I – A disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os novos factos nascidos da discussão da causa, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão.
II – Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido) na decisão, dando assim às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre o facto que o tribunal se propõe aditar.
III – A parte que poderá ser prejudicada com os novos factos poderá oferecer novos meios de prova em relação aos factos novos.
IV – A omissão da comunicação por parte do julgador, torna a sentença nula por conhecer de questão que não podia (ainda) conhecer. A consequência dessa nulidade, seria em princípio, o regresso dos autos à 1ª instância, à fase da audiência, para que fosse dado conhecimento às partes que o tribunal pretendia considerar factualidade complementar, a não ser que, a prova produzida e impugnada, relativamente aos novos factos, não tenha consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I - Relatório
AA veio, por apenso aos autos de execução nº. 1269/21...., em que é exequente BB, deduzir os presentes embargos à execução. Alegou, em suma, que:
- o título cambiário que serve de base à presente execução, encontra-se datado de 15.04.2012, foi apresentado a pagamento em 28.12.2017 e devolvido a 02.01.2018 com a indicação de “cheque apresentado fora de prazo”;
- como a execução foi instaurada em 09.11.2021, o direito à ação executiva prescreveu, nos termos do artigo 52º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, o que requer seja decretado;
- por outro lado, o cheque objeto da execução, datado de 15.04.2012, no valor de 13.325,00 € (treze mil trezentos e vinte e cinco euros), constituiu a garantia de um empréstimo particular efetuado pelo exequente ao executado no início de 2012;
- o empréstimo foi pago no ano de 2012 e após esse pagamento, o executado interpelou por diversas vezes o exequente para a devolução do cheque, o que não se verificou;
- mas o empréstimo garantido pelo referido cheque, encontra-se, assim, liquidado.
Conclui, a final, que os embargos devem ser julgados procedentes e a execução extinta quanto ao embargante.
O exequente deduziu oposição, impugnando toda a materialidade invocada pelo embargante e concluindo pela improcedência das invocadas exceções, por não se verificarem, e, consequentemente, a improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução.
Foi ainda proferido despacho a considerar que o processo já dispunha de todos os elementos necessários à prolação de decisão final sem marcação de audiência prévia e para as partes, querendo, se pronunciarem.
Por sentença de 21 de novembro de 2022, os embargos foram julgados totalmente improcedentes, por totalmente não provados e foi determinado o prosseguimento da execução quanto ao executado, aqui embargante.
O executado/embargante recorreu da sentença e por decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-03-2023 foi decidido revogar a sentença e determinar a ulterior prossecução dos embargos.
Foi proferido despacho saneador, que apreciou e conheceu das exceções da prescrição do cheque e da sua devolução por ter sido apresentado fora de prazo, julgando-as improcedentes.
De seguida foi fixado o objeto do litígio e enunciado os temas da prova, sem apresentação de reclamações.
A final foi proferida sentença, julgando os embargos totalmente procedentes.
O exequente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as alegações do seguinte modo:
(…).
Não foram apresentadas contra-alegações.
II – Objeto do processo
De acordo com as conclusões da apelação, as quais delimitam o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:
. se devem ser admitidos os documentos juntos com as alegações do apelante;
. se a sentença é nula por ter conhecido de questão de que não devia conhecer, tendo violado os princípios da estabilidade da instância, do contraditório, da igualdade das partes e do Estado de Direito Democrático ou por ter condenado em objeto diverso do pedido;
. se deve ser alterada a matéria de facto, dando-se como não provados os factos constantes do ponto 9 dos factos provados;
. se em consequência da alteração, os embargos devem improceder.
III - Fundamentação
Na primeira instância foram dados como provados os seguintes factos:
.1) Em 30 de junho de 2021, BB instaurou, no Juízo de Execução de Soure, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, contra AA, ação executiva para pagamento de quantia certa do montante de € 13.325,00 euros (treze mil, trezentos e vinte e cinco euros), acrescida de juros vencidos, no valor de € 4.663,75 euros, e dos vincendos à taxa legal.
.2) O cheque junto na execução possui o valor de 13.325,00 € (treze mil, trezentos e vinte e cinco euros), com vencimento em 15 de abril de 2012 (v. original do cheque junto no processo principal).
.3) E apresenta-se nos seguintes moldes:
3) E apresenta-se nos seguintes moldes:
5) No seu requerimento executivo, o exequente alegou que o título executivo é um cheque e “nos factos”:
“ O exequente, numa ocasião em que o Executado necessitava de capital para proceder ao pagamento de despesas agrícolas, cedeu-lhe a título de empréstimo, a quantia de 13.325,00 €, para que o Executado fizesse frente às tais despesas; O Executado, solicitou um prazo de três meses para devolver ao exequente a quantia cedida;
Passados que foram os três meses do prazo solicitado para a devolução pelo executado da quantia emprestada pelo exequente, Aquele não conseguiu obter o capital para proceder ao pagamento e à cautela, para garantir ao exequente o montante do empréstimo que Este ultimo lhe fizera, o Executado emitiu, a favor do Exequente e a Este endossado, o Cheque n. º ...59, sacado sobre a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo CCAM ..., do Balcão de ..., sobre a Conta n. º ...63, titulada pelo Executado, no montante de 13.325,00 € (Treze Mil Trezentos e Vinte e Cinco Euros), indicando-lhe a data de 15 de Abril de 2012, para que o Exequente o apresentasse a pagamento;
O referido Cheque foi assinado pelo Executado AA, conforme o mesmo tinha no seu bilhete de Identidade; Na data combinada para apresentação do cheque a pagamento o Executado pediu ao Exequente que não apresentasse o cheque, uma vez que não tinha provisão na Conta, e fosse esperando até uma indicação do Executado para proceder a tal apresentação;
Passaram-se diversos anos indo o Executado adiando sempre a indicação para o Exequente apresentar o cheque a pagamento e o Exequente foi acedendo por ser um grande amigo do executado;
Até que finalmente, em fins de Dezembro de 2017 o executado informou o exequente que podia apresentar o cheque a pagamento pois já lá tinha a Conta Bancária, n. º ...63 provisionada para pagamento do Cheque;
O Exequente apresentou o Cheque para Depósito na sua Conta pessoal, com o n. º ...11, na data de 28 de Dezembro de 2017; Aconteceu porém que o referido Cheque foi DEVOLVIDO NA COMPENSAÇÃO EM 02/01/2018, com a indicação de CHEQUE APRESENTADO FORA DO PRAZO;
Ora, tal apresentação fora do prazo fora em consequência dos constantes pedidos de adiamento do executado ao Exequente para que este fosse adiando a apresentação do Cheque à Cobrança;
O exequente comunicou a situação ao Executado que se ausentou do País, sem nunca ter pago ao Executado a quantia em dívida para com Este titulada e garantida pelo Cheque ora dado à Execução;
É pois, devida ao Exequente BB, pelo Executado AA, a quantia titulada pelo cheque, no montante de 13.325,00 (Treze Mil Trezentos e Vinte e Cinco Euros), acrescida dos juros legais vencidos, desde 28 de Dezembro de 2017 e dos juros vincendos até integral pagamento;
Daí a necessidade da presente Execução para PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA;”
6) E na parte relativa à liquidação da obrigação que:
“ Ao valor inicial de 13.325,00 € (Treze Mil Trezentos e Vinte e cinco Euros, acrescem os juros de mora vencidos desde 28 de Dezembro de 2017, no montante de 4.663,75 € (Quatro Mil Seiscentos e Sessenta e Três Euros e Setenta e Cinco Cêntimos) e os juros vincendos, a calcular à data do pagamento integral”.
7) O referido cheque foi apresentado a pagamento em 28.12.2017 (v. original do cheque junto no processo principal).
8) E foi devolvido em 02.01.2018 por ter sido apresentado fora de prazo (v. original do cheque junto no processo principal).
9) O embargante/executado efetuou o pagamento da dívida ao exequente em 2012, através da entrega de 70 (setenta) toneladas de milho seco.
Da junção de documentos com a apelação
(…).
Da alegada nulidade da sentença
Alega o apelante que a sentença é nula porque o tribunal deu como provada uma versão dos factos que não tinha sido alegada na petição de embargos, pelo que conheceu de questão de que não podia conhecer e violou o princípio do contraditório, da igualdade das partes, da estabilidade da instância e do Estado de Direito Democrático. Se assim não se entender, a sentença deve ser considerada nula nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 615º do CPC.
Vejamos:
Nos artigos 8 a 10 da petição de embargos o executado alegou:
8º O cheque objeto da presente execução, datado de 15.04.2012, no valor de 13.325,00 € (treze mil trezentos e vinte e cinco euros), constituiu a garantia de um empréstimo particular efetuado pelo exequente ao executado no início de 2012.
9º O referido empréstimo foi pago no ano de 2012. Após o pagamento o executado interpelou por diversas vezes o exequente para a devolução do cheque, o que não se verificou.
10º O empréstimo garantido pelo referido cheque, encontra-se, assim, liquidado.
Lida toda a petição de embargos constata-se que, em momento algum, o executado invocou o modo como efetuou esse pagamento. Em 21.12.2022 foi proferido saneador/sentença onde se entendeu que “uma vez que embargante apenas se tinha limitado a alegar que tinha pago, sem concretizar os termos em que tinha efetuado o pagamento uma vez que o embargante não alegou quaisquer factos cabais (concretos) para impedir, modificar ou extinguir o valor peticionado pelo exequente em sede de requerimento executivo, não alegando, assim, qualquer facto concreto impeditivo e/ou extintivos do direito do exequente, conforme já exposto, de nada lhe serve impugnar o valor liquidado pelo cheque e, de forma vaga, invocar o pagamento”.
Interposto recurso desta decisão, foi por decisão sumária do relator, de 13.03.2023, julgada procedente a apelação. Escreveu-se na referida decisão: “O pagamento da quantia exequenda, o cumprimento da prestação cuja satisfação coativa se visa com a ação executivo, é um facto, simples, concreto e positivo e, além disso, comprovadamente idóneo para produzir o fundamental efeito de extinção do direito à prestação, objeto do pedido executivo. Trata-se, além disso, de um facto que não exige para a sua demonstração um meio de prova vinculado: pode ser provado por qualquer meio, v.g., por provas pessoais, como a prova testemunhal, a prova por confissão e a prova por declarações de parte, ou documentais.
A alegação da exceção perentória do pagamento ou do cumprimento produzida pelo apelante é, pois, inteiramente concludente, dado que a prova do facto desse facto é suficiente para assegurar a procedência daquela exceção. Mas se, ex-adverso, a Sra. Juíza de Direito, achava que a alegação da exceção era inconcludente, o que estava indicado era – não julgá-la logo improcedente no despacho saneador – mas sim convidar o executado a alegar os respetivos factos complementares destinados a assegurar a sua concludência (art.º 590.º, n.º 2, b), e 4, do CPC). “
Regressados os autos à 1ª instância procedeu-se a julgamento.
Na decisão recorrida foram considerados provados outros factos, além dos que tinham sido alegados e que emergiram da discussão da causa, relativos ao modo como se efetuou o pagamento, concretamente dando-se como provado que o pagamento se realizou mediante a entrega de 70 toneladas de trigo no valor da dívida exequenda.
Dispõe o artº 5º nº 1 do CPC que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas
Além dos factos essenciais são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da discussão da causa (artº 5º, 2, a)) e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar [artº 5º, nº 2, al. b)].
No atual Código de Processo Civil a consideração dos factos complementares ou concretizadores não depende já de requerimento da parte interessada, pois que a lei deixou de o impor, como impunha no nº 3 do artº 264º do CPC, ao estatuir que as partes tinham de manifestar a vontade deles se aproveitar, e passou a reclamar apenas que as partes tenham tido possibilidade de se pronunciarem sobre os mesmos. O juiz pode tomá-los em atenção mesmo oficiosamente, sem requerimento de nenhuma das partes, bastando que a parte tenha tido a possibilidade de se pronunciar sobre tais factos (cfr. se defende no Ac. do TRP de 08.03.2016, proc. 180240/13). Se o legislador pretendesse que a consideração do facto complementar/concretizador estivesse dependente de requerimento da parte que dele se quer aproveitar, nesse sentido, teria reproduzido no artº 5º, nº 2, al. b) do atual CPC, a redação constante do nº 3 do artº 264º do CPC anterior, o que não fez.
Relativamente à forma como deve se facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre os factos complementares ou concretizadores não alegados, não existe entendimento unânime.
Assim, Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, p. 41 e 521) sustentam que “para que a parte tenha a possibilidade de se pronunciar, não é necessário que o juiz despache no sentido de lhe ser dada a palavra para o efeito”, uma vez que o nosso sistema processual assegura ao mandatário a possibilidade de formular requerimentos a qualquer momento.
Em sentido contrário, Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil Anotado, volume I, Almedina, p. 29) que defendem ser “(…) mais consentânea com os princípios processuais e designadamente com a proibição de decisões-surpresa a posição que defende que o juiz deve anunciar às partes, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar este mecanismo de ampliação da matéria de facto”. Neste sentido, os acórdãos: da Relação do Porto de 30/04/2015, processo n.º 5800/13.9TBMTS.P1 e de 13/07/2022, processo n.º 1836/12.5TBMCN-A.P1, da Relação de Lisboa de 29/05/2018, processo n.º 19516/17.3YIPRT.L1-7 e da Relação de Coimbra de 09/01/2018, processo n.º 825/15.2T8LRA.C1 (todos acessíveis para consulta em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte). No mesmo sentido se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/02/2017, processo n.º 1758/10.4TBPRD.P1.S1, (disponível em www.direitoemdia.pt) onde se considerou que “[a]dmitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.
Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido). Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar”.
Ao dar conhecimento às partes de que poderá considerar os factos complementares ou concretizadores, resultantes da instrução da causa, nos termos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 5º, a parte que foi confrontada com uma versão não alegada terá, designadamente, a possibilidade de contrariar a prova produzida.
Ora, o facto de não ter sido dado a conhecer às partes que o tribunal poderia incluir nos factos provados a matéria de facto não inicialmente alegada, mas que tinha resultado da discussão da causa, esta omissão torna a sentença nula por conhecer de questão que não podia (ainda) conhecer. A consequência dessa nulidade, seria em princípio, o regresso dos autos à 1ª instância, à fase da audiência, para que fosse dado conhecimento às partes que o tribunal pretendia considerar factualidade complementar (cfr. se defende no Ac. do TRG de 09.05.2024, proc. 1449/20.8T8BRG.G1).
No entanto, no caso concreto, tal regresso dos autos à 1ª instância não se afigura necessário, porque não há razões para considerar como provados os factos constantes do ponto 9 da sentença (o qual foi impugnado pelo apelante, tendo requerido que estes factos fossem considerados não provados), razão pela qual a anulação e consequente reabertura do julgamento constituiria a prática de atos inúteis.
Efetivamente procedemos à audição de todos os depoimentos e declarações prestados na audiência final, a fim de aferir da pertinência da anulação.
Prestaram depoimento as seguintes testemunhas:
Arroladas pelo embargante:
CC, sobrinho do apelante que disse ter transportado milho do executado para a máquina de secar do apelante;
DD, que disse ter transportado uma ou duas carradas de milho para a máquina de secar do apelante, a pedido do apelado, há cerca de 10 anos, tendo por referência a data do julgamento, realizada em 27.09.2023.
EE que prestou serviços de corte do milho ao executado que fixou cerca de dez anos antes da audiência de discussão e julgamento.
Arroladas pelo embargado:
FF, sobrinho da ex-mulher do embargado;
GG, ex mulher da anterior testemunha.
Só o executado prestou declarações.
A sentença deu como provado que o pagamento da quantia exequenda foi efetuado pela entrega pelo executado ao exequente de 70 toneladas de milho, baseando-se nas declarações do executado e nos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE.
As testemunhas em que a decisão recorrida se fundamentou, não presenciaram quaisquer conversações entre o exequente e o executado no sentido do pagamento da quantia, que o executado reconhece lhe ter sido emprestada pelo exequente, ser efetuada mediante a entrega de 70 toneladas de milho.
A testemunha CC apenas sabia que o executado costumava secar milho na máquina de secar do exequente e que há 10 anos, foi lá levar “duas carradas” de milho, o que equivale a dez/doze toneladas por carga e que o tio lhe transmitiu que tinha ficado lá milho para pagar ao exequente. Nada mais referiu, não tendo localizado no tempo quando é que o tio lhe transmitiu essa informação.
A testemunha DD também nada sabia sobre o acordo de pagamento através da entrega de milho, tendo também se limitado a carregar milho para a secadora do exequente, não se recordando já se 10 ou 20 toneladas, não tendo também concretizado em que momento o AA lhe transmitiu que tinha entregue milho ao exequente para acerto de contas entre eles, designadamente se foi logo após a entrega do milho ou se mais recentemente.
A testemunha EE apenas declarou que há cerca de dez anos andou a cortar milho para o executado, sabendo apenas que o “HH” (estando provavelmente a referir-se à testemunha DD) e o sobrinho do executado (estando certamente a referir-se à testemunha CC), na mesma ocasião, tinham andado a carregar milho do executado para secar.
Como se referiu, as testemunhas nada presenciaram quanto ao acordado entre as partes e depuseram no sentido de que o executado costumava secar o milho que produzia na secadora do exequente, não tendo pois os carregamentos em causa, um natureza excecional, antes se enquadrando na atividade usual do executado.
As testemunhas arroladas pelo exequente nada sabiam sobre os factos em discussão.
Assim, no sentido de que houve entrega de milho para pagar a dívida do executado, apenas existem as declarações do executado.
O Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.6, que entrou em vigor no dia 1.9.2013 (art. 8º da referida Lei), consagrou no art. 466º sob a epígrafe “Declarações de parte”, a possibilidade das partes requererem até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto, declarações que o tribunal aprecia livremente, salvo se as mesmas constituírem confissão (nºs 1 e 3 do artº 466º do CPC). As declarações de parte serão especialmente úteis naqueles casos em que os factos controvertidos foram apenas presenciados pelas próprias partes. Para que as declarações de parte sejam admitidas, não têm que recair sobre factos desfavoráveis ao depoente, apenas terão que recair sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham tido conhecimento direto (artº 466º nº 1 do CPC).
Sobre a função e valoração das declarações de parte há vários entendimentos. A eles se refere com clareza o acórdão da Relação de Lisboa, de 26/04/2017, processo 18591/15.0T8SNT.L1-7, onde são referidas três posições:
. As declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes as protagonizaram e tiveram, por isso, conhecimento dos factos em discussão.
.A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
.Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem fundamentar a convicção do juiz de forma autossuficiente.
Entendemos que o tribunal poder-se-á fundamentar nas declarações de parte para dar como provados determinados factos, analisadas e ponderadas com a necessária cautela, por se tratar de depoimento interessado, cautelas que o tribunal também não deixa de ter quando o depoimento é prestado por testemunha com interesse no desfecho dos autos, desde que, e como também se verifica na prova testemunhal, elas alcancem o standard de prova exigível, para que um facto possa ser considerado provado pelo tribunal, tendo presente que para que o tribunal possa dar como provado um determinado facto não tem que se convencer da certeza absoluta da sua verificação, mas tem de convencer-se com alguma segurança, tem que ocorrer pelo menos um grau de probabilidade suficiente de que determinados factos ocorreram. Se a prova em juízo tivesse que ser absoluta, na maior parte das vezes, porque tal não é conseguido, a atividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante denegação de justiça, o que significa que a justiça apenas exige um grau de probabilidade bastante ou suficiente, face às circunstâncias do caso, às regras da experiência da vida e aos ensinamentos da ciência.
O julgador no seu trabalho de valoração da prova e de reconstituição dos factos com o fim de atingir uma verdade, não está obrigado a aceitar ou recusar cada uma das declarações ou depoimentos na globalidade, podendo extrair de cada um deles, o que lhe merece ou não crédito.
No caso concreto, não se nos afigura que com base nas declarações de parte se possa concluir no sentido de dar como provado, com a necessária segurança, o pagamento da quantia mutuada. A versão do apelante não se nos afigura credível. O depoente refere que quando o exequente lhe emprestou o dinheiro que reconhece ter recebido, emitiu um cheque para garantia do bom pagamento do empréstimo, tendo assumido que liquidaria o empréstimo no prazo de três meses. Decorrido esse período temporal, como não tivesse pago, emitiu outro cheque para garantia do pagamento, agora incluindo na verba nele referida, os juros devidos por não ter pago na data acordada.
Ora, de acordo com as regras do normal acontecer, o executado, se tivesse pago o empréstimo com a entrega do milho e sabendo que tinha entregue um cheque para garantia do bom cumprimento da obrigação de pagamento, teria pedido a sua devolução. O executado referiu nas suas declarações que não se lembrou de pedir a devolução, mas esta versão até contraria a que apresentou na petição de embargos, onde alegou ter insistido por várias vezes junto do exequente pela sua entrega, sem sucesso.
A circunstância do cheque ter sido apresentado a pagamento, apenas em dezembro de 2017 quando foi emitido em abril de 2012, não significa necessariamente que a dívida estivesse paga. Diversas circunstâncias podem estar na apresentação a pagamento apenas nessa altura, nomeadamente a existência de uma relação de amizade entre as partes, à qual é feita alusão no requerimento executivo e não foi posta em causa na audiência final e/ou não pretender a parte recorrer a tribunal, razões que podem ter determinado que o exequente fosse aguardando que a quantia lhe fosse paga voluntariamente.
Realce-se ainda a desconformidade entre número de toneladas que o executado diz ter entregue e o número de toneladas referido pelas testemunhas. O executado declarou ter entregue 70 toneladas e as testemunhas referiram ter carregado um número assaz inferior ( a testemunha CC referiu 20 a 24 toneladas (10/12 toneladas em cada uma das duas vezes em que procedeu ao carregamento e entrega) e a testemunha DD referiu ter carregado 10 ou 20 toneladas, não se lembrando já, o que no máximo corresponderia apenas a 44 toneladas de milho. Não se põe em causa que as testemunhas DD e CC tenham feito os carregamentos que disseram ter feito, o que se diz é que não está demonstrada com a necessária segurança que esses carregamentos se destinassem ao pagamento da quantia exequenda.
Considera-se assim que a prova produzida não tem consistência suficiente e necessária para a sua demonstração em juízo, pelo que não há que anular a decisão e reenviar o processo à primeira instância, o que redundaria, como se referiu já, na prática de atos inúteis. E não sendo de considerar provado que o executado pagou a quantia exequenda, a execução deve prosseguir.
Sumário:
(…)
IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a sentença recorrida, julgando improcedente a oposição, devendo a execução prosseguir.
Custas pelo apelado.
Notifique.
Coimbra, 12 de novembro de 2024