I – Para os fins do processo insolvencial, a impossibilidade de cumprimento relevante não tem que ser referente a todas as obrigações do devedor, podendo ser atinente a uma ou poucas dívidas; o que se exige é que, pelo montante e significado da dívida no âmbito do passivo do devedor, seja suficientemente expressiva da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.
II – O art. 20.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação e Empresas, consagra um conjunto de ocorrências típicas ou índices de insolvência, taxativos, mas não cumulativos, e que são juridicamente configurados como uma presunção legal (de insolvência).
III – Estes factos-índice são condição necessária, mas não suficiente, para a procedência do pedido de declaração de insolvência, já que a lei não estabelece a declaração de insolvência como um efeito automático da falta de oposição do devedor, o que corresponderia à consagração de um efeito cominatório pleno.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Juízo de Comércio de Coimbra (J...)
Recorrente: A..., CRL
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
B..., Lda., requereu a declaração de insolvência de C..., Lda., invocando, em síntese e em abono da sua pretensão, que em 15 de Janeiro de 2013, por documento particular – confissão de dívida –, esta declarou-se devedora de 25 765 € (vinte e cinco mil setecentos e sessenta e cinco euros)[2], em virtude da Requerente, no exercício da sua actividade, lhe ter fornecido bens e prestado alguns serviços; tendo-se comprometido a proceder ao pagamento no prazo de seis meses, até ao momento nada liquidou; esta dívida é exigível, vencida e não paga; actualmente, computados os juros moratórios, a dívida ascende a 38 335 € (trinta e oito mil trezentos e trinta e cinco euros); a mesma não tem actividade comercial; tem dívidas a Bancos e fornecedores, designadamente uma dívida superior a 300 000 € (trezentos mil euros) à A...; pende, contra si, o processo de execução com o n.º 2327/24..., de montante superior a 300 000 € (trezentos mil euros), com penhora efectuada aos bens da Requerida, e, por último, tem uma carência de meios próprios e de crédito que a impedem de cumprir pontualmente as suas obrigações.
Citada, a devedora, representada pelos seus dois gerentes, não aduziu contestação e veio «… expressamente declarar que nada tem a opor à acção contra si intentada, em conformidade, deve presente acção ser julgada procedente.».
Pelo que, em 26 de Julho de 2024 foi exarada Sentença, em cujo segmento decisório foi decidido:
«1)Declaro a insolvência de “C... LDA.”, com sede no Lugar ..., ..., ... ... e pessoa colectiva nº ...77;
2) Fixo a residência da insolvente e dos seus gerentes AA BB no Lugar ..., ..., ... ...;
*
Nos termos do disposto no artigo 39.º, n.º 2, alínea a), do CIRE, ficam todos os interessados advertidos de que podem pedir, no prazo de 5 dias, que a presente sentença seja complementada com as demais menções do artigo 36.º do citado diploma legal, mediante o depósito, à ordem do tribunal, do montante que o juiz entenda necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas da massa insolvente ou caução desse pagamento – artigo 39.º, n.º 3, do mesmo diploma.
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Notifique e cite, nos termos do disposto no artigo 37.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Publique e registe, nos termos previstos nos artigos 38.º e 37.º, n.º 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Notifique o senhor Administrador da Insolvência nomeado para vir aos autos confirmar a aceitação do cargo, e, para efeitos de ulterior processamento de remuneração, indicar o seu número de contribuinte fiscal e o regime de tributação a que está sujeito.
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Consigna-se que a sentença foi proferida no dia 26/7/2024, pelas 19H45m (cf. artigo 36º, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
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O valor da presente acção fixa-se em 5.000,01€, face ao valor indicado (e na ausência de qualquer outro elemento) e atento o disposto no artigo 15.º do CIRE.
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Custas pela massa insolvente – artigo 304.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.».
II.
Inconformada, a Credora Interessada/Recorrente interpôs Recurso de Apelação, rematando as suas alegações, com as seguintes
«(…)».
III.
Não foram apresentadas contra-alegações.
IV.
Questão decidenda
Sem embargo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Do erro na verificação dos pressupostos para a declaração de insolvência (arts. 30.º, n.º 5, e 20.º, n.º 1, als. b) e e), ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
V.
Dos Factos
No que à factualidade concerne, vem indicado na Sentença em crise (transcrição):
«Atenta o facto de não ter deduzido oposição, com o efeito processual previsto no artigo 30.º, n.º 5, do CIRE, bem como ao teor dos documentos apresentados pela Requerente, consideram-se provados os factos acima elencados no relatório, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.».
VI.
Do Direito
Estando em causa uma sociedade comercial, o pressuposto subjectivo da declaração de insolvência, a que alude o art. 2.º, n.º 1, al. e)[3], do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mostra-se verificado, sendo certo que a declaração de insolvência depende, também, de um pressuposto objectivo, qual seja a insolvência do devedor, de acordo com o seu art. 1.º, n.º 1[4].
Conforme deflui do conceito geral de insolvência ínsito ao art. 3.º, n.º 1, está nesta situação o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – conceito restrito –, e que se aplica a qualquer sujeito passivo do processo de insolvência, que se subsuma ao enunciado art. 2.º.
No que tange ao processo insolvencial, a impossibilidade de cumprimento relevante não tem que ser referente a todas as obrigações do devedor, podendo ser atinente a uma ou poucas dívidas; o que se exige é que, pelo montante e significado da dívida no âmbito do passivo do devedor, seja suficientemente expressiva da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.
Frisa-se, igualmente, que a lei optou por um conceito de solvabilidade, directamente ligado à presença ou ausência de liquidez, ou à maior ou menor facilidade de acesso ao crédito[5], uma incapacidade económico-financeira que exige a avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas[6].
No caso em apreço, um credor veio pedir a declaração de insolvência da devedora, estribando-se na ocorrência de circunstâncias subsumíveis ao art. 20.º, n.º 1, e fazendo-o conforme as normas combinadas dos arts. 23.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, isto é, expondo os factos que, na sua óptica, integram os pressupostos da declaração requerida, concluindo pela mesma, e justificando a origem, natureza e montante do seu crédito, ao mesmo tempo que ofereceu os elementos que possuía relativamente ao activo e passivo daquela.
Cumprido o acto de citação da devedora (art. 29.º, n.º 1), esta não só não se opôs ao pedido formulado em Tribunal, como até anuiu na prolação de decisão de insolvência.
Perlustrada a tramitação processual oportunamente efectuada, resulta inequívoco que a citação tem a expressa advertência decorrente dos arts. 29.º, n.º 2, e 30.º, n.º 5: a de que, não tendo sido dispensada a audiência da devedora, acaso não deduzisse oposição, seriam considerados confessados os factos alegados na petição inicial e a insolvência declarada, se tais factos preenchessem a previsão de alguma das alíneas do n.º 1 do art. 20.º[7].
Este preceito consagra um conjunto de ocorrências típicas ou índices de insolvência, taxativos, mas não cumulativos[8], e que são juridicamente configurados como uma presunção legal (de insolvência), consabido que a presunção é uma ilação que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, no dizer do art. 349.º do Código Civil.
Para o que ora releva é de assinalar que, quem tem a seu favor esta presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, mas tal presunção pode ser ilidida mediante prova em contrário, excepto se a lei o proibir (art. 350.º), traduzindo um desvio às regras probatórias gerais dos arts. 342.º e 343.º, como previsto no art. 344.º, n.º 1, todos do Código Civil[9].
Conforme bem alerta a Recorrente, a despeito de se considerarem confessados os factos alegados pela Requerente na petição inicial de insolvência, o Tribunal tem que verificar se esses factos provados são de molde a consubstanciar alguma das hipóteses prevenidas nas alíneas do n.º 1 do art. 20.º, e se concluir pelo juízo valorativo positivo é que declara a insolvência.
Com efeito, os factos-índice são condição necessária, mas não suficiente, para a procedência do pedido de declaração de insolvência, já que a lei não estabelece a declaração de insolvência como um efeito automático da falta de oposição do devedor, o que corresponderia à consagração de um efeito cominatório pleno[10].
A Sentença impugnada pronunciou-se, entre o mais, como segue:
«A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, verificando-se, entre outras circunstâncias, as seguintes:
- A falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer, pontualmente, a generalidade das suas obrigações – cf. artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIRE;
- A insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito da exequente verificada em processo executivo movido contra a devedora – cf. artigo 20.º, n.º 1, alíneas e), do CIRE.
Nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 4, do citado diploma legal, cabe ao devedor provar a sua solvência.
Atento o disposto supra, haverá, pois, que apreciar se, in casu, ocorrem os pressupostos da situação de insolvência no que respeita à requerida.
Ora, considerando os elementos factuais carreados para os autos, resultam, a nosso ver, suficientemente indiciadas as situações previstas nas citadas alíneas b) do artigo 20.º, n.º 1, do CIRE.
Com efeito, a Requerida é devedora do Requerente num crédito total de €10.0054,00, sendo que, interpelada por diversas vezes ao pagamento, nada pagou; a requerida encontra-se sem qualquer actividade comercial; e é devedora a outras entidades. Para além disso, nunca mais ao Requerente foi possível estabelecer contacto com a Requerida com vista à regularização da situação.
Tudo ponderado, e conjugado com as regras da experiência e da razoabilidade, resulta, pois, que a falta de cumprimento da obrigação de pagamento de €38.335,00 à Requerente, tanto pelo valor significativo em dívida à Requerentes e aos demais credores identificados (nomeadamente à A..., no valor de cerca de €300.000, outros fornecedores, como “D... Ucrl” no valor de 10.543,59 e “E...” no valor de 1.646,43), como pelas circunstâncias do incumprimento, revela a impossibilidade sociedade Requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, pelo que se encontra em situação de insolvência, conforme, aliás, o seus sócios e gerentes aceitam no requerimento que apresentaram no processo.
*
De acordo com a matéria factual apurada, verifica-se que a sociedade requerida não é proprietária de bens ou direitos com expressão pecuniária, ou seja, o seu património não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis, o que desde já se declara, de acordo com o disposto no artigo 39.º, n.º 1, do CIRE.».
Porque assim é, impõe-se aquilatar da verificação dos pressupostos desta norma (art. 20.º, n.º 1), concretamente das suas als. b) e e), que fundaram a decisão ora sindicada, e contra as quais se insurgiu a Recorrente.
No tocante à al. b), a satisfação pontual da obrigação a que se está vinculado, remete para a eficácia dos contratos, concretamente para o art. 406.º, n.º 1, do Código Civil, e «A letra da lei é clara quanto à desnecessidade de incumprimento de todas as obrigações do devedor – basta que se trate de uma ou de algumas que tenham a relevância descrita no preceito. Para além disso, tem que se tratar de obrigações existentes, válidas e para cujo incumprimento não existe qualquer causa legal de justificação.
Este índice, assim como o anterior, são conceitos elásticos que dependem das circunstâncias do caso concreto e do prudente arbítrio do juiz.»[11].
No que se refere à Confissão de Dívida carreada aos autos pela Requerente, tendo presente o quadro jurídico a que está subordinada e que emana do art. 458.º do Código Civil[12], alcança-se que as objecções da Recorrente de que a Confissão de Dívida não está autenticada, não tem causa de pedir e de que a dívida está prescrita, não colhem: este processo judicial basta-se com a existência de documento escrito, que corporiza a obrigação de pagamento (com identificação clara das partes intervenientes, montante e modo de pagamento), a favor da Requerente, datado e assinado por ambos os gerentes, em representação da aqui devedora, sendo irrelevante a questão da autenticação (com efeito, esta não é uma acção executiva em que interesse averiguar se o título particular deve ser autenticado, à luz dos arts. 363.º, n.º 3, do Código Civil, e 703.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil); a mesma contém a origem ou a fonte da dívida, e a prescrição, ainda que pudesse ocorrer, não é uma excepção de conhecimento oficioso do Tribunal (art. 303.º do Código Civil).
Daqui decorre que, não tendo a devedora comprovado o pagamento dessa quantia, enquanto facto extintivo do direito da Requerente, se possa afirmar a existência e a exigibilidade actual da dívida.
No que respeita à al. e), Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor, apura-se que a Requerente mencionou a existência de uma acção aquando da propositura deste processo.
Nesta alínea «determina-se que constitui igualmente índice a insuficiência de bens do devedor para satisfação do crédito do exequente, verificada em processo executivo. Assim se recupera uma solução constante do art. 870.º do CPC, anteriormente à reforma de 1995-1996, não sendo, no entanto, esta situação causa automática de insolvência, mas antes um mero índice da incapacidade financeira do devedor. É, no entanto, de salientar que neste caso presumivelmente se continuará a verificar a insuficiência da massa insolvente para pagamento os créditos, com a consequente aplicação dos arts. 39.º e 190.º»[13].
É de realçar que a Sentença expressamente convoca a certidão do registo comercial reportada à devedora, dali emergindo tratar-se de sociedade por quotas, com o capital de 6000 € (seis mil euros), e duas quotas de idêntico valor, sendo que os seus sócios são casados entre si (doc. n.º 2).
Paralelamente anota-se que a dívida – só o valor em singelo ascende a mais de 4 (quatro) vezes o capital social da devedora –, remonta há mais de uma década, e interpelada, a devedora não a liquidou, nem sequer parcelarmente, e nem se antevê data para tanto.
A Requerente, consoante lhe competia, identificou o maior credor – a aqui Recorrente –, e o respectivo processo judicial, fazendo a menção que essa dívida cifra-se em 300 000 € (trezentos mil euros).
A circunstância de não se tratar de uma acção executiva e sim de uma instância cautelar não assume a relevância que a Recorrente pretende dar-lhe, mais a mais quando esta confirma a existência de uma dívida da devedora para consigo, razão pela qual até já foi efectuado o arresto em bens móveis da mesma.
Ponderados os índices de insolvência que se extraem do art. 20.º, n.º 1, os quais assentam nos factos constantes da petição inicial, adensados com a postura da devedora e a circunstância da presunção de insolvência não ter sido ilidida, um juízo densificado e idóneo de normalidade das situações de vida, de proporcionalidade entre o montante monetário das obrigações e o património inexistente, e de razoabilidade em vista do período temporal transcorrido e da sua incapacidade de solver o valor em causa dado que não tem actividade comercial, permitiu ao Tribunal concluir que a devedora não tem forma de pontualmente satisfazer as obrigações a que está vinculada.
Ademais, como os autos estão munidos da declaração confessória, conjugada com a falta de oposição da devedora, resulta que o Tribunal não tinha que efectuar pesquisas adicionais nas bases de dados, nem tinha legitimamente elementos de onde pudesse inferir a existência de qualquer conluio das partes.
A Recorrente confundiu o erro de julgamento – inexistente –, com a discordância que lhe mereceu a Sentença.
Sem razão, no entanto.
Termos em que improcede, in toto, a pretensão recursiva.
Por ser parte vencida, a Apelante fica adstrita ao pagamento das custas processuais (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, por via da remissão do art. 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
VII.
Decisão:
Com os fundamentos explicitados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais é encargo da Apelante.
Registe e notifique.
(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)