ALTERAÇÃO DA REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
REGIME PROVISÓRIO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
Sumário

I – Uma providência tutelar cível, enquadrada como processo de jurisdição voluntária, não autoriza, por isso, uma tramitação arbitrária, apressada ou ligeira que desemboque na inobservância de pressupostos ínsitos ao processo equitativo, como sejam o da fundamentação da decisão.
II – A fixação de um regime provisório não tem que ter o mesmo grau de fundamentação que se exige a uma sentença, mas também não pode olimpicamente ignorá-la, de facto ou de direito – arts. 607.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
III – Uma decisão provisória totalmente omissa na especificação dos factos, provados e não provados, meios probatórios e respectiva subsunção jurídico-tutelar, é nula à luz do art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz (J...)

Recorrente: AA

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

            (…).

  

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

A presente providência tutelar cível nominada[2] e urgente[3] – de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais (Apenso F) –, que corre por apenso[4] à acção de Divórcio sem Consentimento do Outro Cônjuge (Autos Principais), foi intentada por BB relativamente a AA, na qualidade de progenitores de CC e DD, ambos de apelido EE, respectivamente nascidos em ../../2009, e em ../../2016.

No decurso da fase instrutória desta acção, com data de 31 de Julho de 2024, foi exarado o seguinte despacho:

«Tendo em consideração o promovido pelo Ministério Público e os demais elementos constantes dos autos, impõe-se desde já fixar um regime provisório relativamente ao exercício das responsabilidades parentais atinentes às crianças CC e DD, sendo certo que os autos dispõem, nesta fase, de elementos suficientes para o efeito – cfr. artigo 28º do RGPTC.

Fixo, em conformidade, o seguinte regime provisório quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativamente a CC e DD:

1. Fixa-se a residência de CC e DD no domicílio do seu pai, onde quer que este seja, com quem os mesmos residirão.

2. As decisões relativas às questões de particular importância para a vida de CC e de DD serão tomadas exclusivamente pelo progenitor, justificando-se esta decisão face à vontade manifestada pelas crianças nos moldes constantes do relatório do ISS do apenso G datado de 02.07.2024 e face ao teor do ofício do CHUC do qual resulta um estado de ansiedade causado pela circunstância de DD ter estado com a progenitora tendo vontade de ficar com o pai.

3. As decisões sobre os actos da vida corrente de CC e de DD serão tomadas pelo progenitor com quem as crianças se encontrarem no momento.

4. A mãe poderá estar com as crianças sempre que quiser e tiver disponibilidade, nos moldes a combinar com o pai e na presença deste ou de pessoa da confiança deste, sem prejuízo dos seus horários de descanso e escolares e sempre tendo em conta a vontade das crianças.

5. Os contactos referidos em 4. poderão ocorrer igualmente através de vídeo chamada, mormente nos períodos em que as crianças estejam com o pai no estrangeiro, onde este tem actualmente domicílio, nos moldes e com a frequência, duração e horários a combinar com o progenitor e na presença deste ou de pessoa da confiança deste, sem prejuízo dos horários de descanso e escolares das crianças e sempre tendo em conta a vontade das mesmas.

5. A mãe contribuirá com a quantia mensal de € 120,00 (cento e vinte euros) a título de alimentos devidos aos filhos, a entregar ao pai até ao dia 8 do mês a que respeita, mediante qualquer forma documentada de pagamento.

6. A prestação será actualizada anualmente, com início em Janeiro de 2025, no valor mensal de € 2,00 (dois euros).

Notifique.».

II.

Inconformada, a Requerida/Recorrente interpôs Recurso de Apelação, rematando as suas alegações, com as seguintes

«CONCLUSÕES:

1. O despacho que fixou provisoriamente um regime quanto ao exercício das responsabilidades parentais dos menores relativamente aos menores CC e DD, ora recorrido, enferma, com o devido respeito, de nulidade, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. b) do CPC.

2. O Tribunal a quo limitou-se, discricionariamente, com todo o respeito, a fixar um regime provisório de regulação das responsabilidades parentais dos menores, omitindo quais os factos que considerou provados e não provados, bem como o enquadramento jurídico dos factos, que conduziram à prolação de tal decisão.

3. O despacho recorrido, configura uma verdadeira Sentença, já que decide, embora a título provisório, do mérito da causa, regulando até à decisão final o exercício das responsabilidades parentais dos menores.

4. Sem a explicitação dos factos provados e não provados, o regime provisório do exercício das responsabilidades parentais instituído pelo Tribunal a quo não tem qualquer base factual que suporte tal fixação de regime provisório, incorrendo assim o despacho recorrido na nulidade prevista no art. 615º, n.º 1, al. b) do CPC.

5. A decisão provisória, como a dos presentes autos, sendo um processo de jurisdição voluntária, deve ser cabalmente fundamentada, sob pena de incorrer em nulidade.

6. A imposição da fundamentação das decisões encontra-se consagrada constitucionalmente no art. 205º da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como no art. 154º do CPC.

7. Sendo que, tal imposição legal e constitucional aplicam-se a todas as decisões que incidam sobre qualquer pedido controvertido, incluindo, naturalmente, a decisão a que respeita os presentes autos – regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais, por força da aplicação subsidiária do CPC, nos termos do art. 33º do RGPTC.

8. O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão num Estado de Direito, de modo a que permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito de tal decisão.

9. A este respeito chama-se à colação o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Proc. 4547/11.5TBCSC-A.L1-6 quando refere que:

“I) A fundamentação das decisões judiciais é expressão da legitimidade de exercício jurisdicional imposta pelo art. 205º, n.º 1, da CRP, e densificado pela lei, nomeadamente pelo art. 158º do CPC, que a impõe na apreciação de todos os pedidos controvertidos e dúvidas suscitadas.

(…)”

10. Ora, no caso dos presentes autos não foi isso que sucedeu.

11. O Tribunal a quo fixou provisoriamente o regime do exercício das responsabilidades parentais dos menores, omitindo completamente quais foram as razões de facto e de direito que conduziram à fixação de tal regime provisório.

12. Dispõe o art. 607º, n.º 3 do CPC, aplicável por força do art. 33º do RGPTC, na fundamentação da sentença, deve “o juiz discriminar quais os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.

13. Como refere a doutrina, mais concretamente como ensina Alberto dos Reis, “(…) as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. (…) Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto”.

14. No caso dos presentes autos, o despacho ora recorrido limita-se a fixar um regime provisório, sem que, previamente, tenha fixado quaisquer factos provados e não provados, sem que tenha feito qualquer alusão aos meios probatórios em que fundou a sua convicção, sem referir as regras por que se pautou (enquadramento jurídico) e sem que tenha explanado quaisquer razões para optar por aquele concreto regime e não por outro diferente.

15. É certo que, se trata de uma decisão provisória, pelo que não teria o Tribunal a quo de escalpelizar todos o factos provados e não provados, nem de invocar todas as normas aplicáveis,

16. No entanto, o Tribunal a quo, teria de o fazer de forma sumária, para que, qualquer das partes, quer mesmo em sede de recurso o tribunal superior, pudessem sindicar a decisão, quer ao nível factual, quer ao nível jurídico.

17. Ora, tal não se verifica, de todo, no despacho que ora se recorre.

18. Refira-se, neste conspecto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-12-2017, quando refere que:

“As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de  ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o art. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o art. 154º, n.º 1, do actual CPC (que, ao incluir no universo das decisões carecidas de fundamentação todas as que sejam proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, apenas eclui do dever de fundamentação as decisões de mero expediente).”

19. Pelo que, transpondo o que se acaba de referir para o caso sub judice, despacho recorrido que fixou o regime provisório do exercício das responsabilidades parentais, não constitui, nem de perto nem de longe, com o devido respeito, uma decisão de mero expediente.

20. O que significa, que tal despacho carecia, inevitavelmente de ser cabalmente fundamentado, quer de facto, quer de direito, a fim de, não incorrer em nulidade.

21. O Tribunal a quo, com o devido respeito, nunca poderia, utilizando as expressões “(…) sendo certo que o autos dispõem, nesta fase, de elementos suficientes para o efeito – cfr. artigo 28º do RGPTC.”, fixar nos termos em que o fixou o referido regime provisório relativamente ao exercício das responsabilidades parentais dos menores, CC e DD.

22. Porquanto, se, conforme refere no despacho, o Tribunal a quo dispõe de elementos probatórios suficientes para fixar tal regime provisório, então o Tribunal a quo não poderia deixar de consignar, antes de instituir um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, ao abrigo do disposto no art. 28º do RGPTC, sem que enunciasse os factos indiciariamente provados e não provados.

23. Assim, sem a explicitação desses factos o regime provisório de exercício das responsabilidades parentais instituído pelo Tribunal a quo não tem qualquer base factual que suporte tal regime provisório.

24. Pelo que, atento o exposto, o despacho recorrido, que fixou o regime provisório de exercício das responsabilidades parentais dos menores, CC e DD, é nulo, ao abrigo do disposto na al. b), do n.º 1, do art. 615º do CPC.

25. No âmbito do referido regime provisório o Tribunal a quo fixou que a requerida, ora recorrente, deveria prestar alimentos aos filhos no valor mensal de € 120,00 (cento e vinte euros).

26. Os alimentos a fixar têm, naturalmente, de respeitar a proporcionalidade entre os meios daquele que os tiver de prestar e as necessidades daquele que houver de os receber, conforme dispõe o art. 2004º do CC.

27. Pelo que, deve a prestação de alimentos ser proporcional aos rendimentos dos progenitores e às necessidades dos filhos.

28. O que quer isto dizer que, a medida dos alimentos deverá ser efectuada numa base de proporcionalidade entre as possibilidades do devedor e as necessidades do credor.

29. No caso dos autos, a requerida, ora recorrente, por requerimento junto aos autos a 17-07-2024, com a referência CITIUS 9031686, veio informar que apenas aufere mensalmente a quantia de € 213,00 (duzentos e treze euros) e que desse valor ainda subtrai, além das despesas da vida corrente, um valor a pagar à Segurança Social, relativamente ao abono de família dos menores que o requerente, recebeu indevidamente em França, sem tivesse qualquer conhecimento.

30. Ora, tal valor é manifestamente excessivo atendendo às circunstâncias financeiras da requerida, ora recorrente, conforme são conhecidas dos autos.

31. O Tribunal a quo ignorou tal informação prestada pela mãe, ora recorrente, aos presentes autos.

32. O que significa que, mais uma vez, omitiu factualidade que sustentasse a fixação provisória da pensão de alimentos a prestar pela mãe aos menores.

33. Destarte, a não fundamentação da decisão recorrida no que concerne à fixação dos alimentos, sendo omissa nas razões que, considerando o princípio do superior interesse da criança, justificariam a mesma, implica a nulidade de tal decisão, por força do disposto no art. 615º, n.º 1, al. b) do CPC, aplicável subsidiariamente pelo art. 33º do RGPTC.

34. Em face do retro exposto, deve o despacho recorrido, que fixou provisoriamente o regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, ser objecto de sindicância pelo Tribunal ad quem, que o revogue, por manifesta nulidade do mesmo, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. b) do CPC, aplicável por via do princípio da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, como estabelecido no art. 33º do RGPTC.».

III.

Apenas a digna magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso, respigando-se:

(…).

IV.

Questão decidenda

A despeito da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Da nulidade do despacho recorrido por omissão dos fundamentos de facto e de direito – art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil[5].

V.

Do Direito

O modelo processual acolhido na legislação portuguesa é o do processo equitativo, com tutela constitucional[6], na esteira, inter alia, dos arts. 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos[7], e 47.º, § 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[8], ambos instrumentos aos quais Portugal está vinculado, ex vi art. 8.º da Constituição da República Portuguesa.

Uma das dimensões estruturantes do processo equitativo reside no dever de fundamentação, de facto e de direito, de uma decisão judicial que verse sob questão litigiosa e que não seja de mero expediente.

A isto respeita o art. 205.º, n.º 1[9], da Constituição da República Portuguesa, afirmando-se que a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara, coerente e suficiente[10]/[11].

Este comando constitucional encontra tradução na legislação ordinária adjectiva civil no art. 154.º[12], retomado e desenvolvido aquando do Capítulo destinado à Elaboração da Sentença (arts. 607.º ss.), e plenamente aplicável ao caso vertente, na medida em que as normas processuais civis são direito subsidiário da jurisdição da Família e das Crianças, à luz do art. 33.º, n.º 1[13], do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.

Insere-se neste domínio do dever genérico de fundamentação da decisão, a exposição dos factos e da convicção do Tribunal, feita através do exame crítico da prova produzida e/ou coligida nos autos.

O legislador foi claro na exigência, ao julgador, de que consigne a factualidade e o iter de formação da convicção, desde logo como fonte de legitimação da decisão na comunidade, por assegurar publicamente a independência, a objectividade e a transparência do processo (legitimação interna), mas, igualmente, como forma de convencimento do seu destinatário directo, permitindo, do mesmo passo, a sua eventual sindicância e controlabilidade por parte de um Tribunal superior (legitimação externa). 

É unânime que apesar de não ser suficiente a mera enunciação dos meios de prova utilizados em 1.ª instância, a observância do dever de fundamentar de facto não chega ao ponto de impor a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada um dos factos tidos por assentes.

Por seu turno, a lei não visa aqui a reprodução mecânica dos depoimentos ou do teor dos documentos, mas sim que concisa e coerentemente o Tribunal esclareça as razões de ter aderido a uma determinada posição em detrimento de outra; os motivos pelos quais atribuiu credibilidade a um depoimento, exame ou documento e porque não atendeu a provas de sentido contrário; as razões de ciência; as inferências dedutivas; as presunções ou as regras de experiência.

Só desta forma é que se poderá concluir se foi seguido um processo racional e lógico na selecção dos factos, se a decisão não é intuitiva, arbitrária ou dominada pelas impressões ou, ainda, se a mesma padece de vícios que a inquinem.

A nulidade por falta de fundamentação, a que se alude no art. 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, abrange tanto a fundamentação de facto, como a fundamentação de direito[14].

Já não se integram nesta alínea os casos em que existe fundamentação, mas a mesma enferma de erro ou é insuficiente, caso em que, se for admissível, pode originar um recurso. 

Na situação em apreço, na providência tutelar cível cujo escopo é o da alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais, foi proferida uma decisão provisória, sustentada no art. 28.º, e cuja recorribilidade está expressamente prevista no art. 32.º, n.º 1, ambos do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.  

Como resulta do art. 12.º do Regime Geral, esta providência integra-se na categoria de processo de jurisdição voluntária, e, enquanto tal, implica a ponderação dos arts. 986.º a 988.º do Código de Processo Civil, os quais contêm as suas traves mestras, enunciando que o Tribunal tem ampla liberdade investigatória e probatória, devendo nortear-se, não por critérios de legalidade estrita, mas antes construir, em face da concreta dinâmica familiar que lhe é presente, a solução que entenda ser, nesse momento, a mais conveniente e oportuna.

A pedra de toque é, pois, a discricionariedade vinculada ao fim, ou seja, o Tribunal, colocando sempre o enfoque na criança ou jovem e tendo procedido a uma avaliação exigente, densificada e sindicável do seu superior interesse, tem o poder-dever de encontrar soluções exequíveis, razoáveis e promotoras de pacificação intrafamiliar.

A Recorrente entende que o despacho em crise é nulo, pela não especificação dos factos, provados e não provados, meios probatórios e ausência de subsunção jurídica, lançando mão do art. 615.º, n.º 1, al. b), por remissão para o art. 607.º[15], maxime n.ºs 2 a 5, ambos do Código de Processo Civil.

É certo que o Regime Geral contém uma norma intitulada Sentença (art. 40.º), essencial na definição muito específica dos contornos concretos das responsabilidades parentais, mas o regime matricial de construção e requisitos da Sentença assenta inquestionavelmente no art. 607.º do Código de Processo Civil[16].

Ora, a circunstância de se tratar de um processo de jurisdição voluntária não autoriza uma tramitação arbitrária, apressada ou ligeira que desemboque na inobservância de pressupostos ínsitos ao processo equitativo, como sejam o da fundamentação da decisão; aliás, por via da consagração expressa no art. 986.º, n.º 1, são aplicáveis as disposições dos arts. 292.º a 295.º, todos do Código de Processo Civil, e é o próprio art. 295.º que determina que à decisão por escrito se aplica, com as necessárias adaptações, precisamente o art. 607.º.

Se, por regra, uma decisão provisória não tem que ter o mesmo grau de fundamentação que se exige a uma sentença, também não pode olimpicamente ignorá-la, de facto ou de direito.

Mais a mais num processo que espelha um nível intenso de litigiosidade parental, em que o pomo de discórdia se centra na residência habitual dos filhos comuns, consabido que os progenitores residem em países diferentes, e que, claramente, não se está perante um despacho de mero expediente.

Constata-se que o despacho em crise é totalmente omisso quanto à factualidade provada, exame crítico da prova e respectivo enquadramento jurídico-tutelar, sendo estas omissões fracturantes e geradoras de nulidade insuprível.

Este tem sido o entendimento já jurisprudencialmente estabilizado[17].

Não sendo possível a este Tribunal fixar os factos, por a tanto se opor a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, é encargo do Tribunal de 1.ª Instância exarar nova decisão, fundamentada nos termos legais.

Como assim, a satisfação das custa processuais impenderá sobre a parte vencida, a final (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, por remissão do art. 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).

VI.

Decisão:

Com os fundamentos explicitados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, declarando-se nula a decisão recorrida, por falta de fundamentação, e determinando-se a devolução dos autos ao Tribunal de 1.ª Instância, para que aí se profira nova decisão.

O pagamento das custas processuais responsabiliza a parte vencida, a final.

Registe e notifique.


Coimbra, 12 de Novembro de 2024

(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)



[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Helena Melo
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Maria João Areias
[2] Cf. art. 3.º, al. d), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08-09).
[3] Atribuição ope iudicis, em 12 de Julho de 2024, atento o teor do art. 13.º deste Regime Geral, e que vem ao encontro da previsão normativa do art. 7.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças (vigente na ordem jurídica interna desde 01-07-2014, publicada no Diário da República, 1.ª Série, n.º 18, de 27-01-2014, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, ambos da mesma data).
[4] No cumprimento do pressuposto processual da competência por conexão, corporizado no art. 11.º, n.º 3, deste Regime Geral.
[5] Segundo a norma, epigrafada Causas de nulidade da sentença, e entre o mais:
«1 - É nula a sentença quando:

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.».

[6] Conforme art. 20.º, Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva:

«…

4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.».
[7] A Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (via Lei n.º 45/2019, de 27-06), faz parte do direito interno desde 09-11-1978 (aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13-10, e publicada no Diário da República, I Série, n.º 236, de 13-10-1978, com rectificação subsequente no Diário da República, n.º 286, de 14-12-1978).
[8] Jornal Oficial (2000/C 364/01), de 18-12-2000.
A Carta, proclamada em 2000, na sua versão revista e adaptada em 12-12-2007, tornou-se juridicamente vinculativa para a União Europeia, com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 01-12-2009, o que significa que, desde essa altura, beneficia do mesmo valor (e segurança) jurídico que os Tratados – cf. artigo 6.º, n.º 1, do Tratado da União Europeia.
[9] Com epígrafe Decisões dos tribunais, estatui na parcela pertinente, que:
«1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.».

[10] Jorge Miranda e Rui Medeiros in, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª edição, Universidade Católica Portuguesa, 2020, pp. 61/62.

[11] Vieira de Andrade in, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 2003 (reimpressão), p. 234, adianta que uma declaração incongruente não é uma fundamentação, porque não pode ser um discurso justificativo, faltando-lhe a racionalidade que é uma condição necessária de toda a decisão pública de autoridade num Estado de Direito.
[12] Epigrafado Dever de fundamentar a decisão, dispõe que:
«1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.».
[13] A epígrafe é Direito subsidiário, preceituando:
«1 - Nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.».

[14] Rui Pinto in, Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC), Julgar Online, Maio de 2020, pp. 11/12, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf), acrescentando, «… é bom de ver que uma ausência de análise crítica das provas ou uma fundamentação da decisão da matéria de facto que seja genérica, sem especificação da prova que foi decisiva é, funcionalmente, uma falta de fundamentação da parte dispositiva. É certo que é uma falta de fundamentação indireta, porquanto normalmente é acompanhada do(s) julgamento(s) de provado / não provado, mas está no espírito da nulidade em presença cominar qualquer falta efetiva e funcional de fundamentação.» (p. 15), «Em conclusão: a nulidade por falta de fundamentação diz respeito tanto ao(s) julgamento(s) de provado / não provado (cf. artigo 607.º, n.ºs 3, primeira parte, e 4, primeira parte), como à motivação ou convicção (cf. artigo 607.º, n.º 4, segunda parte) que os sustenta.

Ocorre também falta de fundamentação se, em termos funcionais e efetivos, faltar a motivação da prova, apesar de estar presente o julgamento de provado / não provado.» (p. 16), e «A falta de fundamentação a que se refere a al. b) do n.º 1 do artigo 615.º ocorre, seja quando não há nenhuma fundamentação (de direito ou de facto) da parte dispositiva, seja quando falta, em termos funcionais e efetivos, algum segmento da fundamentação exigida pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º.

Trata-se, em ambos os casos, de um vício grosseiro, grave e manifesto, como é próprio dos vícios arrolados nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 615.º. Um entendimento conforme ao artigo 205.º, n.º 1, da Constituição impõe esta interpretação….» (p. 17).
[15] Sob a epígrafe Sentença, estabelece, no segmento relevante:
«2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
6 - No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respetiva responsabilidade.».
[16] Chandra Gracias in, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado (Coordenação de Cristina Dias, João Barros e Rossana Martingo), anotação ao art. 56.º, Almedina, 2002 (Reimpressão), pp. 469/470.
[17] Entre tantos, Acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa, Proc. n.º 903/23.4T8CSC-F.L1, de 09-04-2024, Proc. n.º 10849/15.4T8SNT-L.L1.L1, de 06-02-2020, e no Proc. n.º 17627/17.4T8LSB.L1, de 25-01-2018; da Relação de Coimbra, de 04-06-2024, Proc. n.º 184/15.3T8CBR-G.C1, e Proc. n.º 791/23.0T8CVL-D.C1, de 02-06-2020, e da Relação do Porto, Proc. n.º 3032/22.4T8FNC-E.P1, de 08-02-2024.