I – Sendo o património comum a partilhar constituído por um prédio urbano no valor de 141.330,00 € e um passivo constituído por dívidas hipotecárias sobre tal prédio, no valor de 143.343,51 €, e ainda por dívidas diversas no valor de 25.000,00, a não atribuição, no contrato promessa de partilhas, de qualquer valor a um veículo automóvel que prometeram atribuir a um filho do casal, e a omissão do valor e da individualização do recheio da casa de habitação (a distribuir por ambos os cônjuges, segundo o interesse de cada um), não é de molde a inviabilizar a aferição do equilíbrio na partilha.
II – A norma de participação dos cônjuges, por metade, no ativo e passivo comum, tem sido interpretada em termos formais – as quotas dos cônjuges serão quantitativamente idênticas (50%) –, independentemente da concreta contribuição que cada um dos cônjuges tenha dado à economia do casal e do reflexo que tal tenha na concreta composição das massas patrimoniais comuns e próprias de cada um dos cônjuges.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, de execução específica de contrato promessa de Partilha, contra BB,
Alegando, em síntese:
Autor e ré foram casados entre si, tendo-se divorciado em 21 de janeiro de 2011;
antes do divórcio e com vista a este, celebraram um contrato promessa de partilha de bens comuns do casal;
cumpridas quase todas as promessas do A. e R., contidas em tal contrato promessa, a ré não cumpriu com a sua obrigação de assinar a escritura de separação de meações, com a finalidade de atribuir ao autor a propriedade sobre a totalidade de prédio urbano;
a ré instaurou processo de inventário após divórcio no Tribunal de Família, onde se discute a partilha dos bens acolhidos no contrato promessa e onde foi deduzida oposição, encontrando-se tais autos a aguardar o desfecho da presente ação;
a informação prestada pelo mandatário da ré de que a ré não assinaria a escritura, conjugada com a iniciativa processual de ter instaurado o processo de inventário e com o teor das posições assumidas nos articulados do inventário, consubstanciam a recusa da ré em cumprir.
Concluiu, formulando o seguinte pedido:
a) Ser o contrato promessa de partilhas declarado válido e vinculativo para as partes nos seus exatos termos, nomeadamente por não desrespeitar, pelo lado da Ré, a regra da tendencial partilha pela metade do património ativo e passivo do ex-casal
b) Ser proferida, em execução específica, sentença que proceda à adjudicação ao ora A. da totalidade do “prédio urbano sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29 daquela freguesia, inscrito na matriz sob o art. ...72.
c) Ser declarado que nos termos da partilha acordada no aludido contrato promessa o ora A. nada deve à Ré.
A Ré apresenta Contestação, alegando, em síntese:
no contrato promessa foi fixado um prazo essencial para a outorga do contrato prometido, cujo decurso implica a verificação de uma situação de incumprimento, aceitando-se, contudo, que tal incumprimento seja imputável a ambos os outorgantes;
mais invoca a nulidade do contrato promessa por violação da regra da paridade, por desproporcionalidade do acordado e por omissão dos contratos bens móveis que integram a totalidade do ativo patrimonial,
devendo essa nulidade ser declarada e, em consequência, ser absolvida do pedido.
O autor apresenta articulado de resposta, pronunciando-se no sentido da improcedência das invocadas exceções.
Pelo Juiz a quo, foi proferido Saneador/Sentença que culmina com a seguinte:
DECISÃO
Atento o exposto, decide-se:
I – Julgar procedente a exceção de nulidade invocada pela ré BB na sua contestação;
II - Julgar improcedente a presente ação instaurada por AA;
III - Declarar a nulidade do contrato promessa de partilha de bens comuns do casal datado de 21.12.2010 celebrado entre as partes, por violação da regra imperativa prevista no art. 1730º, n.º 1, do Código Civil;
IV - Absolver a ré BB de todos os pedidos contra si deduzidos nos autos, com as legais consequências.
V – Condenar o autor no pagamento das custas da ação.
VI – Notifique e registe.
(…).
1. Se a omissão do valor dos bens a atribuir ao recheio e ao veículo automóvel é fundamento de nulidade do contrato promessa de partilha, nos termos do artigo 1730º, nº1 do CPC.
O autor instaura a presente ação de “execução específica do contrato promessa de partilha”, celebrado entre autor e a ré com vista ao divórcio, alegando ter sido decretado o divórcio entre ambos, bem como a recusa da ré em cumprir, pedindo que seja proferida sentença que proceda à adjudicação ao autor da totalidade do prédio urbano que identifica, declarando-se que nada deve à Ré.
A Ré contesta, invocando, entre outros meios de defesa, a nulidade de tal contrato promessa de partilha por violação da regra da paridade, consagrada no n.1 do art. 1730º do CC, com os seguintes fundamentos:
a) desproporcionalidade no acordado (ao autor seria adjudicada a casa de morada de família e o respetivo crédito hipotecário, bem como todo o recheio da casa, com exceção dos bens elencados na al. b) da Clausula 2., enquanto a Ré apenas poderia ficar com a máquina de lavar louça, máquina de lavar a roupa, máquina de secar a roupa, radiador a óleo, desumificador, móvel de cozinha, mesa e cadeiras e arca frigorifica, sendo que, ainda teve de proceder ao pagamento de 12.500 €, a título de contribuição para metade do passivo referido na verba nº3, passivo esse que o autor assume responsabilidade de pagamento na sua totalidade;
não foi sido atribuído qualquer valor monetário a tal veículo;
b) no contrato apenas são referidos os bens atribuídos à ré, sendo omitidos todos os restantes bens móveis que compõem uma moradia de família, composta por dois pisos, quatro quartos, um escritório, uma sala, uma cozinha, várias casas de banho, uma churrasqueira e uma garagem
Pelo juiz a quo foi proferido saneador/sentença, considerando “julgados” os seguintes factos, “que resultam da alegação do autor na sua p.i., em confronto com a posição da Ré expressa na contestação, levando-se, no essencial, em consideração, para os comprovar os seguintes elementos documentais que os comprovam (…)”:
1. Autor e ré foram casados entre si tendo o casamento sido dissolvido por divórcio em 21.01.2011.
2. Em 21.12.2010 autor e ré acordaram e assinaram um documento, intitulado “contrato promessa de partilha”, tendo em vista o divórcio.
3. Quase todas as promessas recíprocas entre as partes, constantes daquele contrato foram, no essencial, cumpridas.
4. A ré não cumpriu a sua promessa de assinar a escritura de separação de meações prevista na cláusula 4ª do referido contrato promessa.
5. Tal assinatura da ré tinha como finalidade atribuir ao autor a totalidade da titularidade do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29 daquela freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...72, com o valor (na época) de €141.330,00”, conforme se encontra identificado na Verba um do Ativo da cláusula 1ª desse contrato promessa.
6. Consta da alínea c) da cláusula 2ª do mesmo contrato o seguinte: “O prédio descrito na verba um do ativo será adjudicado ao segundo outorgante” (o aqui autor).
7.A ré recusou e recusa cumprir aquela sua promessa, apesar de várias vezes verbalmente interpelada pelo autor.
8. Em Maio de 2022 a ré instaurou processo de inventário, nele omitindo a existência do contrato promessa, vindo tal processo a ser autuado com o n.º 932/22.... e a ser distribuído ao Juiz ... do Juízo de Família e Menores da Comarca ....
9. O autor deduziu oposição ao Inventário, alegando estar prejudicado pela existência prévia do contrato promessa de partilhas.
10. E aí a ré, admitindo embora a existência do contrato promessa, alegou a sua invalidade.
11. No referido processo de inventário foi proferido o seguinte despacho “Atenta à vontade demonstrada pelo C.C. em proceder à instauração de ação para declaração de validade do contrato do acordo de partilha apresentado e consequente execução específica, e porque tal poderá configurar causa prejudicial ao prosseguimento dos presentes autos concede-se ao C.C. o prazo de 45 dias para vir aos autos comprovar a instauração da referida ação. Decorrido tal prazo e nada sobrevindo abra conclusão.”
12. A posição assumida pela ré nos articulados do inventário equivale na sua recusa em cumprir o contrato.
13. As partes estipularam na cláusula 5ª do contrato a eventualidade da sua execução específica.
14. O recheio da habitação foi partilhado em benefício da ré que levantou da casa morada de família todos os eletrodomésticos com valor superior ao das mobílias usadas deixadas ao autor.
15. Uma dívida integrante do passivo do casal no montante de €25.000 foi dividida pela metade.
16. O imóvel no valor de €141.330,00 foi adjudicado na totalidade ao autor.
17. Este valor foi atribuído pelas partes para efeito da partilha e feito constar na cláusula 1.ª do contrato, verba um.
18. Como contrapartida daquela atribuição do prédio, o autor assumiu o total do passivo bancário inerente aos créditos hipotecários incidentes sobre o prédio e a ré foi exonerada dessas responsabilidades bancárias.
19. A dívida hipotecária bancária para com o Banco 1..., S.A. na data correspondia à soma das verbas 1 e 2 do passivo declarado por ambas as partes, nos montantes de €130.854,66 e de €12.488,85, respetivamente.
20. O veículo automóvel ..-..-LD, declarado no contrato na verba 2 do ativo, reverteu em benefício da ré.
21. Este veículo valeria à data em que foi recebido pela ora Ré a importância não inferior a €2.500.
22. No contrato promessa de partilha supra indicado no ponto 2, ficou consignado, além do mais, o seguinte:
“(…) Clausula Primeira
Activo-
Verba Um
(…)
Verba Dois
Veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca Peugeot. Modelo 306, com a matrícula ..-..-LD;
Verba Três
Recheio de casa de morada da família
Passivo
(…)
Clausula Segunda
A partilha seja efectuada da seguinte forma:
a) Acordam transferir para o nome do filho mais velho o veículo automóvel descrito na verba dois do activo (…)
b) O recheio da casa de morada da família será distribuído por ambos, segundo o interesse e necessidade de cada um, devendo a primeira outorgante retirar todos os bens, nomeadamente máquina de lavar roupa, máquina de secar roupa, máquina de lavar a loiça, radiador a óleo, desumidificador, móvel de cozinha, mesa e cadeiras, arca frigorífica, até à data do divórcio e entregar a chave da casa (…)”.
Definindo as questões a decidir em: i) indagar se assiste ao autor o direito a ver declarada a validade do contrato promessa, e, em caso afirmativo, ii) se estão reunidos os pressupostos para proferir sentença constitutiva de execução específica, o tribunal a quo, vem a declarar a nulidade do contrato promessa de partilhas, com a seguinte argumentação:
“No caso dos autos, às verbas dois e três do ativo não foram atribuídos quaisquer valores, ou seja, não foi concretizado o valor do veículo automóvel e o valor de cada um ou do conjunto dos bens móveis que integram o referido recheio da casa de morada de família. Tal omissão inviabiliza qualquer conclusão no sentido de se saber se a partilha é ou não equilibrada, no sentido de respeitar a referida regra da metade, tanto mais que a ré, na sua contestação – com ou sem razão, pouco importa por ora - alega, inclusive, que existem mais bens no acervo que integra tal recheio, ficando o tribunal sem saber que bens são esses e qual o seu valor a considerar (vd. art.s 31º e 32º da contestação).
Significa isto que o contrato promessa de partilha de bens comuns do casal está ferido do vício da imprecisão quer quanto à descrição dos bens, quer quanto à indicação do seu valor, o que gera uma situação de indeterminação dos bens a partilhar e do respectivo valor que aos mesmos deve ser atribuído, por forma a aferir se a partilha é justa, é dizer, se observa a regra da metade. (…).
Em suma: desconhece-se o valor do automóvel constante da verba dois e desconhecem-se quais são os bens concretos que integram o recheio da casa de morada de família do ex-casal constituído por autor e ré referido na verba três, bem como o seu valor.
Sem esses elementos concretizados e definidos no contrato promessa, não é possível aferir se a partilha é legal, no sentido da observância da referida regra da metade.
De modo que o negócio celebrado contra lei imperativa, como é o caso dos autos, enferma de nulidade – cf. CC: art. 294º.”.
Insurge-se o Apelante contra o decidido, com os seguintes fundamentos:
- o valor do carro é completamente inútil ao contexto narrativo e normativo do contrato, pois que as partes assentaram que o veículo seria doado ao filho mais velho do casal;
- a forma contratual encontrada pelas partes para partilhar o recheio dispensou qualquer valorização dos bens, individuais ou em conjunto, pois se baseou na possibilidade de uma das partes ter levantado tudo o que lhe apeteceu e só depois, como quitação, ter entregado a chave da casa, limitando-se a outra parte a ficar com o resto.
Cumpre apreciar a questão de saber se o contrato promessa de partilha celebrado entre os ex-cônjuges viola a regra da paridade:
- pela omissão de indicação do valor do automóvel;
- pela falta de discriminação dos restantes bens móveis que constituíam o recheio da casa de habitação do casal e omissão do respetivo valor.
Encontra-se em causa o eventual desrespeito pela regra da metade, contida no nº1 do artigo 1730º do Código Civil, com o seguinte teor:
1. Os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.
É atualmente indiscutida a validade do contrato promessa de partilha feito durante a constância do casamento, para valer uma vez decretado o divórcio. Tendo o negócio em apreço apenas como efeito “a promessa de imputar os bens comuns concretos, que o casal tem à data do acordo, na meação de cada cônjuge”, permanecendo incólume o regime de bens e não mudando a qualificação de qualquer bem em concreto, não havendo lugar à aplicação do artigo 1714º, ns. 1 e 2, do Código Civil.
Como tal, o eventual receio de que o cônjuge que exerce de ascendente psicológico “force” o outro a aceitar como integrantes da sua meação bens que menos lhe interessariam, ficará acautelado pelo recurso aos mecanismos gerais de defesa de um contraente contra o outro, podendo o contrato promessa de partilha ser anulado por coação, por estado de necessidade, por erro, etc. tal como qualquer outro negócio jurídico, desde que se verifiquem os respetivos requisitos[1].
No entanto, o contrato promessa de partilha encontra-se sujeito à regra de natureza imperativa, prevista no artigo 1730º, da participação de cada um dos cônjuges, por metade, no ativo e no passivo comum do casal.
Para aferir sobre tal contrato promessa respeita, ou não, a regra da metade, necessário se torna, em regra, a descrição de cada um dos bens que compõem o ativo e a indicação do respetivo valor, bem como a descrição do passivo.
Tem sido defendida na jurisprudência a nulidade do contrato promessa de partilha, por violação da regra da metade, que declare o recebimento do valor de tornas devidas sem se precisar o seu concreto valor[2], ou que “não contempla a totalidade das situações jurídicas ativas e passivas que compõem o património comum do casal, nem contenha a indicação do valor integral do conjunto dessas situações[3].
No contrato promessa de partilha em apreço, foi relacionado o seguinte ativo:
1. um prédio urbano no valor de €141.330,00;
2. um veículo automóvel com a matrícula ..-..-LD;
3. recheio da casa de morada de família.
E o seguinte passivo:
1. €130.854,66, que o casal deve ao Banco 1... (com hipoteca sobre o imóvel que constituiu a verba n.1);
2. €12.488,85, que o casal deve ao Banco 1... (com hipoteca sobre o imóvel que constituiu a verba n.2);
3. €25.000,00 (diversas dívidas provenientes, nomeadamente do saldo negativo de contas bancárias, cartões bancários, empréstimos bancários pessoais, empréstimos de pessoas individuais, do seguro de saúde da entidade patronal do segundo outorgante e compra de eletrodomésticos, cuja totalidade atinge cerca de 25.000,00 €).
Aí consta que a partilha seja efetuada da seguinte forma:
a) Acordam transferir para o nome do filho mais velho o veículo automóvel descrito na verba dois do ativo, até à data do divórcio;
b) O recheio da casa de morada da família será distribuído por ambos, segundo o interesse e necessidade de cada um, devendo a primeira outorgante retirar todos os bens, nomeadamente máquina de lavar roupa, máquina de secar roupa, máquina de lavar a loiça, radiador a óleo, desumidificador, móvel de cozinha, mesa e cadeiras, arca frigorífica, até à data do divórcio e entregar a chave da casa:
c) o prédio urbano descrito na verba um do ativo será adjudicado ao segundo outorgante, que se compromete a marcar a escritura de separação de meações no prazo máximo de 3 meses após o divórcio, responsabilizando-se por todas as despesas e impostos inerentes”;
d) todo o passivo do casal, descrito nas verbas um, dois e três, quaisquer que sejam os seus valores, será da responsabilidade do segundo outorgante;
e) a primeira outorgante contribui com a quantia de 12.500 €, para pagamento do referido passivo do casal, sendo que 2.500,00 € nesta data, através de cheque nº (…), no dia do divórcio 2.500,00 € e o restante 7.500 € no dia da escritura da separação de meações”.
É certo não constar do contrato promessa a atribuição de qualquer valor ao veículo automóvel. Contudo, tendo as partes acordado em excluí-lo dos bens a distribuir pelos cônjuges, “atribuindo-o ao filho mais velho, até à data do divórcio” (tal veículo já nem sequer consta da relação de bens comuns que, posteriormente fizeram juntar na ação de divórcio), o respetivo valor surge como perfeitamente irrelevante para a aferição do cumprimento da regra da metade, não sendo de contabilizar para aferir se, a um e a outro, foram atribuídos bens que, no total, se equivalham.
Quanto ao “recheio da casa de habitação do casal”, não consta a individualização de cada um deles, para além dos que vêm enumerados na al. b), da clausula 2ª, nem lhes é atribuído qualquer valor, individual ou coletivamente.
Contudo, essa ausência de individualização, de cada um dos bens móveis que fazem parte do recheio da habitação do casal e de indicação do respetivo valor, não nos parece de molde a inviabilizar a aferição do equilíbrio da partilha, como se afirma na decisão recorrida.
Tais bens seriam (e foram) distribuídos por ambos os cônjuges, “segundo o interesse de cada um”, sendo que, qualquer divergência de valor entre aqueles que a ré levou e aqueles com que o autor ficou, sempre será de pequeno montante, face aos demais valores em jogo: um ativo constituído por um prédio urbano a que os cônjuges atribuíram o valor de 141.330,00 €, e um passivo constituído por dívidas hipotecárias, sobre esse mesmo imóvel no valor de 143.343,51 €, e ainda dívidas de origens diversas, no valor de 25.000 €.
Acordada a atribuição ao autor do prédio urbano (no valor de 141.330,00 €), bem como a responsabilização exclusiva pela totalidade do passivo (verbas 1., 2. E 3., num total de 168 343,51 €, numa situação líquida negativa de menos 27.013,51 €), e prevendo-se a contribuição da Ré no passivo com 12.500 €, a atribuição de mais bens móveis a um ou a outro, de entre o recheio da habitação do casal – sendo que, a Ré não alega a existência de quaisquer bens de especial valor –, sempre seria insuscetível de pôr em causa o equilíbrio global na atribuição dos bens da herança e de afetar a regra da metade.
Concluindo, e dando inteira razão à Apelante, considera-se que a não atribuição de qualquer valor ao veículo automóvel (verba nº2 do ativo), bem como a não concretização do restante recheio da casa de habitação (verba nº3 do ativo) e falta de indicação do respetivo valor, individual ou global, não constituiu fator impeditivo de aferição da regra da paridade.
É, assim revogar a decisão recorrida que, com base em tal fundamento, declarou a nulidade do contrato promessa de partilha celebrado entre autor e Ré.
Segundo o disposto no artigo 665º, nº1, do CPC, se o tribunal tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
A nosso ver, face à posição assumida pelas partes nos respetivos articulados, inexistem factos controvertidos que se mostrem relevantes para o conhecimento do mérito da causa.
Vejamos, assim, se afastada a causa de nulidade conhecida pelo tribunal a quo, a ação é ou não de proceder.
Pretendendo o autor com a presente ação que, em execução especifica, seja proferida sentença a proceder à adjudicação ao A. da totalidade do prédio urbano que constituiu a verba nº1 do ativo, a Ré opõe-se a tal pretensão, invocando a nulidade do contrato promessa de partilha por violação da regra da paridade – questão que não chegou a ser apreciada na decisão recorrida, por prejudicada, face à declaração de nulidade com fundamento na falta de indicação do valor do veículo automóvel e dos bens que constituem o recheio da casa de morada de família.
A Ré faz assentar a violação da regra da regra da metade, na seguinte argumentação:
- do teor do contrato promessa é fácil de alcançar a desproporcionalidade acordada, pois ao autor seria adjudicada a casa de morada de família e o respetivo crédito hipotecário, bem como todo o recheio da casa, com exceção de meia dúzia de bens elencados na al. b) da Clausula 2ª;
- ou seja, a requerente ao fim de 23 anos de casamento e de vida em comum, apesar de apenas poder ficar com a máquina de lavar loiça, máquina de lavar roupa, máquina de secar roupa, radiador a óleo, desumificador, móvel de cozinha, mesa e cadeiras e arca frigorífica, ainda teve de pagar 12.500 €.
Antes de mais, cumpre esclarecer que a norma de participação dos cônjuges, por metade, no ativo e passivo comum, tem sido interpretada em termos formais – as quotas dos cônjuges serão quantitativamente idênticas (50%) –, independentemente da concreta contribuição que cada um dos cônjuges tenha dado à economia do casal e do reflexo que tal tenha na concreta composição das massas patrimoniais comuns e próprias de cada um dos cônjuges[4].
A regra da metade não exige que cada um dos conjunges tenha direito a metade de cada bem ou direito concreto existente na massa dos bens comum, nem que seja obrigado a pagar metade de cada concreta divida que responsabilize ambos os cônjuges, pelo que, sendo a regra da metade determinada, não qualitativamente, mas quantitativamente, aquando da partilha o que é de garantir a cada um dos cônjuges é o direito ao valor de metade do património comum[5].
Os limites legalmente previstos para a configuração do património comum a partilhar não afetam apenas a componente do ativo do património desse património, estendendo-se igualmente à componente do seu passivo, ambas sendo contabilizadas na tarefa da definição do património líquido a partilhar[6].
Ao abrigo do artigo 1730º, tem vindo a ser considerado pelos nossos tribunais que “embora seja válido o contrato-promessa de partilha de bens comuns celebrado na constância do matrimónio (mas na iminência de um divórcio), o mesmo será nulo se violar esta regra, na medida em que atribua a um dos cônjuges quotas de bens manifestamente desproporcionais relativamente ao outro cônjuge”[7].
Sendo nulos os acordos que violem o disposto nos artigos 1730º, nº1, do CC, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo e apenas tem o ónus de provar, nos termos gerais, que o contrato promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade[8].
No caso em apreço, temos:
- um ativo composto por um prédio urbano, no valor de 141.330,00 € e o recheio da casa de habitação;
- um passivo no valor global de 168.343,51 €.
Face ao valor atingido pelo passivo (superior em cerca de 27.000 €, relativamente ao valor do imóvel), e ainda que não tenha sido atribuído valor ao recheio da casa de habitação, facilmente se retira encontrarmo-nos perante um património comum com um valor líquido negativo.
Assim sendo, a concreta atribuição de bens que hão de preencher o direito ao valor de metade a cada um dos cônjuges – atribuindo ao autor o prédio urbano, no valor de 141.339 € e a responsabilidade exclusiva pelo pagamento da totalidade do passivo (168.343,51 €), bem como a parte do recheio da casa que a ré não retirou, e sendo a parte da ré composta pela obrigação de contribuir com 12.500 € para pagamento do passivo (que já cumpriu) e parte do recheio da casa de habitação – não se pode afirmar que tal acordo viole a regra da metade em desfavor da Ré e, muito menos, em termos significativos.
É, assim, de julgar improcedente a invocada exceção.
Afastadas as referidas causas de nulidade do contrato promessa de partilha, e encontrando-se o mesmo cumprido, nos seus demais termos – o autor juntou aos autos declarações do Banco 1... a exonerar a Ré do passivo hipotecário (docs. 2 e 3, juntos com a Resposta do A.); a Ré entregou ao autor a quantia de 12.500 € como contribuição para pagamento do passivo, e a Ré levantou da casa os bens móveis que assim entendeu –, a instauração por parte da Ré de inventário para partilha dos bens comuns, invocando a nulidade de tal contrato promessa, equivale a recusa em cumprir.
Assim sendo, tem o autor o direito a, ao abrigo do disposto no artigo 830º, do Código Civil, em execução específica, exigir a prolação de sentença que proceda à adjudicação ao autor da totalidade do direito de propriedade sobre o imóvel.
(…).
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação, pelo que revogando a decisão recorrida:
a) declara-se que, nos termos da partilha acordada no aludido contrato promessa o ora Autor nada deve à Ré.
b) defere-se o pedido de execução específica do contrato promessa de partilha de bens comuns, proferindo-se sentença a suprir a declaração negocial da Ré, adjudicando-se ao autor o “prédio urbano sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...29 daquela freguesia, inscrito na matriz sob o artigo ...72.”.
Custas da Apelação a suportar pela Apelada.
Notifique.
Coimbra, 12 de novembro de 2024
V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, Volume I, Introdução, Direito Matrimonial”, 5ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra”, pp. 526-527.
[2] Cfr., entre outros, Acórdão do TRG de 29-06-2017, relatado por Maria Luísa Ramos, disponível in, www.dgsi.pt.
[3] Ac. TRP de 11-04-2019, relatado por Miguel Baldaia Morais, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Rute Teixeira Pedro, “Código Civil Anotado”, Vol. II, Ana Prata (Coord.) 2017 – Almedina, p. 637-638, e ainda, “Do exercício da autonomia privada na partilha do património comum do casal”, in "Autonomia e Heteronomia no Direito da Família e no Direito das Sucessões", 2016, Almedina.
[5] J.P. Remédio Marques, Código Civil Anotado, Livro IV Direito da Família”, Coord., Clara Sotto Mayor, Almedina, p. 446, nota 3, ao artigo 1730º.
[6] Rute Teixeira Pedro, artigo e local citados, pp. 364-365.
[7] J.P. Remédio Marques, “Código Civil Anotado”, Livro IV, Clara Sotto Mayor (coord.), p.445, e Acórdão do STJ de 22-02-2007, para o qual remete, respeitante a um contrato promessa de partilha em era atribuído a um dos cônjuges um prédio que valia, no máximo 30.000,00 € e o prédio atribuído ao outro valia mais de 150.000 €.
[8] Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, p. 527.