I – O processo de transição digital em curso há vários anos, designadamente nos tribunais – cf. Portaria n.º 280/2013, sucessivamente alterada –, com a certificação da existência e do conteúdo concreto dos actos processuais assegurada e legalmente deferida à aplicação informática citius, permite que os actos processuais estejam sempre disponíveis para exame e/ou sindicância dos mandatários judiciais, bastando que seja feita a consulta electrónica do processo, o que é conhecimento de qualquer profissional forense.
II – Tendo sido expedida carta de citação com aviso de recepção, para a morada do requerido, a qual foi recebida por pessoa que estava em perfeitas condições para a receber; subsequentemente, endereçada nova notificação para essa morada, a atestar aquela citação, a qual foi novamente recebida; e tendo o requerido deduzido oposição ao procedimento cautelar, juntando procuração forense; não colhe a sua alegação, após várias intervenções processuais, de que só teve conhecimento do teor completo do requerimento inicial em momento ulterior, uma vez que, estando devidamente patrocinado por advogado, este não podia desconhecer o processo digital e inteirar-se de todos os actos processuais praticados.
III – Decorre do art. 365.º, n.º 1, do CPC, que, nos procedimento cautelares, não é admissível a apresentação de novos meios de prova depois dos articulados, não sendo, assim, aplicável, nessa sede, o disposto no art. 598.º; porém, se o número de testemunhas inquiridas na audiência final não excedeu o limite legal, não é de considerar que aquele vício possa inquinar a produção de prova, podendo as declarações e o depoimento de parte ser sempre oficiosamente determinados pelo tribunal.
IV – O erro de interpretação dos factos e/ou do direito ou na aplicação deste constitui um erro de julgamento (error in judicando), e não consubstancia qualquer vício de nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão.
V – Não obstante o regime geral do incidente de remoção de cabeça-de-casal, não há obstáculo processual a que seja intentado um procedimento cautelar comum, com vista à remoção provisória do cabeça-de-casal, desde que concorram os requisitos legais previstos no CPC, designadamente, demonstrando-se, cumulativamente, a séria probabilidade da existência do direito invocado (fumus boni iuris) e o receio, suficientemente justificado, de que a demora na resolução definitiva do processo de inventário cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).
VI – Sem prejuízo de ficar perfunctoriamente demonstrado algum dos fundamentos para a remoção de cabeça-de-casal, previstos no art. 2086.º do CC, o requerente deverá, no que tange ao periculum in mora, descrever, detalhadamente, a situação de risco, destacando as consequências da demora, apresentar provas robustas quanto à existência do risco de dano irreparável e relatar os prejuízos que a demora da decisão acarretaria, só sendo de decretar tal remoção provisória, em sede cautelar, se existir um perigo, sério, iminente ou actual, e não com base em factos pretéritos.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]
AA e BB instauraram procedimento cautelar comum, requerendo a não audição prévia do requerido, contra CC, por apenso ao processo de inventário por óbito de DD[2] e EE, pendente no Juízo de Competência Genérica ..., pedindo:
a) A remoção do cabeça-de-casal CC;
b) A nomeação de AA ou de administrador judicial para exercer o cargo de cabeça-de-casal.
Alegam, para tanto e em síntese, que o requerido – por ser o filho mais velho do casal e conviver com os autores da sucessão, à data do óbito – foi nomeado cabeça-de-casal, e, no exercício dessas funções, não apresenta contas, nem administra com diligência o vasto património da herança, a qual tem vindo a perder valor, usando a seu belo proveito os bens do acervo hereditário.
O tribunal a quo decidiu determinar a citação do requerido e este deduziu oposição.
(i) despacho de 17-04-2014: “Por estar em tempo admito o depoimento de parte do requerido CC, bem como as declarações de parte da requerente. / Requerimento apresentado por o requerido CC. Mantenho a data e diligência agendada, por seguramente haver um lapso na leitura das peças processuais. /Notifique sendo que pessoalmente o requerido”.
(ii) despachos 22-04-2024: “(…) Quanto à alteração do rol de testemunhas e aditamento do mesmo é possível a alteração dos mesmos nos termos do artº 598º, do C. P. Civil até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, isto para o processo declarativo, quanto ao processo cautelar os prazos são reduzidos a metade, razão pela qual entendemos ser admissível a alteração do rol e aditamento ao mesmo./ Quanto à nulidade invocada para a falta da notificação, parece-nos que o Requerido invoca a nulidade ou falta de notificação do requerimento inicial./ Do requerimento dado entrada no dia 19/04/2024, às 23h29m (sexta-feira passada), parece-nos que entra em contradição no seu próprio conteúdo, porque assume que a correspondência foi recebida pela Sr.ª FF, correspondência essa que foi remetida para a morada do Requerido e que esta Sr.ª FF entregou a uma Sr.ª GG a qual remeteu, via e-mail, no mesmo dia ao Dr. HH e a qual apenas digitalizou as primeiras páginas da notificação recebida./ Não nos é dito quem são essas pessoas, no entanto, ao aparecer esta indicação e reenvios, somos de concluir que o fizeram por instrução do destinatário da notificação ou são funcionárias do mesmo./ Por outro lado, entra em contradição consigo mesma, esta alegação de nulidade da notificação, quando, em sede de oposição, responde impugnando concretizadamente os factos alegados no requerimento inicial./ Ora, como será possível responder a esse requerimento inicial sem o conhecimento do seu conteúdo?/ O artº 196º, do C. P. Civil, estatui que o Tribunal só conhece oficiosamente as nulidades dos artigos 186º e 187º, bem como as dos artigos 191º, 192º e 194º, a não ser que devam considerar-se sanadas./ Encontram-se as nulidades sanadas sempre que a parte interveio no processo e não arguiu as mesmas, praticando atos contrários a tais nulidades, razão pela qual é manifesto que, nos presentes autos não existiu qualquer nulidade ou irregularidade na notificação, que possa ser imputável ao Tribunal ou às Requerentes./ Alguma nulidade ou irregularidade existente, como acaba por ser expressamente confessado no requerimento, apenas pode ser imputável à Sr.ª GG e à Sr.ª FF./ Caso existam, o que nos suscita sérias dúvidas, tanto mais que sendo funcionárias do Requerido teriam o cuidado devido na transmissão integral do conteúdo da notificação./ Por tudo o exposto, indefere-se a nulidade invocada pelo Requerido, determinando-se o início da inquirição dos presentes./ Notifique.”
(…).
(…).
(…).
(…).
(…).
1 – Quanto ao recurso de apelação, interposto pelo cabeça-de-casal, em 24-04-2024:
(I) Da nulidade do despacho de 22-04-2024 relativo à invocada falta e/ou nulidade da notificação do requerido.
(II) Da nulidade dos despachos de 17-04-2024 e de 22-04-2024 relativos à solicitada alteração do requerimento probatório.
2 – Quanto ao recurso de apelação da decisão final, interposto pelas requerentes:
(III) Da nulidade da sentença por contradição entre os factos provados e a decisão proferida pelo tribunal a quo.
(IV) Da impugnação da matéria de facto, por desconsideração de prova por documento autêntico e falta de conhecimento de factos alegados pelas requerentes.
(V) Da violação do disposto no artigo 2086.º do Código Civil.
3 – Quanto à ampliação do âmbito do recurso:
(VI) Da impugnação da matéria de facto – considerar não provado o facto n.º 11; remoção dos factos n.ºs 16, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 36, 37 e 42 da matéria de facto provada; alteração da redacção dos factos n.ºs 21, 22, 23, 26, 27, 38, 39 e 40.
A1. Para a apreciação do recurso interposto pelo requerido/cabeça-de-casal, em 24-04-24, importa enumerar a seguinte factualidade:
1. Por apenso ao processo de inventário n.º 239/21...., em que são inventariados DD e EE, vieram as interessadas e co-herdeiras AA e BB apresentar “Procedimento Cautelar Comum de Remoção do Cabeça-de-Casal”, contra CC, que concluíram da seguinte forma: “Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V. Exa. se digne a decretar o Procedimento Cautelar Comum e em consequência:
a) Remoção do Cabeça-de-Casal CC de Herança Aberta por óbito de CC e EE, sem audição prévia;
b) Nomeação de AA ou de Administrador Judicial para exercer o cargo de Cabeça-de-Casal”.
2. No requerimento inicial foram arroladas 6 testemunhas: Dr. II, Dra. GG, Dr. JJ, Dr. HH, Dr. KK e LL.
3. Ordenada a citação – a qual foi realizada por via postal em pessoa diversa do citando –, o requerido deduziu oposição por requerimento inserto a 28-02-24, concluindo que “deverá julgar-se o procedimento cautelar improcedente por não provado com todas as consequências legais”.
4. Por despacho de 03-04-24 foi designada data para a audiência final (22-04-24).
5. Em 16-04-24, as requerentes vieram “alterar o seu Requerimento de Prova”, requerendo o depoimento de parte do requerido, declarações de parte da requerente AA e arrolando 9 testemunhas: MM, Dr. NN, Dr. II, Dr. JJ, OO, LL, Dra. GG, Dr. HH e Dr. KK.
6. Em 16-04-24 a mandatária do requerido expôs e requereu o seguinte: “PP, mandatária do Requerido CC, Cabeça de Casal nos autos suprarreferidos, notificada da data para a audiência de julgamento e inquirição de testemunhas, vem informar que, pelas Partes, não foram arroladas quaisquer testemunhas ou requeridas quaisquer inquirições, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 367.º, n.º 1, do CPC, considera-se não se verificar a necessidade de realização da referida diligência, pois, como resulta dos autos, não foi requerida pelas Partes, nem determinado oficiosamente pelo Tribunal, a produção de qualquer prova./ Em face do exposto, em ordem a evitar o uso desnecessário da agenda do Tribunal, bem como deslocações desnecessárias por parte das Mandatárias das Partes, serve o presente para requerer a este Tribunal que admita que as Partes apresentem as respetivas alegações por escrito, via Citius, sendo fixado prazo para esse efeito, e desmarcando-se a data agendada. / Termos em que se requer”.
7. Por despacho de 17-04-24, o tribunal a quo exarou: “Por estar em tempo admito o depoimento de parte do requerido CC, bem como as declarações de parte da requerente./ Requerimento apresentado por o requerido CC./ Mantenho a data e diligência agendada, por seguramente haver um lapso na leitura das peças processuais./Notifique sendo que pessoalmente o requerido”.
8. Em 18-04-24 o requerido expôs e requereu:
“1. Compulsado o Requerimento Inicial deste procedimento cautelar, apresentado em 16/02/2024, verifica-se que a prova oferecida resume se à apresentação de dois documentos, e nada mais.
2. Com a Oposição, apresentada em 28/02/2024, o Requerido juntou quatro documentos e também não apresentou qualquer outra prova.
3. Em resposta à Oposição, apresentada em 13/03/2024, as Requerentes nada disseram ou solicitaram sobre a prova.
4. Por requerimento de 21/03/2024, o Requerido solicitou o desentranhamento da aludida resposta, por inadmissibilidade legal da mesma.
5. Por requerimento de 02/04/2024, as Requerentes alegam não haver fundamento para o solicitado desentranhamento e afirmam “deverá ser proferida a decisão sob o Procedimento Cautelar”, nada dizendo, uma vez mais, quanto à prova!
6. Após o referido requerimento, o Requerido é notificado pela secretaria do tribunal da designação da data de audiência de julgamento (notificação com a Referência 95156410 elaborada em 04/04/2024).
7. Depois dessa notificação, o Requerido é novamente notificado da data de Audiência, agora com a indicação de Inquirição de Testemunhas, com a certificação citius em 15/04/2024 e acompanhada do despacho com a referência 95128351./ Isto Posto,
8. É face a esta notificação que, cremos, por lapso refere a inquirição de testemunhas que não foram arroladas por qualquer uma das partes, que se deu entrada do requerimento de 16/04/2024 a solicitar que as alegações fossem efetuadas por escrito, desmarcando-se a data agendada.
9. Ora, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 293.º ex vi n.º 3 do artigo 365.º e do n.º 1 do artigo 365.º, ambos do CPC, é no Requerimento Inicial e na Oposição do Procedimento Cautelar que as partes devem oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova.
10. É por isso, com elevada estranheza que lemos o V. Despacho de 17/0472024 com a referência 95246656, quando refere ter havido um lapso nosso na leitura das peças processuais!
11. À referida estranheza soma-se a nossa surpresa quanto à parte inicial do V. Despacho, quando admite o depoimento de parte do Requerido bem como as declarações da Requerente, uma vez que, e salvo melhor opinião, não nos parece que esteja em tempo a solicitada “alteração do requerimento de prova” apresentada pelas Requerentes em 16/04/2024, ou seja, cinco dias antes da data designada para a audiência de julgamento.
12. Acresce que, está ainda em curso o prazo para o Requerido se pronunciar sobre a alteração da prova requerida.
13. Nessa sequência, deverá a requerida alteração da prova ser indeferida, uma vez que viola frontalmente o disposto no artigo 365.º, n.º 1 e no n.º 1 do artigo 293.º (ex vi artigo 365.º, n.º 3 do CPC).
14. Como afirma a título meramente exemplificativo o Ac. do TRC de 01/02/2022, in www.dgsi.pt, “Nos procedimentos cautelares, com exceção da prova documental, não é admissível a apresentação de novos meios de prova depois da petição e da oposição”.
15. Sem prejuízo do alegado, e ainda que se entenda que poderia haver lugar à alteração da prova, o que apenas se equaciona como hipótese académica, jamais a mesma poderá ter lugar nos termos requeridos, sendo admissível apenas as declarações de parte;
16. No mais, sempre se deverá indeferir a requerida alteração da prova.
17. A tudo acresce que, nos termos do n.º 1 do artigo 294.º do CPC ex vi n.º 3 do artigo 365.º do CPC, nos procedimentos cautelares apenas se podem arrolar cinco testemunhas e, in casu, sempre estaria violado o disposto no n.º 2 do artigo 598.º do CPC, o que originaria a nulidade e tramitação subsequente.
Termos em que se requer o indeferimento da requerida alteração da prova, devendo dar se sem efeito a primeira parte do despacho de v. exa. de 17/04/2024 com a referência 95246656”.
9. No despacho de 19-04-24 o tribunal a quo consignou: “Veio o requerido pela pena da sua mandatária, alegar o constante do requerimento que antecede e que aqui damos por reproduzido./ Basta ler o RI no formular e na peça processual são indicadas as testemunhas, logo em nossa óptica nada haveria a suscitar ou a questionar./ Quanto a eventuais nulidades processuais praticadas “A arguição de nulidades processuais a que se refere o art. 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil faz-se na própria instância em que são cometidas, salvo o disposto no n.º 3 do art. 199.º do mesmo diploma, de imediato ou no prazo geral de 10 dias./ As nulidades processuais distinguem-se das nulidades, erros materiais ou erros de julgamento de que podem enfermar os despachos ou sentenças, na medida em que estes são vícios de conteúdo de decisões judiciais, enquanto aquelas respeitam à própria existência ou formalidades dos actos processuais./Nos presentes autos há múltiplos actos processuais praticados, e a existirem irregularidades, parece-nos que se encontram sanadas por não serem arguidas./Suscita-se a questão de saber se poderá ser alterado o requerimento probatório antes da audiência de um procedimento cautelar e caso seja admissível, qual o prazo para o efeito./Como a questão terá de ser sujeita a contraditório, notifique de forma expedita as requerentes para responderem ao requerimento em causa no prazo de 48 horas./ Notifique”.
10. Em 19-04-24 o requerido expôs e requereu: “CC, Requerido nos autos suprarreferidos, vem com o presente, ao abrigo do disposto nos artigos 188.º, n.º 1, al. e), 191.º, 195.º, nº 2 e 197.º, n.º 1, todos do CPC arguir a Falta e/ou Nulidade da Notificação na Providência Cautelar à margem identificada, que lhe movem as Requerentes AA e BB, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O Requerido, aqui arguente, tomou conhecimento do Requerimento Inicial deste procedimento cautelar, apresentado em 14/02/2024, apenas no dia de hoje, 19 de abril de 2024, no seguimento do contacto telefónico estabelecido, também no dia de hoje, pela sua mandatária com a secretaria deste Tribunal.
2. Efetivamente, apenas no dia de hoje, e na sequência do referido contacto telefónico, se ficou a saber que o Requerimento Inicial da presente providência não era o Requerimento apresentado em 16/02/2024, que se considerou como tal e relativamente ao qual se elaborou a respetiva Oposição, mas o acima referido, apresentado dois dias antes!
3. De facto, como decorre, inequivocamente, do teor da Oposição apresentada e dos requerimentos apresentados pela mandatária do Requerido e pelo Requerido, respetivamente em 16/04/2024 e 18/04/2024, nos presentes autos, o “Requerimento Inicial” do procedimento cautelar que o Requerido conheceu e a que respondeu foi apenas e tão só o Requerimento apresentado pelas Requerentes em 16/02/2024, que, soube-se hoje, afinal não constituía o RI.
4. Até ao dia de hoje – 19 de abril de 2024 – o Requerido nunca tomou conhecimento do teor do verdadeiro Requerimento Inicial, apresentado em 14/02/2024, nem do Requerimento posterior, apresentado em 15/02/2024, tendo-lhe sido dirigido/enviado apenas o Requerimento apresentado pelas Requerentes em 16/02/2024.
5. Com efeito, a notificação que foi dirigida ao Requerido não foi por si recebida, mas por um terceiro, a saber, pela Sra. FF, em 20/02/2024, como decorre do aviso de receção junto aos presentes autos, e que aqui se dá por reproduzido./ Nesse seguimento,
6. A Sra. FF entregou a notificação recebida à Sra. GG, tendo sido esta quem, através de e-mail de 20/02/2024, dirigido ao advogado do Requerido, Dr. HH e ao Requerido, deu conhecimento do conteúdo da notificação recebida (cfr. doc. 1, que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).
7. Acontece que, conforme decorre do teor do aludido e-mail, a Sra. GG apenas digitalizou as primeiras páginas da notificação recebida, isto é, o despacho de admissão do RI, o Requerimento de 16/02/2024 e o documento 1, afirmando que não digitalizou o PER (documento 2) porque tinhas muitas páginas (cfr. doc. 1).
8. Com efeito, no referido e-mail a Sra. GG afirma o seguinte: “Em anexo encontra-se o Procedimento Cautelar 239/21...., hoje recebido pelo Sr. CC./Em apenso consta o PER que não digitalizei por ter muitas páginas.” (cfr. doc. 1)
9. Deste modo, quer o Requerido quer os seus mandatários, apenas tomaram conhecimento do Requerimento de 16/02/2024, o qual entenderam como RI e ao qual apresentaram a respetiva Oposição, desconhecendo em absoluto qualquer outro até à data de hoje.
10. De facto, só hoje o Requerido e os seus mandatários tiveram a possibilidade de conhecer e ler o verdadeiro RI, quando solicitaram à Sra. GG a entrega física da notificação que aquela havia recebido e arquivado;
11. Folheando a notificação física, verificaram, então, que depois do PER se encontravam ainda, em anexo, dois requerimentos, primeiro um de 15/02/2024 e, no final, outro de 14/02/2024;
12. Sendo de realçar que na capa da notificação nada se refere quanto à existência de vários requerimentos anexos (cfr. notificação constante dos autos, que aqui se dá por reproduzida).
13. Assim, parece-nos desculpável a leitura (sabe-se agora incompleta) “errada” que a Sra. GG fez da notificação recebida./ Em face de todo o exposto,
14. É nosso entendimento que não pode considerar-se feita a notificação do RI, dado que o Requerido dela não teve conhecimento até à data de hoje, como se demonstrou, por facto que não lhe é minimamente imputável./ Ora,
15. A falta de notificação do Requerido e o conhecimento do verdadeiro RI apenas na data de hoje constitui uma falta e/ou nulidade da notificação, a qual influi manifestamente no exame e decisão da causa, devendo tal ato ser anulado, bem como os termos subsequentes.
16. Efetivamente, a falta ou nulidade de um ato fundamental – a notificação – implica a anulação do ato em apreço, bem como dos termos subsequentes dependentes do mesmo.
17. O verdadeiro RI desta providência, como se afirmou, apenas hoje chegou ao conhecimento do Requerido, por facto que não lhe é minimamente imputável.
18. Aliás, tendo o Requerido apresentado a sua Oposição ao Requerimento de 16/02/2024, de que teve conhecimento, não se concebe como poderia ter conhecimento do RI de 14/02/2024 sem que o tivesse contestado!
Termos em que, pelas razões aduzidas e com o douto suprimento de v. exa. se requer, ao abrigo do disposto nos artigos 188.º, n.º 1, al. e), 191.º, 195.º, nº 2 e 197.º, n.º 1, todos do CPC se digne decidir pela falta e/ou nulidade da notificação do requerido relativamente ao RI apresentado em 14/02/2024, anulando-se o ato em apreço, bem como os termos subsequentes dependentes do mesmo, verificando-se manifesta falta e/ou nulidade que influi no exame e decisão da causa./No seguimento do solicitado, requer-se seja dada sem efeito a audiência de julgamento agendada para o próximo dia 22/04/2024”.
11. Na 1.ª sessão da audiência final do procedimento cautelar, de 22-04-24, o tribunal a quo decidiu:
“Despacho I/ Quanto à alteração do rol de testemunhas e aditamento do mesmo é possível a alteração dos mesmos nos termos do artº 598º, do C. P. Civil até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, isto para o processo declarativo, quanto ao processo cautelar os prazos são reduzidos a metade, razão pela qual entendemos ser admissível a alteração do rol e aditamento ao mesmo./ Quanto à nulidade invocada para a falta da notificação, parece-nos que o Requerido invoca a nulidade ou falta de notificação do requerimento inicial./ Do requerimento dado entrada no dia 19/04/2024, às 23h29m (sexta-feira passada), parece-nos que entra em contradição no seu próprio conteúdo, porque assume que a correspondência foi recebida pela Sr.ª FF, correspondência essa que foi remetida para a morada do Requerido e que esta Sr.ª FF entregou a uma Sr.ª GG a qual remeteu, via e-mail, no mesmo dia ao Dr. HH e a qual apenas digitalizou as primeiras páginas da notificação recebida./ Não nos é dito quem são essas pessoas, no entanto, ao aparecer esta indicação e reenvios, somos de concluir que o fizeram por instrução do destinatário da notificação ou são funcionárias do mesmo./ Por outro lado, entra em contradição consigo mesma, esta alegação de nulidade da notificação, quando, em sede de oposição, responde impugnando concretizadamente os factos alegados no requerimento inicial./ Ora, como será possível responder a esse requerimento inicial sem o conhecimento do seu conteúdo?/O artº 196º, do C. P. Civil, estatui que o Tribunal só conhece oficiosamente as nulidades dos artigos 186º e 187º, bem como as dos artigos 191º, 192º e 194º, a não ser que devam considerar-se sanadas./Encontram-se as nulidades sanadas sempre que a parte interveio no processo e não arguiu as mesmas, praticando atos contrários a tais nulidades, razão pela qual é manifesto que, nos presentes autos não existiu qualquer nulidade ou irregularidade na notificação, que possa ser imputável ao Tribunal ou às Requerentes./ Alguma nulidade ou irregularidade existente, como acaba por ser expressamente confessado no requerimento, apenas pode ser imputável à Sr.ª GG e à Sr.ª FF./ Caso existam, o que nos suscita sérias dúvidas, tanto mais que sendo funcionárias do Requerido teriam o cuidado devido na transmissão integral do conteúdo da notificação./ Por tudo o exposto, indefere-se a nulidade invocada pelo Requerido, determinando-se o início da inquirição dos presentes./ Notifique.”
12. Na 1.ª sessão da audiência final do procedimento cautelar, de 22-04-24, após a notificação daquele despacho, ficou, ainda, consignado na acta: “De seguida, o Mm. Juiz concedeu a palavra à Ilustre Mandatária do requerido, tendo a mesma, no uso da palavra comunicado ao Tribunal que o Requerido se encontra doente e por tal facto impossibilitado de estar presente no Tribunal, no dia de hoje./ Após, o Mm. Juiz concedeu a palavra à Ilustre Mandatária das Requerentes tendo pela mesma sido dito não prescindir do depoimento de parte do Requerido. No entanto não se opõe a que seja alterada a ordem de produção de prova e sejam tomadas declarações de parte à Requerente AA e sejam inquiridas as testemunhas presentes./ Mais disse prescindir da inquirição das testemunhas de nome HH e LL./ Não prescindir da inquirição das testemunhas GG, KK, QQ e NN, requerendo seja designada nova data para o efeito”.
13. Nessa sequência, o tribunal a quo decidiu: “Despacho/ Aguardem os autos a junção do comprovativo./ Uma vez que as testemunhas GG, KK regularmente notificadas não compareceram, nem justificaram a sua falta, condenam-se na multa que se fixa em 2 UC´s./ Uma vez que não foi prescindido o seu depoimento no final da audiência será designada data para a sua inquirição./ Notifique”.
14. Na 1.ª sessão da audiência final, de 22-04-24, foi ouvida a requerente AA, em declarações de parte, e inquiridas duas testemunhas, arroladas pelas requerentes: RR e OO.
15. Na 2.ª sessão da audiência final, de 20-05-24, foi ouvido o requerido CC, em depoimento de parte, e inquirida uma testemunha, arrolada pelas requerentes: JJ.
A2. Para a apreciação do recurso de apelação, das requerentes, da decisão final, e do pedido de ampliação, importa atender à fundamentação de facto consignada na 1.ª instância:
(…).
1 – Recurso de apelação, interposto pelo cabeça-de-casal, em 24-04-2024.
Previamente ao julgamento do recurso da decisão final, urge apreciar o recurso de apelação autónoma, apresentado pelo requerido/cabeça-de-casal, do despacho de 17-04-2024 e dos dois despachos proferidos na sessão de julgamento do dia 22-04-2024, porquanto, na eventualidade de ser declarada a nulidade daqueles despachos, por alegadamente terem colocado em causa o direito do contraditório do cabeça-de-casal, essa decisão determinará a anulação de toda a tramitação subsequente dos autos, incluindo a decisão final recorrida.
É o que se passa a fazer seguidamente, sendo certo que esse recurso, admitido em 24-06-2024, concita a análise de duas questões:
(I) Nulidade do despacho de 22-04-2024 relativo à invocada falta e/ou nulidade da notificação do requerido, e
(II) Nulidade dos despachos de 17-04-2024 e de 22-04-2024 relativos à solicitada alteração do requerimento probatório.
Por razões metodológicas, e de ordem lógica, haverá que começar por analisar o despacho de 22-04-24, atinente à invocada falta e/ou nulidade da notificação do requerido, no qual se exarou:
“Quanto à nulidade invocada para a falta da notificação, parece-nos que o Requerido invoca a nulidade ou falta de notificação do requerimento inicial./ Do requerimento dado entrada no dia 19/04/2024, às 23h29m (sexta-feira passada), parece-nos que entra em contradição no seu próprio conteúdo, porque assume que a correspondência foi recebida pela Sr.ª FF, correspondência essa que foi remetida para a morada do Requerido e que esta Sr.ª FF entregou a uma Sr.ª GG a qual remeteu, via e-mail, no mesmo dia ao Dr. HH e a qual apenas digitalizou as primeiras páginas da notificação recebida./ Não nos é dito quem são essas pessoas, no entanto, ao aparecer esta indicação e reenvios, somos de concluir que o fizeram por instrução do destinatário da notificação ou são funcionárias do mesmo./ Por outro lado, entra em contradição consigo mesma, esta alegação de nulidade da notificação, quando, em sede de oposição, responde impugnando concretizadamente os factos alegados no requerimento inicial./ Ora, como será possível responder a esse requerimento inicial sem o conhecimento do seu conteúdo?/ O artº 196º, do C. P. Civil, estatui que o Tribunal só conhece oficiosamente as nulidades dos artigos 186º e 187º, bem como as dos artigos 191º, 192º e 194º, a não ser que devam considerar-se sanadas./ Encontram-se as nulidades sanadas sempre que a parte interveio no processo e não arguiu as mesmas, praticando atos contrários a tais nulidades, razão pela qual é manifesto que, nos presentes autos não existiu qualquer nulidade ou irregularidade na notificação, que possa ser imputável ao Tribunal ou às Requerentes./ Alguma nulidade ou irregularidade existente, como acaba por ser expressamente confessado no requerimento, apenas pode ser imputável à Sr.ª GG e à Sr.ª FF./ Caso existam, o que nos suscita sérias dúvidas, tanto mais que sendo funcionárias do Requerido teriam o cuidado devido na transmissão integral do conteúdo da notificação./ Por tudo o exposto, indefere-se a nulidade invocada pelo Requerido, determinando-se o início da inquirição dos presentes./ Notifique.
Considera o requerido que, in casu, se registou a falta ou nulidade de um acto fundamental, a notificação do requerimento inicial, implicando a sua anulação, bem como dos termos subsequentes do processo, o que foi oportunamente invocado pelo cabeça-de-casal, no requerimento de 19-04-24, onde pediu que fossem inquiridas duas testemunhas para demonstração dos factos aí invocados.
Não obstante a invocada falta e/ou nulidade da notificação, o tribunal a quo indeferiu essa arguição, razão pela qual o despacho de 22-04-24 deve ser considerado nulo, por falta de qualquer fundamentação de direito e por falta de pronúncia quanto à produção da prova requerida, violando o disposto nas als. b) e d) do n.º 1 do 615.º, bem como o estatuído nos arts. 188.º, n.º 1, al. e), 191.º, 195.º, n.º 2 e 197.º, n.º 1, todos do CPC.
Alega, ainda, o requerido que a presunção da notificação estabelecida no n.º 4 do art. 225.º, e no n.º 1 do art. 230.º, ambos do CPC – de que o conteúdo do acto foi devida e integralmente transmitido ao destinatário – é uma presunção ilidível, pelo que mal andou o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a nulidade invocada e ao impossibilitar a produção de prova para demonstrar que o cabeça-de-casal não recebeu, até ao dia 19-04-24, a notificação integral do acto em causa, e que a falta e/ou nulidade de notificação não lhe era imputável, permitindo-se-lhe, assim, ilidir aquela presunção. Deste modo, ao coartar os direitos processuais do requerido/recorrente, o despacho em apreço violou aqueles dispositivos legais, devendo considerar-se que o mesmo está ferido de nulidade e anular-se toda a tramitação subsequente.
Analisemos, pois, esta 1.ª questão recursiva.
(I) O Estado de direito democrático e o direito fundamental de acesso aos tribunais co-envolvem e exigem o processo equitativo – cf. art. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, arts. 2.º, 8.º, n.º 2, e 20.º, n.ºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa, e art. 3.º do CPC.
Aqui se integra a garantia dos direitos de defesa, cuja dimensão mais impressiva é a do exercício do princípio do contraditório, implicando, desde logo, a proibição de indefesa, traduzida na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe são respeitantes.
A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses.[3]
A efectividade do direito de defesa pressupõe o conhecimento pelo demandado do processo contra ele instaurado; o conhecimento, pelas partes, das decisões proferidas no processo; o conhecimento da conduta processual da parte contrária; a concessão de um prazo razoável para o exercício dos direitos de oposição e de resposta; e a eliminação ou atenuação de gravosas preclusões ou cominações, decorrentes de uma situação de revelia ou ausência de resposta à conduta processual da parte contrária, que se revelem manifestamente desproporcionadas.[4]
O que se consigna é válido tanto no âmbito das acções, como dos procedimentos cautelares, sendo a citação um dos momentos chave do processo, por representar o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu (ou requerido) de que foi proposta contra ele determinada acção (ou providência) e se chama ao processo para se defender – cf. art. 219.º, n.º 1, do CPC.
Trata-se, por conseguinte, de um acto processual fulcral que visa garantir o direito de qualquer pessoa se defender ou deduzir oposição, de modo a evitar que seja confrontada com uma decisão judicial não esperada, tudo como corolário lógico do princípio do contraditório.
Ora, sendo esta a ratio da citação, há que rodear de especiais cautelas e da maior atenção este acto fundamental, por forma a que ninguém seja surpreendido com uma decisão judicial, na qual não pôde fazer valer os seus argumentos, por menor cuidado na sua localização e por falta de citação directa e pessoal.
Assim sendo, há uma gradação de intensidade, sendo o mais gravoso a total omissão do acto de citação, e a arguição só é atendida, se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citando, competindo a este provar a existência de prejuízo à sua defesa – cf. arts. 188.º e 191.º, ambos do CPC.
De acordo com o art. 225.º, n.º 1, do CPC, alusivo às modalidades de citação, a citação de pessoas singulares, como é a situação do requerido, pode ser pessoal ou edital; no primeiro caso:
“(…) 2. A citação pessoal é feita mediante: (…) b) Entrega ao citando de carta registada com aviso de receção, seu depósito, nos termos do n.º 5 do artigo 229.º, ou certificação da recusa de recebimento, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo;
(…) 4. Nos casos expressamente previstos na lei, é equiparada à citação pessoal a efetuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do ato, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento”.
Retomando o caso em apreço, e para poder apreciar-se a pretensão carreada pelo requerido, deve chamar-se à colação o segmento pertinente do art. 228.º, o qual, sob a epígrafe “Citação de pessoa singular por via postal”, estatui que:
“1. A citação de pessoa singular por via postal faz-se por meio de carta registada com aviso de receção, de modelo oficialmente aprovado, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho, incluindo todos os elementos a que se refere o artigo anterior e ainda a advertência, dirigida ao terceiro que a receba, de que a não entrega ao citando, logo que possível, o faz incorrer em responsabilidade, em termos equiparados aos da litigância de má fé.
2. A carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de receção, ao citando ou a qualquer pessoa que se encontre na sua residência ou local de trabalho e que declare encontrar-se em condições de a entregar prontamente ao citando.
3. Antes da assinatura do aviso de receção, o distribuidor do serviço postal procede à identificação do citando ou do terceiro a quem a carta seja entregue, anotando os elementos constantes do cartão do cidadão, bilhete de identidade ou de outro documento oficial que permita a identificação.
4. Quando a carta seja entregue a terceiro, cabe ao distribuidor do serviço postal adverti-lo expressamente do dever de pronta entrega ao citando. (…)”.
Por seu turno, decorre do n.º 1 do art. 230.º, epigrafado “Data e valor da citação por via postal”, que: “A citação postal efetuada ao abrigo do artigo 228.º considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário”.
Quando a citação da pessoa singular se tenha realizado por via postal registada em pessoa que não é o próprio requerido – como aconteceu no caso sub iudicio –, a lei adjectiva prescreve uma cautela adicional: a Secretaria fica adstrita ao envio de nova carta, desta feita um ofício de notificação nos moldes do art. 233.º do CPC.
Este preceito, com o título “Advertência ao citando, quando a citação não haja sido na própria pessoa deste”, prescreve: “Sempre que a citação se mostre efetuada em pessoa diversa do citando, em consequência do disposto no n.º 2 do artigo 228.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior, ou haja consistido na afixação da nota de citação nos termos do n.º 4 do artigo anterior, é ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando, comunicando-lhe:
a) A data e o modo por que o ato se considera realizado;
b) O prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta;
c) O destino dado ao duplicado; e
d) A identidade da pessoa em quem a citação foi realizada.».
Recapitulando os termos em que se equaciona o problema em apreço: presume-se, salvo prova em contrário, que o citando, aqui requerido, teve oportuno conhecimento da citação (pessoal), dado que, apesar de ter sido efectuada em pessoa diversa do citando, a carta de citação com aviso de recepção foi entregue a uma pessoa e que se encontrava no local de residência do requerido, mais se presumindo, salvo demonstração em contrário, que tal carta lhe foi oportunamente entregue – arts. 228.º, n.ºs 1 e 2, e 230.º, n.º 1.
Nos termos do art. 341.º do Código Civil, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, havendo que tomar em consideração todas as provas produzidas, independentemente de quem as devia produzir, no dizer do art. 413.º do Código de Processo Civil.
O requerido subsumiu o seu caso à previsão legal do art. 188.º, n.º 1, al. e), que dita: “Há falta de citação: (…) Quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”, convocando, ainda, as normas dos arts. 225.º, n.º 4 e 230.º, n.º 1, todos do CPC.
A arguição da falta/nulidade da citação convoca a análise das presunções, consabido que são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido e que as presunções legais podem, em regra, ser ilididas mediante prova em contrário – cf. arts. 349.º e 350.º, n.º 2, ambos do Código Civil.
Vigorando a presunção legal de que o requerido está(va) citado pessoalmente, na repartição do ónus de prova, o mesmo estava vinculado a produzir a prova em contrário, de que a norma fala, por qualquer meio legalmente admissível, v.g., mediante a inquirição de testemunhas, quanto aos “factos necessitados de prova” (art. 410.º do CPC), ou seja, que não tomou conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável, para que a sua tese tivesse vencimento.
Assim, concatenando a predita matéria factual, verifica-se que foi expedida carta de citação com aviso de recepção, para a morada do requerido, a qual foi recebida por pessoa que estava em perfeitas condições para a receber; subsequentemente, foi endereçada nova notificação para a mesma morada do requerido, a atestar que a citação se tinha por realizada, a qual foi novamente recebida, ficando ao dispor do requerido. Nessa sequência, o requerido deduziu a oposição ao procedimento cautelar, em 28-02-24, juntando procuração forense a favor da sua ilustre mandatária judicial.
É facto notório que em Portugal está em curso, há largos anos, o processo de transição digital, a que os tribunais não foram alheios, razão pela qual, mesmo quando existe suporte físico da acção, os actos processuais estão sempre disponíveis para exame e/ou sindicância dos mandatários, bastando que se faça a consulta electrónica do processo a que se reportam. Tudo isto é obviamente do conhecimento de qualquer profissional ao serviço da Justiça.
A plataforma informática Citius está em funcionamento há largos anos e a prática de actos processuais cíveis faz-se obrigatoriamente por seu intermédio, sendo certificação da existência e do conteúdo concreto daqueles actos assegurada e legalmente deferida à própria aplicação informática – cf. Portaria n.º 280/2013, de 26-08, que regula a tramitação electrónica dos processos judiciais.
Por conseguinte a alegação do requerido não colhe, uma vez que estando devidamente patrocinado por advogado, este não podia, nem pode desconhecer, a obrigação de consultar o processo digital, mais a mais tratando-se de procedimento cautelar com consequências tão gravosas para o requerido.[5]
Se tem feito essa consulta facilmente teria detectado a situação que veio suscitar (extemporaneamente!), sendo certo que, após a prática do acto processual consistente na apresentação da oposição, de 28-02-24, o requerido interveio no processo, através da sua ilustre mandatária judicial, em variadíssimas ocasiões, antes de deduzir o requerimento que apresentou em 19-04-24.
Com efeito, após ter sido citado, o requerido: foi notificado do requerimento da parte contrária, apresentado em 13-03-24 (ref.ª citius 6461547); foi notificado do requerimento da parte contrária, apresentado em 02-04-24 (ref.ª citius 6483527); foi notificado do despacho de 03-04-24, que designou data para a audiência final (ref.ª citius 95156410); apresentou o requerimento de 16-04-24 (ref.ª citius 6521130); foi notificado do despacho de 17-04-24 (ref.ª citius 95270772); apresentou o requerimento de 18-04-24 (ref.ª citius 6527762)…
É, pois, inequívoco que além das condições da citação/notificação do requerido terem sido correctamente observadas, não foi postergada qualquer formalidade legal: a modalidade de citação foi a pessoal, por intermédio de via postal registada, e foi recepcionada a notificação relativa à advertência, em virtude da citação/notificação não ter sido feita na própria pessoa, e novamente deixada para conhecimento do requerido.
Do que se extrai que se o requerido não tomou conhecimento do requerimento inicial do procedimento cautelar completo, sibi imputet, não se verificando qualquer falta de fundamentação de direito e/ou falta de pronúncia, por violação dos dispositivos legais que indicou.
Improcede, por conseguinte, a 1.ª questão de recurso, atinente à nulidade do despacho de 22-04-2024, relativa à invocada falta e/ou nulidade da notificação do requerido.
Neste ponto questionam-se os despachos de 17-04-2014 – “Por estar em tempo admito o depoimento de parte do requerido CC, bem como as declarações de parte da requerente./ Requerimento apresentado por o requerido CC. Mantenho a data e diligência agendada, por seguramente haver um lapso na leitura das peças processuais./ Notifique sendo que pessoalmente o requerido” – e de 22-04-2024 – “Quanto à alteração do rol de testemunhas e aditamento do mesmo é possível a alteração dos mesmos nos termos do artº 598º, do C. P. Civil até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, isto para o processo declarativo, quanto ao processo cautelar os prazos são reduzidos a metade, razão pela qual entendemos ser admissível a alteração do rol e aditamento ao mesmo”.
Entende o requerido que esses despachos estão feridos de nulidade por violação do disposto nos arts. 3.º, n.º 3, 365.º, n.º 1, 598.º e 294.º, ex vi n.º 3 do art. 365.º, sendo ainda nulos por falta de fundamentação e por contradição, nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), todos do CPC, devendo anular-se todo o processado subsequente.
Recapitulando, com interesse para apreciar esta questão, está provado que:
(a) No requerimento inicial foram arroladas 6 testemunhas (Dr. II, Dra. GG, Dr. JJ, Dr. HH, Dr. KK e LL).
(b) Por despacho de 03-04-24 foi designada data para a audiência final (22-04-24).
(c) Por requerimento de 16-04-24 as requerentes vieram “alterar o seu Requerimento de Prova”, requerendo o depoimento de parte do requerido, declarações de parte da requerente AA e arrolando 9 testemunhas (as 6 já constantes do requerimento inicial e, ainda, MM, Dr. NN e OO).
(d) Por despacho de 17-04-24, o tribunal a quo decidiu: “Por estar em tempo admito o depoimento de parte do requerido CC, bem como as declarações de parte da requerente./ Requerimento apresentado por o requerido CC./ Mantenho a data e diligência agendada, por seguramente haver um lapso na leitura das peças processuais./Notifique sendo que pessoalmente o requerido”.
(e) Na 1.ª sessão da audiência final do procedimento cautelar, de 22-04-24, o tribunal a quo decidiu:“(…) Quanto à alteração do rol de testemunhas e aditamento do mesmo é possível a alteração dos mesmos nos termos do artº 598º, do C. P. Civil até 20 dias antes da data em que se realiza a audiência final, isto para o processo declarativo, quanto ao processo cautelar os prazos são reduzidos a metade, razão pela qual entendemos ser admissível a alteração do rol e aditamento ao mesmo”.
(f) Na acta da 1.ª sessão da audiência final do procedimento cautelar, de 22-04-24, após a notificação daquele despacho, ficou, ainda, consignado: “De seguida, o Mm. Juiz concedeu a palavra à Ilustre Mandatária do requerido, tendo a mesma, no uso da palavra comunicado ao Tribunal que o Requerido se encontra doente e por tal facto impossibilitado de estar presente no Tribunal, no dia de hoje./ Após, o Mm. Juiz concedeu a palavra à Ilustre Mandatária das Requerentes tendo pela mesma sido dito não prescindir do depoimento de parte do Requerido. No entanto não se opõe a que seja alterada a ordem de produção de prova e sejam tomadas declarações de parte à Requerente AA e sejam inquiridas as testemunhas presentes./ Mais disse prescindir da inquirição das testemunhas de nome HH e LL./ Não prescindir da inquirição das testemunhas GG, KK, QQ e NN, requerendo seja designada nova data para o efeito”.
(g) Nessa sequência, o tribunal a quo decidiu: “Despacho/ Aguardem os autos a junção do comprovativo./ Uma vez que as testemunhas GG, KK regularmente notificadas não compareceram, nem justificaram a sua falta, condenam-se na multa que se fixa em 2 UC´s./ Uma vez que não foi prescindido o seu depoimento no final da audiência será designada data para a sua inquirição./ Notifique”.
(h) Na 1.ª sessão da audiência final, de 22-04-24, foi ouvida a requerente AA, em declarações de parte, e inquiridas as testemunhas, arroladas pelas requerentes, RR e OO.
(i) Na 2.ª sessão da audiência final, de 20-05-24, foi ouvido o requerido CC, em depoimento de parte, e inquirida a testemunha, arrolada pelas requerentes, JJ.
Quid juris?
O art. 365.º do CPC, a respeito do processamento dos procedimentos cautelares, contém a seguinte disciplina:
“1. Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão. (…)
3. É subsidiariamente aplicável aos procedimentos cautelares o disposto nos artigos 293.º a 295.º”.
Destarte, o art. 294.º, n.º 1, aplicável por via do disposto no art. 365.º, n.º 3, ambos do CPC, estabelece, para os procedimentos cautelares, o limite de cinco testemunhas por parte.
Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao citado art. 365.º do CPC: “Não obstante o disposto no n.º 1 quanto ao momento do oferecimento da prova, tal não impede que, posteriormente aos articulados, a parte junte documentos até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (art. 423.º, n.º 2) (RP 17/3/2009 (3368/08); RE 23/4/2020 (543/18)). Quanto aos outros meios de prova, não é admissível a sua apresentação depois do requerimento inicial e da oposição, não sendo, assim, aplicável aos procedimentos cautelares o disposto no art. 598.º (RC 1/2/2022 (488/21)”.[6]
A este respeito, expendeu-se no Acórdão desta 3.ª Secção da Relação de Coimbra, de 01-02-2022, Proc. n.º 488/21.6T8MGR-A.C1: “No que ao oferecimento da prova se refere, em relação aos procedimentos cautelares, dispõe o art. 365 nº1 do C.P.C que a prova do direito ameaçado e do receio de lesão deve ser oferecida com o r.i., à semelhança aliás do disposto para os acidentes da instância, conforme decorre do disposto no art. 293 do C.P.C., aplicável por via da remissão do nº3 do citado preceito legal.
Existindo contraditório do requerido prévio à decisão, na oposição deduzida deve este oferecer igualmente os seus meios de prova, seguindo-se após, sem mais articulados, a fase da audiência final.
Assim sendo, nos procedimentos cautelares, os meios de prova terão de ser requeridos com o requerimento inicial e com a oposição que lhe vier a ser deduzida. E, dada a natureza urgente deste procedimento, não são admitidos outros articulados, mormente de resposta a eventuais excepções, sem prejuízo do disposto no art. 3 nº4 do C.P.C, nem apresentação posterior de novos meios de prova.
Da conjugação destes preceitos legais resulta que o legislador estabeleceu momentos processuais para a apresentação de meios de prova pelas partes neste tipo de procedimentos, sob pena de preclusão deste direito para ambas as partes, sem prejuízo da produção de meios de prova pelo tribunal, oficiosamente, conforme decorre do disposto no artº 367 nº1 do C.P.C.
Não é assim aplicável aos procedimentos cautelares, pela sua urgência, o disposto no artº 598 do C.P.C., sem prejuízo da possibilidade de junção de documentos nos momentos processuais previstos no artº 423 do C.P.C., aliás admitida pelo tribunal recorrido, por tal junção não contender com a natureza urgente deste procedimento [Neste sentido vide Ac. do TRP de 17/03/2009, proferido no proc. nº 3368/08.7TJVNF-A.P1]”.
Aderindo ao entendimento referido, é inequívoco que decorre do art. 365.º, n.º 1, do CPC, que não é admissível a apresentação de novos meios de prova depois do requerimento inicial e da oposição, não sendo, assim, aplicável aos procedimentos cautelares o disposto no art. 598.º – o que não impede que, posteriormente aos articulados, a parte junte documentos até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (art. 423.º, n.º 2, do CPC).
Porém, a realidade é que, na situação vertente, apenas acabaram por ser inquiridas três das testemunhas indicadas pelas requerentes, razão pela qual não se considera ter ocorrido qualquer vício que inquine a produção de prova, sendo certo, outrossim, que as declarações de parte e o depoimento de parte sempre poderiam ser oficiosamente determinados pelo tribunal a quo.
Tal como expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-09-2015, Proc. n.º 912/14.4TBVCT-A.G1, exarado a respeito de um procedimento cautelar: “O artigo 466.º NCPC não estabelece qualquer proibição direta de o tribunal poder determinar a realização de tal meio de prova oficiosamente, importando notar que, por força do princípio do inquisitório, incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (artigo 411.º NCPC). Por outro lado, importa notar que o artigo 466.º nº 2 NCPC estabelece que “às declarações das partes se aplica o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.” Precisamente, na secção anterior, no artigo 452.º nº 1 estabelece-se que “o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da. causa”, o que claramente permite que o tribunal determine oficiosamente a realização de tal meio de prova”.
Em face do supra exposto, entende-se que os despachos de 17-04 e 22-04-24 não estão feridos de qualquer nulidade – por alegada violação do disposto nos arts. 3.º, n.º 3, 365.º, n.º 1, 598.º e 294.º, ex vi n.º 3 do art. 365.º do CPC –, ou que sejam nulos por falta de fundamentação e por contradição, nos termos do art. 615.º, n.º 1, als. b) e c), também do CPC, sendo certo que, segundo o n.º 1 do art. 195.º do mesmo Código, “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, o que não é o caso.
De harmonia, julga-se improcedente a 2.ª questão do recurso.
Destarte, improcede, na íntegra, o recurso de apelação interposto pelo requerido CC, em 24-04-24.
É tempo, então, de avançar na análise do recurso interposto pelas requerentes, em 02-08-2024, da decisão final que julgou improcedente o procedimento cautelar comum visando a remoção do cabeça-de-casal.
Visto o pano de fundo que subjaz ao procedimento, debrucemo-nos, pois, sobre as várias questões do recurso.
(III) Da nulidade da sentença por contradição entre os factos provados e a decisão proferida pelo tribunal a quo.
A este propósito defendem as recorrentes que a fundamentação da sentença está em completa oposição com a decisão proferida pelo tribunal a quo, na qual se diz que não foram alegados, nem provados factos que:
(i) preencham os requisitos da sonegação de bens – constando dos factos dados como provados factos que preenchem a referida alínea, a saber: os factos provados n.ºs 21, 22, 24, 25, 26, 27 e 40;
(ii) que permitam concluir pela administração imprudente do cabeça-de-casal – constando dos factos dados como provados, factos que preenchem a referida alínea, a saber: os factos provados n.ºs 31, 33, 36, 38, 40, 46 e 47;
(iii) que traduzam o incumprimento no processo de inventário dos deveres de actuação que a lei impõe ao cabeça-de-casal – constando dos factos dados como provados, factos que preenchem a referida alínea, a saber: os factos provados n.ºs 16, 20, 22, 23, 28 e 29.
(iv) que reflictam a incompetência para o exercício do cargo – constando dos factos dados como provados, factos que preenchem a referida alínea, a saber: os factos provados n.ºs 26, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 46 e 47.
Em consonância, sustentam as recorrentes, a sentença é nula por violação do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC.
Vejamos.
As causas determinantes da nulidade da sentença encontram-se taxativamente elencadas no n.º 1 do art. 615.º do CPC:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
No que tange à nulidade prevista na al. c), importa chamar à colação o art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, afirmando-se que a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara, coerente e suficiente.[7]
A cominação tão gravosa para o vício de oposição entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório, implica infalivelmente que ocorra um conflito lógico, em que a conclusão surge como incoerente e incompatível, em face do anterior raciocínio explanado na subsunção e argumentação jurídicas.[8]
De harmonia, se na fundamentação da sentença o tribunal seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, essa oposição será causa de nulidade da sentença.
Por conseguinte, esta nulidade apenas se verificará quando a fundamentação aduzida é contrariada pelo resultado final, quando se infringe o chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão.[9]
Ou seja, a nulidade da sentença, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, pressupõe um erro de raciocínio lógico, consistente no facto de a decisão proferida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: ocorre quando os fundamentos invocados implicariam necessariamente a prolação de uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
Coisa diversa é o próprio silogismo estar errado no seu mérito, por conter uma contradição com os factos ou na aplicação do direito: trata-se de erro do julgamento de facto ou do julgamento de direito (error facti/error juris), seja por erro de subsunção dos factos à norma jurídica aplicável, seja por erro na determinação de tal norma ou por erro na sua interpretação. Nestas hipóteses não se regista a nulidade cominada pelo art. 615.º, n.º 1, al. c).
In casu, o que se verifica é que as recorrentes, apesar de apodarem a sentença de nula, por suposta oposição entre a fundamentação e a decisão, acabam por conformar a questão no contexto de uma errada apreciação das questões de Direito, por considerarem que a factualidade apurada, contrariamente ao afirmado na sentença, preenchia os requisitos da sonegação de bens (factos n.ºs 21, 22, 24, 25, 26, 27 e 40), da administração imprudente do cabeça-de-casal (factos n.ºs 31, 33, 36, 38, 40, 46 e 47), do incumprimento no processo de inventário dos deveres de actuação que a lei impõe ao cabeça-de-casal (factos n.ºs 16, 20, 22, 23, 28 e 29), e, da incompetência para o exercício do cargo (factos n.ºs 26, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40, 46 e 47), tendo, todavia, a sentença entendido que a factualidade não era reconduzível a nenhum de tais requisitos.
Como já antes se asseverou, o erro de interpretação dos factos e/ou do direito ou na aplicação deste constitui erro de julgamento (error in judicando), e não o vício de nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão, conforme é jurisprudência pacífica: cf., entre muitos, v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-07-2015, Proc. n.º 5024/12.2TTLSB.L1.S1; de 03-03-2021, Proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1; e de 09-03-2022, Proc. n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1.[10]
No caso em apreço o que existe é, reitera-se, uma discordância das recorrentes com o teor da decisão e/ou com os seus fundamentos, categoria distinta e não confundível com o vício de nulidade por contradição dos fundamentos com a decisão, alcançando-se perfeitamente da leitura da decisão impugnada que a fundamentação, de facto e de direito, e o segmento decisório não são logicamente inconciliáveis, concluindo-se não ocorrer a nulidade que lhe foi assacada.
Improcede, assim, esta questão do recurso.
(…).
1. DD faleceu no dia 10 de Fevereiro de 2008, no lugar da cidade ..., na freguesia ..., concelho ..., sem testamento ou outra disposição de última vontade, no estado de casado em primeiras núpcias e sob o regime de comunhão geral com EE.
2. EE faleceu no estado de viúva do inventariado DD, na cidade ..., no dia 21 de Fevereiro de 2019, sem testamento ou outra disposição de última vontade.
3. Os inventariados deixaram como únicos herdeiros:
a. CC, divorciado, residente na Rua ..., Quinta ..., ....
b. SS, residente na Rua ..., ..., ....
c. Netas do filho pré-falecido TT: BB, solteira, maior, residente na Rua ..., ..., ... e AA, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com UU, residente na Rua ..., ..., ....
4. O acervo hereditário integra, entre outros bens, participações sociais na A..., S.A., pessoa colectiva n.º ...88, com sede Rua ..., ..., ... ..., com o Capital Social de € 6 811 580,00 (seis milhões, oitocentos e onze mil, quinhentos e oitenta euros).
5. As acções da A..., S.A., distribuem-se da seguinte forma:
• Herança Aberta ilíquida e indivisa, aberta por óbito de DD, detentora de 1 048 710 de acções, com o valor nominal de € 5 243 550,00 (cinco milhões, duzentos e quarenta e três mil, quinhentos e cinquenta euros);
• Herança Aberta ilíquida e indivisa, aberta por óbito de EE, detentora de 288 602 de acções, com o valor nominal de € 1 443 010,00 (um milhão, quatrocentos e quarenta e três mil e dez euros);
• CC, detentor de 12 502 de acções, com o valor nominal de € 62.510,00 (sessenta e dois mil e quinhentos e dez euros);
• SS, detentor de 12 502 de acções, com o valor nominal de € 62.510,00 (sessenta e dois mil, quinhentos e dez euros);
6. O cabeça-de-casal CC, nessa qualidade, representa 1 337 312 de acções, cujo valor nominal é de € 6 686 560,00 (seis milhões, seiscentos e oitenta e seis mil, quinhentos e sessenta euros), totalizando 1 337 312 das acções.
7. À data do óbito de EE, em 21 de Fevereiro de 2019, a A..., S.A., detinha o seguinte património:
• Prédio Urbano sito na Rua ..., ..., inscrito na Matriz Predial Urbana, da União das Freguesias ... e ..., sob os artigos n.º ...09 e ...23, tendo sido avaliado em € 5 500 000,00 (cinco milhões e quinhentos mil euros) em 26 de Dezembro de 2019.
• Prédio Urbano sito na Rua ..., ..., inscrito na ... e VV, sob o artigo n.º ...61, tendo sido avaliado em € 4 785 970,00 (quatro milhões, setecentos e oitenta e cinco mil, novecentos e setenta euros) em 27 de Dezembro de 2019.
• Prédio Urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na ... e VV, sob o artigo n.º ...61, tendo sido avaliado em € 4 186 786,00 (quatro milhões, cento e oitenta e seis mil, setecentos e oitenta e seis euros) em 27 de Dezembro de 2019.
• Prédio Urbano sito na Rua ... (Av. ...), n.º 23, ..., inscrito na Matriz Predial Urbana da Freguesia ..., tendo sido avaliado em € 945 650,00 (novecentos e quarenta e cinco mil, seiscentos e cinquenta euros) em 10 de Fevereiro de 2020.
8. A A..., S.A., cujas heranças detêm 98,2% das acções, possuía, à data do óbito da inventariada EE, um património imobiliário com um valor superior a € 15 418 406,00 (quinze milhões, quatrocentos e dezoito mil, quatrocentos e seis euros).
9. A A..., S.A., possuía, nas instalações industriais, máquinas, ferramentas e matérias primas, de valor não apurado, aproximadamente € 7 000 000,00 (sete milhões de euros).
10. No dia 22 de Abril de 2020 foi realizada uma transferência de € 4 000 000,00 (quatro milhões de euros), da conta n.º ...79, que integra o acervo hereditário, para a conta n.º ...54, pertencente à A..., S.A., do Banco 1....
11. As requerentes desconhecem o que sucedeu a € 4 000 000,00 (quatro milhões de euros), que saíram do seu património hereditário para entrar no Património da A..., S.A.
12. A A... S.A., suspendeu a sua produção no dia 2 de Fevereiro de 2024.
13. A A..., S.A., apresentou-se junto do Juízo de Comércio em Viseu com um Processo Especial de Revitalização, que corre os seus termos no Juiz ..., do Juízo de Comércio de Viseu do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, sob o n.º 562/24.....
14. Contactado por via telefónica, no pretérito dia 6 de Fevereiro, atento o carácter de urgência, o requerido, na pessoa do seu mandatário, pelo Processo Especial de Revitalização, o mesmo não forneceu qualquer informação às requerentes.
15. As requerentes realizaram um pedido de consulta dos autos para poderem aceder à informação.
16. Retirado - Conclusivo.
17. As requerentes têm conhecimento que o imóvel sito na Rua ..., ..., já não é propriedade da A..., S.A., tendo sido realizada uma permuta, cujos termos as requerentes desconhecem e apesar de solicitarem por diversas vezes a informação.
18. No requerimento inicial do Processo de Inventário n.º 239/21...., as requerentes transmitiram que o cabeça-de-casal das heranças, no âmbito da administração das empresas, em especial a A..., S.A., não prestava as informações solicitadas.
19. Já em 2021, referiam as requerentes que o cabeça-de-casal não procedia à apresentação de contas.
20. O cabeça-de-casal não procedeu à prestação de contas referente aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023.
21. Até à presente data, não informou as requerentes do negócio que realizou, quanto ao prédio urbano sito na Rua ..., ..., na qualidade de administrador, eleito na Assembleia Geral de Accionistas, cujo poder de voto lhe advém da qualidade de cabeça-de-casal.
22. O cabeça-de-casal ainda não justificou devidamente no Processo de Inventário, o motivo de ter procedido à transferência da conta n.º ...79 do Banco 2..., titulada pela Inventariada EE, a quantia de € 69.700,00 (sessenta e nove mil e setecentos euros), para a sua conta pessoal n.º ...98, no dia 29 de Junho de 2021.
23. Volvidos quase três anos do início do Processo de Inventário, o cabeça-de-casal ainda não apresentou a Relação de Bens completa.
24. O cabeça-de-casal não relacionou a totalidade dos direitos de crédito, titulares de crédito, valores imobiliários e demais instrumentos financeiros.
25. Com as informações provenientes dos ofícios às entidades bancárias, está a ser possível relacionar essas verbas.
26. O cabeça-de-casal ainda não enumerou os objectos de ouro e prata da família.
27. Quanto ao ponto de situação actual dos montantes que integram o acervo hereditário, relativos ao Banco 3..., o cabeça-de-casal referiu que existe um crédito reconhecido sob a massa insolvente no Banco 3..., no valor de € 7 873 108,29 (sete milhões, oitocentos e setenta e três mil, cento e oito euros e vinte e nove cêntimos), juros comuns reconhecidos na massa insolvente no Banco 3... no valor de € 555 866,83 (quinhentos e cinquenta e cinco mil, oitocentos e sessenta e seis euros e oitenta e três cêntimos) e juros subordinados reconhecidos no valor de € 61 163,54 (sessenta e um mil, cento e sessenta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos).
28. As requerentes desconhecem quais as diligências que o cabeça-de-casal tem tomado quanto a esta situação e se as mesmas acautelam a boa administração do património hereditário.
29. Apesar de por diversas vezes o solicitarem.
30. Por despacho de 7 de Setembro de 2021, coube ao requerido CC, a título provisório, o cargo de cabeça-de-casal, relegando-se a nomeação do administrador judicial, após o exercício do contraditório.
31. Retirado - Conclusivo.
32. Retirado - Conclusivo.
33. Retirado - Conclusivo.
34. Além do património imobiliário, a herança tem suprimentos da sociedade A..., S.A., no valor de € 5 600 000,00 (cinco milhões e seiscentos mil euros) e prestações acessórias no valor de € 10 100 00,00 (dez milhões e cem mil euros).
35. Retirado - Conclusivo.
36. O cabeça-de-casal não comunicou às requerentes a apresentação da A..., S.A., a um Processo Especial de Revitalização.
37. Retirado - Conclusivo.
38. Decorridos três anos, o cabeça-de-casal ainda não justificou devidamente o que enumerou na verba 17 de Relação de Bens: “o produto do resgate destinou-se a liquidar € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros) do financiamento de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros) contraído por EE”.
39. Os instrumentos financeiros de crédito utilizados junto do Banco 1..., englobavam os três titulares, sendo devedores daquela instituição de forma solidária, o cabeça-de-casal, o co-herdeiro SS e a inventariada EE.
40. O cabeça-de-casal juntamente com o co-herdeiro SS, em 31 de Março de 2020, com o total desconhecimento das requerentes, deram ordem de transferência de € 2 000 000,00 (dois milhões de euros) da conta pertencente à herança n.º ...35 para a conta caucionada n.º ...58, pedindo o seu encerramento.
41. O contrato de penhora específico sobre direitos de crédito associado à conta corrente caucionada n.º ...58, foi celebrado pela inventariada, pelo cabeça-de-casal e pelo co-herdeiro SS.
42. A referida ordem de transferência determinou que as requerentes tivessem suportado a quantia de € 666 666,66 (seiscentos e sessenta e seis mil, seiscentos e sessenta e seis euros e sessenta e seis cêntimos), quando apenas poderia ser imputado a quantia de € 222 222,22 (duzentos e vinte e dois mil, duzentos e vinte e dois euros e vinte e dois cêntimos).
43. Quanto ao negócio de permuta, que a A..., S.A., realizou do imóvel sito na Rua ..., ... da União das Freguesias ... e ..., cujo valor de avaliação se cifra em € 5 500 000,00, foi realizada uma Escritura Pública no Cartório Notarial a cargo de WW, que determinou que a A... receba:
“Moradia 3-A de tipologia T2, constituída por hall, três quartos duplos, sala e duas varandas, no valor atribuído de €876.620,83;
Moradia 4-C, de tipologia T2, constituída por cozinha, hall, lavandaria, dois quartos duplos, sala e duas varandas, no valor atribuído de €469.941,06;
Moradia 5-B, de tipologia T3 duplex, constituída por cozinha, hall, lavandaria, sala, três quartos duplos e logradouro exterior, no valor atribuído de €953.438,11;
O pagamento da contrapartida pecuniária será efetuado da seguinte forma:
€ 1.900.000,00 já entregues através de transferência da conta ordenante ...19 para o destino ...05 (A...), de que os primeiros outorgantes dão a devida quitação;
€ 750.000,00 que serão entregues até ao dia 20 de Setembro de 2022 por transferência bancária efetuada das contas acima referidas.”
44. Retirado - Conclusivo.
45. No Plano de Revitalização da A..., S.A., consta que “em cumprimento da escritura de permuta de bens presentes por bens futuros outorgada a 07/09/2022, a A... tem direito a receber ainda: o pagamento de uma prestação pecuniária de 200.000,00 € aquando da finalização da estrutura de betão do prédio a ser construído; o pagamento de uma prestação pecuniária de 216.110,02 € aquando da emissão do respectivo alvará de licença de utilização do prédio a ser construído; a entrega da moradia 3-A de tipologia T3 Duplex situada na Rua ... no ....”.
46. O requerido ratificou as deliberações da realização de prestações acessórias em dinheiro no valor de € 10 100 000,00 (dez milhões e cem mil euros) até ../../2020.
47. Tendo ainda aprovado que as prestações acessórias seriam gratuitas até ao limite máximo de € 15 000 000,00 (quinze milhões de euros), conforme acta do dia 1 de Junho de 2020 da A..., S.A..
48. Fazem parte do acervo hereditário a titularidade das acções detidas na sociedade B..., S.A, por óbito de DD e de EE.
49. O inventariado DD consta dos registos daquela sociedade como: a) titular de 4 (quatro) acções ordinárias; b) titular de um crédito de suprimentos no valor de € 292 836,55 (duzentos e noventa e dois mil, oitocentos e trinta e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos); e c) titular de um crédito de redução de suprimentos no valor € 7 163,45 (sete mil cento e sessenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos – a pagamento) – decorrente de um pagamento intercalar de suprimentos deliberado em 2016.
50. O requerido e o seu irmão SS, utilizam a quinta da família com duas casas, uma das casas com piscina interior, sauna, cozinha, copa, sala de estar com lareira no chão, sala de jantar, lavandaria, 6 suites com casa de banho, 1 casa com 3 quartos, cozinha, sala de jogos, sala de jantar, sala de estar, armeiro, lavandaria, um motel com dois quartos e wc, uma piscina com medidas olímpicas, um campo de ténis com piso rápido, dois lagos naturais de dimensão considerável, uma gaiola de grandes dimensões para pássaros e inúmeras árvores de fruto, como sua residência pessoal, não possibilitando tal utilização às requerentes e não proporcionando à família rendimentos.
51. O cabeça-de-casal mantém fechado o apartamento sito na ..., correspondente a um T5 situado no 9.º andar, com vista mar e com uma área bruta privativa de 142 metros quadrados, não o arrendando, o que por diversas vezes já foi solicitado pelas requerentes.
(V) Da violação do disposto no artigo 2086.º do Código Civil
A terminar, sustentam as recorrentes que o tribunal a quo violou de forma clara e inequívoca o disposto no artigo 2086.º do Código Civil (CC), acrescendo, que no caso concreto, a providência cautelar é determinante para afastar o periculum in mora concretamente verificado e assegurar a efectividade do direito ameaçado, sendo imprescindível a remoção do cabeça-de-casal a fim de assegurar que o acervo hereditário não continuará a ser sucessivamente “desfalcado”.
Vejamos.
O art. 2086.º do CC refere-se à “remoção do cabeça-de-casal” nos seguintes termos:
“1. O cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem:
a) Se dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança ou de doações feitas pelo falecido, ou se, também dolosamente, denunciou doações ou encargos inexistentes;
b) Se não administrar o património hereditário com prudência e zelo;
c) Se não cumpriu no inventário os deveres que a lei lhe impuser;
d) Se revelar incompetência para o exercício do cargo.
2. Tem legitimidade para pedir a remoção qualquer interessado”.
Destarte, a remoção do cabeça-de-casal pode ocorrer quando se verifique, pelo menos, um dos seguintes fundamentos: (a) sonegação de bens; (b) administração imprudente dos bens da herança; (c) incumprimento, no processo de inventário, dos deveres de actuação que a lei lhe impõe; (d) incompetência para o exercício do cargo.
Por sua vez, o art. 1103.º do CPC, epigrafado “Substituição do cabeça de casal”, dispõe:
“1. O cabeça de casal pode ser substituído a todo o tempo, por acordo de todos os interessados na partilha.
2. A substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal constituem incidentes do processo de inventário, aos quais se aplicam as regras gerais dos incidentes da instância.
3. Se for impugnada a legitimidade do cabeça de casal ou se for requerida a escusa ou a remoção deste, o inventário prossegue com o cabeça de casal designado, até ser decidido o incidente”.
Este preceito legal prevê três situações diversas: (i) a substituição por acordo de todos os interessados; (ii) a apresentação de pedido de escusa pelo cabeça-de-casal; e, (iii) a impugnação da legitimidade ou o pedido de remoção do cabeça-de-casal.
Tal como anotam Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres: “O pedido de remoção deve ser deduzido no prazo da oposição (art. 1104.º, n.º 1, al. c)), salvo se for fundado em circunstâncias supervenientes (art. 588.º, n.º 2), e deve ser fundamentado numa das situações enunciadas no art. 2086.º CC ou em qualquer outra relevante”.[11]
Ao incidente de remoção de cabeça-de-casal é subsidiariamente aplicável o regime geral dos incidentes da instância, previstos nos arts. 292.º a 295.º, por remissão do n.º 1 do art. 1091.º do CPC.
Não obstante o regime geral supra enunciado, não há qualquer obstáculo processual a que seja intentado um procedimento cautelar comum com vista à remoção (provisória) do cabeça-de-casal, desde que concorram os requisitos legais previstos no CPC.
Com efeito, acompanhando as palavras de Lopes Cardoso, ao analisar a remoção de cabeça-de-casal: “[N]ada repugna que, previamente ao incidente ou até no seu decurso, seja obtida providência cautelar comum que ponha cobro desde logo a actos danosos”.[12]
Em relação às providências cautelares, cujo regime jurídico-processual consta dos arts. 362.º e segs. do CPC, importa salientar os seguintes aspectos legais/processuais:
– Art. 362.º, n.º 1: “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
– Art. 365.º, n.º 1: “Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão”.
– Art. 366.º, n.º 1: “O tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência”.
– Art. 367.º, n.º 1: “Findo o prazo da oposição, quando o requerido haja sido ouvido, procede-se, quando necessário, à produção das provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo juiz”.
– Art. 368.º, n.º 1: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.”
São, por sua vez, pressupostos necessários para o decretamento de um procedimento cautelar comum, previstos no art. 362.º, n.º 1, do CPC:
a) A probabilidade séria da existência do direito tido por ameaçado ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor;
b) O fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
c) A adequação da providência solicitada para remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
d) Que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas no CPC;
e) Que o prejuízo resultante da providência não seja superior ao dano que com ela se pretende evitar.
Para tal, atendendo ao regime plasmado nos arts. 362.º e 368.º do CPC, o requerente da providência há-de afirmar a existência do direito tutelado e o fundado receio de que lhe seja causada uma lesão grave e dificilmente reparável, de forma a possibilitar a aplicação de uma tutela provisória, invocando – e demonstrando –, cumulativamente, os seguintes requisitos:
(i) A séria probabilidade da existência do direito invocado (fumus boni iuris),
(ii) O receio, suficientemente justificado, de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).
No que concerne ao requisito do fumus boni iuris, o art. 368.º, n.º 1, do CPC, ao referir-se à “probabilidade séria da existência do direito”, aponta claramente para a sumario cognitio, sendo suficiente um mero juízo de verosimilhança ou probabilidade.
Já o periculum in mora é um requisito fundamental do procedimento cautelar comum, emergente do n.º 1 do art. 362.º do CPC, apontando para situações de urgência em que a demora na prestação jurisdicional possa afectar, de forma irreparável ou dificilmente remediável, o direito a ser tutelado.
Como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: “Dadas a provisoriedade da medida cautelar e a sua instrumentalidade perante a ação de que é dependência, bastar-lhe-á [ao requerente da providência] fazer prova sumária da existência do direito ameaçado, sem prejuízo de poder fazer prova completa de tal existência (…); mas já não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.[13]
Miguel Teixeira de Sousa acentua: “O periculum in mora nada tem a ver com o ressarcimento de danos, mas antes com um problema completamente distinto: o de saber se, no caso de a providência cautelar solicitada pelo requerente não ser decretada e de, portanto, esta parte só vir a obter a tutela dos seus interesses no momento da tutela definitiva, a lesão que entretanto sofreu é grave e dificilmente reparável (RP 11/4/2019 (257/18): «o fundado receio ou “periculum in mora” cuja verificação é necessária para a procedência do procedimento cautelar comum tem de resultar da alegação de factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo»).”[14]
Destarte, para esconjurar o periculum in mora, no âmbito de um procedimento cautelar, exige-se a irreparabilidade de uma eventual demora na protecção do direito alegado, consistente no perigo, sério e actual, do objecto do processo se perder ou ser gravemente prejudicado em razão do decurso do tempo.
No periculum in mora devem concorrer, pois, dois elementos essenciais: (a) a ameaça iminente; e, (b) o dano irreparável.
Assim, o requerente tem de demonstrar que uma acção ou omissão ameaça infligir, de forma próxima, iminente e real, um dano irreparável a um determinado direito, mediante a apresentação de provas concretas que demonstrem o risco de dano irreparável ou de difícil reparação.
Para tal o requerente deverá, designadamente, descrever detalhadamente a situação de risco, destacando as consequências da demora; apresentar provas robustas quanto à existência do risco de dano irreparável e relatar os prejuízos que a demora da decisão acarretaria.
Revertendo ao caso concreto, o que resultou indiciariamente demonstrado, quanto a possíveis comportamentos violadores dos deveres do cabeça-de-casal, foi, fundamentalmente, o seguinte:
– A 22 de Abril de 2020 foi realizada uma transferência de € 4 000 000,00, de uma conta bancária, que integra o acervo hereditário, para uma outra, pertencente à sociedade A..., S.A., desconhecendo as requerentes o destino específico daquela quantia (n.ºs 10 e 11).
– A A..., S.A., apresentou um Processo Especial de Revitalização, no Juízo de Comércio de Viseu – que o cabeça-de-casal não comunicou às requerentes – e, perante a falta de prestação de qualquer informação, as requerentes realizaram um pedido de consulta dos autos (n.ºs 13, 14, 15 e 36).
– As requerentes têm conhecimento que o imóvel sito na Rua ..., ..., já não é propriedade da A..., S.A., tendo sido realizada uma permuta em 7 de Setembro de 2022, cujos termos as requerentes desconhecem e, apesar de solicitarem por diversas vezes informação, até à presente data, o cabeça-de-casal não as informou do negócio realizado (n.ºs 17 e 21).
– O cabeça-de-casal não procedeu à prestação de contas referente aos anos de 2020, 2021, 2022 e 2023 (n.º 20).
– O cabeça-de-casal não justificou devidamente, no processo de inventário, o motivo de ter procedido, em 29 de Junho de 2021, à transferência de € 69 700,00 (sessenta e nove mil e setecentos euros), de uma conta da inventariada EE para uma sua conta pessoal (n.º 22).
– O cabeça-de-casal ainda não apresentou, no processo de inventário, a relação de bens completa, não relacionou a totalidade dos direitos de crédito, titulares de crédito, valores imobiliários e demais instrumentos financeiros, ainda não enumerou os objectos de ouro e prata da família e não justificou devidamente a verba 17 de relação de bens: “o produto do resgate destinou-se a liquidar € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros) do financiamento de €2.000.000,00 (dois milhões de euros) contraído por EE” (n.ºs 23, 24, 26 e 38).
– As requerentes desconhecem quais as diligências que o cabeça-de-casal tem tomado quanto à situação dos montantes que integram o acervo hereditário, relativos ao Banco 3... – crédito, juros comuns e juros subordinados reconhecidos sob a massa insolvente no Banco 3..., nos valores de € 7 873 108,29, € 555 866,83 e de € 61 163,54 – e se essas diligências acautelam a boa administração do património hereditário, apesar de por diversas vezes o solicitarem (n.ºs 27, 28 e 29).
– O cabeça-de-casal juntamente com o co-herdeiro SS, em 31 de Março de 2020, com o total desconhecimento das requerentes, deu ordem de transferência de € 2 000 000,00, de uma conta pertencente à herança para uma conta caucionada e pediu o seu encerramento (n.º 40).
– O requerido e o seu irmão SS, utilizam a quinta da família com duas casas, uma das casas com piscina interior, sauna, cozinha, copa, sala de estar com lareira no chão, sala de jantar, lavandaria, 6 suites com casa de banho, 1 casa com 3 quartos, cozinha, sala de jogos, sala de jantar, sala de estar, armeiro, lavandaria, um motel com dois quartos e wc, uma piscina com medidas olímpicas, um campo de ténis com piso rápido, dois lagos naturais de dimensão considerável, uma gaiola de grandes dimensões para pássaros e inúmeras árvores de fruto, como sua residência pessoal, não possibilitando essa utilização às requerentes e não proporcionando à família rendimentos (n.º 50).
– O cabeça-de-casal mantém fechado o apartamento sito na ..., correspondente a um T5 situado no 9.º andar, com vista mar e com uma área bruta privativa de 142 metros quadrados, não o arrendando, o que por diversas vezes já foi solicitado pelas requerentes (n.º 51).
Pois bem. A herança é uma universitas iuris representada, enquanto subsiste, pelo cabeça-de-casal, a quem cabe a administração da herança até à sua liquidação e partilha, nos termos que constam do art. 2079.º do CC.
No exercício desse cargo ao cabeça-de-casal compete praticar todos os actos que se mostrem indispensáveis à administração dos bens, neles se incluindo a movimentação de todos os depósitos bancários constituídos ao tempo da abertura da herança, e existentes nas contas correntes bancárias, a cobrança de quaisquer dívidas activas da herança, a aplicação e distribuição de rendimentos e a gestão de todo o património que a integre – cf. arts. 2089.º, 2087.º, 2092.º e 2093.º, todos do CC.
In casu, sem prejuízo de estarem perfunctoriamente demonstrados alguns dos fundamentos para a remoção de cabeça-de-casal, previstos, designadamente, as alíneas b) e c) do art. 2086.º do CC – a saber, administração imprudente dos bens da herança, e o incumprimento dos deveres de actuação que a lei lhe impõe no processo de inventário –, não nos parece que se verifique, de todo, o requisito do periculum in mora.
Com efeito, a generalidade dos factos, com relevância jurídica, que ficaram indiciariamente provados são, todos eles, factos pretéritos, mormente, a transferência de 22 de Abril de 2020, atinente a € 4 000 000,00, de uma conta bancária que integra o acervo hereditário, para uma conta da sociedade A..., S.A.; a permuta do imóvel sito na Rua ..., no ..., que era propriedade da A..., S.A., realizada a 7 de Setembro de 2022; a transferência de € 69 700,00, em 29 de Junho de 2021, de uma conta da inventariada EE para uma conta pessoal do cabeça-de-casal; a ordem de transferência de € 2 000 000,00, em 31 de Março de 2020, de uma conta pertencente à herança para uma conta caucionada, na sequência de ordem dada pelo cabeça-de-casal juntamente com o co-herdeiro SS.
Acresce que a existência dos bens cuja falta as requerentes acusam e as situações indiciariamente provadas nesta sede cautelar, estão em debate no processo de inventário, tendo sido apresentadas respostas às reclamações aí apresentadas e dadas as respectivas justificações.
Não ficou também indiciariamente provada uma outra multiplicidade de factos, especialmente que o requerido se tenha apropriado indevidamente de rendimentos da herança ou que os ande a gastar em proveito próprio, mas ainda que tal ficasse demonstrado – que não ficou! –, tendo a herança variados bens móveis e imóveis, e sabendo-se o valor das quantias em causa, sempre as requerentes poderiam ser compensadas relativamente a tais valores, quando for efectuada a partilha dos bens das heranças, no inventário que se encontra a correr termos, compondo o seu quinhão com outros bens dessa herança, não havendo assim, qualquer prejuízo – em sentido análogo, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15-10-2020, Proc. n.º 772/20.6T8VRL.G1.
Por fim, salienta-se, da leitura atenta do processo de inventário e seus apensos, regista-se que, no pretérito dia 14 de Outubro, as requerentes intentaram “acção especial de prestação de contas” contra o cabeça-de-casal (e o co-herdeiro SS), visando a prestação de contas pela administração dos bens da herança aberta por óbito de DD e EE.
Em consonância, por falta de demonstração do requisito do periculum in mora, improcede o pedido de remoção (provisória) do cabeça-de-casal.
Por todo o exposto, julga-se improcedente o recurso de apelação interposto pelas requerentes.
(…).
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:
1. Em julgar improcedente o recurso de apelação interposto, em 24-04-24, por CC, dos despachos de 17-04 e 22-04-24, relativos à alteração do requerimento probatório, e de 22-04-24, atinente à falta e/ou nulidade da notificação do requerido, invocada em 19-04-24.
2. Em julgar improcedente o recurso de apelação da decisão final, interposto por AA e BB, mantendo, ainda que por motivos e com fundamentação diversa do tribunal recorrido, a decisão de não decretar a remoção do cabeça-de-casal.
Custas processuais decorrentes da improcedência dos recursos, nos termos do art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, a cargo de (1) CC e de (2) AA e BB, respectivamente.
Luís Miguel Caldas
Anabela Marques Ferreira
Hugo Meireles
[3] Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 164.
[4] Cf. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, p. 17.
[5] Cf., em sentido semelhante, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-03-2021, Proc. n.º163/20.9T8CBR.C1, publicado em https://www.dgsi.pt/, tal como os demais arestos que se mencionarem nesta decisão.
[6] Código de Processo Civil Online, Livro II, ed. Set./2024, p. 18, nota 4 (a).
[7] “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. O art. 154.º do CPC concatena-se com este preceito constitucional.
[8] Na senda de Antunes Varela, Bezerra e Sampaio da Nora in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, p. 690: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos direcção diferente.
[9] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 737/738.
[10] Tal como se escreve no ponto II do sumário deste último aresto: “A nulidade da sentença/acórdão prevista no 1º. segmento do al. c) do nº. 1 do citado art. 615.º - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, existindo, pois, uma contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e conclusão/decisão final”.
[11] O Novo Regime do Processo de Inventário e outras alterações da Legislação Processual Civil, 2020, p. 77. Estes autores exaram, na p. 78: “Não pode considerar-se excluída, apesar da literalidade do artigo o não sugerir, a decisão de remoção do cabeça-de-casal por iniciativa do juiz. Em todo o caso, isso pressupõe uma situação grave que evidencie, nomeadamente, qualquer das situações que, nos termos do art. 2086.º CC, justificam a decisão de remoção”.
[12] Partilhas Judiciais, Volume II, 5.ª edição, 2008, p. 136.
Reportando-se a procedimentos cautelares comuns envolvendo a remoção (provisória) de cabeça-de-casal, vide, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14-02-2013, Proc. n.º 1309/12.6TVLSB-A.L1-8, e do Tribunal da Relação do Porto, de 04-04-2024, Proc. n.º 812/20.9T8PVZ-D.P1.
[13] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, pp. 7/8.
[14] Código de Processo Civil Online, Livro II, edição de Setembro/2024, pp. 8/9, nota 15 (a).