I – Nos termos do artigo 663º, nº2, do Código de Processo Civil aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607º, nº4 daquele diploma, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença os factos admitidos por acordo e os plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
II – Por isso, o Tribunal da Relação deve alterar a matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa e desde que contendam com o objeto do recurso. Tal ocorre quando o Tribunal de 1ª instância não deu como provado determinado facto do qual decorre a existência de uma declaração confessória por parte da Recorrida.
III – O artigo 1723º, do Código Civil, prevê duas formas de sub-rogação real para o efeito de manterem a natureza de bens próprios os bens adquiridos a título oneroso, na constância do matrimónio, mas à custa de bens próprios, mediante o emprego ou utilização destes: a sub-rogação direta (alíneas a. e b.)); a sub-rogação indireta (alínea c)).
IV – Decorre da alínea c), do artigo 1723º, do Código Civil, que o legislador prevê dois requisitos para que opere a sub-rogação indireta: menção da proveniência do dinheiro ou valores no documento de aquisição ou equivalente e intervenção de ambos os cônjuges. No entanto, esta norma deve ser objeto de uma interpretação restritiva nos termos da qual só terá aplicação quando estiverem em jogo interesses de terceiros.
V – Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.
Juízo de Família e Menores de Vila do Conde – Juiz 2
Recorrente: AA
Recorrida: BB
Relatora: Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
2ª Adjunta: Carla Fraga Torres
Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório
Nos autos de inventário para separação de meações, em consequência de divórcio, em que é Requerente/Interessada BB e Requerido/Cabeça de Casal AA, apresentada que foi a relação de bens em 18.01.2022, veio a Interessada, em 20.02.2022, dela reclamar, acusando a falta de direitos de crédito por si titulados sobre o Cabeça de Casal, de um bem imóvel, de bens móveis, de dinheiro e de depósitos bancários que deveriam ser relacionados.
Indicou testemunhas.
Notificado da reclamação, veio o Cabeça de Casal, em 26.04.2022, apresentar resposta à mesma, alegando, entre o mais, que o imóvel cuja falta foi acusada constitui bem próprio dele. Requereu a prestação de declarações de parte, arrolou uma testemunha, juntou dois documentos e protestou juntar um outro documento.
Em 4.05.2022, o Cabeça de Casal juntou o documento que havia protestado juntar, que constitui a escritura de compra e venda do imóvel, assim como um instrumento notarial outorgado no dia 4 de janeiro de 2001, junto do extinto 1.º Cartório de Vila do Conde, no qual é identificada como outorgante a Interessada BB.
Devidamente notificada da junção desses dois documentos, a Interessada nada disse.
Em 3.06.2022, foi proferido despacho que julgou improcedente a reclamação apresentada quanto aos direitos de crédito e ao dinheiro, determinou a notificação do Cabeça de Casal para aditar à relação de bens a mobília da sala, uma vez que ele próprio admitiu a sua existência, e ainda a notificação das partes para juntarem aos autos as devidas autorizações para obtenção de informações bancárias.
Em 10.02.2023, o Cabeça de Casal juntou aos autos relação de bens retificada.
Por despacho de 26.06.2023, o Tribunal a quo decidiu, quanto à questão dos saldos bancários, objeto da reclamação, que os saldos a atender correspondem às três contas aditadas (como verbas nºs 2 a 4, com os valores fornecidos pela respetiva instituição bancária, em informação de 04.11.2022).
Quanto ao imóvel e às armas, determinou a notificação das partes para esclarecerem se mantinham interesse na produção da prova testemunhal arrolada, tendo o Cabeça de Casal, em 10.07.2023, informado que prescindia da audição da testemunha indicada.
Perante o silêncio da Interessada, foi designada data para a inquirição das testemunhas por ela arroladas e prestação de declarações das partes, tendo tal diligência decorrido em 23.10.2023.
Em 5.02.2024, o Tribunal a quo proferiu decisão com o seguinte dispositivo:
“ Nestes termos, julga-se parcialmente procedente, por provada, a reclamação apresentada, determinando-se a inclusão na relação de bens do imóvel descrito (prédio rústico) na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o número ..., da freguesia ..., sem prejuízo do disposto no art.º 1726º, n.º 2 do Código Civil, a atender no momento conferência de interessados, improcedendo a reclamação quanto à inclusão das armas na relação de bens.
Custas pelo interessado e pela cabeça-de-casal, que se fixam em 2/3 e 1/3, fixando-se em 2 Uc a taxa de justiça.”
Note-se que a indicação, no dispositivo, do prédio descrito sob o número ... configura um claro lapso de escrita por parte do Tribunal de 1ª instância, como resulta evidente do próprio teor da decisão, devendo entender-se como sendo o prédio descrito sob o número ....
I O presente recurso tem por objeto a matéria de facto, mais concretamente, a falta de apreciação por parte do Tribunal a quo do documento n.º 2 junto em 04/05/2022 com o requerimento com a referência 42131790, o que determinou decidir que o prédio rústico descrito na competente Conservatória de Registo Predial sob o n.º ... da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... da união de freguesias ... e ... fizesse parte do acervo dos bens comuns do extinto casal.
II O Tribunal a quo considerou provado que:
“4.Por escritura pública, lavrada no dia 22 de novembro de 2000, no Segundo Cartório Notarial de Vila do Conde, o cabeça de casal AA, na qualidade de segundo outorgante, e outorgando por si, e na qualidade de procurador substabelecido, e de procurador em representação de CC e de DD e marido EE, declarou em nome dos seus representados: Que pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, que os mesmos já receberam, vende a ele próprio o prédio rústico denominado “...”, de pinhal e mato, (…) sito no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número zero zero cento e quarenta e oito (148), com registo de transmissão a favor do autor da herança, pela inscrição ..., inscrito no artigo ... da matriz rústica respetiva. Declarou o cabeça de casal, na qualidade de segundo outorgante: “Que aceita para si este contrato e que o prédio adquirido se destina a ser emparcelado ao seu prédio rústico denominado “... ou ...” (…) descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número zero zero cento e noventa e sete, da freguesia ... e inscrito no artigo ... da matriz rústica da referida freguesia ....
Que da reunião destes prédios resulta um prédio único, denominado “... e ...” (…), a confrontar do (…), inscrito no artigo ... da matriz rústica respectiva, com o valor de 61100$00.
5. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o n.º ..., da freguesia ..., o prédio rústico, sito em ..., inscrito na matiz predial sob o artigo ..., com a área de 56800 m2, composto por “... e ...”, confrontando de norte com Herdeiros de FF e outros, de sul e nascente, com caminho de poente com estrada, (resultante da anexação dos n.º ... e ...).
6. Através da ap. n.º ..., de 17/04/2000, foi inscrita, a favor do cabeça de casal AA, casado com BB, no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição, por doação do prédio ....
7. Através da ap n.º ... 2000/12/19 foi inscrita, a favor do cabeça de casal AA, casado com BB, no regime de comunhão de adquiridos, a aquisição, por compra do prédio ....
8. Consta ainda da certidão a seguir à expressão do prédio ... a menção de “com natureza de bem próprio”.
III Como fundamento dos referidos factos provados o Tribunal a quo considerou “…a prova documental, pela sua força probatória intrínseca,…”.
IV Com base nos únicos documentos considerados, escritura de compra e venda do prédio em questão e respetiva certidão do registo predial, decidiu o Tribunal a quo que o prédio rústico é bem comum, sustentando para o efeito que:
V “O cabeça de casal nem falou das concretas circunstâncias em que foi feito o negócio, nomeadamente, ter comprado a parte que reveste natureza comum com dinheiro que lhe foi doado ou que já constituía produto de uma venda de um bem próprio. E diga-se ainda que o cabeça de casal não contrariou sequer o que foi declarado na escritura pública.
Repare-se que a pretender considerar o bem próprio, deveria constar da escritura pública a proveniência do dinheiro com que o cabeça de casal efetuou a compra. E tal também não consta da escritura, de modo que sendo adquirida por compra, na pendência do casamento, por força do disposto no art.º 1724 constitui um bem comum.
Acresce que nem sequer alegou circunstância que permita concluir que o bem de maior valor é o que reveste natureza própria.
O imóvel em causa nasceu de uma soma de bens de natureza diferente, uma parte que tinha natureza própria a que se somou uma outra parcela, adquirida a título oneroso e como tal tem natureza comum.
Por sua vez, a escritura pública supra citada, a fonte de aquisição não revela a proveniência do dinheiro ou bem com que foi adquirido por compra a parte (148), revela tão só uma aquisição pelo preço de sete milhões e quinhentos mil escudos, i. e. a título oneroso na pendência do casamento, dai se presumindo a natureza comum do bem à luz do art.º 1724º do Código Civil.
Por sua vez a menção na certidão de que a parte que foi comprada, identificada como prédio ... tem natureza de bem próprio não é fonte de aquisição de direito, pois faz apenas presumir a favor do titular inscrito o direito que se inscreve. O registo faz presumir a aquisição do titular. Se o cabeça de casal justificou no registo a natureza de bem próprio com essa menção, ela nada em si nada revela, na medida em que não está comprovada pela escritura pública.
A escritura pública não provou outra fonte constitutiva do direito que não fosse a aquisição onerosa e por outro lado, o cabeça de casal/reclamado não alegou e nem provou circunstância que permita concluir que se trata de um bem próprio.
Não só não consta da escritura pública que o prédio ... foi adquirido com dinheiro próprio do cabeça de casal, ou seja não só não alegou que deu cumprimento ao disposto no art.º 1723º, al. c) do Código Civil, ao que se intervenção da interessada, como nem sequer alegou e provou circunstância que permita concluir que se trata de um bem próprio.”
VI Ignorou por completo o Tribunal a quo o Instrumento público celebrado em 04/01/2001 no extinto Primeiro Cartório Notarial de Vila do Conde, outorgado pela Interessada BB, Recorrida, como supra se referiu em 04/05/2022, o qual não foi impugnado nem tão pouco foi impugnado o efeito jurídico que do mesmo se extrai, do qual que declarou a Recorrida: “…que o dinheiro utilizado por seu marido para pagamento da citada aquisição era próprio dele, reconhecendo, por isso para todos os devidos e legais efeitos que o referido prédio constitui bem próprio dele.”
VII Desconsiderando o referido documento, Instrumento, concluí o Tribunal a quo que: “Concretizando, de acordo com a letra da lei, para que esta subrogação opere, salvaguardando o direito do cônjuge proprietário do bem próprio, são impostos dois requisitos cumulativos: a) que fique a constar no respetivo documento que o bem foi adquirido com valores provenientes de (ou que consubstanciem eles mesmos) bens próprios de um cônjuge; e que ambos os cônjuges intervenham no documento.”
VIII Fazendo jus ao Acórdão indicado na sentença de que se recorre, Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015 de 02/07/2015, onde se estabelece que: “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”, há que concluir que o Instrumento outorgado pela Recorrida teve como objetivo suprir as eventuais omissões de que padecia o título de aquisição, consubstanciando-se o referido documento em uma ratificação por parte daquela.
IX O Instrumento público outorgado pela Recorrida, supre as omissões no título de compra e venda, pelo que, mal andou o Tribunal a quo, não considerar que não se verificavam os requisitos da alíena c) do artigo 1723.º do Código Civil.
X Por outro lado e conforme refere o referido Acórdão não “estando - como, no caso, sucede - em causa interesses de terceiros - nomeadamente, credores a que interesse legitimamente saber a quem pertence o bem -, a falta, na escritura de compra da casa, da menção a quem pertencia o dinheiro com que se obteve esse bem ou de declaração equivalente dessa aquisição em documento assinado por ambos os cônjuges, pode ser suprida por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro ou bens próprios de um deles, o que permite afastar a aplicação do disposto no art. 1724.º, alínea b), do CC, e chamar à colação o disposto no n.º 1 do art. 1726.º do mesmo diploma.”
XI É inegável que é a própria Recorrida que declara reconhecer o bem imóvel como próprio do Recorrente, reconhecimento efetuado diante de notário, pelo que, não se vislumbra como o Tribunal a quo, pode ignorar o já muito referido documento – Instrumento – considerando que face à falta de verificação dos requisitos da alínea c) do art.º 1724.º, o prédio rústico compunha o acervo dos bens comuns do extinto casal como bem comum.
XII Do Instrumento consta: “que o dinheiro utilizado por seu marido para pagamento da citada aquisição era próprio dele, reconhecendo, por isso para todos os devidos e legais efeitos que o referido prédio constitui bem próprio dele”, pelo que, do inciso transcrito, por si só resulta que o prédio é bem próprio do Recorrente, devendo o Tribunal a quo ter decidido nesse sentido.
XIII O que invoca o Tribunal a quo faltar, encontra-se junto aos autos desde 04/05/2022.
Conclui pelo provimento do presente recurso e, por via dele, pela revogação da decisão recorrida, sendo substituída por outra que contemple as conclusões acima elencadas, tudo com as legais consequências.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pelo Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
- Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto.
- Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à questão de direito, justificando os factos provados e o direito aplicável que não seja incluída na relação de bens o imóvel descrito (prédio rústico), na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o número ..., da freguesia ....
1) Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto
Em primeiro lugar, cumpre salientar que o Recorrente, no ponto I das suas conclusões, começa por afirmar que “O presente recurso tem por objeto a matéria de facto…” parecendo, assim, com esta afirmação, anunciar que vai impugnar a matéria de facto. No entanto, escalpelizadas as conclusões de recurso e as alegações, conclui-se que se tratou de uma afirmação isolada e inconsequente, pois que, na realidade, limita-se a discordar da apreciação da prova efetuada pelo Tribunal de 1ª instância.
Se era sua pretensão impugnar a matéria de facto, haverá que concluir que o Recorrente incumpriu o ónus de impugnação previsto no artigo 640º, do Código de Processo Civil.
De acordo com este preceito, para que o Tribunal ad quem tenha de se pronunciar sobre a eventual pretensão de impugnação da matéria de facto incumbe ao Recorrente:
- Indicar claramente os concretos pontos de facto constantes da decisão que considera afetados por erro de julgamento. Não cabe ao Tribunal escolher na matéria de facto provada e não provada os factos que o Recorrente pretende impugnar, atividade que, aliás, lhe está vedada por força do princípio do dispositivo. Por isso, o Recorrente tem de assinalar os pontos de facto concretos que considera incorretamente julgados.
- Fundamentar as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios produzidos. O Recorrente tem que alegar os motivos que o levam a discordar e que, no seu entendimento, implicam uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados, elencando os meios de prova, constantes do processo ou nele registados, em que alicerça a sua divergência e analisando-os criticamente.
- Discriminar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
- Enunciar qual a decisão que, de acordo com o seu ponto de vista, deve ser proferida relativamente às questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada.
O citado artigo 640.º impõe, pois, um rigoroso ónus ao Recorrente, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, rejeição essa que pode ser total ou parcial, conforme o caso, e que deverá ocorrer, como evidencia António Santos Abrantes Geraldes[1], em alguma das seguintes situações:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação». Quanto a esta situação haverá, no entanto, que ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 12/2023, de 17 de outubro de 2023[2], uniformizou a seguinte jurisprudência: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Revertendo ao caso dos autos, como acima se salientou, afigura-se-nos ser de concluir que o Recorrente não recorreu da matéria de facto.
Ainda que assim não se entendesse, sempre seria de rejeitar essa sua eventual pretensão de impugnar a matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no artigo 640º, do Código de Processo Civil.
Concretizando, o Recorrente:
- Nunca chegou a afirmar, clara e assertivamente, nas suas alegações de recurso, que concretos pontos de facto considera incorretamente provados, para o que deveria ter remetido para os únicos factos obrigatoriamente a considerar para esse efeito, quais sejam, os contidos na decisão recorrida, no elenco dos factos provados aí identificados pelos números 1. a 8. ou do facto não provado, ali identificado pela letra A).
- Não enunciou os factos que, no seu entender, terão resultado da produção de prova.
- Não indicou, nas conclusões das suas alegações de recurso, os concretos factos que pretenderia impugnar.
Sem prejuízo das considerações tecidas, a verdade é que resulta do disposto no art.º 662.º, nº1, do Código de Processo Civil que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” Ou seja, apesar de o Recorrente não ter impugnado validamente a matéria de facto constante da decisão, o Tribunal da Relação deve alterar a matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa e desde que contendam com o objeto do recurso.
Isto porque na análise e valoração da prova a segunda instância está sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa atividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respetivas exceções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, conjugado com a disciplina adjetiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo Código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil.
Com efeito, nos termos do artigo 663º, nº2, do Código de Processo Civil aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607º, nº4 daquele diploma, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença os factos admitidos por acordo e os plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
No caso concreto, o Recorrente sustenta que o Tribunal de 1ª instância incorreu em erro de julgamento, por ter ignorado por completo o instrumento público celebrado em 04/01/2001, junto aos autos em 04.05.2022, o qual não foi impugnado nem tão pouco foi impugnado o efeito jurídico que do mesmo se extrai.
Cumpre, desde logo, reconhecer que, analisada a decisão recorrida, nenhuma referência nela é efetuada àquele documento, pelo que é legítimo concluir, tal como alega o Recorrente, que esse documento não foi tido em consideração naquela decisão.
Por outro lado, a Interessada, apesar de notificada da junção desse documento, nenhuma posição tomou quanto ao mesmo, pelo que não foi impugnado.
Esse documento consubstancia-se num instrumento notarial outorgado no dia 4 de janeiro de 2001, junto do 1.º Cartório Notarial de Vila do Conde, onde compareceu como outorgante a Interessada BB, à data casada com o Recorrente, tendo então declarado “Que, por escritura de vinte e dois de Novembro de dois mil, exarada a folhas cinco, do livro de escrituras diversas número ...-D, do Segundo Cartório Notarial de Vila do Conde, o seu referido marido adquiriu o prédio rústico denominado “...”, de pinhal e mato, com a área de doze mil metros quadrados, sito no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número zero zero cento e quarenta e oito da freguesia ... e inscrito no artigo ... da matriz rústica respetiva.
Que pelo presente instrumento ela outorgante vem declarar que o dinheiro utilizado por seu marido para pagamento da citada aquisição era próprio dele, reconhecendo por isso para todos os devidos e legais efeitos que referido prédio constitui bem próprio dele.
Este instrumento foi lido à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta”.
Esse documento mostra-se assinado pela Interessada BB, devendo ter-se por documento autêntico, atento o disposto no artigo 363º, nº2, do Código Civil.
Quanto ao seu alcance probatório, decorre do disposto no artigo 371º do Código Civil que o documento autêntico faz prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo – tudo o que o documento refere como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exato (artigo 371º, nº1, 1ª parte, do Código Civil). Além disso, o documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias perceções (artigo 371º, nº 1, 2ª parte, do CC). O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.
Decorre dessas normas que aquele instrumento notarial outorgado no dia 4 de janeiro de 2001 faz prova plena de que a Recorrida compareceu naquele dia no 1.º Cartório de Vila do Conde e que ali prestou as declarações nele exaradas.
Mas, para além disso, no caso concreto esse documento tem ainda outro valor probatório, que lhe é conferido, não pelo disposto no artigo 371º, do Código Civil, mas pelas normas relativas à confissão, a que aludem os artigos 352º e ss. do mesmo diploma fundamental.
Resulta do disposto no artigo 352º, do Código Civil que a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
A confissão pode ser judicial ou extrajudicial, sendo a primeira efetuada em juízo e a segunda por algum modo diferente (artigo 355º, nºs 1, 2 e 4 do Código Civil).
De acordo com a previsão do artigo 358º, nº2, do Código Civil, a confissão extrajudicial em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (artigo 358º, nº 2 do CC).
No caso concreto, o documento em causa encontra-se em poder da parte contrária, podendo entender-se que a declaração foi dirigida ao Recorrente, à data marido da Interessada. Através desse documento a Interessada emitiu uma declaração, contrária ao seu interesse, qual seja, o reconhecimento de que o imóvel “...” foi adquirido pelo seu então marido com dinheiro próprio dele, pelo que tal declaração representa uma confissão da sua parte, devendo assim, nas relações entre Recorrente e Recorrida, ser-lhe atribuído valor probatório pleno.
Essa força probatória significa que os factos não carecem de outra prova para se terem como demonstrados.
Vale isto por dizer que, perante o documento junto em 4 de maio de 2022, impõe-se concluir que o Tribunal a quo não teve em consideração a declaração confessória por parte da Recorrida constante daquele documento que, no caso concreto, tem força probatória plena, através da qual aquela reconheceu que o dinheiro utilizado pelo Recorrente, à data seu marido, para adquirir o prédio rústico denominado “...”, de pinhal e mato, com a área de doze mil metros quadrados, sito no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número zero zero cento e quarenta e oito da freguesia ... e inscrito no artigo ... da matriz rústica respetiva era dinheiro próprio dele.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 662, nº1, do Código de Processo Civil, impõe-se aditar aos factos provados constantes da decisão recorrida um novo facto, que passará a ser o 9., com a seguinte redação:
“9. No dia 4 de janeiro de 2001, junto do 1.º Cartório de Vila do Conde, compareceu como outorgante a Interessada BB, à data casada com o Recorrente, tendo então declarado “Que, por escritura de vinte e dois de Novembro de dois mil, exarada a folhas cinco, do livro de escrituras diversas número ...-D, do Segundo Cartório Notarial de Vila do Conde, o seu referido marido adquiriu o prédio rústico denominado “...”, de pinhal e mato, com a área de doze mil metros quadrados, sito no Lugar ..., da freguesia ..., deste concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número zero zero cento e quarenta e oito da freguesia ... e inscrito no artigo ... da matriz rústica respetiva.
Que pelo presente instrumento ela outorgante vem declarar que o dinheiro utilizado por seu marido para pagamento da citada aquisição era próprio dele, reconhecendo por isso para todos os devidos e legais efeitos que referido prédio constitui bem próprio dele.
Este instrumento foi lido à outorgante e à mesma explicado o seu conteúdo, em voz alta”, tendo sido assinado pela Interessada BB.
No mais, mantém-se inalterada a decisão da matéria de facto proferida pela primeira instância.
2- Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à questão de direito, justificando os factos provados e o direito aplicável que não seja incluída na relação de bens o imóvel descrito (prédio rústico), na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o número ..., da freguesia ...
Passando agora a apreciar o caso em análise na sua vertente substantiva, importa desde logo ter presente que, como vimos, a declaração confessória descrita no ponto 9. dos factos provados faz prova plena de que o Recorrente comprou o prédio rústico denominado “...” com dinheiro próprio.
O Recorrente sustenta que esse instrumento público outorgado pela Recorrida supre as omissões no título de compra e venda, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao considerar que não se verificavam os requisitos da alínea c), do artigo 1723º, do Código Civil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Está provado que a Interessada e o Recorrente contraíram casamento católico no dia 14 de novembro de 1970, com convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos.
Relativamente a esse regime de bens de comunhão de adquiridos o legislador, nos artigos 1722º e 1723º do Código Civil, indica quais os bens que se consideram próprios de cada um dos cônjuges, definindo este último normativo que “conservam a natureza de bens próprios” os bens sub-rogados no lugar de bens próprios.
Estatui o artigo 1722º, que neste regime:
1. São considerados próprios dos cônjuges:
a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;
b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;
c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:
a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;
b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;
c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;
d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.
Por sua vez, estabelece o artigo 1723º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Bens sub-rogados no lugar de bens próprios” que:
Conservam a qualidade de bens próprios:
a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges, por meio de troca direta;
b) O preço dos bens próprios alienados;
c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Por seu lado, o artigo 1724º, do citado diploma fundamental, sob a epígrafe “Bens integrados na comunhão” prescreve que.
“Fazem parte da comunhão:
a) O produto do trabalho dos cônjuges;
b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei.”
No caso concreto, resultada da factualidade provada sob os pontos 4. a 8. que o prédio rústico denominado “... e ...”, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o n.º ..., da freguesia ..., e inscrito na matiz predial sob o artigo ..., resultou do emparcelamento entre um bem que foi adquirido pelo Recorrente por doação que lhe foi feita – o prédio rústico denominado ... ou ... – e um bem que ele adquiriu por compra efetuada na pendência do casamento – o prédio rústico denominado ....
Quanto à parte proveniente da doação, dúvidas não se levantam de que se tratava de um bem próprio, atento o disposto no artigo 1722º, do Código Civil, sendo certo que a decisão recorrida também o reconhece.
A questão coloca-se em relação à parte do prédio que resultou da aquisição que o Cabeça de Casal efetuou por compra na pendência do casamento, que o Tribunal a quo entendeu que reveste natureza comum, atento o disposto na alínea b), do artigo 1724º, do Código Civil.
Sucede que tal entendimento não colhe a nossa adesão. E passamos a explicar porquê.
Conforme acima explanado, decorre do disposto na alínea c), do artigo 1723º, do Código Civil, que conservam a qualidade de bens próprios os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Prevê-se nesta norma o instituto jurídico da sub-rogação real, o qual se pode definir como aquele por virtude do qual praticando-se ou ocorrendo um ato ou um facto jurídico que importe simultaneamente perda de um valor e aquisição de outro, este se substitui ao primeiro.
Na sub-rogação real deve haver conexão entre a saída de bens de um património e a entrada nele de outros, sendo “próprios os bens que substituam os bens próprios”, como ensina o Professor Pereira Coelho, in “Curso de Direito de Família”, Lições ao Curso de 1977/78.
A sub-rogação real abrange duas modalidades, a sub-rogação direta e a indireta.
Na sub-rogação direta estão em causa casos em que a saída e a correlativa entrada de bens no património do cônjuge procedem do mesmo ato jurídico. Cabem nesta modalidade a troca direta dos bens próprios por outros bens.
Na sub-rogação indireta estão, por seu turno, em causa casos em que a perda e a aquisição resultam de atos jurídicos distintos. Abrange esta modalidade os bens adquiridos mediante o emprego de bens próprios ou com o produto da alienação de bens próprios, bem como as benfeitorias custeadas com dinheiro ou valores da mesma origem.
O citado artigo 1723º, do Código Civil, prevê as duas aludidas formas de sub-rogação para o efeito de manterem a natureza de bens próprios os bens adquiridos a título oneroso, na constância do matrimónio, mas à custa de bens próprios, mediante o emprego ou utilização destes: a sub-rogação direta (alíneas a. e b.)); a sub-rogação indireta (alínea c)).
Tem existido desde há muito controvérsia na doutrina e na jurisprudência acerca da questão de saber em que termos se pode operar a sub-rogação indireta, quanto à exigência ou não de se declarar expressamente, com a assinatura dos dois cônjuges, que o preço da aquisição proveio de bens próprios de um dos cônjuges.
Decorre da alínea c), do artigo 1723º, do Código Civil, que o legislador prevê dois requisitos para que opere a sub-rogação indireta: menção da proveniência do dinheiro ou valores no documento de aquisição ou equivalente e intervenção de ambos os cônjuges.
No entanto, quando, como sucede na situação concreta, ocorre um caso de sub-rogação real indireta, mas tais requisitos não estão presentes no documento que titula o negócio aquisitivo, duas teses se defrontam.
Para uns, determinado bem só será próprio de um dos cônjuges se tiver sido mencionada a proveniência do dinheiro com que foi adquirido na escritura pública de aquisição ou documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges, pela que a omissão dessas menções implica que o bem adquirido se considere bem comum, muito embora tenha sido adquirido à custa de bens próprios de um dos cônjuges. Defendendo esta tese, referem Pires de Lima e A. Varela[3] que «o artigo 1723º vem admitir expressamente a sub-rogação real nos regimes de comunhão (cfr. artigo 1734º) para o efeito de manterem a natureza de bens próprios os bens adquiridos a título oneroso, na constância do matrimónio, mas à custa de bens próprios, mediante o emprego ou a utilização destes.
(…) Exige-se, assim, para que haja sub-rogação dos bens próprios, que a proveniência do dinheiro ou valores, com que os bens foram adquiridos ou as benfeitorias efetuadas, conste do próprio documento ou de documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Só a intervenção simultânea dos cônjuges no documento onde se mencione a proveniência dos meios com que a aquisição foi efectuada garante capazmente a veracidade da declaração».
Tal significa a defesa da consagração na alínea c) do artigo 1723º do C.C. de uma presunção jure et de jure. A ausência da aludida menção, bem como da intervenção de ambos os cônjuges no documento de aquisição, implica necessariamente que o bem tem que ser qualificado como comum.
Para outros autores, apenas a ideia de proteção de terceiros justifica a limitação estabelecida no preceito legal. Estando em causa tão somente o interesse dos cônjuges, é permitida a prova por qualquer meio de que certo bem foi adquirido com dinheiro do cônjuge adquirente. A exigência de que a proveniência do dinheiro ou dos valores seja mencionada no documento de aquisição não se aplica quando estão em causa apenas os interesses dos cônjuges.
Tal significa, ao invés, que na alínea c) do artigo 1723º do Código Civil se consagra uma mera presunção juris tantum quanto à propriedade dos bens, que poderá ser ilidida nas relações internas entre os cônjuges após a dissolução do casamento. Neste sentido, Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I. 2ª ed., 519 e Castro Mendes, Direito da Família, 1990/1991, 170.
Em termos jurisprudenciais, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, de forma absolutamente maioritária, que, no âmbito das relações entre os cônjuges, não tem aplicação o disposto na parte final da alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil, sendo de admitir todos os meios de prova tendentes à demonstração da proveniência dos valores utilizados na compra de bens na pendência do casamento.
Esse entendimento ficou, de resto, consolidado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015, de 2 de julho de 2015[4], que deixou expresso que “a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal vem acolhendo o entendimento que o artigo 1723.º, c) do Código Civil, ao determinar que no regime de comunhão de adquiridos, os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só conservam a qualidade de bens próprios, desde que a proveniência do dinheiro ou dos meios seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges, só tem aplicação quando estiverem em jogo interesses de terceiros, circunstancialismo que não ocorre, nem no Acórdão-fundamento, nem no Acórdão recorrido.”, e que concluiu nos seguintes termos “estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.
Como explica J. P. Remédio Marques[5], “a circunstância de a doutrina (e a jurisprudência) maioritária sustentar uma interpretação restritiva da citada alínea c) apenas significa que o convencimento do tribunal acerca da proveniência do dinheiro ou valores não está submetido a uma prova tarifada ou fixa. Ou seja: a lei predetermina o valor da prova produzida por um certo meio de prova (no caso, o documento escrito de aquisição onde seja mencionada a proveniência do dinheiro ou valores e a intervenção dos dois cônjuges nesse ato aquisitivo; ou a intervenção de um deles em nome próprio e em nome do outro, contanto que a vontade esteja fundada em mandato). A interpretação restritiva desta norma (ou a sua redução teleológica, como prefiro) aponta, pelo contrário, para um mecanismo de formação da convicção do julgador à luz de um sistema de prova livre e não de prova legal (conducente a uma presunção iure et de iure) quando estiverem em causa apenas os interesses (intra)patrimoniais ou inter conjugais dos cônjuges ou ex-cônjuges).
(…)
A razão de ser desta norma – que é imperativa e qualifica de uma forma imutável a natureza (própria ou comum dos bens) – está na especial proteção de terceiros que confiam na presunção de comunhão estabelecida no art. 1724.º do CC.”.
No caso concreto, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência tem plena aplicação, uma vez que apenas estão em causa os interesse dos ex-cônjuges, pelo que a falta de intervenção da Interessada BB na escritura celebrada no dia 22 de novembro de 2000 e a falta da declaração, nessa escritura, quanto à proveniência do dinheiro que serviu para adquirir o prédio rústico denominado “...” pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi realizado apenas com dinheiro do cabeça de casal.
Dito de outo modo, no caso sub judice está em causa a compra de um imóvel na pendência do casamento com intervenção apenas do Cabeça de Casal, cumprindo ainda salientar que não estão em causa quaisquer pretensões obrigacionais ou reais de terceiros, pelo que concluímos pela aplicação da supra citada jurisprudência uniformizada.
Assim sendo, transpondo os ensinamentos explanados ao caso concreto, haverá que concluir que, face ao facto provado contante do ponto 9., o Cabeça de Casal logrou provar, através da confissão da Interessada BB, que o dinheiro utilizado na aquisição do prédio rústico denominado ... era dinheiro próprio dele, exclusivamente seu. E nessa medida, atento o disposto no artigo 1723º, alínea c), do Código Civil, mostram-se demonstrados os requisitos ali previstos, pelo que o identificado imóvel terá de ser havido como próprio e, nessa medida, não deverá constar da relação de bens, por não integrar a comunhão conjugal.
Consequentemente, impõe-se concluir pela procedência do recurso interposto, com a consequente revogação da decisão recorrida na parte em que determina a inclusão na relação de bens do imóvel descrito (prédio rústico) na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o número ..., da freguesia ..., sem prejuízo do disposto no art.º 1726º, n.º 2 do Código Civil, a atender no momento conferência de interessados, mantendo-se, no demais, a sentença recorrida.
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do Código de Processo Civil, as custas são a cargo da Recorrida BB.
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante AA, com o que alteram a decisão recorrida, revogando-a no segmento em que determina “a inclusão na relação de bens do imóvel descrito (prédio rústico) na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde, sob o número ...[6], da freguesia ..., sem prejuízo do disposto no art.º 1726º, n.º 2 do Código Civil, a atender no momento conferência de interessados”, mantendo-a no mais.
Custas pela Recorrida.