PER
RECUSA
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
EFEITO SUSPENSIVO
Sumário

I. O efeito suspensivo ou meramente devolutivo dos recursos interpostos tem em vista, respetivamente, traduzir a maior prevalência dada ao interesse da justiça/certeza (interesse do devedor) ou da prontidão/celeridade (interesse do credor).
II. A satisfação do interesse do credor é a principal diretriz do processo de insolvência, sendo a urgência deste processo espelho de uma matriz de celeridade, justificativa do efeito devolutivo definido como regra em relação aos recursos interpostos.
III. Se a apresentação de plano de insolvência na modalidade de plano de recuperação e a aprovação, por deliberação em assembleia de credores, da manutenção da administração da massa insolvente pela devedora e consequente suspensão da liquidação, servem de base à temporária paralisação dos efeitos da declaração de insolvência, necessariamente a não homologação do plano de insolvência, fazendo cessar os pressupostos daquela deliberação, implica, por mera aplicação da lei (artigos 228º, n.º 1, al. e) e nº 2, e 156º, n.º 3 e n.º 4. al. e), ambos do CIRE) e do efeito devolutivo fixado ao recurso, que cesse a administração pelo devedor e que a apreensão de bens tenha lugar, com vista à liquidação do património da insolvente.
IV. A manutenção da suspensão da liquidação com apoio no exclusivo argumento de que a decisão de não homologação do plano de insolvência não transitou em julgado, corresponderia a convolar em suspensivo o efeito do recurso daquela decisão, que é, por força da lei e do despacho estabilizado que o admitiu, um efeito meramente devolutivo.

Texto Integral

Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
1. Na sequência da não homologação de plano apresentado em processo especial de revitalização, que se encontra apenso ao processo de insolvência em que figura como devedora “A, S.A.”, melhor identificada nos autos, em 09.06.2023 foi proferida sentença de declaração de insolvência desta.
Na sequência de requerimento da insolvente de 10.07.2023, por despacho de 12.07.2023 foi liminarmente admitido o plano de insolvência na modalidade de plano de recuperação.

2. Realizou-se assembleia de credores em 31.07.2023, no contexto da qual foi submetida a votação a manutenção da administração da Massa Insolvente pela devedora e consequente suspensão da liquidação (art.º 225º do CIRE), tendo sido concedido prazo para votações por escrito aos credores que não votaram, após o que, por despacho de 21.08.2023, foi consignada a deliberação maioritária no sentido de aprovação da referida manutenção da administração da massa insolvente pela devedora e consequente suspensão da liquidação.
No contexto da assembleia de credores, a devedora desistiu do plano de insolvência apresentado a 10.07, protestando a junção de novo plano no prazo de 90 dias.

3. Em 30.10.2023 foi apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência proposta de plano de insolvência, que foi admitida por despacho de 16.01.2024.
Foi convocada assembleia de credores para discussão e votação da proposta de plano de insolvência, que teve lugar em 14.03.2024, no contexto da qual:
- foi declarada inválida a junção da “versão final do plano de insolvência”, apresentada nos autos de insolvência em 12.03.2024, com consequente indeferimento da sua votação;
- o Sr. Administrador de Insolvência requereu para a ata alterações ao plano de insolvência, bem como correção parcial do plano no que respeita aos créditos subordinados, tendo sido admitida a discussão e votação das alterações requeridas, determinando-se a discussão e votação do plano de 30.10.2023 com as alterações e a correção propostas pelo Sr. Administrador de Insolvência;
- foi determinado o voto por escrito no prazo de 10 dias a contar da disponibilização da ata (art.º 211º do CIRE), sem prejuízo de parte dos credores terem votado de imediato.

4. Por despacho de 12.04.2024, após contabilização dos votos, foi considerada aprovada a proposta de plano de insolvência.

5. Em 08.05.2024 foi proferida sentença que decidiu recusar a homologação do plano de insolvência de 30.10.2023 e 14.03.2024, sendo a seguinte a base conclusiva sintetizada na parte final da fundamentação da decisão:
“(…) Sintetizando e concluindo, decidimos pela não homologação do Plano, aplicando o disposto no artigo 215.º, porquanto não conforme ao princípio da igualdade, previsto no artigo 194.º, e incompleto, por referência ao artigo 195.º.
Bem assim, por prever, quanto aos ex-trabalhadores, situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, aplicando o disposto no artigo 216.º/1, al. a)”.

6. A devedora insolvente, por requerimento de 31.05.2024, interpôs recurso da sentença de não homologação do plano de insolvência “a subir em separado e com efeito devolutivo”.
Foram apresentadas contra-alegações pela credora “B” (19.06.2024) e o recurso foi admitido, encontrando-se pendente de apreciação.

7. Em 01.06.2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“(…) 1. Cessação da administração pela Devedora, apreensão de bens, liquidação e encerramento da atividade
No dia 09-06-2023, foi proferida sentença de declaração de insolvência da Devedora sociedade comercial “A, S.A.”, pessoa coletiva n.º …, com sede no (…).
Determinou-se a administração da Massa Insolvente pela Devedora.
Em assembleia, teve lugar deliberação de manutenção da administração da Massa Insolvente pela Devedora e consequente suspensão da liquidação, cfr. artigo 225.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Em 30-10-2023, o Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência apresenta Proposta de plano de insolvência, na modalidade de plano de recuperação.
Foi proferida decisão recusando a homologação do plano de insolvência.
Aguardou-se prevenindo recurso com efeito suspensivo, e/ou apresentação de novo Plano de Insolvência (caso em que o Apresentante poderia suscitar a aplicação do disposto no artigo 206.º/1: “A requerimento do respectivo proponente, o juiz decreta a suspensão da liquidação da massa insolvente e da partilha do produto pelos credores da insolvência se tal for necessário para não pôr em risco a execução de um plano de insolvência proposto”).
Em 31-05-2024, a Devedora apresentou requerimento de recurso, peticionando a atribuição de efeito devolutivo.
Cumpre apreciar e decidir, do prosseguimento dos autos.
1.1. Termo da administração pela Devedora e apreensão de bens
Estabelece o artigo 228.º:
“Termo da administração pelo devedor
1 - O juiz põe termo à administração da massa insolvente pelo devedor:
(…)
e) Se o plano de insolvência (…) não for subsequentemente (…) homologado.
2 - Tomada a decisão referida no número anterior, tem lugar imediatamente a apreensão dos bens, em conformidade com o disposto nos artigos 149.º e seguintes, prosseguindo o processo a sua tramitação, nos termos gerais.”.
Pelo exposto:
a) Declaro cessada a administração da massa insolvente pela Devedora;
b) Determino a imediata apreensão de bens.

1.2. Liquidação e encerramento da atividade
Prescreve o artigo 156.º:
“3 - Se a assembleia cometer ao administrador da insolvência o encargo de elaborar um plano de insolvência pode determinar a suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente.
4 - Cessa a suspensão determinada pela assembleia:
(…)
b) Se o plano apresentado não for (…) homologado.”.
Pelo exposto:
a) Declaro cessada a suspensão da liquidação do ativo; consequentemente:
b) Declaro o encerramento da atividade da Insolvente, para os efeitos do disposto no artigo 65.º/3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique.
Registe e Publicite – artigos 229.º, 37.º e 38.º, todos do CIRE.
Comunique à Autoridade Tributária – artigo 65.º/3, do CIRE (…)”

8. Por requerimento de 11.06.2024, o Sr. Administrador de Insolvência, notificado do despacho que ordenou a cessação da administração pela devedora, a apreensão de bens, a cessação da suspensão da liquidação e o encerramento da atividade da insolvente, veio informar que, na sequência da notificação da sentença de não homologação do plano de insolvência iniciou diligências para elaboração de novo plano de insolvência atenta a necessidade de acautelar a sua viabilidade, revestindo-se tal elaboração de grande complexidade, pelo que requeria que fosse fixado prazo não inferior a 20 dias para apresentação de novo plano de insolvência nos termos e para os efeitos do art.º 193º do CIRE, mais requerendo que seja decretada a suspensão da liquidação da massa insolvente, por tal se revelar necessário para não pôr em risco a execução do plano de insolvência atualmente em elaboração.
Tal requerimento foi indeferido por despacho de 11.06.2024, onde se refere:
“II. 11-06-2024
O artigo 206.º do CIRE tem aplicação perante a apresentação de proposta de Plano.
Não constando dos autos, indefiro o requerido.

9. Inconformada com o despacho assinalado I.7, veio a devedora insolvente interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação do referido despacho, mais requerendo a fixação de efeito suspensivo ao recurso, propondo-se prestar caução de valor não superior a 5.000,00 €.
A credora “C”, em 25.06.2024, pronunciou-se em relação ao requerido efeito suspensivo do recurso, pugnando pela fixação de efeito devolutivo.
Por despacho de 05.09.2024, foi apreciado o requerimento de interposição de recurso, concluindo-se nos seguintes termos:
“(…) no caso em apreço, não vislumbramos óbice à atribuição de efeito suspensivo ao recurso, desde que caucionadas as obrigações da Devedora.
Ao contrário do proposto pela Devedora, tal caução não deverá ser prestada à custa da Massa Insolvente, e, consequentemente, dos Credores.
Antes, configuramos como idónea a prestação de caução através do arrolamento dos bens da Devedora, desde que atinja valor dos créditos a satisfazer pela liquidação, tal como calculados pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência no primeiro Plano de Insolvência (…)
A liquidação dos créditos garantidos pressupor-se-á pelo seu valor patrimonial tributário, deduzido de 15%, por apelo ao disposto no artigo 816.º/2, do Código de Processo Civil2.
O arrolamento estará sujeito às regras previstas no CIRE, artigo 150.º/4, als. d) a f), com aplicação subsidiária dos artigos 406.º a 408.º do Código de Processo Civil, sendo depositária a Devedora.
Tal solução não acarreta encargos para a Massa Insolvente, e é apta à conservação da garantia patrimonial dos créditos verificados.
Destarte:
Ouçam-se Devedora, o(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência e Comissão de Credores sobre a prestação de caução por arrolamento, nos termos supra explanados;
Ouçam-se Devedora e o(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência sobre o prazo para a prestação da garantia.
Notifique igualmente a credora “C” (…)”

10. Em resposta ao despacho assinalado em I.9, veio a devedora insolvente, em 24.09.2024, alegar que o arrolamento proposto é legalmente inadmissível, opondo-se a tal medida de prestação de caução e requerendo que a “fixação de efeito suspensivo ao recurso interposto do despacho de 01.06.2024 (referência citius 161185018) tenha lugar mediante a prestação de garantia pessoal ou depósito de valor não superior a € 5.000,00 (cinco mil euros), ou, em qualquer caso, em montante não superior a € 30.000,00 (trinta mil euros), a prestar em prazo não inferior a 30 (trinta) dias, sendo proferido despacho de admissão do recurso, com as legais consequências”.

11. Por despacho de 24.10.2024, foi apreciado o requerimento de interposição de recurso assinalado em I.9, de cujo teor consta:
«(…) Os Credores não recorreram da sentença não homologação do Plano de Insolvência (decisão de 08-05- 2024).
Bem assim, não recorreram do despacho que determinou a cessação da administração, apreensão de bens, liquidação e encerramento da atividade (decisão de 01-06-2024). Despacho logo anunciado na sentença que o antecedeu, através da menção:
“Pelo exposto, recuso a homologação do Plano de Insolvência de 30-10-2023 e 14-03-2024.
Registe.
Notifique.
Decorrido o prazo de 15 dias, abra conclusão de imediato, tendo em consideração o disposto nos artigos 228.º, 225.º, 156.º/4 e 206.º, todos do CIRE.”.
As impugnações foram deduzidas, unicamente, pela Devedor(a)(s), em 31-05-2024 e 21-06- 2024. Na primeira, peticionando a atribuição de efeito devolutivo; na segunda, requer-se efeito suspensivo.
A Devedor(a)(s) rejeitou a prestação da caução equacionada no despacho de 03-09-2024, equivalente ao montante dos créditos a satisfazer pela liquidação, tal como calculados pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência no primeiro Plano de Insolvência.
Destarte, há que ponderar as razões expostas no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 339/2011 (…)
Em igual sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo: 4260/15.4T8FNC- G.L1-1, 13-09-2024, consultado em www.dgsi.pt: (…)
Pelo exposto:
21-06-2024, RECURSO da Devedora do despacho que determinou a cessação da administração, apreensão de bens, liquidação e encerramento da atividade:
Recurso admitido, de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo – artigo 14.º/5, do CIRE.
Autue apenso com as peças indicadas pela parte e alegações.
Suba o apenso de recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa.»

12. Foram remetidos os autos a este tribunal para apreciação do recurso assinalado em I.9 e I.11, que a apelante fundamenta nas seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto do despacho de 1 de junho de 2024 (referência citius 161185018), ao qual decidiu pela que determinou a cessação da administração pela Devedora e apreensão de bens, assim como a liquidação e encerramento da atividade.
II. O Tribunal a quo entendeu – salvo o devido respeito, de forma manifestamente errada – que a circunstância de o Tribunal ter decidido não homologar o plano de insolvência aprovado nos presentes autos determina, ipso facto, tanto a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor, como da suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores.
III. Sucede que tanto a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor, como a suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores, apenas ocorrem com o trânsito em julgado da sentença de não homologação do plano de insolvência, como pode ler-se no sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.05.2014.
IV. Resulta do próprio despacho recorrido que a aqui Recorrente interpôs, tempestivamente, recurso da sentença de não homologação do plano de insolvência, pelo que a sentença de não homologação do plano de insolvência não transitou em julgado.
V. A interposição de recurso ordinário determina, independentemente do efeito do recurso, a suspensão do trânsito em julgado da decisão.
VI. A circunstância de o recurso interposto pela Recorrente da sentença de não homologação do plano de insolvência ter efeito devolutivo, como sucede com todos os recursos em processo de insolvência (artigo 14.º, n.º 5 do CIRE), não significa que na sequência da sentença de não homologação do plano de insolvência, independentemente do trânsito em julgado da mesma, possa ter lugar a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor e a suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores, pois que tal colocaria irremediavelmente em causa o efeito útil do recurso.
VII. Com efeito, se apesar do recurso interposto da sentença de não homologação do plano de insolvência, pudesse ter lugar a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor e a consequente liquidação da massa insolvente, a decisão que viesse a ser proferida naquele recurso não teria qualquer efeito útil, pois não seria possível executar o plano de insolvência.
VIII. E não se diga que, para obstar a tal situação, estaria a Recorrente obrigada a requerer a fixação de efeito suspensivo ao recurso interposto da sentença de não homologação do plano de insolvência, pois que como resulta claro da Lei e da Jurisprudência, a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor, assim como a cessação da suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores, apenas têm lugar com o trânsito em julgado da decisão de não homologação do plano de insolvência, pelo que a interposição de recurso, com efeito devolutivo, da sentença de não homologação do plano de insolvência, na medida em que impede o trânsito em julgado, é suficiente para assegurar os interesses da Recorrente.
IX. O CIRE prevê que todos os recursos no processo de insolvência têm efeito devolutivo, mais determinando que a regra é a sua subida em separado, daqui não resultando que as decisões tempestivamente impugnadas produzam todos os seus efeitos no processo, como se dotadas de força de caso julgado formal, mas apenas que marcha do processo no Tribunal a quo não se suspende.
X. Atendendo à teleologia das normas dos artigos 228.º e 156º, n.º 4 do CIRE., resulta evidente que a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor, assim como a cessação da suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores, apenas poderão ter lugar com o trânsito em julgado da decisão de não homologação do plano de insolvência e não com a sua mera prolação e, consequentemente, a interposição de recurso, com efeito devolutivo, da sentença de não homologação do plano de insolvência, na medida em que impede o trânsito em julgado, é suficiente para assegurar os interesses em presença no processo de insolvência.
XI. A circunstância de o processo de insolvência ter natureza urgente não pode significar que a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor e a suspensão da liquidação partilha da massa insolvente determinada pela assembleia de credores deva ocorrer com a mera prolação de sentença de não homologação do plano e não com o trânsito em julgado de tal decisão.
XII. Em face de todo o exposto, resulta que o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente os artigos 228.º e 156º, n.º 4 do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.

II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), constitui questão única a apreciar aferir se o prosseguimento dos autos de insolvência, com declaração de cessação de administração pela devedora e consequente cessação da suspensão da liquidação da massa insolvente, depende do trânsito em julgado da sentença que não homologou o plano de insolvência.

III.
Os factos relevantes para a decisão a proferir correspondem aos já mencionados em sede de relatório - ponto I. - que, por razões de economia processual, aqui se têm por reproduzidos.

IV.
O pressuposto base do recurso interposto assenta na afirmação de que a ausência de trânsito em julgado da decisão de não homologação do plano de insolvência, por oportuna interposição de recurso dessa decisão, ainda que com efeito devolutivo, não autoriza a imediata cessação da administração da massa insolvente pelo devedor e da suspensão da liquidação, declaradas pelo tribunal recorrido.
São dois os argumentos essenciais da apelante:
- um primeiro, no sentido de que qualquer outra solução retiraria efeito útil ao recurso interposto da sentença que não homologou o plano de insolvência;
- um segundo, assente na afirmação de que resulta da lei e da jurisprudência que a cessação da administração da massa insolvente pelo devedor, assim como a cessação da suspensão da liquidação determinada pela assembleia de credores, apenas têm lugar com o trânsito em julgado da decisão de não homologação do plano de insolvência, tendo o tribunal recorrido interpretado de forma incorreta os artigos 228º e 156º, n.º4 do CIRE, de cuja teleologia resulta solução contrária.

Conforme estipula o art.º 14º, n.º 5 do CIRE, os recursos em processo de insolvência têm um efeito regra devolutivo, o que foi aceite de forma indiscutida pela apelante, que identificou o referido efeito aquando da apresentação do seu requerimento de interposição de recurso da decisão de não homologação do plano de insolvência.
Alberto dos Reis [Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1984, págs, 400/401], em análise efetuada num período de tempo em que os recursos de apelação em processo civil tinham, em regra, efeito suspensivo, analisando as razões que presidem aos distintos efeitos fixados aos recursos, enquanto conflituantes entre o interesse do credor (na imediata exequibilidade de uma decisão), e do devedor (segurança na ausência de sacrifício imediato do seu património), refere que “o interesse da prontidão demandaria que a apelação fosse sempre recebida no efeito meramente devolutivo; o interesse da justiça exigiria que o efeito da apelação fosse sempre suspensivo. Como se conciliam os dois interesses em conflito? Do modo seguinte: enuncia-se a regra de que a apelação tem efeito suspensivo e assim dá-se satisfação ao interesse da justiça (interesse do devedor); mas em certos casos especiais faz-se prevalecer o interesse da prontidão (interesse do credor) sobre o interesse da justiça, em atenção a uma razão de urgência ou a uma razão de certeza”.
Conforme estipula o art.º 1º, n.º 1 do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Por seu turno, o art.º 8º, n.º 1 do CIRE estabelece que a instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, exceto nos casos expressamente previstos, estabelecendo o art.º 9º, n.º 1 do mesmo diploma o carácter urgente do processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos.
Ou seja, a satisfação do interesse do credor é a principal diretriz do processo, permitindo-se que aquela seja assegurada por uma de duas vias: através de um plano de insolvência baseado na recuperação da empresa ou através da liquidação do património do devedor insolvente. Em todo o caso, a urgência do processo espelha a pretendida matriz de celeridade, em atenção à prevalência do interesse dos credores, que justificam o efeito devolutivo definido como regra em relação aos recursos interpostos no contexto do processo de insolvência.
Em suma, regressando às palavras de Alberto dos Reis, o processo de insolvência acolheu o interesse da prontidão, que é o do credor, em atenção a uma razão de urgência, que envolve todo o processo.

O processo de insolvência da apelante prosseguiu a via da satisfação do interesse dos credores pela forma de plano de insolvência baseado na recuperação de empresa, que, apesar de aprovado, obteve decisão de não homologação.
A apelante assegurou uma das vias excecionais de suspensão da liquidação, prevista pelo art.º 156º, n.º 3 do CIRE, por deliberação da assembleia de credores que determinou a administração da massa insolvente pela devedora e a referida suspensão.
Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º248/2012, de 25.06 (disponível nesta ligação), “(…) [O] objetivo da celeridade adquire, no processo de insolvência, uma dimensão de primeiro plano (Menezes Cordeiro "Introdução ao Direito da Insolvência", O Direito, 137.º, 2005, III, p. 479), que se justifica por duas ordens de razões; em primeiro lugar, devido à situação de incerteza que caracteriza o estado do património envolvido durante o processo de insolvência; em segundo lugar, devido à natureza do próprio processo de insolvência, que é uma execução universal que envolve inúmeros interesses contrapostos: o do insolvente, porventura interessado em retardar ou evitar a insolvência, os dos diferentes credores, marcados por objetivos concorrentes e muitas vezes antagónicos e, ainda, o interesse de terceiros, que aspiram à normal prossecução da sua atividade, sem serem afetados por operações falimentares que venham a ocorrer no futuro. Tendo presente as várias posições em conflito, a ordem jurídica optou claramente pela celeridade na obtenção da sentença final nesses processos, preocupação que se concretizou, por exemplo, na simplificação do respetivo procedimento; o CIRE qualifica o processo de insolvência como processo urgente, submetido a um regime processual expedito, gozando de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal. A celeridade justifica ainda a limitação da possibilidade de suspensão da instância, que permitiria, inevitavelmente, alongar o decurso do processo”.
O que pretende a apelante não é senão assegurar a suspensão da tramitação do processo de insolvência – obstar à imediata liquidação do património – numa situação que não encontra respaldo em qualquer previsão legal.
A apresentação de um plano de insolvência pressupõe a declaração de insolvência do devedor e o trânsito em julgado da decisão que a declarou, sendo os efeitos normais do plano que se destine a promover a recuperação do devedor uma forma de derrogar as disposições das normas do CIRE (art.º 192º, n.º 1 e n.º3 e 193º, n.º 1 do CIRE).
Uma vez proferida decisão de não homologação do plano e interposto recurso da mesma com efeito devolutivo, nenhum caminho alternativo se colocaria ao tribunal recorrido que não o de fazer atuar os efeitos normais da sentença que declarou a insolvência.
O tribunal recorrido fundamenta a sua decisão nos seguintes argumentos:
- foi proferida decisão de recusa de homologação do plano de insolvência;
- o recurso interposto pela insolvente não tem efeito suspensivo, nem esta o requereu, nem foi apresentado novo plano passível de justificar a aplicação do disposto no art.º 206º, n.º 1 do CIRE [embora tal tenha entretanto sido requerido, o requerimento não vinha acompanhado pelo plano previsto no indicado dispositivo legal].
Pelas apontadas razões, aplicando os artigos 228º, n.º 1, al. e) e nº 2, e o art.º 156º, n.º 3 e n.º 4. al. e) do CIRE, o tribunal recorrido declarou cessada a administração da massa insolvente pela devedora, determinou a imediata apreensão de bens, declarou cessada a suspensão da liquidação do ativo e declarou o encerramento da atividade da insolvente, para os efeitos previstos no art.º 65º, n.º 3 do CIRE.
Ora, inexistindo qualquer fundamento para suspensão dos efeitos da decisão que declarou a insolvência ou da decisão de não homologação do plano de insolvência, o tribunal recorrido aplicou a lei, na única interpretação que os preceitos legais autorizam, pondo termo à administração da massa insolvente pelo devedor por decorrência da não homologação do plano e, uma vez tomada essa decisão, determinou a imediata apreensão dos bens e colocou termo à suspensão da liquidação do ativo, cuja persistência dependia da homologação do plano, ou seja, todos os efeitos suspensivos que se encontravam associados à deliberação maioritária no sentido de aprovação da manutenção da administração da massa insolvente pela devedora e consequente suspensão da liquidação, já de si excecionais, cessaram por efeito da não homologação do plano, não podendo os efeitos desta decisão ser condicionados apenas porque dela foi interposto recurso com efeito indiscutivelmente devolutivo.

O argumento da perda de efeito útil do recurso é repetidamente invocado nos recursos em que os tribunais superiores têm vindo a ser chamados a pronunciar-se sobre esta matéria, traduzindo-se a atendibilidade daquele argumento, na prática, em deferir uma pretensão de suspensão da instância em processo de insolvência, contrária à previsão do art.º 8º, n.º 1 do CIRE que, pelo seu teor, exclui a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, conforme resulta do art.º 17º do CIRE.
Para além do acórdão do TC n.º 339/2011, já citado no despacho que admitiu o recurso sob apreciação (aresto que concluiu que a interpretação do n.º 5 do artigo 14.º do CIRE no sentido de o recurso das decisões jurisdicionais em processo de insolvência ter efeito meramente devolutivo, não sendo aplicável a esses recursos o disposto no n.º 4 do artigo 692.º do CPC, não viola o direito à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, da CRP), bem como do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.09.2024 (processo n.º4260/15.4T8FNC-G.L1-1, Rel. Fátima Reis Silva), a que igualmente faz menção aquele despacho, a questão das limitadas ocasiões em que é permitida a suspensão da liquidação é apreciada, a título de exemplo, no Ac. do TR Lisboa de 07.02.2023 (proc.º nº862/11.6TYLSB-AJ.L1-1, rel. Nuno Teixeira) e no Ac. da TR Guimarães de 28.05.2020 (processo n.º 6686/17.0T8VNF-G.G1, rel. Margarida Fernandes), sendo relevante ter em conta que a apelante esgotou a possibilidade de renovar a suspensão da liquidação ao ver proferida a decisão de não homologação do plano de insolvência, não consistindo a ausência de trânsito em julgado da decisão um impedimento à imediata produção dos efeitos desta quando, como ora sucede, o recurso interposto tem efeito meramente devolutivo e qualquer decisão no sentido de sustar os seus efeitos teria que ter por base a previsão do art.º 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, inaplicável por decorrência do disposto nos artigos 8º, n.º 1 e 17º do CIRE.
Muito embora a apelante, nas suas conclusões, cite o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.05.2015, proferido no processo n.º1041/12.0TBGMR-I.G1, em apoio da sua tese de que a cessação da suspensão da liquidação se encontra condicionada pelo trânsito em julgado da decisão de não homologação do plano, impõe-se realçar que o texto do referido aresto não contém a expressão sumariada que é citada pela apelante, antes referindo «(…) [D]e acordo com o disposto no artigo 156º do CIRE cessa a suspensão – da liquidação – determinada pela assembleia se o plano apresentado não for subsequentemente admitido, aprovado ou homologado. Como escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, pág. 527 “a celeridade processual constitui assumidamente, um dos grandes desígnios do CIRE e um motor da regulamentação da insolvência. Intenta-se banir todos os expedientes dilatórios e, bem assim, excluir procedimentos que obstaculizem a eficaz prossecução da finalidade do processo, traduzida na satisfação dos interesses dos credores”. E é neste contexto que se entende o regime fixado no n.º 4 que deve considerar-se imperativo e consequentemente subtraído à vontade dos próprios credores. E como dizem os referidos autores é de concluir pelo automatismo da cessação, ficando então o administrador da insolvência imediatamente reinvestido nos poderes de liquidação, devendo iniciar o cumprimento do artigo 158º. Por isso, e como se diz na decisão recorrida, tal determina de imediato a transição para a fase de liquidação. De outro modo, a aceitar-se a visão do recorrente, poder-se-ia eternizar a suspensão da liquidação».
Em suma, o referido acórdão não contraria, antes corrobora, o entendimento plasmado no despacho recorrido.

Se a apresentação de plano de insolvência na modalidade de plano de recuperação e a aprovação, por deliberação em assembleia de credores, da manutenção da administração da massa insolvente pela devedora e consequente suspensão da liquidação, serviram de base à temporária paralisação dos efeitos da declaração de insolvência, necessariamente a não homologação do plano de insolvência, fazendo cessar os pressupostos daquela deliberação, implica, por mera aplicação da lei (artigos 228º, n.º 1, al. e) e nº 2, e 156º, n.º 3 e n.º 4. al. e), ambos do CIRE) e do efeito devolutivo fixado ao recurso, que a apreensão de bens tenha lugar, com vista à liquidação.
Qualquer que seja a perspetiva de abordagem da questão colocada pela apelante, o resultado prático final a extrair do eventual provimento do presente recurso implicaria convolar em suspensivo o efeito de um recurso que é, por força da lei e do despacho estabilizado que o admitiu, um efeito meramente devolutivo, inexistindo fundamento legal que suporte tal pretensão, razão pela qual, sem acrescidas considerações, se impõe negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.

V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil)
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Lisboa, 12-11-2024
Ana Rute Costa Pereira
Susana Santos Silva
Elisabete Assunção