DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário

I - Com a prestação de declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis (como é o caso das vítimas de violência doméstica) visa-se evitar a repetição da respetiva audição na audiência de discussão e julgamento, protegendo-as do perigo de revitimização (perigo decorrente, além do mais, da mera circunstância de estarem a repetir as mesmas declarações numa sala de audiências).
II - A tomada de declarações para memória futura dessas vítimas pretende ainda assegurar a genuinidade dos seus depoimentos, em tempo útil, evitando-se pressões e manipulações por parte dos agressores.
III - Embora a presença da vítima em julgamento seja possível, tal situação deve ser tratada como excecional e não assumida como uma regra.
IV - As declarações para memória futura devem ser colhidas, pelo Juiz de Instrução Criminal, o mais cedo possível e na fase de Inquérito, com o cuidado e a sensibilidade judicial que permitam a sua plena valoração em sede de julgamento.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I. RELATÓRIO

A –
Nos presentes autos de Inquérito que, com o nº 591/24.0T9PTM, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Portimão, Juiz 2, recorre o Ministério Público do despacho judicial proferido em 07-10-2024, que indeferiu o requerimento para tomada de declarações para memória futura à ofendida.

Da respectiva motivação o recorrente Ministério Público retira as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O objecto do presente recurso é o despacho proferido pelo Mm.º Juiz a quo, a 07-10-2024 [ref.ª 133757172], o qual decidiu indeferir a tomada de declarações para memória futura à vítima A.
2. Nos presentes autos encontra-se suficientemente indiciada a prática, pelo denunciado, de factos susceptíveis de integrar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152°, nº 1 alínea b) e nº 2 alínea a), do Código Penal.
3. Alega o Mm.º Juiz a quo: “Olhando para os pontos que o M.P. pretende ver esclarecidos (…) verificamos que se trata de matéria que não se reconduz propriamente à factualidade, isto é, à história de vida subsumível a tipo criminal, mas a incidências de cariz processual que o M.P. (legitimamente, diga-se) pretende ver esclarecidas. (…) Não é o Tribunal, em sede de declarações para memória futura, quem tem o papel de aferir por que motivo a vítima quer residir com o denunciado ou se pensa ou não em sair de casa. Tais circunstâncias extravasam o âmago da diligência requerida”.
4. Contudo, tais questões surgem na sequência da factualidade reportada, achando-se pertinente, enquanto dominus da acção penal e para a produção de prova que, além do mais, se apurasse junto da vítima (de modo a que não fosse, novamente, reinquirida, fazendo jus ao mecanismo processual de que se lançou mão), se esta se encontra livre na sua vontade ou, se de alguma forma, a sua liberdade de acção e decisão se encontra a ser coarctada pelo denunciado (nomeadamente porque não compareceu no exame médico-legal e continua a viver com o denunciado), a fim de aferir qual o efectivo grau de revitimização da vítima que, ressalve-se, está há 14 anos com o denunciado, colocando-se as “questões” adicionais que o Mm.ª Juiz de Instrução refere serem as únicas questões que a Recorrente pretende ver esclarecidas.
5. O Ministério Público promove que a vítima seja inquirida sobre toda a factualidade denunciada, não se destinando a tomada de declarações para memória futura a apurar, exclusivamente, como decorre do despacho recorrido (e parece ter sido razão do indeferimento), as “questões” elencadas.
6. A factualidade vertida nos autos é grave e vem sendo praticada pelo denunciado de forma reiterada e sistemática, sendo que este revela com a sua conduta uma total e absoluta indiferença ao sofrimento à vítima pois não só já a agrediu várias vezes, o que por si só já é muito grave, como também numa das ocasiões utilizou uma faca para ameaçar a vítima e é sobre toda a factualidade descrita na promoção objecto de indeferimento que se pretende que a vítima seja ouvida em declarações para memória futura.
7. O denunciado tem várias condenações averbadas, no que concerne aos crimes contra as pessoas, incluindo uma condenação por homicídio.
8. Os factos foram, correctamente, avaliados pelo OPC como sendo de risco elevado.
9. A vítima encontra-se num estado de grande vulnerabilidade, não só pela violência que vivenciou, mas também por recear a reiteração das condutas por parte do denunciado, dado o descontrolo que este tem apresentado e a sua dependência de estupefacientes.
10. A vítima teme não só pela sua integridade física e até mesmo pela sua vida, dado que aquele tem demonstrado total indiferença pelo sofrimento causado à mesma, mas também pela sua segurança e pela violência psicológicas a que está exposta.
11. Atendendo a que o denunciado tem demonstrado, ao longo da sua existência, uma personalidade agressiva, é expectável que, até por força da sua adição, tente encontrar a vítima nos locais por si habitualmente frequentados, tais como a sua residência e local de trabalho, situação que lhe causa medo e inquietação, perturbando-a psicologicamente.
12. A vítima já foi inquirida nos autos por duas vezes, tendo que reviver toda a situação traumática todas as vezes que é chamada a relatar tais factos, mostrando-se de grande importância que a mesma seja inquirida apenas mais uma vez para que em seguida possa seguir a sua vida e, dessa forma, evitar a sua revitimização, mormente em sede de audiência de discussão e julgamento.
13. Veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 12-10-2021, no âmbito do processo 103/20.5GDETZ , que refere:“1 - Embora o processo penal português tenha estrutura acusatória e seja regida pelos princípios da oralidade e da imediação da prova no julgamento, o regime de declarações para memória futura consubstancia uma exceção a essa regra, designadamente quando o Juiz se depare perante um caso de violência doméstica. 2 - O artigo 33º da Lei 112/2009 de 16 de setembro, acaba por na prática se tornar num “mecanismo de aplicação quase automática” e o requerimento para tomada de declarações para memória futura deve tendencialmente ser deferido, atendendo à especial vulnerabilidade revelada pelas vítimas de violência doméstica”.
14. E o Acórdão da Relação de Coimbra, datado de 10-01-2024, no âmbito do processo no 260/23.9GAPNI-A.C11 , que decidiu no seguinte sentido: “Nos crimes de violência doméstica deve ter lugar a tomada de declarações para memória futura, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, sem necessidade de justificação acrescida, só assim se não procedendo quando existam razões relevantes para o não fazer”.
15. O artigo 33°, nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e os artigos 21°, nº 2, alínea d) e 24°, nº 1 da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro, preveem a tomada de declarações para memória futura das vítimas de crime de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis, onde se enquadra a vítima.
16. Tal regime é especial relativamente ao regime geral do artigo 271°, nº 1 do Código de Processo Penal, pois aqueles diplomas legais visam essencialmente a protecção das vítimas de determinada criminalidade, existindo um dever de colaboração das autoridades competentes nessa protecção.
17. Assim sendo, quando estamos no “âmbito desta criminalidade, a recolha antecipada de prova deve ser a regra, só assim não sendo quando for manifesta a desnecessidade da diligência, o que, salvo melhor opinião, não é o caso: sendo este um direito das vítimas.
18. Destarte, impõe-se a tomada de declarações para memória futura da vítima para que a mesma não volte a prestar novas declarações nos autos e, dessa forma, evitar a sua revitimização.
19. Por outro lado, a recolha antecipada da prova permite minorar os lapsos de memória que vão ocorrendo com o decurso do tempo (e que as vítimas, por reflexo, tendem a apagar da sua memória) e que podem impedir a concretização dos factos de forma pormenorizada, dificultando a realização da justiça.
20. Assim, conclui-se pela inexistência de motivo para o Mm.º Juiz a quo indeferir a tomada de declarações para memória futura da vítima.
21. Razão pela qual o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 271 °, nº 1 do CPP, no artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, nos artigos 21º, nº 2, alínea d) e 24º, nº 1, da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro, os artigos 67 °-A, nº 1, alínea b) e nº 3 e o artigo 1º, alínea j), ambos do CPP e o artigo 152°, nº 1 do Código Penal, devendo ser substituído por outro que determine a realização da referida diligência.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, entendemos que deverá conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro em que o Tribunal a quo, determine a realização da requerida diligência de tomada de declarações para memória futura da vítima A.
Porém, Vossas Excelências, como sempre, doutamente decidirão, fazendo a habitual Justiça.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto, como dos autos melhor consta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
O despacho de 07-10-2024, ora recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):

“Veio o M.P. requerer a tomada de declarações para memória futura à ofendida A.
Requereu o M.P. que tais declarações se destinassem a apurar:
• A razão pela qual não comparecer no GML no passado dia 09-07-2024;
• Porque razão continua a viver com o denunciado, sendo ele uma pessoa com uma personalidade violenta e impulsiva;
• Se tem receio de viver com o denunciado;
• Se tem receio da reacção do denunciado caso a ofendida lhe manifeste que pretende a separação;
• Se já ponderou a possibilidade de se afastar do denunciado, ou de o denunciado sair de casa;
• Se tem familiares e/vizinhos ou amigos que a possam acolher até que possa iniciar a sua vida com autonomia independente do denunciado;
• Se o denunciado tem outra habitação onde possa residir em caso de eventual separação e, na afirmativa, onde;
• Se desde 21-01-2024 não voltou a ser agredida, insultada ou ameaçada.
Cumpre decidir.
A tomada de declarações para memória futura assume jaez excepcional, pois implica a antecipação de todo o formalismo da fase de julgamento para uma fase que, por natureza, é de mera investigação. Consubstancia-se ainda numa excepção à regra da imediação, segundo a qual toda a prova é produzida no Julgamento e perante o Juiz de Julgamento. Daqui, de imediato, se extrai a conclusão de que tal diligência apenas deve ocorrer quando existam específicas circunstâncias que o justifiquem. Tal pode ocorrer quando se verifiquem concretos requisitos na pessoa da vítima, nomeadamente atinentes à sua idade, temor ou residência no estrangeiro ou concretos requisitos processuais, concernentes à matéria em investigação ou a gravidade da factualidade.
Em todos os casos é exigível que exista uma indiciação mínima da factualidade, que permita aferir da existência de uma história de vida, um núcleo mínimo de factos que permita orientar já não só a investigação como o próprio depoimento.
Não se olvide ainda, e tal reforça a jaez excepcional da tomada de declarações para memória futura, que na fase de Julgamento, fase na qual, em regra, se produz a prova, com a imediação do decisor, é possível requer o afastamento do arguido ou a prestação do depoimento por videoconferência, dependendo naturalmente do preenchimento dos respectivos requisitos.
Uma nota ainda apara relembrar que na fase em que nos encontramos, o M.P. ainda não reuniu todos os elementos de prova, não sendo possível, efectuando um juízo de prognose, aferir se os autos prosseguirão para a fase de Julgamento, o que em algumas situações implicará a inutilidade da tomada de declarações para memória futura.
Acresce que as declarações para memória futura não podem consubstanciar um regular meio de aquisição de prova, ao qual o detentor da acção penal recorre antes dos demais, por regra, desvirtuando a importante ratio do instituto.
Vertendo ao caso, não vislumbramos que o M.P. tenha alegado qualquer facto que justifique a inquirição prévia da vítima por Juiz. Com efeito, não se negando a existência da indiciação mínima, não vislumbramos que evolem dos autos elementos que apontem para a mencionada excepcionalidade, isto é, elementos na pessoa da vítima ou na matéria em investigação que perfunctoriamente façam acreditar que esta deve ser, no imediato, ouvida, com todo o formalismo da fase de Julgamento. Não se nega a relevância da sua inquirição, mas a ser conduzida nos regulares termos da fase de inquérito. O que não vislumbramos é a jaez excepcional dos autos que implique uma verdadeira produção antecipada de prova.
Olhando para os pontos que o M.P. pretende ver esclarecidos com a tomada de declarações para memória futura, verificamos que se trata de matéria que não se reconduz propriamente à factualidade, isto é, à história de vida subsumível a tipo criminal, mas a incidências de cariz processual que o M.P. (legitimamente, diga-se) pretende ver esclarecidas. Mas tais esclarecimentos dizem respeito à sua função enquanto dominus da acção penal. Não é o Tribunal, em sede de declarações para memória futura, quem tem o papel de aferir por que motivo a ofendida quer residir com o denunciado ou se pensa ou não em sair de casa. Tais circunstâncias extravasam o âmago da diligência requerida. Aliás, atis diligências são, por regra, efectuadas pelo OPC.
Para a tomada de declarações para memória futura ficam reservadas as inquirições strictu sensu que visam antecipar a produção de prova em Julgamento, contendo verdadeira factualidade e sempre no pressuposto que se verificam os concretos requisitos para realização da diligência.
Destarte, decido indeferir a tomada de declarações para memória futura à ofendida A.
(…)”

II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

De acordo com o disposto no artigo 412º, do Código de Processo Penal e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19-10-95, publicado no D.R. I-A de 28-12-95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.

Assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte:

- Impugnação do despacho recorrido por inexistência de fundamento para o indeferimento da tomada de declarações para memória futura da vítima.


2 - Apreciando e decidindo:
Resulta do disposto no artigo 271º nº1 do Código de Processo Penal, onde é estabelecido o regime das declarações para memória futura, que:
“Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade ou a autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”
Trata-se de um procedimento de natureza excepcional, em relação ao regime normal da produção da prova na audiência de julgamento, com respeito pelos princípios da imediação e da oralidade.
As declarações para memória futura constituem, assim, prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção e em conjugação com a restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
O instituto das declarações para memória futura tem como objetivo evitar a repetição da audição da vítima em julgamento, protegendo-a, assim, do perigo da vitimização secundária.
A tomada de declarações antecipada pretende, além disso, assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, e obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo, prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.
Por outro lado, decorre do artigo 24º nº1 da Lei nº 130/2015, de 04/09 (Estatuto da Vítima), um regime próprio com pressupostos de aplicação menos restritivos dos que são exigidos pelo artigo 271º nº1 do Código de Processo Penal.
Estipula esta norma que:
“O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal.”.
Por outro lado, o nº 6 do mesmo dispositivo legal, determina que:
“Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”
Assim, para a aplicação deste regime legal, basta que se esteja na presença de vítima especialmente vulnerável para que, em regra, se proceda à tomada das suas declarações para memória futura, pois estas só não devem ser colhidas antecipadamente se se concluir que, desse modo, se coloca em causa a saúde física ou psíquica da pessoa a depor e que o depoimento a prestar em julgamento se mostra indispensável à descoberta da verdade.
Sendo seguro que este regime não é de aplicação automática, no sentido de o juiz não estar vinculado ao requerido pelo Ministério Público ou pela própria vítima , é contudo evidente, pela mera leitura das normas, que tratando-se de uma situação de uma vítima especialmente vulnerável, o juiz apenas pode recusar a prestação antecipada do seu depoimento se verificar uma das duas situações alinhadas pelo nº 6 do artigo 24º, supra citado: estar em risco a saúde física ou psíquica de declarante, ou a verdade material exigir, como indispensável, que o seu depoimento seja prestado em audiência de julgamento (Cfr, neste sentido, Ac. da Relação de Évora de 23/06/2020, Proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1 e da Relação do Porto, de 24/09/2020, Proc. 2225/20.3JAPRT-A.P1).
Não estando em causa nenhuma destas duas realidades, a regra terá de ser a do deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, conclusão que se retira, não só, como se disse, pela simples linearidade do comando legal, como também pela sua inserção sistemática no diploma de protecção das vítimas especialmente vulneráveis.
Resulta, pois, que a tomada de declarações para memória futura tem atualmente uma inquestionável natureza de proteção da vítima particularmente vulnerável e que o âmbito de aplicação do instituto é agora muito mais alargado e não se circunscreve aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas, consagrados no artigo 271° do Código de Processo Penal.
No caso dos presentes autos estamos sem dúvida perante uma vítima especialmente vulnerável, atento o disposto no artigo 67°-A, n° 1 alíneas a), i) e b), do Código de Processo Penal e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo preceito legal, já que o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta, tal como definido no artigo 1º, alínea j), também do Código de Processo Penal.
A vulnerabilidade da testemunha em causa decorre igualmente do disposto no artigo 26° da Lei de Proteção de Testemunhas em processo penal, aprovada pela Lei nº 93/99 de 14-07 e do disposto no artigo 2º, alínea b) da Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica, Lei nº 112/2009 de 16-09.
As declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, como é o caso das vítimas de violência doméstica, permitem recolher com rigor e celeridade os elementos de factos necessários ao entendimento e avaliação do caso concreto, assegurar a sua validade em audiência de discussão e julgamento e evitar a vitimização secundária dos ofendidos, e são tanto mais profícuas, pormenorizadas e espontâneas quanto menor for o lapso de tempo entre a ocorrência dos factos denunciados e a sua tomada.
Cabendo ao Ministério Público a direção da ação penal, sendo quem terá de decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito, considerando as competências atribuídas ao Ministério Público, designadamente pelo artigo 53º, do Código de Processo Penal, terá de ser o mesmo a determinar qual a melhor forma de dirigir o inquérito, seja promovendo a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias, seja fixando o tempo e o modo de atuação na recolha das mesmas, sempre com o objetivo único da descoberta da verdade e da boa decisão para a causa.
No despacho judicial, ora recorrido, que indeferiu o requerimento do Ministério Público, invoca-se “não ser possível efectuar um juízo de prognose, para aferir se os autos prosseguirão para a fase de Julgamento, o que em algumas situações implicará a inutilidade da tomada de declarações para memória futura, que não podem consubstanciar um regular meio de aquisição de prova, não se negando a existência da indiciação mínima, não vislumbramos que os autos apontem para a excepcionalidade, isto é, elementos na pessoa da vítima ou na matéria em investigação que perfunctoriamente façam acreditar que esta deve ser, no imediato, ouvida, com todo o formalismo da fase de Julgamento. Não se nega a relevância da sua inquirição, mas a ser conduzida nos regulares termos da fase de inquérito. O que não vislumbramos é a jaez excepcional dos autos que implique uma verdadeira produção antecipada de prova. Olhando para os pontos que o Ministério Público pretende ver esclarecidos com a tomada de declarações para memória futura, verificamos que se trata de matéria que não se reconduz propriamente à factualidade, isto é, à história de vida subsumível a tipo criminal, mas a incidências de cariz processual que o M.P. (legitimamente, diga-se) pretende ver esclarecidas. Mas tais esclarecimentos dizem respeito à sua função enquanto dominus da acção penal. Não é o Tribunal, em sede de declarações para memória futura, quem tem o papel de aferir por que motivo a ofendida quer residir com o denunciado ou se pensa ou não em sair de casa. Tais circunstâncias extravasam o âmago da diligência requerida. Aliás, atis diligências são, por regra, efectuadas pelo OPC. Para a tomada de declarações para memória futura ficam reservadas as inquirições strictu sensu que visam antecipar a produção de prova em Julgamento, contendo verdadeira factualidade e sempre no pressuposto que se verificam os concretos requisitos para realização da diligência)”.
As objeções convocadas pelo Juiz de Instrução Criminal para indeferir a tomada de declarações para memória futura à vítima (apesar de referir existir uma indiciação mínima, que é relevante a inquirição da vítima, que são necessários mais esclarecimentos, embora os mesmos extravasem o âmbito da diligência requerida) não constituem fundamento para negar o pedido formulado pelo Ministério Público, no âmbito de um inquérito onde está a ser investigado um crime de violência doméstica, onde dos elementos já constantes dos autos se verifica existir um ambiente de terror vivenciado pela vítima, relativamente ao agressor, de todo incompatível com frequentes deslocação da mesma vítima às competentes instituições, devendo o Tribunal “a quo” ter-se centrado nesta situação concreta e não em considerações resultantes do estabelecido no artigo 271º, nº 1 do Código de Processo Penal, que como já se assinalou configura uma regra geral que cai perante o regime excecional aplicável às vítimas de violência doméstica do artigo 33º da Lei 112/2009 de 16 de setembro.
Por outro lado, a justificação avançada pelo Tribunal “a quo” para obstar a audição da vítima em declarações para memória futura, para além de se encontrar viciada nos seus fundamentos, conduziria sempre por sistema ao indeferimento dos pedidos de tomada de declarações para memória futura e violaria as pretensões legais para afastar a vitimização secundária.
Com o instituto das declarações para memória futura visa-se precisamente evitar a repetição da audição da vítima em julgamento e protegê-la do perigo da revitimização principalmente numa sala de audiências com toda a carga adversa daí decorrente.
A tomada de declarações antecipada pretende assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, evitando-se pressões ou manipulações prolongadas no tempo prejudiciais à liberdade de declaração da vítima.
Embora a presença da vítima em julgamento, seja possível, de acordo com a letra da lei e com o seu espírito, não deve ser assumida como uma regra, mas sim também ela como uma exceção.
Cumprirá, assim, ao juiz prevenir em sede de declarações para memória futura essa ulterior audição, planeando-a materialmente, com o cuidado e sensibilidade judicial que permita a valoração em sede de julgamento das declarações prestadas em sede de inquérito perante o Juiz de instrução criminal.
A Lei de Proteção de Testemunhas (Lei n° 93/99, de 14-07), prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n° 1 e nº 3 do artigo 1°, do mesmo diploma, dizendo o artigo 26° n° 1 que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” - n° 1 do artigo 28°, e, sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271° do Código de Processo Penal.
No caso dos presentes autos estamos sem dúvida perante uma vítima especialmente vulnerável, atentos os elementos já constantes dos autos e o disposto no artigo 67°-A, n° 1 alíneas a) i) e b) do Código de Processo Penal e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo preceito legal, já que o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta, tal como definido no artigo 1º, alínea j), também do Código de Processo Penal.
A vulnerabilidade da testemunha em causa decorre igualmente do disposto no artigo 26° da Lei de Proteção de Testemunhas em processo penal, aprovada pela Lei nº 93/99 de 14-07 e do disposto no artigo 2º, al. b) da Lei nº 112/2009 de 16-09, Lei de Proteção às Vítimas de Violência Doméstica.
Mais se dirá que esta diligência apenas visa proteger a vítima e acautelar o valor probatório futuro das suas declarações para a descoberta da verdade e não colocar em risco a sua saúde física ou psíquica.
Estão, pois, no caso “sub judice”, reunidas todas as condições para que a testemunha seja ouvida em declarações para memória futura, nos termos das disposições acima referidas, revogando-se deste modo a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que dê deferimento à diligência peticionada pelo Ministério Público nos termos requeridos.
Em suma, por o despacho recorrido não conter fundamento válido para o indeferimento da pretensão apresentada pelo Ministério Público não poderá manter-se.
Termos em que, na total procedência do recurso, se admite a inquirição para memória futura da testemunha devidamente identificada, devendo a diligência decorrer em ambiente reservado, para o que deverá ser designado dia e hora para a realização da mesma, com a maior brevidade possível.
Sem custas, atenta a procedência do recurso.

III – DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe dia e hora para declarações para memória futura, nos termos requeridos e demais diligências necessárias.
Sem custas, atenta a procedência do recurso.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 19-11-2024
Fernando Pina
Maria José Cortes
Renato Barroso