separar o que deve ser separado, elencando as decisões dos Juízos de 1.ª instância que são recorríveis para os Tribunais de Relação – não as sendo as demais».
Por fim, na linha do que ficou exposto no Acórdão de 20 de fevereiro de 2024, embora com algumas nuances que dele se afastam, há que referir que, em face do que foi decidido pela 1.ª instância, ao declarar a incompetência absoluta, em razão da matéria, para conhecer da execução e absolvendo, em consequência, a executada da instância, nos termos do disposto nos artigos 65.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, alínea a), todos do CPC, o Ministério Público poderá, se assim entender, requerer, nos termos do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, a remessa dos autos à administração tributária para processo de execução fiscal, sendo que, se tal acontecer, esta entidade poderá adotar uma de duas posições: aceitar a competência ou suscitar também a incompetência, em razão da matéria, da jurisdição tributária para tramitar a execução, a ser apreciada e decidida pelo tribunal tributário de 1.ª instância, nos termos estatuídos nos artigos 151.º e 16.º do CPPT. Na hipótese de se confirmar a competência, a situação ficaria ultrapassada. Pelo contrário, a ser proferida decisão judicial a declarar a incompetência do tribunal tributário, nos termos expostos, configurar-se-ia um conflito de jurisdição (cf. artigo 109.º, n.º 1 do CPC), em relação ao qual recairia sobre o Tribunal dos Conflitos a competência para dele conhecer, nos termos previstos no artigo 110.º, n.º 1 do CPC e artigo 3.º, alínea a), com referência aos artigos 9.º e 10.º, todos da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro (que estabelece o regime da resolução dos conflitos de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, regulando a composição, a competência, o funcionamento e o processo perante o tribunal dos conflitos), com o regime processual previsto nos artigos 9.º a 14.º da citada Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro.
A circunstância de o processo de execução fiscal ser promovido por uma entidade administrativa – para estes efeitos, a autoridade tributária é, nos termos do disposto nos artigos 149.º e 150.º do CPPT, o órgão de execução fiscal –, em nada põe em causa a natureza judicial do processo de execução fiscal[10], sendo que, conforme se assinala no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de junho de 2010[11], “o processo de execução fiscal está na dependência do juiz do tribunal tributário, mesmo na fase em que corre perante as autoridades administrativas e é nesse contexto que se pode afirmar que as execuções fiscais instauradas no serviço de finanças são da competência do tribunal tributário”.
Ou, ainda, como se detalha no Acórdão de 23 de fevereiro de 2012, também do Supremo Tribunal Administrativo[12]:
“I - O processo de execução fiscal constitui um processo judicial ou meio processual utilizado pelo Estado para a arrecadação coerciva das receitas previstas no artigo 148.º do CPPT através da actuação, ainda que “tutelar”, de um tribunal tributário, que é um órgão do poder judicial.
II - O Órgão da Execução que instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém no processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz.
III - Todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no Código de Processo Civil por força do disposto no artigo 2º, alínea e), do CPPT.
IV - Só assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, em que a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária”.

Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária[13], entendemos que no presente caso o eventual litígio relativo ao apuramento da competência não ocorre entre um tribunal e uma entidade administrativa, como tal, insuscetível de ser dirimido pelo Tribunal dos Conflitos e apenas solucionável através de recurso. Trata-se, antes, de um verdadeiro conflito de jurisdição, um litígio de competência entre um tribunal comum e um tribunal administrativo e fiscal, mais concretamente um tribunal tributário, nos termos acima descritos, que, em tese, pode até fundamentar uma consulta prejudicial àquele Tribunal, para pronúncia sobre a questão da jurisdição competente, nos termos previstos nos artigos 15.º a 17.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro.
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Termos em que, não sendo recorrível a decisão judicial em apreço, o recurso é, nesta fase, de rejeitar, atendendo a que o artigo 405.º, n.º 4 a tal consente e que a obediência ao disposto nos artigos 417.º, n.º 6, alínea b), 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, todos do CPP, assim o determina.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se rejeitar o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento (artigo 420.º, n.º 3 e 522.º, n.º 1, ambos do CPP).

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(A presente decisão foi elaborada e integralmente revista pela signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Évora, 18 de novembro de 2024
Helena Bolieiro

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[1] Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo (RGCO, como indicado no texto), alterado pelos seguintes diplomas: Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de outubro, Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de dezembro, e Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro.
[2] Acórdão proferido no processo n.º 313/23.3T9OLH.E1 (não publicado). A decisão sumária proferida nos mesmos autos, mantida no aresto referido, encontra-se disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[3] No sentido da irrecorribilidade:
- Decisão sumária de 29 de novembro de 2023, proferida no processo n.º 82/23.1T9OLH.E1 (relator Moreira das Neves), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
- Decisão sumária de 6 de fevereiro de 2024, proferida no processo n.º 434/22.0T9OLH.E1 (relatora Ana Bacelar) (não publicada).
- Acórdão de 20 de fevereiro de 2024, proferido no processo n.º 143/23.2T9OLH.E1 (relatora Fátima Bernardes) (não publicado), no qual votou vencido Gomes de Sousa.
- Decisão sumária de 21 de fevereiro de 2024, proferida no processo n.º 446/22.3T9OLH.E1 (relatora Filipa Costa Lourenço) (não publicada).
- Acórdão de 9 de abril de 2024, proferido no processo n.º 313/23.3T9OLH.E1 (relatora Beatriz Marques Borges) (não publicado).
- Acórdão de 22 de outubro de 2024, proferido no processo n.º 466/22.8T9OLH.E1 (relator Renato Barroso) (não publicado), no qual votou vencida Maria Perquilhas.
- Acórdão de 22 de outubro de 2024, proferido no processo n.º 104/23.1T9OLH.E1 (relatora Renata Whytton da Terra) (não publicado), no qual votou vencido Fernando Pina.
No sentido da recorribilidade:
- Acórdão de 7 de novembro de 2023, proferido no processo n.º 319/23.2T9OLH.E1 (relator Carlos Campos Lobo), com voto de vencida de Ana Bacelar, disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
- Decisão sumária de 5 de fevereiro de 2024, proferida no processo n.º 154/23.8T9OLH.E1 (relatora Maria Clara Figueiredo), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
- Acórdão de 20 de fevereiro de 2024, proferido no processo n.º 445/22.5T9OLH.E1 (relator Jorge Antunes), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
- Decisão sumária de 18 de setembro de 2024, proferida no processo n.º 461/22.7T9OLH.E1 (relator Fernando Pina) (não publicada).
[4] Cf. a jurisprudência indicada na nota de rodapé 3.
[5] Cf. José António Henriques dos Santos Cabral e António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, Notas ao regime geral das contra-ordenações e coimas, 3.ª edição, Almedina, 2009, pág. 291).
[6] Cf. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, pág. 644).
[7] Para Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2022, pág. 405, “[n]o processo executivo é admissível a interposição de recurso nos termos gerais (artigo 510.º do CPP e artigo 627.º do CPC), com os limites decorrentes do artigo 73.º, n.º 1 do RGCO, uma vez que a reforma do RGCO de 1995 suprimiu as limitações ao direito de recurso anteriormente constantes dos n.º 2 do artigo 91.º” Posição que, pelas razões expostas no texto, não acompanhamos.
[8] O artigo 95.º, n.º 2 também admite tal recurso, mas esta é uma norma exclusivamente dedicada às custas, extravasando, assim, o âmbito material da questão aqui em análise, relativo à execução por coima.
[9] Disponível na Internet em <www.tribunalconstitucional.pt>.
[10] Cf. artigo 103.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária: O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos atos que não tenham natureza jurisdicional.
[11] - Aresto proferido no processo n.º 01101/09 (relatora Dulce Neto), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>. No mesmo sentido, cf. Acórdãos do STA de 10 de abril de 2013 (processo n.º 01220/12, relator Francisco Rothes) e 17 de abril de 2013 (processo n.º 01297/12, relatora Dulce Neto). Cf. ainda Dulce Neto e Fernanda Esteves, “A jurisdição fiscal – questões de processo, organização e funcionamento dos tribunais tributários”, in Revista Julgar, n.º 36, 2018, pág. 28.
[12] Aresto proferido no processo n.º 059/12 (relatora Dulce Neto), disponível na Internet em <https://www.dgsi.pt>.
[13] Cf. a Decisão proferida nos autos apensos n.º 140/23.8T9OLH-A.E1, que decidiu a reclamação do despacho de não admissão do recurso (artigo 405.º do CPP).