ACÇÃO DE ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
INVALIDADE
DIREITO DE VOTO
ACCIONISTA
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I. A motivação da decisão que julga a matéria de facto, com fundamentação clara e suficiente das razões que presidiram à formação da convicção do julgador, constitui um pilar fundamental de legitimação das decisões judiciais, sendo um direito basilar das partes o de obterem uma decisão que lhes permita compreender as razões pelas quais, qualquer que seja o esforço probatório desenvolvido, o tribunal entendeu credibilizar um específico meio de prova em prejuízo de outro(s) ou atingiu determinada conclusão.
II. Contudo, nos amplos limites em que é autorizada a modificabilidade do julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, impõe-se considerar que qualquer clarificação que envolva a não apreciação do recurso deverá ser reservada para os casos extremos em que as omissões detetadas ou verificadas não possam ser supridas pela via da reapreciação da matéria de facto.
III. Para os efeitos previstos no art.º 384º, n.º6, al. d) do CSC, o que importa compreender não é se o sócio em questão desenvolve dentro da sociedade um conjunto de interesses que poderão, ainda que teoricamente, conflituar com os interesses dos demais sócios ou da própria sociedade, mas sim se daquela concreta proposta de deliberação, em relação à qual o sócio expressa o seu sentido de voto, resulta benefício/prejuízo para interesses que este pretende tutelar e proteger, sobrevalorizando-os aos interesses da sociedade, sendo o risco de tal poder suceder que dá causa à negação de direito ao voto estipulada na norma.
IV. Não contraria um pressuposto lógico, nem admite uma presunção de abuso, a decisão de não distribuir 80% de um elevado valor de Resultados Transitados (15.300.000,00 €), coincidente com a soma de quantitativos anuais de dividendos não distribuídos pelos acionistas, quando aquele valor não corresponde a resultados do exercício anterior, ou a quantias acumuladas em caixa sem qualquer destinação, mas sim a um montante que, por efeito de decisões de gestão que, sem oposição da autora, foram sendo tomadas ao longo dos anos anteriores, se encontra afeto a contratos celebrados, com prazos e estipulações de remuneração, implicando a pretendida distribuição o recurso a financiamento por parte da sociedade, com todos os custos e encargos envolvidos.

Texto Integral

Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.
“A, S.A.” veio propor ação de anulação de deliberações sociais contra “B, S.A., ambas melhor identificadas nos autos, concluindo por pedir que seja proferida sentença que:
i) declare nulos os votos emitidos pela empresa “C” na AG de 24/8/2022, que determinaram a não rejeição, por maioria, da proposta aí apresentada pela Autora;
ii) ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese, julgue abusivos os referidos votos da “C” e, consequentemente, anule a deliberação impugnada, ao abrigo do disposto no artigo 58.º n.º 1, alínea b), do CSC;
iii) ou, se por mera hipótese tal não proceder, o que não se concede, declare a nulidade da deliberação impugnada com fundamento em abuso do direito de voto da “C”, nos termos do disposto nos artigos 344.º e 294.º do Código Civil ou, subsidiariamente, anule a deliberação, com o mesmo fundamento;
iv) e, em qualquer dos casos, reconheça, a título de simples apreciação, que foi tomada uma deliberação positiva na AG de 24/8/2022 no sentido da aprovação da proposta aí apresentada pela ora Autora, de distribuição de 80% dos lucros retidos na Ré constantes da rubrica “resultados transitados”, em virtude de os votos emitidos pera ora Autora correspondentes às ações de que é titular, serem suficientes para se julgar ter sido aprovada a deliberação.

Alega, para tanto e em síntese, que é acionista da ré e, em reunião de Assembleia Geral (AG) de sócios da ré que teve lugar no dia 24.08.2022, votou favoravelmente uma proposta por si apresentada para distribuição dos resultados transitados, tendo tal proposta obtido voto desfavorável da acionista maioritária da ré, “C”. Com exceção de uma distribuição de dividendos aprovada em AG da ré de 03.10.2006, desde essa data e até 2019 os lucros dos vários exercícios foram, por deliberação, remetidos para a rubrica contabilística de “resultados transitados”, com voto exclusivo da “C” entre 2007 e 2020, não tendo a autora comparecido ou sido representada nas AGs. A votação desfavorável pela acionista maioritária corresponde a uma atuação desleal a abusiva, porquanto os avultados montantes de lucros retidos ao longo dos anos têm sido usados para conceder financiamentos, remunerados e gratuitos, à acionista maioritária e a outra entidade do Grupo por esta integrado, sendo o voto da acionista maioritária nulo e nula ou anulável a deliberação, impondo-se, após reconhecimento do vício substancial do voto da acionista maioritária, o reconhecimento da deliberação positiva da autora.

A ré contestou, impugnando os factos alegados pela autora em suporte da existência de conflito de interesses da acionista maioritária, bem como dos vícios apontados pela autora à deliberação produzida em AG, excecionando o exercício abusivo do direito pela autora e invocando a má-fé da litigância desta.
Pede a improcedência da ação ou, caso assim não se entenda, a improcedência, por inadmissibilidade, do pedido de reconhecimento judicial da deliberação positiva, com procedência da exceção de abuso de direito da autora e condenação desta por litigância de má-fé, em multa e indemnização.

A autora apresentou articulado de resposta à peticionada litigância de má-fé, no qual incluiu resposta à exceção de abuso de direito arguida pela ré, pugnando pela improcedência desta.
Pede a improcedência do pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, bem como da exceção de abuso de direito invocada pela ré, pedindo ainda a condenação da ré como litigante de má-fé, em multa e indemnização à autora de valor não inferior a 20.000,00 €, com aplicação de taxa sancionatória a que alude o art.º 531º do Código de Processo Civil.

A ré respondeu ao pedido de litigância de má-fé e pugnou pela parcial indemissibilidade do articulado de resposta, bem como do requerimento probatório nele contido.

Foi designada data para audiência prévia, que se realizou em 06.03.2023, no contexto da qual, frustrada a tentativa de conciliação, foi ordenada a conclusão dos autos para prolação de despacho saneador.

Por despacho de 01.04.2023 foi certificada a validade e regularidade da instância, tendo ainda sido fixado o valor da ação, definido o objeto do litígio, elencados os factos assentes e enunciados os temas da prova.
Em deferimento de reclamação das partes, foi proferido, em 10.10.2023, despacho retificativo do objeto do litígio, bem como alteração aos factos assentes e temas da prova, respetivamente, com eliminação e ampliação dos mesmos.

Realizou-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, em 24.05.2024, que julgou a ação improcedente e absolveu a ré dos pedidos deduzidos pela autora, bem como absolveu a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformada com a sentença proferida, vem a autora interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença recorrida, concluindo-se pela procedência da ação nos termos manifestados na petição inicial.
Formula, para o efeito, as seguintes conclusões:
No que respeita ao recurso da matéria de facto,
A. Salvo o devido respeito, crê-se que a douta sentença padece de vícios que vão desde já invocados, designadamente porque contém juízos valorativos e conclusões que não podem integrar o conceito de decisão de facto. Encontram-se nessas circunstâncias os excertos dos pontos 13, 14, 15, 16 e 18 da decisão de facto, os quais devem ser expurgados por violação do disposto no artigo 607.º do CPC.
B. Em segundo lugar, deve destacar-se que a douta sentença omite uma fundamentação suficiente quanto à valoração crítica da prova, o que configura, salvo melhor opinião, uma nulidade por violação do artigo 615.º/1, c) do CPC. Com efeito, tendo por base o raciocínio expendido pelo tribunal depois dos factos não provados, entre pp. 11 a 18, e somente por via do que aí se encontra expendido, não é possível depurar, facto por facto, qual o meio probatório concreto (e respetivo exame crítico) que alicerçou a convicção do Tribunal.
C. Em terceiro lugar, cabe destacar a omissão de pronúncia sancionada como uma nulidade processual da sentença (cf. artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC), porquanto a sentença recorrida funde o argumento do voto abusivo com o argumento do abuso de direito como se estivesse em causa um único vício quando se tratam de questões distintas que a douta sentença deveria ter apreciado autonomamente.
D. Outrossim, a decisão da matéria de facto, e sempre salvo o devido respeito, merece reparo por ter dado por provados factos que não deveria e, bem assim, por ter omitido outros que deveria ter julgado provados.
E. Em sede de sentença, o Tribunal a quo deu como provados um conjunto de parágrafos que devem ser eliminados por se tratarem de meras conclusões que, como tal, devem ser expurgadas da sentença (por violação do artigo 607.º/3 do CPC), a saber:
13.a) A A sabia da existência e conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
14.a) - A existência, conteúdo e contrapartes negociais dos títulos que serviram de base a movimentação de capitais da Ré a favor de sociedades do Grupo “C”, ocorreu com justificação para os mesmos no contexto da boa administração da Ré.
15. g) - À semelhança dos financiamentos, de acordo com o estabelecido nas Cláusulas 10 e 11 do Anexo I do Intra-Group Cash Pool Agreement, o capital mutuado vence juros remuneratórios, a calcular, em cada dado momento, em consonância com um princípio de arm’s length e política de preços de transferência e tendo por base a Euribor, como taxa de referência, e os spreads previstos nesse instrumento.
15. i) - Todos obedecendo a princípios de arm’s length, achando-se a acordada remuneração dentro das normais condições de mercado (que, nos anos em referência, particularmente até ao presente ano, vêm sendo dominadas, por um cenário de taxas de referência negativas).
15. j) - Além de efectuada numa base de arm’s length, e como tal válidos por cumprirem o escopo lucrativo da Ré, enquadrando o respectivo objecto e finalidade, os financiamentos concedidos, bem como o mecanismo de cash pooling, obedecem ainda ao interesse próprio da Ré, enquanto parte integrante do Grupo “C”.
16. b) - A opção pela não distribuição de dividendos pelos sócios, agora, como em transactos anos, tem justificação objectiva da vontade manifestada da Ré e da sua sócia maioritária em reforçar a sua própria robustez financeira e acautelar perdas futuras. Especialmente no cenário socioeconómico de incerteza vivido recente e actualmente, dominado por uma já fortemente sentida crise económica mundial, com crises de procura e de fornecimento, e de inúmeros factores de incerteza de diversa ordem.
16. c) - Em que a Ré pretende privilegiar uma estratégia de longo prazo, com o reforço da solidez da sociedade Ré, que expectavelmente terá o benefício de proteger e valorizar as participações sociais detidas pelos sócios, incluindo a aqui Autora.
16. l) - Tais preocupações, partilhadas pela Administração da ora Ré, subscritas pela deliberação tomada em Assembleia Geral, fundamentaram a decisão dos sócios em não proceder à distribuição de montante (concretamente, de 80%) da verba registada nas contas sob Resultados Transitados.
F. Subsidiariamente, e mesmo que não se considerasse os segmentos supra elencados como sendo meramente conclusivos, sempre haveria que os considerar, no limite, como não provados, em face do teor dos elementos probatórios que, à cautela, se indicarão como impeditivos da prova de cada parágrafo.
G. O parágrafo 14. a) deveria considerar-se como não-provado com base no que resulta do teor do Doc. 3 junto com a contestação e do Doc. 7 junto pela Recorrida com o requerimento datado de 30.10.2023 (Ref.ª 47125811).
H. O conteúdo, realização e contrapartes dos financiamentos que, no período em apreço, foram concedidos ao Grupo “C”, não obedeceram a um princípio de boa administração.
I. Tais atos, na sua substância, não corresponderam sequer a atos de administração, tendo em conta o volume e montantes dos contratos, e muito menos “boa” administração, porquanto impediram a aplicação de um valor considerável na atividade real da Recorrida e serviram tão somente o interesse real das entidades que beneficiaram de tais financiamentos.
J. Os parágrafos 15. g), i) e j) deveriam considerar-se como não provados com base no depoimento supra transcrito da testemunha “D” (audiência de julgamento de 15.03.2024 – depoimento prestado entre as 10:27h e as 11:31h), conjugado com uma análise detida dos contratos de mútuo (Docs. 1 a 7 juntos com o requerimento da Recorrida datado de 21.04.2023 – Ref.ª 35763197) e dos contratos de Cash Pooling (Docs. 1 e 2 junto com o requerimento da Recorrida datado de 14.11.2023 – Ref.ª 47125811) – à luz das regras de experiência comum tudo aponta para que estes factos não possam dar-se por provados.
K. Os juízos conclusivos a retirar dos elementos probatórios acima elencados seriam rotundamente contrários, porquanto se demonstra nos autos que os contratos de Cash Pool e de financiamento foram celebrados em condições de manifesto favor para com o Grupo “C”, circunstâncias essas que jamais teriam sido oferecidas a entidades terceiras num contexto normal de mercado.
L. Os parágrafos 16. b), c) e l) deveriam ser considerados como não provados com base numa análise atenta do depoimento prestado pela testemunha “E” (audiência de julgamento de 11.03.2024 – depoimento prestado entre as 14:53h e as 15:25h - minutos 00:09:00 a 00:11:35).
M. Ficou concretamente demonstrado que, em termos reais, a atividade concretamente prosseguida pela Recorrida não é suscetível de ser real nem ou concretamente afetada, em termos relevantes, pela conjuntura político-económica à escala global, não tendo sido essa a verdadeira causa que levou à celebração dos financiamentos nos termos que decorrem dos autos.
N. Outrossim, não se pode aceitar que, na sentença a quo, tenha sido considerada como provada a seguinte factualidade:
13.a) - A A sabia da existência e conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
13. b) - A aqui Autora é sócia, com participação no Conselho de Administração, intervindo na definição das opções de gestão da Ré, directa ou indirectamente, desde a sua constituição.
13. c) - Todos os actos praticados aqui em causa foram-no, pelo menos, com o seu conhecimento e concordância.
15. h) - Quer os mútuos em concreto celebrados com a sua sócia “C”, quer o Intra-Group Cash Pooling em que participa, são onerosos, sendo o capital disponibilizado pela Ré devidamente remunerado (no caso dos financiamentos com uma taxa fixa de 3%).
16. m) - Decorrendo prejuízos para a Ré, caso fosse deliberada (ou determinada) a distribuição desse montante.
18. h) – Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reserva legais.
O. Quanto aos parágrafos 13. a), b) e c), de conteúdo essencialmente coincidente, não se vislumbra qualquer elemento probatório que conduza à conclusão de que a Recorrente tivesse conhecimento prévio dos contratos de financiamento / cash pool ora em apreço.
P. A argumentação do Tribunal a quo parte da precipitada consideração de que a Recorrente contaria com uma intervenção efetiva no Conselho de Administração da Recorrida, em virtude da prerrogativa de proceder à nomeação de um membro do Conselho de Administração.
Q. Tal prerrogativa não conferia à Recorrente qualquer tipo de controlo efetivo ou sequer conhecimento da atividade de tal órgão.
R. Os contratos de financiamento e de Cash Pool foram assinados exclusivamente pelos demais membros da administração da Recorrida e nunca pela pessoa nomeada pela Recorrente, que nunca teve conhecimento destes contratos.
S. Assim e quanto aos parágrafos 13. a), b) e c) os mesmos deverão considerar-se como não-provados com base no que resulta do depoimento de parte prestado pelo legal representante da Recorrente, “F” (audiência de julgamento de 26.02.2024 – depoimento prestado entre as 10:46h e as 12:42h - Minutos 00:31:23 a 00:35:00), bem como pelo teor e análise conjugada do Doc. 4 da petição inicial e Docs. 1 a 8 juntos com o requerimento da Recorrida datado de 21.04.2023 (Ref.ª 45374785).
T. Já quanto ao parágrafo 15. h), encontra-se formulado em termos obscuros e, em qualquer caso, exprime uma factualidade que não encontra real correspondência com os elementos probatórios.
U. Entre Julho de 2015 e Abril de 2016, a Recorrida terá mutuado ao Grupo “C” o valor total de €13.850.000,00, por um período contratualmente estipulado de 4 anos e em contrapartida de juros remuneratórios de 3% por ano, sem haver qualquer evidência de pagamentos.
V. Decorridos os 4 anos sobre a data de celebração dos contratos de mútuo, foram os mesmos renovados por iguais períodos de tempo e nas mesmas condições anteriores, sem qualquer alteração contratual.
W. Não existe uma única evidência de que as sociedades mutuárias tenham, em momento algum nos últimos 9 anos, procedido ao efetivo pagamento dos juros, que, segundo o acordado, venciam semestralmente e nenhuma das testemunhas atestou este efetivo recebimento de juro.
X. A Recorrida reconheceu expressamente que o montante devido pelas entidades mutuárias a título de juro, ao invés de ser pago, foi antes imputado como fluxo de caixa da Recorrida a favor de uma sociedade do Grupo “C”, implicando, como tal, que o valor de juros não tenha sido efetivamente pago à Recorrida.
Y. Não foi feita assim feita qualquer prova nestes autos do efetivo pagamento de qualquer remuneração no âmbito destes contratos de mútuo, motivo pelo qual não se pode aceitar a onerosidade com que o Tribunal os qualifica ou, certamente, a prova feita no sobredito ponto 15. h.
Z. Por outro lado, e quanto aos contratos de cash pool, crê-se existirem sobejos motivos para os não qualificar como onerosos ou, em qualquer caso, economicamente vantajosos para a Ré.
AA. De facto, retira-se de tais contratos o seguinte: (i) o primeiro contrato de Cash Pool foi celebrado na data de 22 de Abril de 2020, tendo sido fixado (por conjugação da cláusula 11.1 com o Anexo I) que os montantes disponibilizados pela Recorrida ao Grupo “C” seriam remunerados com taxa de juro correspondente à taxa EURIBOR 1M (que rondava os -0,40% na data de celebração; (ii) o segundo contrato de Cash Pool foi celebrado na data de 17 de Fevereiro de 2022 (em que a EURIBOR 1M rondava os -0,55%.
BB. Daqui se extrai que o contrato de Cash Pool celebrado em Abril de 2020 não remunerava os empréstimos da Recorrida, ao passo que remunerava os empréstimos do Grupo “C” à taxa de cerca de 2,6% e, bem assim, o contrato de Cash Pool celebrado em Fevereiro de 2022 também não remunerava os empréstimos a conceder pela Recorrida mas remunerava os empréstimos do Grupo “C” à taxa de cerca de 2,7%.
CC. Uma iniquidade contratual manifesta e ostensiva, que, ainda assim, o Tribunal a quo ignorou olimpicamente, concluindo que estes contratos se revelavam favoráveis aos interesses financeiros da sociedade!
Com o que se concluirá,
DD. Que os contratos não foram celebrados no interesse da Recorrida mas, ao invés, no único e exclusivo interesse do Grupo “C” e em manifesto prejuízo da sua participada, inexistindo, como tal, qualquer prova que demonstre a efetiva onerosidade dos contratos que titularam os financiamentos concedidos pela Recorrida.
EE. Em conclusão, o parágrafo 15. h) [Quer os mútuos em concreto celebrados com a sua sócia “C”, quer o Intra-Group Cash Pooling em que participa, são onerosos, sendo o capital disponibilizado pela Ré devidamente remunerado (no caso dos financiamentos com uma taxa fixa de 3%)], deverá considerar-se como não-provado com base no depoimento supra transcrito da testemunha “D” (audiência de julgamento de 15.03.2024 – depoimento prestado entre as 10:27h e as 11:31h), conjugado com uma análise detida dos Docs. 56 e 59 juntos com a petição inicial, Docs. 1 a 8 juntos com o requerimento da Recorrida datado de 21.04.2023 (Ref.ª 45374785), Doc. 1 junto com o requerimento da Recorrente apresentado na data de 28.11.2023 – Ref.ª 47262288) e Docs. 1 e 2 do requerimento apresentado pela Recorrida em 14.11.2023 (Ref.ª 47125811).
FF. No que respeita ao parágrafo 16. m) [16. m) - Decorrendo prejuízos para a Ré, caso fosse deliberada (ou determinada) a distribuição desse montante], a afirmação da existência de um risco de “prejuízo” como consequência da distribuição de 80% da verba inscrita sob a rubrica de resultados transitados é, em si mesma, contraditória e infundada.
GG. Contraditória porque o conceito contabilístico de “resultados transitados” significa que estes correspondem a um montante de lucros acumulados em virtude da sua não-distribuição em períodos anteriores. Por definição, a distribuição de resultados transitados não é suscetível de implicar prejuízos, em sentido próprio, para a sociedade. Aliás, tratando-se os resultados transitados de verdadeiros lucros acumulados de exercícios precedentes crê-se que a sua divisão, por distribuição aos acionistas é, de resto, o normal destino que lhes deve ser dado e que jamais se pode ter como um risco.
HH. Infundada porquanto inexistem nos presentes autos quaisquer evidências concretas do benefício económico concreto (se algum?!) que a sociedade tem retirado e retira do destino atualmente dado aos resultados transitados – os quais, como está provado nestes autos, se concentram estritamente na esfera da acionista maioritária em detrimento dos interesses da Recorrente enquanto acionista maioritária – sendo ainda certo que, no ano de 2022, no âmbito da conta 2681 (extrato Cash Pool com a sociedade “C” HOLDING SARL), a Recorrida registou um fluxo de empréstimos concedidos num valor agregado superior a 1,3 milhões de euros e, inversamente, terá sido credora / mutuante de um valor superior a 5 milhões de euros – vale por dizer deu muito mais do que recebeu.
II. E, no mesmo ano de 2022, no âmbito da conta 2682 (extrato Cash Pool com a sociedade “C” INVESTIMENTOS E SERVIÇOS, LDA.), a Recorrida registou um fluxo de empréstimos concedidos num valor agregado superior a 6.3 milhões de euros e, inversamente, terá sido credora / mutuante de um valor superior a 1 milhão de euros – vale por dizer novamente deu muito mais do que recebeu.
JJ. Donde se pode facilmente concluir que a distribuição da referida verba de 80% do valor dos resultados transitados consistiria numa operação perfeitamente enquadrável no volume de capital que a Recorrida aparentemente movimenta de forma quotidiana e em exclusivo benefício do grupo “C”, sendo apodítico que a distribuição de lucros no montante acima referido não afetaria a consistência financeira da sociedade.
KK. Por conseguinte, pode concluir-se que o parágrafo 16. m) deverá considerar-se como não-provado com base numa análise atenta dos Docs. 7 e 8 juntos pela Recorrida com o requerimento apresentado na data de 30.10.2023 (Ref.ª 46973359) e do depoimento prestado pela testemunha “E” (audiência de julgamento de 11.03.2024 – depoimento prestado entre as 14:53h e as 15:25h - minutos 00:04:00 a 00:06:00)
LL. Com referência ao facto vertido no parágrafo 18. h) [18. h) – Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reserva legais], cumpre frisar que os elementos documentais juntos aos autos, mormente com a petição inicial, permitem entender claramente que a omissão da distribuição de lucros entre 2007 e 2019 não resultou de deliberações unânimes nas quais a ora Recorrente tenha participado nem votado favoravelmente. Ao invés, desses elementos resulta que a Recorrente não esteve presente nem participou nas assembleias gerais decorridas entre 2007 e 2019.
MM. Por conseguinte, o parágrafo 18. h) deverá considerar-se como não-provado com base na simples leitura dos Docs. 29 a 47 da petição inicial, ou, se assim não for, deve o mesmo refletir adequadamente a realidade relevante com uma formulação que aqui se deixa sugerida nos seguintes termos:
➢ 18. h) – Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes – mas sem que a Autora estivesse presente ou tivesse votado favoravelmente –, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reservas legais, mas sem que nunca tivesse a assembleia deliberado aprovar a destinação desses lucros para a celebração de mútuos ou financiamentos em benefício da acionista maioritária.
NN. Por decorrência lógica do que antecede, relevam ainda os factos que a douta sentença deveria ter dado por não provados. Ora, neste particular, crê-se que, em coerência com o sentido da decisão de facto que ficou referida nas conclusões anteriores e por apelo a todos os argumentos e elementos probatórios aí mobilizados, deve a instância de recurso dar por não provada a seguinte factualidade tida por relevante:
Não ficou provado que:
a. A Autora conhecesse ou tivesse, direta ou indiretamente, manifestado a sua concordância com os contratos de mútuo e de Intra-Group Cash Pool Agreement.
b. A Ré tenha recebido alguma remuneração a título de juros pela execução do contrato de mútuo e pelo Intra-Group Cash Pool Agreement
c. As condições de remuneração previstas nos contratos de mútuo e no Intra-Group Cash Pool Agreement fossem competitivas e alinhadas com as condições de mercado aplicáveis a contratos daquela natureza
OO. Em terceiro lugar, no que respeita aos factos que a sentença deveria ter dado por provados e que se afiguravam relevantes para a boa decisão da causa, mormente para sustentar a factualidade sobre a qual assenta, em termos práticos, a circunstância de a Recorrida ter mutuado ao Grupo “C” uma quantia superior a 6 milhões de euros de forma meramente gratuita, destacam-se os seguintes factos:
I. Na data de 22 de Abril de 2020, aquando a celebração do primeiro contrato designado por Intra-Group Cash Pool Agreement, a taxa EURIBOR apresentava um valor de -0,40%;
II. Na data de 7 de Fevereiro de 2022, aquando a celebração do segundo contrato designado por Intra-Group Cash Pool Agreement, a taxa EURIBOR apresentava um valor não superior a -0,50%;
III. Em virtude das taxas EURIBOR vigentes na data da celebração dos contratos designados por Intra-Group Cash Pool Agreement, celebrados na data de 22 de Abril de 2020 e de 7 de Fevereiro de 2022, a Ré não foi remunerada, pelo menos, durante todo o período que mediou entre estes dois contratos e no período subsequente ao segundo contrato.
IV. A Ré não obteve o pagamento efetivo dos juros remuneratórios acordados pelos contratos de financiamento (no montante global de €15.050.000,00) uma vez que o crédito correspondente a tais juros era imputado no âmbito dos contratos de Cash Pool como mais um financiamento da Recorrida a favor do Grupo “C”.
V. Com referência ao exercício social terminado a 31 de Dezembro de 2021, a Recorrente contava com um valor de €19.131.492,01 na conta de resultados transitados quando, simultaneamente, se encontrava mutuado ao Grupo “C” um montante global de €19.582.444,54.
VI. Até 31 de Dezembro de 2020, a Recorrida detinha um crédito no valor agregado de €6.060.015,84 perante a sociedade “C” HOLDING SARL.
VII. A “C” HOLDING SARL não é parte nos contratos de Cash Pooling celebrados entre 2020 e 2022.
PP. Os factos elencados em I. e II devem ser tidos por provados com base no Doc. 1 junto pela Recorrente aos autos por requerimento datado de 28 de Novembro de 2023 (Ref.ª 47262288), que corresponde a um extrato demonstrativo do histórico das taxas EURIBOR 1M entre o período de 22 de Abril de 2020 e 7 de Fevereiro de 2022.
QQ. O facto elencado em III., por sua vez, resulta da conjugação da leitura do acima referido Doc. 1 junto pela Recorrente aos autos por requerimento datado de 28 de Novembro de 2023 (Ref.ª 47262288) com os Docs. 1 e 2 do requerimento apresentado pela Recorrida em 14.11.2023 (Ref.ª 47125811).
RR. O facto elencado em IV. resultado do depoimento supra transcrito da testemunha “D” (audiência de julgamento de 15.03.2024 – depoimento prestado entre as 10:27h e as 11:31h), conjugado com uma análise detida dos Docs. 56 e 59 juntos com a petição inicial, Docs. 1 a 8 juntos com o requerimento da Recorrida datado de 21.04.2023 (Ref.ª 45374785), Doc. 1 junto com o requerimento da Recorrente apresentado na data de 28.11.2023 – Ref.ª 47262288) e Docs. 1 e 2 do requerimento apresentado pela Recorrida em 14.11.2023 (Ref.ª 47125811).
SS. O facto elencado em V. resulta da simples análise do Doc. 3 junto com a contestação e assume importância nos autos por forma a demonstrar, em termos concretos e numéricos, o verdadeiro “aparcamento” dos lucros de balanço da Recorrida em favor exclusivo e manifesto do Grupo “C”.
TT. Os factos elencados em VI. e VII. resultam da conjugação dos Docs. 1 a 9 do requerimento da Recorrida datado de 21 de Abril de 2023 (Ref.ª 45374785), donde é possível constatar que, na realidade, o Cash Pool no âmbito do qual a Recorrida adiantava dinheiro ao Grupo “C” revertia, na sua esmagadora maioria, a favor de uma entidade que nem sequer estava abrangida pelos contratos celebrados.
Em suma e para concluir o recurso da matéria de facto:
UU. A decisão da matéria de facto deve ser alterada, nos seguintes termos:
a. com a eliminação dos pontos 13. a), 13. b), 13. c), 14. a), 15. g), 15. h), 15. i), 15. j), 16. b), 16. c), 16. l), 16. m) e 18. h);
b. com a especificação de que não se deram como provados os factos a), b) e c) acima enunciados;
c. o aditamento dos factos I, II, III, IV., V., VI. e VII. que acima se reproduziram.
Quanto à matéria de direito
VV. A douta sentença merece também censura, que se alcançará em face da subsunção resultante da procedência do recurso da matéria de facto nos termos que acabaram de se explanar nas conclusões antecedentes, mas, também, porque mesmo que assim não fosse, a presente ação deveria ter sido julgado procedente.
WW. Os vícios que nesta ação veio a autora, ora Recorrente, assacar à deliberação da assembleia geral que aqui se impugna eram essencialmente os seguintes: (i) nulidade da deliberação por conflito de interesses da acionista “C” ao votar uma matéria na qual se visa colocar em crise um seu interesse próprio e exclusivo qual seja o de promover a retenção dos lucros transitados na sua esfera jurídica, por via dos 20 milhões de financiamentos concedidos pela ré a empresas que integram o seu Grupo (cf. 384.º, n.º 6, alínea d) do CSC); (ii) anulabilidade da deliberação pelas vantagens atribuídas à acionista “C” em prejuízo da sociedade e/ou dos demais acionistas, mormente em prejuízo da Autora e do seu direito aos lucros, vício tal que deflui de um voto abusivo da acionista “C” (cf. artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do CSC); (iii) nulidade da deliberação pelo abuso de direito resultante da preservação da retenção dos resultados transitados de que exclusivamente beneficia o acionista Grupo “C” em prejuízo dos interesses da sociedade e da Autora - maxime, o seu direito de poder ter um acesso e benefício aos lucros de resultados transitados (cf. artigo 334.º do CC).
XX. No que respeita ao conflito de interesses sancionado com nulidade nos termos do artigo 384.º/6, d) do CSC, a argumentação utilizada pelo Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não convence.
YY. No que respeita ao argumento de que a proposta de distribuição de resultados transitados nem poderia proceder pois isso «implica bulir com a tomada de deliberações em exercício anteriores» (conforme se diz na douta sentença), deve dizer-se que o argumento não colherá por ser manifesto que tais deliberações passadas, tal qual tem sustentado a doutrina e a jurisprudência, não derrogam a possibilidade de os acionistas poderem mais tarde validamente deliberar sobre o destino a dar aos lucros transitados de exercícios anteriores. Por outro lado, o argumento da sentença também não convence porquanto e como se retira das atas juntas aos autos, pelas quais se deliberou na formação de resultados transitados, resulta claro que a assembleia jamais determinou que esses resultados fossem alocados a financiamentos destinados a favorecer exclusivamente o acionista maioritário.
ZZ. Quanto ao segundo argumento que a douta sentença avança para afastar o conflito de interesses – propugnando que «não existe uma verdadeira obrigação de distribuição de lucro, sendo que a distribuição só ocorre se os sócios deliberarem que ocorra e em que percentagem» –, o mesmo deve revelar-se igualmente improcedente. Desde logo porque esse aspeto se afasta da questão do conflito de interesses propriamente dita e atine exclusivamente à materialidade da proposta de deliberação. Depois, por se nos afigurar absolutamente iníquo em diversos segmentos e redutor do que deve ser o conceito de direito aos lucros por parte de um acionista numa sociedade comercial e, sobretudo, por ser revelador de uma visão enviesada do que deve ser a tutela do acionista minoritário contra atos praticados pelo acionista maioritário com laivos de tirania, como seja a questão central que se discute nos presentes autos.
AAA. Quanto ao terceiro argumento invocado pelo Tribunal a quo – concluindo que não existe qualquer conflito de interesses por ter resultado demonstrado nos presentes autos que os financiamentos mostram «respeito pela integridade financeira da Ré e rentabilidade máxima da actividade e capitais, exponenciação de possibilidade de investimento» –, deve logo concluir-se pela incongruência do discurso mobilizado para afastar o conflito de interesses. Com efeito, desconsidera totalmente esta argumentação a relação direta entre o acionista votante e o beneficiário dos empréstimos (que são o mesmo sujeito), como se fosse um aspeto de somenos, quando é precisamente nessa relação claramente conflitual que reside o busílis da questão para dar resposta ao conflito de interesses. Recorde-se neste conspecto o facto que ninguém disputa nestes autos: os lucros, na forma de resultados transitados, encontram-se detidos pelo acionista maioritário que deles frui exclusivamente pelo menos desde 2015! Ora, se assim é, porque a deliberação versa sobre resultados transitados (o mesmo é dizer, pela manutenção ou pela cessação dos financiamentos concedidos ao acionista maioritário) necessário se torna concluir que, ao interesse dos acionistas quanto ao destino a dar aos resultados transitados, opõe-se e conflitua diretamente o interesse contrário do mesmo acionista que pretende manter na sua esfera jurídica esses resultados transitados.
BBB. Há, assim, um interesse pessoal do acionista em conflito direto com o interesse deste enquanto acionista. Do lado do interesse pessoal, avulta o interesse do acionista em preservar esses financiamentos; do lado do acionista, por sua vez, avultará o interesse (teórico) em decidir pela distribuição dos lucros. Ambos são, como se vê, contrapostos e tanto será a nosso ver mais do que suficiente para que se conclua que a intervenção do acionista nesta deliberação jamais poderia ter ocorrido, porque viciada, rectius, impedida, ab initio.
CCC. O Tribunal descurou assim por completo a questão do conflito de interesses, deixando por perspetivar adequadamente tão relevante questão. Não se pode aceitar que um acionista, maioritário, possa, nas circunstâncias dos presentes autos, impor um circuito fechado pelo qual mantém eternamente refugiados para si os lucros transitados, deixando-os fora da disponibilidade da sociedade. E a intervenção do acionista numa deliberação em que o seu interesse é manifesto – pela necessidade de manter esse status quo que só a si beneficia – parece que efetivamente foi desconsiderada pelo tribunal, assim incorrendo num erro de direito relevante e com violação direta do artigo 384.º/6, d) do CSC.
DDD. Por seu turno, no que concerne ao voto abusivo do acionista “C” por direta violação do artigo 58.º/1, b) do CSC, crê-se igualmente ter errado o Tribunal a quo na decisão e respetivos fundamentos em que se estriba.
EEE. De facto, na égide do caso vertente os pressupostos subjetivo e objetivo do voto abusivo mostram-se integralmente verificados.
FFF. Com efeito, o pressuposto objetivo deste voto abusivo funda-se no caso vertente na vantagem que o acionista maioritário retira do status quo por si induzido e que a si exclusivamente beneficia, qual seja o de conservar na sua esfera os 20 milhões de lucros transitados, arrendando-os da esfera da sociedade e da acionista minoritária, elegendo os presentes autos, com assinalável clareza, uma total falta de respaldo e objetividade para tal situação, em tudo prejudicial à aqui Recorrente.
GGG. Já quanto ao pressuposto subjetivo do voto abusivo, crê-se que a verificação do mesmo ser também manifesta no caso vertente, por ser claro, à luz das mais elementares regras de experiência comum e quanto mais não seja por apelo às presunções judiciais, a intenção dolosa do voto abusivo inerente ao propósito de conservar para si tão significativo benefício em detrimento e direto prejuízo da Recorrente e da sociedade – sendo aliás a todos os títulos reprovável que se mantenha nestes termos uma posição que tão flagrantemente atenta contra o direito aos lucros da Recorrente.
HHH. O acionista maioritário, porque se acha investido numa posição de claro privilégio face aos demais acionistas minoritários, mormente pela conservação material da totalidade dos lucros transitados, age em manifesto abuso quando recusa a distribuição de tais resultados transitados, numa posição de tirania flagrante e chocante à luz da boa fé e do direito que a todos os acionistas deve ser reconhecido de, em condições de igualdade, poder aceder aos lucros de uma sociedade comercial.
III. Em suma e para concluir quanto a este vício, crê-se também incorrer a sentença recorrida num erro de direito relevante com violação direta do artigo 58.º/1, b) do CSC.
JJJ. Por fim e no que toca ao abuso de direito em violação do artigo 334.º do CC, crê-se logo incorrer a douta sentença em nulidade por omissão de pronúncia (cf. artigo do 615.º/1, d) CPC) visto que deixa de conhecer de uma questão que lhe foi inequivocamente colocada à sua apreciação e que nunca poderia deixar de apreciar.
KKK. Em todo o caso e sobre a abuso de direito sempre se dirá que há abuso de direito conquanto: (i) o pretenso interesse social que está na génese da recusa na distribuição dos lucros transitados não está demonstrado, com isso se atingindo diretamente o direito aos lucros da Recorrente; e (ii) a recusa da distribuição de lucros serve apenas o propósito contrário às regras da boa fé de manter o acionista maioritário no controlo dos avultados lucros transitados, em manifesto e exclusivo prejuízo da Recorrente.
LLL. Sobrando por fim concluir que a procedência de qualquer dos assinalados vícios deve permitir ao Tribunal alcançar uma pronúncia que, com plena consagração do direito à tutela jurisdicional efetiva, conclua por uma deliberação positiva com base nos votos positivos que tenham remanescido, tal qual foi peticionado na presente ação e na presente instância recursiva se torna a pugnar.

A ré/recorrida apresentou contra-alegações, concluindo por pedir que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida, para o que formula as seguintes conclusões:
1. A Decisão impugnada é absolutamente irrepreensível, quer quanto à apreciação dos factos, quer quanto à subsequente subsunção ao quadro jurídico aplicável, não merecendo qualquer censura.
2. Desde logo, a Sentença a quo não padece de qualquer vício ou irregularidade na apreciação da matéria de facto.
3. Em primeiro lugar, quanto à alegada inclusão de juízos conclusivos nos pontos 13, 14, 15, 16 e 18 dos Factos Provados, a globalidade dos enunciados pontos, com da sua leitura resulta, consubstancia factos concretos, demonstrados, apartados de qualquer juízo conclusivo.
4. Em segundo lugar, também não pode acompanhar-se minimamente a Recorrente quanto ao entendimento de que os factos conclusivos contendem com o conceito de facto constante do artigo 607.º, n.º 3 do CPC, nem esse entendimento tem respaldo em qualquer (hodierna) corrente jurisprudencial.
5. Em terceiro lugar, mesmo que se viesse a considerar que os sobreditos pontos contêm em si quaisquer juízos conclusivos (ou valorativos) que se devem apartar do estrito conceito processual de facto – no que não se concede –, certo é que é a consequência nunca seria pela purga, sem mais, dos enunciados factos dados como provados, como defende a Recorrente, mas tão-somente dos concretos excertos tidos por não admissíveis, com a reformulação do facto com o sentido que lhe era pretendido dar pelo Tribunal.
6. Por fim, e não obstante todo o exposto, sempre deverá salientar-se que, ainda que tomados como juízos conclusivos e de lugar não admitido na matéria de facto, a essas conclusões haveria inevitavelmente de chegar-se pelo exame da consubstanciada prova feita nos autos e demais matéria de facto, sem influência mínima quanto à decisão ditada na Sentença a quo.
7. A Sentença a quo também não omite uma fundamentação suficiente quanto à valoração da prova, concretamente nos pontos 11 a 18 dos Factos Provados. Para além da referência expressa constante desses pontos a documentos, a Decisão a quo faz um exame do depoimento de parte e dos depoimentos das testemunhas, com especificada e detalhada arrumação da matéria pelos Temas da Prova, relevando ainda a factualidade dada como assente (por confessada ou não controvertida) em sede de Saneador.
8. Não obstante, e mesmo que assim não se entendesse (o que a mero benefício de raciocínio se equaciona), forçoso seria, de qualquer modo, concluir pela correcta inclusão de todos os factos na matéria dada como provada, porquanto o foram, com assento em documentos, no depoimento de parte e nas ouvidas testemunhas (incluindo as arroladas pela própria Recorrente!).
9. Inexiste, de igual modo, omissão de pronúncia da Decisão a quo, por, alegadamente, se não ter o Tribunal debruçado sobre o invocado abuso do direito, que “funde com o argumento do voto abusivo”.
10. Não se concorda, desde logo, com a leitura advogada pela Recorrente, acompanhando-se aqui a posição de que a figura do abuso do direito, enquanto última cláusula de salvaguarda, está, nas deliberações sociais, consagrada (e consumida) na anulabilidade prevista no artigo 58.º, n.º 1, al. b) do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”). E a verdade é que, de qualquer modo, o Tribunal a quo atendeu efectivamente a essa questão da Recorrente, concluindo pela sua improcedência, como se vê da fundamentação da Decisão sob impugnação.
11. Quanto à impugnação, stricto sensu, da matéria de facto, não tem razão a Recorrente ao defender que sejam expurgados dos Factos Provados os pontos 13.a), 14.a), 15.g), 15.i), 15.j), 16.b), 16.c), 16.c) e 16.l), com fundamento no facto de integrarem conclusões (impróprias, e não admitidas, da matéria de facto), ou, assim não se entendendo, por não resultarem provados da prova produzida.
12. Tais factos, para além de não conterem quaisquer juízos conclusivos, também não contendem com os comandos e princípios processuais (mormente inscritos no artigo 607.º, n.º 3 do CPC), antes resultam demonstrados de toda a prova feita nos autos.
13. Não tem também razão a Recorrente quando diz que deverão igualmente ser extraídos da matéria provada os pontos, que trata como “factos propriamente ditos”, 13.a), 13.b) e 13.c), 15.h), 16.m) e 18.h).
14. Os factos contidos no ponto 13. resultam desde logo do Documento n.º 4 junto à Petição Inicial, donde decorre que a Recorrente é sócia da Ré, de facto, integrando o seu Conselho de Administração, desde a sua constituição e até 2020 (cfr. Factos Provados n.º 2, 9 e 17 da Sentença a quo) e do Relatório e Contas de 2021 junto como Documento n.º 3 à Contestação, que faz referência expressa aos financiamentos existentes e respectivos montantes, sendo tudo concomitantemente corroborado por regras de experiência comum. Essa factualidade foi também confirmada em sede de prova testemunhal, pelo Director Financeiro da Recorrente, o Dr. “E”, e em sede depoimento de parte, pelo Dr. “F”, administrador e Presidente da Comissão Executiva da Recorrente (que afirmou que a actual administração da aqui Recorrente, nomeada em 2021, afinal “nada sabia” dos actos dos seus antecessores, nem cuidou de saber).
15. O ponto 14.a) resulta desde logo demonstrado dos sobreditos instrumentos juntos aos autos (cfr. Documentos n.ºs 1 a 8 juntos ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e Documentos n.ºs 1 a 6 e 9 juntos ao requerimento de 30.10.2023, com a ref. CITIUS n.º 46973359, com traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811). Quanto à correspondente justificação e racional financeiro, os mesmos foram detalhadamente aclarados e confirmados em sede de Audiência de Julgamento, designadamente pelo Senhor Dr. “D”, actual Revisor Oficial de Contas (ROC) da Recorrida, e pelo Senhor Dr. “G”, Revisor Oficial de Contas (ROC) e fiscal único da Recorrida entre 2014 e 2020 e responsável de auditoria, ambos da “H” Portugal, que a Recorrida cuidou de arrolar.
16. A alegação constante do ponto 20, p. 17, das Alegações, de que “em Abril de 2019 já existiam transferências de Cash Pool numa data em que nem sequer existia suporte contratual para tal efeito.”, é falsa, assim como tudo o mais de daqui quer a Recorrente extrair, sendo o próprio Intra-Group Cash Pool Agreement de 22.04.2020 que alude expressamente, na cláusula 1.1., a um outro Cash Pool Agreement celebrado em 03.10.2016 (cfr. Documento n.ºs 8 junto ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811). Tal foi igualmente confirmado pelo Senhor Dr. “G”.
17. A factualidade dada como provada sob o ponto 15. decorre dos documentos contratuais atinentes ao mecanismo de cash pooling juntos aos autos (cfr. Documento n.º 8 junto ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e Documento n.º 9 junto ao requerimento de 30.10.2023, com a ref. CITIUS n.º 46973359, com traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811). E, também neste âmbito, depuseram os já mencionados Senhores Dr. “D” e Dr. “G”, da “H” Portugal.
18. Quanto ao ponto 16., os factos identificados como b), c) e l) decorrem primacialmente do Relatório e Contas junto à Contestação como Documento n.º 3 e da Acta da Deliberação sub judice junto à Petição Inicial como Documento n.º 69, sendo também corroborado pelos auditores da Recorrida, em particular o Senhor Dr. “D”, Revisor Oficial de Contas (ROC) desde 2021 (que, no seu depoimento, identificou ainda um risco associado a eventuais alterações legislativas no conspecto da actividade da Recorrida, que se mostra fortemente dependente da prestação dos serviços contratados pelo Estado Português, prestados em consonância com um preço regulado que não é revisto há largos anos).
19. Relativamente aos prejuízos decorrentes para a Recorrida caso fosse deliberada ou determinada a distribuição do montante correspondente a 80% de € 19.131.492,01 (cfr. al. m) do ponto 16.), esse facto extrai-se sem mais, de acordo com regras de experiência comum, do facto de a Recorrida apenas dispor em caixa, no encerramento do exercício de 2021, de um valor que não chegava a € 100.000,00 – cfr. Documento n.º 3 junto à Contestação e como de resto nota a Recorrente nas suas Alegações – tendo ficado evidente que o pagamento aos sócios de um qualquer montante nessa ordem de grandeza, de imediato e a pronto, obrigaria a Recorrida a recorrer a outros meios, designadamente a financiar-se para cumprir esse pagamento, com todas as consequências (nocivas) que daí adviriam para a sua saúde e integridade financeira. Tal foi confirmado, designadamente quanto à falta de liquidez, pelo Dr. “D” e pelo próprio Director Financeiro da Recorrente, Dr. “E”.
20. No que toca ao ponto 18.h), o mesmo resulta, sem mais, das Actas de Assembleias Gerais da Recorrida que compõem os Documentos n.ºs 30, 32 a 38, 40 e 41, 43 a 45 e 48 juntos à Petição Inicial.
21. No que atine à matéria dada como não provada, naufragam também as considerações aí tecidas pela Recorrente (ademais omissas das conclusões do seu Recurso), que, em rigor, também nada modificam dessa matéria de facto, devendo aí improceder o ensejado aditamento aos Factos não provados (cfr. als. a., b. e c. do ponto 32 das Alegações sob resposta), pelas razões aduzidas aquando do exame dos Factos Provados.
22. Por último quanto à matéria de facto, também não pode deixar de improceder o aditamento dos factos supostamente omitidos da matéria provada (cfr. factos I. a VII. das Alegações sob resposta), por não resultarem provados ou serem de novel invocação e absolutamente irrelevantes para a apreciação a haver.
23. Relativamente aos factos elencados em I. e II., além de não corresponderem à verdade, também não se deslinda nos mesmos mínima relevância para a apreciação in casu, desde logo porque não ficou demonstrado que os contratos denominados Intra-Group Cash Pool Agreement juntos aos autos pela Recorrida, datados de 22.04.2020 e de 07.02.2022, tenham sido, respectivamente, o “primeiro” e o “segundo” contratos em que esta foi parte de tal tipo e termos.
24. O próprio Intra-Group Cash Pool Agreement de 22.04.2020 alude expressamente, na cláusula 1.1., a um outro Cash Pool Agreement celebrado em 03.10.2016 (cfr. Documento n.ºs 8 junto ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811), o que colide com a percepção que a Recorrente pretende inculcar de que estes instrumentos teriam sido adoptados, com previdentes desideratos de “desvio” dos lucros da esfera da Recorrida, tendo como pressuposto e motivo um extraordinário cenário de taxas de referência negativas.
25. Mas mesmo que assim não fosse (e é), as referências às taxas Euribor – um indexante comum e recomendado nos instrumentos de financiamento e das boas práticas de remuneração do capital – são absolutamente irrelevantes para a apreciação da onerosidade ou gratuitidade dos financiamentos.
26. É rotundamente falso – reitera-se – que o Intra-Group Cash Pool Agreement ou quaisquer dos financiamentos de que a Recorrida é ou foi parte sejam ou alguma vez tivessem sido gratuitos – como resulta do ponto 15 dos Factos Provados (em parte que a Recorrente não impugna), com base nos instrumentos contratuais juntos aos autos (cfr. Documentos n.ºs 1 a 8 juntos ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e Documentos n.ºs 1 a 6 e 9 juntos ao requerimento de 30.10.2023, com a ref. CITIUS n.º 46973359, com traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811).
27. Quanto aos pontos III. e IV., são parcialmente falsos, e também não ficaram demonstrados nos autos. Mas mesmo que assim não fosse, seriam de relevância nula para a apreciação do argumento da “canalização dos lucros”, em que a Recorrente enseja ver fundada a tese do voto abusivo (ou em abuso de direito).
28. Quanto aos valores inscritos nos pontos V. e VI., os mesmos estão correctos, inexistindo, contudo, qualquer crédito sobre a sociedade “C” Holding, SARL, que cedeu todos os direitos e obrigações ao abrigo do Intra-Group Cash Pool Agreement para a “C” Treasury AB a 01.04.2019 quanto a todas as sociedades contratantes, com excepção da “C” Polónia (e, quanto a esta, a 24.05.2019) (como se detalha na cláusula 1.2. desse acordo, cfr. Documento n.ºs 8 junto ao requerimento de 21.04.2023, com a ref. CITIUS n.º 45374785, e traduções juntas ao requerimento de 14.11.2023, com a ref. CITIUS n.º 47125811).
29. É verdade, embora inteiramente irrelevante e de novel invocação nestas Alegações, o facto constante do ponto VII. Mas, em sentido contrário, já naufraga o juízo (conclusivo) que estes “factos” donde pretendia a Recorrente extrair que “a Recorrida adiantava dinheiro” que “revertia, na sua esmagadora maioria, a favor de uma entidade que nem sequer estava abrangida pelos contratos celebrados.” … (!)
30. Em subsunção ao quadro jurídico aplicável, naufraga in totum o argumentário da Recorrente no sentido da verificação de qualquer nulidade ou anulabilidade da Deliberação, por violação do disposto no artigo 384.º, n.º 6, al. d) do CSC (“conflito de interesses”), no artigo 58.º, n.º 1, al. b) (“voto abusivo”) ou no artigo 334.º do Cód. Civil (“abuso do direito”).
31. No caso dos autos é inequívoco que não há qualquer conflito de interesses, não estando a “C” impedida, nos termos na citada norma, de votar a Deliberação sub judice, porquanto não ocorre qualquer divergência ou oposição entre os interesses do sócio, “C”, e da sociedade Recorrida, objectivamente considerados (e que deveriam ser também os da Recorrente…), que são exactamente os mesmos: integridade financeira da ora Recorrida e rentabilidade máxima da actividade e dos seus capitais, com exponenciação de possibilidade de investimento.
32. Não foi em qualquer momento invocada nesta acção, nem nela tem lugar tal discussão, qualquer vício, designadamente de forma, dos financiamentos em apreço, como agora inovadoramente se refere no ponto 41 das Alegações sob resposta, que não deverá ser atendida ou tampouco relevada por este Venerando Tribunal. Em todo o caso, os financiamentos em causa nos presentes autos são mútuos comerciais, regulados no artigo 394.º do Código Comercial, que não têm a exigência de forma do mútuo civil, pelo que também nunca colheria tal argumento.
33. De outro lado, também não é verdade, nem tal ficou nesta lide minimamente demonstrado, que os instrumentos de financiamento escapem ao interesse societário da Recorrida ou que sejam gratuitos, nem que esses instrumentos de financiamento tinham sido “celebrados com a C”.
34. Os financiamentos em apreço, além de celebrados no interesse (também) da Recorrida, foram-no nos termos legalmente previstos, com respeito pela prossecução do escopo lucrativo da Recorrida e obedecendo a práticas de boa gestão.
35. Ainda que tivessem os financiamentos sido acordados com uma taxa de juro remuneratória mais reduzida ou de 0%, tal não possibilitaria, sem mais, extrair-se conclusão no sentido da inadmissibilidade dos concretos financiamentos, por um qualquer desrespeito das limitações acima descritas; pois que, como acontece com a prestação de garantias ou liberalidades, nos termos do artigo 6.º do CSC, a concessão de financiamentos não onerosa, sempre que casuisticamente justificada, pode ser admitida, por não desrespeitar o escopo lucrativo da sociedade.
36. A Recorrente não fez, como se lhe impunha, qualquer suficiente demonstração de que a deliberação em causa é apropriada para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes (cfr. al. b) do n.º 1 do artigo 58.º do CSC), ou tampouco de que a mesma viola disposições da lei ou do contrato de sociedade (cfr. al. a) do n.º 1 do artigo 58.º do CSC).
37. É inequívoco que o sócio (leia-se, a aqui Recorrente) não é titular de um direito concreto ao lucro, muito menos nos termos que propugna, competindo à colectividade de sócios – sem prejuízo das disposições estatutárias e legais, desde logo no tocante à constituição de reservas obrigatórias – decidir, livremente e por maioria, se procederá ou não à distribuição dos lucros (dividendos).
38. Os sócios têm direito a propor e votar a aplicação dos resultados da forma que melhor entenderem servir o seu interesse, e o da sociedade, sem que tal, de per si, e apenas pela circunstância de deterem uma posição maioritária que obtenha vencimento, redunde em qualquer abuso ou iniquidade.
39. É, pois, a Recorrente, particularmente considerado o modus como pretende ver satisfeito esse seu interesse, quem não cuida dos interesses da Recorrida ou tampouco concilia com os seus manifestados intentos, sendo que a existência de causa objectiva para a não distribuição de lucros configura – mesmo na tese da Recorrente – óbice bastante à invalidade que esta pretende assacar à Deliberação impugnada nos presentes autos.
40. Por tudo o quanto se expôs a respeito do alegado “voto abusivo”, deverá inelutável e igualmente improceder a arguição de nulidade da Deliberação com fundamento em abuso do direito, nos termos do disposto no artigo 334.º do Cód. Civil, falhando todos os seus justificantes pressupostos.
41. Em virtude da improcedência integral da acção, o Tribunal a quo acabou por não conhecer, por prejudicados, (i) do pedido de conversão da Deliberação em deliberação positiva formulado pela Autora e ora Recorrente e (ii) da excepção de abuso do direito invocada pela ora Recorrida (cfr. Contestação da Ré e ponto inserto no Objecto do Litígio, em consonância com o despachos com as refs. CITIUS n.º 423836406, de 01.04.2023, e n.º 428713116, de 10.10.2023).
42. Decorre da letra do mencionado artigo 665.º, n.º 2 do CPC, que no mais se crê ser de entendimento pacífico, que, nos casos em que o Tribunal recorrido tenha deixado de apreciar certas questões por ficarem prejudicadas pela decisão havida – como sucede in casu –, o Tribunal ad quem poderá apreciá-las, caso ressurja o interesse nessa apreciação (o que aqui confia a Recorrida que não será o caso, sempre sem conceder, mas por cautela não poderá deixar de equacionar) e entenda este último dispor dos elementos necessários para o efeito, não sendo exigida qualquer iniciativa ou prévia ampliação do objecto do recurso para as aludidas questões. Prevenindo diferente entendimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, sempre se haveria tomar o capítulo IV. das Contra-Alegações como ampliação do âmbito do recurso às questões identificadas, nos termos do disposto no artigo 636.º do CPC, o que expressamente se requer.
43. Assim, ainda que houvesse de reconhecer-se qualquer mérito aos argumentos e pretensão da Recorrente em ver invalidada a Deliberação sub judice (no que não se concede), também não poderia em qualquer caso proceder o pedido formulado pela Recorrente de reconhecimento (ou conversão) judicial da Deliberação em deliberação positiva por sentença judicial, com pretenso fundamento num suposto vazio deliberativo e na mirífica hipótese de manutenção pelos sócios dos votos ora impugnados (nos termos propugnados nos artigos 177.º a 193.º da Petição Inicial e nas Alegações sob resposta).
44. Além de todo o exposto, que, em virtude da inelutável improcedência da defendida tese do exercício abusivo do voto ou do conflito de interesses, ditam o decaimento de qualquer reversão ou conversão da Deliberação em apreço, a declaração (ou conversão) judicial da mesma redundaria numa intromissão que a Lei não prevê ou pressupõe no escopo da discussão e deliberação a tomar livre e fundamentadamente pelos sócios, nos termos legalmente previstos, designadamente no concreto percentual a distribuir pelos sócios, por referência a verba inscrita nas contas da Ré sob Resultados Transitados, bem como nos específicos fundamentos subjacentes e justificantes da deliberação, o que não pode evidentemente admitir-se.
45. Acresce que, em causa nos autos não se encontra uma mera distribuição de lucros de um concreto exercício (em que se avaliaria dos lucros eventualmente obtidos e a justificação e pertinência, ou não, da concreta deliberação tomada sobre os mesmos, i.e., distribuição como dividendos, ou não, e percentual), mas – como à saciedade está adquirido, com todas as particularidades – de uma proposta tendo por objecto a distribuição de montante sobre a verba inscrita nas contas da Ré sobre a rubrica atinente a Resultados Transitados, concretamente, da distribuição aos accionistas de valor correspondente a 80% de € 19.131.492,01, para o que ademais a Recorrida não tinha à data da Deliberação (nem tem neste momento), disponibilidade de tesouraria para proceder ao pagamento de tao avultado montante (com os prejuízos que daí para si derivariam).
46. Por último, caso se entendesse que a Recorrente dispõe de algum direito ao lucro nos termos por si propugnados nesta acção, no que (naturalmente) não se concede, sempre seria de considerar que o seu exercício é manifestamente abusivo, porquanto ultrapassaria os limites que balizam o próprio direito e seria contrário às máximas da boa-fé que o mencionado exercício pressupõe, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334.º do Cód. Civil, justificando- se, nesses casos, o impedimento ao exercício do direito, donde também deveria manter-se o sentido da Decisão a quo, concluindo-se pela total improcedência da acção.

O recurso foi regularmente admitido.
Foram colhidos os vistos legais.

II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), a que acrescem as questões compreendidas no âmbito preventivo da ampliação do objeto do recurso, a apreciar a requerimento da parte vencedora com respeito pela previsão do art.º 636º, n.º1 do Código de Processo Civil, importa apreciar e decidir:
i) se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto pelo tribunal recorrido que imponha alteração (inclusão indevida de factos conclusivos ou juízos valorativos, consideração como provados de factos que não o deveriam ser e omissão de inclusão de factos que deveriam ser considerados provados);
ii) se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de fundamentação suficiente do julgamento da matéria de facto;
iii) se a sentença recorrida incorreu em vício de omissão de pronúncia;
iv) se a deliberação sob impugnação enferma de vício que determine a sua nulidade/anulabilidade;
v) caso se verifique fundamento de invalidação do voto da acionista maioritária, se existe fundamento para que se conclua por uma deliberação positiva com base nos votos remanescentes;
vi) em caso de procedência dos fundamentos da apelação, da atuação da apelante em abuso de direito.

III. fundamentação
1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto e sua motivação.
A título introdutório, por razões que se tornam justificadas, quer pela particular estrutura da decisão recorrida, quer pelo objeto do presente recurso, impõe-se que os vícios apontados àquela, por referência à fundamentação de facto e à respetiva motivação, sejam apreciados sem que previamente se reproduza o teor do elenco originário de factos tidos como provados e não provados, que, de forma notória, independentemente do provimento do recurso, terão que sofrer alteração/reorganização.
Dispõe o art.º 607º, n.º4 do Código de Processo Civil que “[N]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
A “declaração” dos factos que julga provados e não provados reclama do juiz um esforço de enunciação lógica e, preferencialmente, cronológica, que se pretende fluída e organizada.
Como referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I,3ª edição, Almedina, p. 771), “importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Objetivo que encontra agora na formulação do preceito um apoio suplementar, já que o n.º 4, 2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma sequência desordenada de factos atomísticos que, lamentavelmente, ainda marca muitas sentenças e mesmo acórdãos dos tribunais superiores”.

No caso em apreço, como realça a apelante (merecendo a concordância deste tribunal), a sentença não contém, sequer, uma articulação numerada dos factos, que se mostram expostos por blocos, de forma desorganizada e, inclusivamente, com repetição dos mesmos factos em diferentes segmentos da exposição, dificultando a reação recursiva das partes e agravando as dificuldades deste tribunal, a quem é imposto um agravado esforço na sindicância da correção da decisão.
Note-se, a título de exemplo, que entre os pontos 1 e 12 a Mmª juiz a quo reproduz os factos que foram considerados assentes na fase de saneamento, após o que atribui um só número a conjuntos de factos e, por várias vezes, repete os factos que já haviam sido incluídos entre os factos assentes, não tendo expurgado a peça de duplicações. Na decisão repete-se o texto das alíneas L) e M) dos factos assentes constantes dos pontos 10 e 11, respetivamente, no 2º parágrafo do facto 14 e no facto 15. Posteriormente, a partir do segundo parágrafo do facto 17, a decisão recorrida transcreve o texto das alíneas A) a J) dos factos assentes, que já constava transcrito nos pontos 1 a 8 do elenco de factos provados. Mais uma vez, no bloco que identifica sob o n.º 18, a partir do seu segundo parágrafo, transcreve as alíneas I), M) e N) dos factos assentes, que já constavam dos pontos 8, 11 e 12 dos factos provados – a al. M) é transcrita em triplicado. Por último, o facto constante do último parágrafo do bloco 17 é repetido no bloco 18 (4º parágrafo da epígrafe “mais se logrou apurar”).
           
Com relevância para a reapreciação da matéria de facto pretendida pela apelante, importa ainda tecer acrescidas considerações introdutórias, que serão úteis por ocasião da apreciação do objeto do recurso.
A matéria de facto a considerar na fundamentação da sentença, nos termos previstos pelo art.º 607º, n.º3 do Código de Processo Civil, terá que respeitar os limites previstos pelo art.º 5º, n.º1, do Código de Processo Civil, sendo imprescindível que contemple a matéria de facto alegada pelas partes e que se mostre relevante para apreciação das concretas questões jurídicas que integram o objeto do litígio. Para além dos factos essenciais, tal como decorre do n.º 2 do art.º 5º, poderão, na decisão, ser considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Por efeito da redação vigente do Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à delimitação da matéria de facto controvertida que é objeto de julgamento, hoje assente na enunciação de temas da prova – art.º 596º, n.º1 do Código de Processo Civil -, cuja maior ou menor amplitude não se encontra definida de forma rigorosa na lei processual, a sentença tem como único elemento integrante obrigatório os factos essenciais alegados pelas partes. Naturalmente que, sob pena de o tribunal superior divergir da limitada enunciação de factos que o tribunal tem por necessários para a decisão da causa, impondo a sua ampliação, deve a sentença contemplar todos os factos passíveis de relevar para a solução jurídica.
Inexiste, hoje, qualquer sanção prevista para a enunciação de factos conclusivos ou para a inclusão na fundamentação de facto de matéria de direito, sendo esta apreciação e delimitação assente na sensibilidade exigível ao julgador, que deverá expurgar da fundamentação de facto qualquer juízo que contenha, em si, a decisão da causa.
           
Ainda com relevância para a apreciação do objeto do recurso, importa ter em conta que, não obstante os amplos poderes de reapreciação do julgamento da matéria de facto conferidos ao tribunal da Relação, essa tarefa não deverá ser desenvolvida, com incidência pormenorizada, quando os pontos de facto indicados pela parte inconformada se revelem inúteis para a decisão da causa.
Tal como a este respeito se refere no Ac. do TRG de 19-12-2023 (processo n.º1526/22.0T8VRL.G1, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt), aludindo ao que a jurisprudência tem vindo a confirmar, “a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma (…) O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1). Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1).”
Em suma, na apreciação da impugnação dirigida ao julgamento da matéria de facto deve o tribunal superior abster-se de desenvolver a atividade inútil de fundamentar a (in)correção do juízo da 1ª instância, quando desta não advenha qualquer efeito juridicamente relevante.

A esta luz, convirá, desde já, ter presente, que a ação (bem como a apelação) tem em vista a declaração de invalidade de uma concreta deliberação social, com apreciação de atuação da acionista maioritária da ré que a autora qualifica como abusiva, indiretamente suportada em alegados interesses subjetivos (de base contratual) que esta última terá na manutenção na esfera patrimonial da ré do elevado valor de resultados transitados, cuja distribuição é pretendida pela autora, acionista minoritária. A esta perspetiva opõe a ré/apelada a atuação abusiva da autora, acionista originária da ré, com presença no conselho de administração desde 2007, sem qualquer oposição manifestada às sucessivas deliberações societárias que deram causa à ausência de distribuição dos resultados de cada exercício. Em suma, não está em causa um inquérito judicial ou uma ação de responsabilidade civil fundada na prática por administradores de atos lesivos dos interesses da sociedade, que impliquem a avaliação da “qualidade” da gestão da sociedade, ou uma demanda que tenha em vista a invalidação de quaisquer contratos (de financiamento ou outros) celebrados pela ré, designadamente com base no disposto no art.º 6º, n.º3 do CSC, isto é, por serem contrários ao fim da sociedade.
Nestes limites, será apreciada a utilidade/inutilidade da alteração do julgamento da matéria de facto, pretendida pela apelante.
Efetuada esta introdução, importa apreciar o objeto do recurso.

A. Nulidade da decisão recorrida.
Na definição do objeto do recurso foi enunciada como questão ii. a nulidade suscitada pela apelante na al. B. das suas conclusões recursivas, onde refere que a sentença recorrida omite fundamentação suficiente quanto à valoração crítica da prova, omissão que aquela entende configurar nulidade por violação do art.º 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
Por razões de ordem lógica, de modo a conferir uma maior inteligibilidade a esta decisão, optamos por alterar a ordem de conhecimento das questões, apreciando, em primeiro lugar, a nulidade arguida.
Prevê o art.º 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Muito embora não conclua a apelante por pedir, como seria coerente com a arguição, a anulação da sentença recorrida, sempre se imporia referir que a eventual insuficiência da motivação da fundamentação de facto, associada a um incumprimento ou ao deficiente cumprimento do disposto no art.º 607º, n.º 4 do Código de Processo Civil, encontra via de reação adequada, não na arguição da nulidade da sentença, mas na pretensão de exercício pelo tribunal superior do dever de alteração da decisão de facto, por aplicação do disposto no art.º 662º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Civil, por efeito do qual a Relação deve determinar à 1ª instância que diligencie pela fundamentação da decisão proferida sobre algum facto essencial para a decisão da causa, quando não exista fundamentação suficiente.
Não teremos dúvidas em afirmar que a motivação da decisão que julga a matéria de facto, com fundamentação clara e suficiente das razões que presidiram à formação da convicção do julgador, constitui um pilar fundamental de legitimação das decisões judiciais, sendo um direito basilar das partes o de obterem uma decisão que lhes permita compreender as razões pelas quais, qualquer que seja o esforço probatório desenvolvido, o tribunal entendeu credibilizar um específico meio de prova em prejuízo de outro(s) ou atingiu determinada conclusão.
Contudo, nos amplos limites em que é autorizada a modificabilidade do julgamento da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, sendo evidente que a devolução do processo à 1ª instância para concretizar ou produzir uma mais rigorosa fundamentação da sua convicção não se inclui entre as pretensões da apelante, impõe-se considerar que qualquer clarificação que envolva a não apreciação do recurso deverá ser reservada para os casos extremos em que as omissões detetadas ou verificadas não possam ser supridas pela via da reapreciação da matéria de facto.
A omissão passível de gerar a nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto da decisão judicial só ocorre “quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto da decisão judicial” – Ac. do STJ de 13.09.2022 (processo n.º 773/19.7T8CBR.C1.S1, rel. Jorge Dias, disponível em www.dgsi.pt), em afirmação que reflete aquele que é o entendimento unânime da jurisprudência.
No caso concreto da decisão recorrida, não existe falta de fundamentação, nem a mesma se poderá ter por verificada. Ainda que a Mmª Juiz a quo haja optado por uma fundamentação em bloco, com alguma coerência em relação à opção de elencar os factos provados também por blocos, a mesma, ao expor a base da sua convicção, começou por sintetizar todos os depoimentos produzidos, após o que rebateu argumentos da autora referentes aos riscos que a solução propugnada por esta teria para a autonomia financeira da empresa e considerou que a prova por si sintetizada e descrita não sustenta a referida tese, que, genericamente, rebateu, referindo, de forma também genérica, os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
É certo que a referida motivação não permite inteiramente compreender a fonte de prova de alguns dos factos, mas essa insuficiência, sendo objeto do presente recurso, não é de molde a gerar a nulidade da decisão, antes colocando sobre este tribunal o dever – cujo exercício é, aliás, peticionado pela apelante - de reapreciar os meios de prova e verificar se estes sustentam as conclusões que, em termos de factualidade tida por provada, são espelhadas na decisão recorrida.
Assim, considerando-se que não existe suporte para a arguida nulidade da decisão recorrida, importa apreciar as demais questões.

B. Alteração da decisão de facto.
B.1. Expurgação do elenco de factos provados de factos conclusivos ou inclusão de tais factos entre os factos não provados.
Pretende a apelante, em primeiro lugar, que sejam eliminados do elenco de factos provados um conjunto de factos que qualifica como conclusivos ou como contendo juízos valorativos. Subsidiariamente, caso não se considerem tais segmentos como conclusivos e inadmissíveis, pretende que os mesmos sejam considerados como não provados
Reclama a apelante, em primeiro lugar, que sejam eliminados os seguintes pontos da matéria de facto considerada provada pela 1ª instância:
13. a) - A A sabia da existência e conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
14. a) - A existência, conteúdo e contrapartes negociais dos títulos que serviram de base a movimentação de capitais da Ré a favor de sociedades do Grupo “C”, ocorreu com justificação para os mesmos no contexto da boa administração da Ré.
15. g) - À semelhança dos financiamentos, de acordo com o estabelecido nas Cláusulas 10 e 11 do Anexo I do Intra-Group Cash Pool Agreement, o capital mutuado vence juros remuneratórios, a calcular, em cada dado momento, em consonância com um princípio de arm’s length e política de preços de transferência e tendo por base a Euribor, como taxa de referência, e os spreads previstos nesse instrumento.
15. i) - Todos obedecendo a princípios de arm’s length, achando-se a acordada remuneração dentro das normais condições de mercado (que, nos anos em referência, particularmente até ao presente ano, vêm sendo dominadas, por um cenário de taxas de referência negativas).
15. j) - Além de efectuada numa base de arm’s length, e como tal válidos por cumprirem o escopo lucrativo da Ré, enquadrando o respectivo objecto e finalidade, os financiamentos concedidos, bem como o mecanismo de cash pooling, obedecem ainda ao interesse próprio da Ré, enquanto parte integrante do Grupo “C”.
16. b) - A opção pela não distribuição de dividendos pelos sócios, agora, como em transactos anos, tem justificação objectiva da vontade manifestada da Ré e da sua sócia maioritária em reforçar a sua própria robustez financeira e acautelar perdas futuras. Especialmente no cenário socioeconómico de incerteza vivido recente e actualmente, dominado por uma já fortemente sentida crise económica mundial, com crises de procura e de fornecimento, e de inúmeros factores de incerteza de diversa ordem.
16. c) - Em que a Ré pretende privilegiar uma estratégia de longo prazo, com o reforço da solidez da sociedade Ré, que expectavelmente terá o benefício de proteger e valorizar as participações sociais detidas pelos sócios, incluindo a aqui Autora.
16. l) - Tais preocupações, partilhadas pela Administração da ora Ré, subscritas pela deliberação tomada em Assembleia Geral, fundamentaram a decisão dos sócios em não proceder à distribuição de montante (concretamente, de 80%) da verba registada nas contas sob Resultados Transitados.

Conforme se referiu a título introdutório, não existe, no atual modelo processual civil, qualquer obstáculo à inclusão entre os factos provados de matéria que encerre conclusões, designadamente obtidas a partir da prova de outros factos.
Citando Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa (op. cit., págs. 350/351), em face da modificação formal em que se traduz o novo sistema que determina que a produção de prova tenha por objeto “temas da prova” em vez de “factos” sincopados, bem como da opção em integrar a decisão da matéria de facto na própria sentença, «segundo o método pendular que implica a ponderação conjugada de elementos de facto e de questões de direito, é de defender uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja “matéria de direito” ou “matéria conclusiva” que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso».
Com particular incidência sobre o tema, veja-se Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, [Algumas Conclusões sobre os “factos conclusivos”], disponível nesta ligação.
Relevante será, como ora se impõe, verificar se existe suporte probatório bastante para qualquer “conclusão” expressa pelo tribunal recorrido, ou seja, aferir se a matéria espelhada na fundamentação de facto corresponde à realidade do julgamento.
Entendemos, assim, que não existe fundamento para a pretendida eliminação dos factos transcritos com apoio na mera qualificação dos mesmos como “conclusivos”.
*
Analisando a pretensão subsidiária da apelante, importará verificar se os factos transcritos deverão ser considerados não provados.
Para o efeito, foi ouvida integralmente a prova produzida em audiência, porquanto a análise truncada dos depoimentos apenas nos segmentos transcritos pelas partes, retirando contexto e enquadramento aos depoimentos, dificilmente permite a formação de um juízo seguro quanto à prova ou não prova dos factos.
Vejamos, assim, cada um dos factos cujo juízo positivo a apelante pretende ver alterado, ainda que, por razões de ordem prática, os mesmos sejam agregados por critérios de conteúdo:
13. a) - A A sabia da existência e conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
13. b) - A aqui Autora é sócia, com participação no Conselho de Administração, intervindo na definição das opções de gestão da Ré, directa ou indirectamente, desde a sua constituição.
13. c) - Todos os actos praticados aqui em causa foram-no, pelo menos, com o seu conhecimento e concordância.

Tanto quanto se depreende da fundamentação da Mmª Juiz a quo, a prova em questão terá decorrido da exposta circunstância de, até 2021, não ter havido ocultação de qualquer documento ou informação pela ré, estando os “mecanismos de gestão financeira” implementados na ré no passado, em semelhantes condições.
Contudo, quer da prova documental constante dos autos, quer a partir dos diversos depoimentos colhidos, não é possível suportar um juízo positivo de prova no sentido de se poder afirmar que a autora sabia da existência e conteúdo dos contratos de financiamento em data anterior àquela em que dirigiu os pedidos de informação à administração da ré, por ocasião da convocação para a Assembleia Geral (AG) de 2021, bem como às visitas efetuadas às instalações da ré.
Não só a sucessão de comunicações correspondentes aos documentos 51 a 57 anexos à petição inicial indiciam, pelo respetivo teor, que apenas após o envio do relatório de gestão (remetido pela sócia maioritária “C”, em anexo ao documento 53, datado de 02.07.2021) a autora terá percecionado a existência dos financiamentos em questão, solicitando esclarecimentos a seu respeito, como inexiste qualquer evidência documental de comunicação, em data anterior, do teor de tais contratos, em que a autora não interveio. Por outro lado, em momento algum dos depoimentos prestados foi referido que, em qualquer ocasião, os contratos de financiamento ou o acordo de cash pool, sobejamente referidos, fossem do conhecimento da autora, inexistindo suporte probatório que alicerce o facto 13.a) nos moldes amplos em que foi tido como provado.
Daqui não resulta, porém, que o facto 13.a) deva, de forma simples, ser tido como não provado.
O legal representante da ré, “F”, referiu desconhecer ter sido solicitada qualquer informação à ré em período anterior a 2021, ocasião em que foi analisada a situação financeira da ré pela administração anterior à sua, admitindo “parecer” ter sido essa a ocasião em que a autora olhou pela primeira vez para as contas (admitindo que possa ter havido uma menor atenção por parte das anteriores administrações), referindo, porém, que não havia explicitação clara nas contas do mecanismo de “cash pooling” (o que, concluímos nós, implicaria que fossem solicitadas informações, como vieram a ser em 2021).
Por seu turno, “E”, diretor financeiro da autora desde 2007, que analisou as contas de 2020/2021 e constatou um “valor elevadíssimo” de resultados transitados, confirmou que todos os anos recebiam as contas da SPD (ré) depois das assembleias gerais, ainda que com algum atraso, o que era imprescindível para efeitos de atualização patrimonial, não tendo a autora solicitado documentos adicionais até 2020.
Resultou, assim, evidente a partir do depoimento de parte do atual presidente da comissão executiva da autora (em funções desde maio de 2022), bem como do diretor financeiro (em funções desde 2007) que o interesse pelas contas da ré, que passou pela expressa solicitação de acesso aos documentos que suportavam os financiamentos espelhados no relatório de contas, correspondeu a uma iniciativa que, por opção da autora, apenas ocorreu em 2021.
Ora, do contrato de sociedade correspondente ao documento n.º 1 anexo à petição inicial resulta documentada a constituição da ré em 1998, tendo por acionista a “I”, sob cuja égide foi criada a autora (alínea C dos factos assentes), que explora o Hospital “I” desde 1998. A autora – alínea J dos factos assentes – teve presença no conselho de administração da ré até 2020, resultando da certidão permanente da ré – doc. 4 anexo à petição inicial, Ap. 65/2007114 -, que a autora designou, a partir do ano de 2007, um vogal que integrava o Cons. de Administração (“J”), que apenas cessou funções em março de 2020 (Ap. 69/20200326) – v. ainda doc. 46 anexo à petição inicial, ata n.º41 de 09.03.2020, que tem como ponto um da ordem de trabalhos a tomada de conhecimento da renúncia da Administradora “J” ao respetivo cargo.
Nesta perspetiva, se, como concluímos, não existe prova de que a autora tinha conhecimento do conteúdo dos contratos, não é despiciendo realçar que tal apenas sucedeu porque esta não diligenciou nesse sentido, o que é relevante, sob pena de ficar sugerida uma qualquer ocultação de informação. A administração em funções em 2021, ao contrário do que sucedeu até então, manifestou interesse em participar na AG e solicitou todas as informações que considerou necessárias para o efeito, tendo, a partir desse momento, conhecimento do teor dos contratos, pelo que importará considerar provada uma versão restritiva do facto, dada a sua relevância no contexto da ação.
Assim, concordando parcialmente com o alegado pela apelante, considera-se que não existe qualquer prova do efetivo conhecimento pela autora da existência e conteúdo dos contratos celebrados pela ré na genérica dimensão sugerida pela redação do facto, ainda que tal apenas suceda por nenhuma iniciativa ter aquela desencadeado no sentido de os conhecer (nenhuma testemunha da autora foi capaz de afirmar a existência de uma ocultação de informação, quando pedida).
O mesmo raciocínio se aplica aos factos 13.b) e 13.c).
Com efeito, não é, em momento algum, questionado pela autora que esta haja sido convocada para cada uma das AGs que foram tendo lugar ao longo dos anos, ou notificada das atas que continham o teor das deliberações nelas sucessivamente tomadas, resultando do já referido depoimento do diretor financeiro da autora que os relatórios de gestão e contas eram remetidos anualmente, sendo esse o documento que permitia à autora, querendo, aceder à informação relevante associada ao destino dos lucros de cada exercício que, conforme havia sido deliberado, não eram distribuídos. Assim, no que respeita aos factos 13.b) e 13.c), conforme já se referiu em relação ao facto 13.a), a base de convicção a considerar não tem outro suporte que não a participação que a autora detém na ré, o conhecimento que terá tido (porque nenhuma irregularidade a esse respeito foi mencionada) quanto às AGs convocadas ao longo dos anos e às deliberações nelas tomadas, sendo qualquer outro conhecimento uma presunção infundada, apenas se podendo concluir que não houve manifestação de interesse na obtenção desse conhecimento.
Tais elementos, bem como o que resulta espelhado na já mencionada certidão permanente da ré, impõe que os factos em questão vejam a sua redação reformulada, de modo a reproduzirem aquela que é a realidade da prova produzida.

Decide-se, assim, esclarecendo, restringindo e alterando os factos em questão, considerar provado que:
13. a) - No ano de 2021, ocasião em que solicitou informação acrescida face ao teor do relatório de gestão, a autora soube da existência e do conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
13.b) A Autora é sócia da ré desde a sua constituição, com participação, entre 2007 e 2020, no Conselho de Administração, tendo possibilidade de conhecer e interferir nas opções de gestão da Ré.
13.c) Todas as deliberações tomadas em assembleias gerais da ré foram do conhecimento da autora, que tinha acesso a informação relativa aos atos praticados no exercício da gestão da ré.

Reclama ainda a apelante que sejam considerados não provados os seguintes factos, que serão igualmente apreciados de forma conjunta:
14. a) - A existência, conteúdo e contrapartes negociais dos títulos que serviram de base a movimentação de capitais da Ré a favor de sociedades do Grupo “C”, ocorreu com justificação para os mesmos no contexto da boa administração da Ré.
15. g) - À semelhança dos financiamentos, de acordo com o estabelecido nas Cláusulas 10 e 11 do Anexo I do Intra-Group Cash Pool Agreement, o capital mutuado vence juros remuneratórios, a calcular, em cada dado momento, em consonância com um princípio de arm’s length e política de preços de transferência e tendo por base a Euribor, como taxa de referência, e os spreads previstos nesse instrumento.
15. h) - Quer os mútuos em concreto celebrados com a sua sócia “C”, quer o Intra-Group Cash Pooling em que participa, são onerosos, sendo o capital disponibilizado pela Ré devidamente remunerado (no caso dos financiamentos com uma taxa fixa de 3%).
15. i) - Todos obedecendo a princípios de arm’s length, achando-se a acordada remuneração dentro das normais condições de mercado (que, nos anos em referência, particularmente até ao presente ano, vêm sendo dominadas, por um cenário de taxas de referência negativas).
15. j) - Além de efectuada numa base de arm’s length, e como tal válidos por cumprirem o escopo lucrativo da Ré, enquadrando o respectivo objecto e finalidade, os financiamentos concedidos, bem como o mecanismo de cash pooling, obedecem ainda ao interesse próprio da Ré, enquanto parte integrante do Grupo “C”.
16. b) - A opção pela não distribuição de dividendos pelos sócios, agora, como em transactos anos, tem justificação objectiva da vontade manifestada da Ré e da sua sócia maioritária em reforçar a sua própria robustez financeira e acautelar perdas futuras. Especialmente no cenário socioeconómico de incerteza vivido recente e actualmente, dominado por uma já fortemente sentida crise económica mundial, com crises de procura e de fornecimento, e de inúmeros factores de incerteza de diversa ordem.
16. c) - Em que a Ré pretende privilegiar uma estratégia de longo prazo, com o reforço da solidez da sociedade Ré, que expectavelmente terá o benefício de proteger e valorizar as participações sociais detidas pelos sócios, incluindo a aqui Autora.
16. l) - Tais preocupações, partilhadas pela Administração da ora Ré, subscritas pela deliberação tomada em Assembleia Geral, fundamentaram a decisão dos sócios em não proceder à distribuição de montante (concretamente, de 80%) da verba registada nas contas sob Resultados Transitados
16. m) - Decorrendo prejuízos para a Ré, caso fosse deliberada (ou determinada) a distribuição desse montante.
18. h) – Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reserva legais.

Importa, mais uma vez, reafirmar que a ação proposta não tem em vista sindicar as opções de gestão desenvolvidas pela administração da ré ou apreciar a validade/invalidade de quaisquer concretas medidas de gestão, do mesmo modo que não incide sobre a validade dos contratos celebrados, sendo as opções de gestão que se concretizaram na celebração de contratos de financiamento, ou na subscrição dos instrumentos denominados como “intra group cash pool agreement”, relevantes apenas na medida em que possam evidenciar o indireto interesse da acionista maioritária em impedir a distribuição dos resultados transitados, pretendida pela apelante.
No que respeita à concreta factualidade que ora se aprecia, analisada a prova produzida, impõe-se considerar que os únicos elementos probatórios existentes correspondem:
- ao conteúdo dos contratos, que foram juntos aos autos em versão traduzida e não impugnada em 21.04.2023 e 14.11.2023 (neste caso, em relação ao acordo de cash pool, relevante para evitar o uso de expressões como “arm’s length”, expurgada, e bem, dos documentos traduzidos);
- ao acervo de atas de assembleias gerais da ré, que correspondem aos documentos 7 a 53, 55, 61, 62, 65 e 66 anexos à petição inicial, ainda que com particular relevância a partir do documento 28, correspondente à ata n.º 23, AG de 03.10.2006, última ocasião em que houve distribuição de dividendos da ré (ponto único da ordem de trabalhos), o que apenas voltou a acontecer na AG de 03.12.2021 (doc. 62) em relação ao exercício de 2020 e na AG de 31.03.2022 (instrumento notarial correspondente ao doc. 65), em relação ao exercício de 2021; documento n.º1 anexo à contestação, correspondente à ata de 11.03.2022, que deliberou distribuir 80% dos resultados relativos ao exercício de 2021 na proporção de 80% aos respetivos acionistas;
- ao conteúdo das comunicações trocadas entre a autora e a administração da ré – documentos 51 a 57 e 59 anexos à petição inicial;
- ao conteúdo da ata de AG em que foi votada a deliberação sob impugnação, que contém os fundamentos aduzidos por cada uma das acionistas para justificar a razão de ser da deliberação proposta ou do sentido de voto – doc. 69, anexo à petição inicial;
- ao teor do documento 9 anexo ao requerimento de 21.04.2023, correspondente ao extrato de conta corrente de cash pool;
- ao teor do documento 3 anexo à contestação – “relatório & contas” 2021 da ré;
- ao teor do documento anexo ao requerimento de 28.11.2023 (evolução da taxa de referência Euribor entre abril de 2020 e fevereiro de 2022), corroborado, em relação ao período mais amplo, por informação oficial obtida em https://www.euribor-rates.eu/pt/graficos-euribor/;
- aos depoimentos de:
o “E”, diretor financeiro da autora, que explicou, de forma clara, o modo como a conjuntura nacional e internacional em nada impactam a atividade da ré, dado o específico ramo de negócio (tratamento a doentes hemodialisados, com pagamento dos serviços assegurado pelo SNS), referindo, com relevância, que o risco da ré “é quase o risco da nação”, sendo a influência da inflação no preço de equipamentos, custos com fornecedores ou trabalhadores algo que não se reflete na situação financeira da empresa quando se tem em perspetiva o nível de capitais próprios da ré; mencionou ainda o valor que a ré tinha em caixa à data da deliberação (que situou em 150.000,00 €)
o “D”, ROC da ré desde o exercício de 2021 e fiscal único da sociedade, que explicou a natureza dos acordos de “cash pool” e a sua forma de remuneração por indexação à euribor a um mês, aludindo ainda à taxa de remuneração dos contratos de financiamento; aludiu à ausência do montante em caixa e às implicações de um eventual pagamento da verba de 80% dos resultados transitados (cerca de 15 milhões), que implicaria financiamento bancário, com os respetivos custos; expôs ainda o impacto da conjuntura internacional na atividade da empresa, a que deu pouca relevância, referindo que o risco da ré assenta em possíveis alterações legislativas, por via da alteração do preço regulado do serviço prestado pela ré (que, pela especificidade da sua atividade, dependendo de forma total do preço do tratamento, não sofre grande impacto associado a questões macroeconómicas), não sofrendo com a alteração das taxas de juro, por não se encontrar alavancada em dívida, sendo o aumento generalizado de preços ou custos o efeito normal de mercado, sem afetação específica sobre a empresa; aludiu ainda à manutenção das ratios de autonomia financeira como sendo, à cautela, uma boa decisão; expôs ainda os reflexos da indexação à Euribor em períodos de taxa negativa, as razões para as diferenças de spread consoante esteja em causa o financiamento obtido ou concedido pelas subsidiárias; a possibilidade de resgate dos montantes de cash pool (que vinha de exercícios anteriores), cujo valor rondaria o 5 milhões de euros (que retificou após consulta do documento 3 anexo à contestação), as implicações da distribuição dos resultados (necessariamente a todos os acionistas); referiu ainda, com relevância, que emprestar com reembolso remunerado é uma melhor opção de gestão (do que manter o valor imobilizado), não lhe cabendo apreciar se há ou não melhores opções de gestão;
o “G”, auditor financeiro, ROC e fiscal único da ré entre 2014 e 2020, que referiu achar que já existiam os “intra group cash pool agreements” em 2014, a natureza e frequência desse tipo de instrumentos, a sua forma de remuneração (parâmetros de mercado, indexação à Euribor, curta duração), confirmando que não deixa de ser tido como remunerado se a taxa euribor é zero.

Estes são os únicos elementos de prova de que poderia socorrer-se o tribunal recorrido para fundar a sua convicção, não só porque nenhuma outra prova se produziu quanto a esta matéria, como também porque nenhum dado acrescido ou fundada presunção judicial são mencionados na motivação da convicção do tribunal.
Concordamos com o tribunal recorrido no que respeita ao entendimento de que nenhum depoimento viu ferida a sua credibilidade, não existindo sequer particular dissenso entre os depoimentos das testemunhas da autora e da ré.
Nesta perspetiva, em relação aos factos que ora se apreciam, as únicas afirmações que, com rigor, se podem fazer, refletindo-se em prova efetiva de factos, passam pela reprodução do texto dos documentos de financiamento na parte em que estipula a remuneração dos valores mutuados/transferidos, pela validação do valor existente em caixa quanto à liquidez da ré à data da deliberação (que a própria apelante não questiona), bem como na reprodução da parte relevante (e corroborada pela prova testemunhal e documental) do que foi consignado pela acionista maioritária em suporte do seu voto contrário à deliberação, sendo inviável afirmar, como o fez o tribunal recorrido (por inexistir prova no sentido positivo ou negativo), se as decisões foram justificadas no contexto “de boa administração”, se obedecem ao interesse próprio da ré ou se a opção de não distribuição de dividendos foi orientada por quaisquer particulares objetivos, quando tal factualidade não tem suporte probatório, sendo, em parte, irrelevante para a solução de direito (não só pelas razões já sobreditas, como pela circunstância de as opções anuais de não distribuição dos lucros de cada exercício não carecerem de ser justificadas neste contexto, encontrando-se estabilizadas as deliberações que as suportaram).
Já a afirmada ausência de efetiva remuneração ou pagamento de remuneração dos contratos de financiamento, enquanto boa ou má opção de gestão, não constitui matéria relevante para a ação, sendo a qualificação a dirigir à natureza dos contratos como remunerados ou não remunerados algo que apenas se pode extrair do texto dos mesmos, sobressaindo da prova produzida que a qualificação do contrato como remunerado não se confunde com a efetiva rentabilidade do mesmo (v. depoimento de “G”).

Impõe-se, por isso, dando parcial razão à apelante:
- eliminar da matéria de facto provada a alínea 14.a), por não existir suporte probatório para extrair qualquer conclusão (positiva ou negativa) quanto à avaliação da “bondade” da administração desenvolvida, que passará a ter-se por não provado (14. a) - A existência, conteúdo e contrapartes negociais dos títulos que serviram de base a movimentação de capitais da Ré a favor de sociedades do Grupo “C”, ocorreu com justificação para os mesmos no contexto da boa administração da Ré.);
- alterar a redação dos factos 15.g), 15.h) e 15.i) limitando a sua redação à reprodução do que, nesse sentido, resulta do texto dos documentos e foi confirmado pelos sobreditos depoimentos, nos termos seguintes:
15.g (a renumerar) – De acordo com o estabelecido nas cláusulas 10 e 11 do “Acordo de Cash Pool Integrado” com data de 22.04.2020 (9 e 10 do acordo de 07.02.2022), celebrado entre “C” Treasury AB, como Titular da Conta Principal e filiais do grupo, entre as quais a ré, os juros sobre os valores a receber e a pagar decorrentes do Cash Pool são calculados em condições normais de mercado e em conformidade com a política do grupo em matéria de preços de transferência em vigor, representando os juros o justo valor de mercado e calculados em condições de plena concorrência, vencendo, no acordo de 2020, todos os adiantamentos, emprestados ou recebidos, juros à taxa Euribor a 1 mês (com mínimo de zero no acordo de 2022), acrescida da margem estabelecida no Anexo 1, que prevê que a margem aplicável aos adiantamentos será de 3,00 pontos percentuais se o titular da conta principal for o mutuante e 0,35 pontos percentuais se o titular da conta principal for o mutuário, sendo esta margem revista trimestralmente e ajustada nos termos fixados no referido anexo (anexo 3 no acordo de 2022).
15.h) (a renumerar) – Os contratos de financiamento celebrados entre a ré a sua sócia “C”, em declarado empréstimo em apoio à tesouraria desta última, em 01.07.2015, 22.07.2015, 04.04.2016, 02.07.2019, 23.12.2019, 05.04.2020 e 21.11.2021, preveem, no seu artigo 2º, o acordo das partes em remunerar o mútuo com vencimento de juros à taxa de 3% ao ano, calculados e pagos semestralmente, ficando sujeitos, segundo o art.º 3º, a um prazo máximo de 4 anos, nos termos constantes dos documentos 1 a 7 anexos ao requerimento de 21.04.2023, cujo restante teor se tem por reproduzido.
15.i) (a renumerar) – A taxa Euribor de referência para cálculo de juros dos acordos mencionados em 15.g), entre 2020 e início de 2022, tem sido dominada por um cenário de valores negativos.
- eliminar, por corresponder a uma conclusão inútil (o interesse próprio da ré só seria relevante caso se discutisse a validade do ato) o facto 15.j) (Além de efectuada numa base de arm’s length, e como tal válidos por cumprirem o escopo lucrativo da Ré, enquadrando o respectivo objecto e finalidade, os financiamentos concedidos, bem como o mecanismo de cash pooling, obedecem ainda ao interesse próprio da Ré, enquanto parte integrante do Grupo “C”).
- considerar não provados os factos 16.b) e 16.c), por, à luz do já exposto, inexistir qualquer suporte probatório que alicerce a sua afirmação positiva, enquanto parte do objetivo que presidiu à opção de não distribuição total (e não meramente parcial) de dividendos em cada momento, desde 2007, não existindo prova de que a robustez financeira ou a atividade da empresa fossem beliscadas pelos fatores ali mencionados, sendo os factos em questão mera reprodução do que a esse respeito consta espelhado no relatório de gestão, estando apenas provado o teor do documento, que, na parte transcrita, será igualmente eliminado, não corroborando qualquer facto – (16. b) - A opção pela não distribuição de dividendos pelos sócios, agora, como em transactos anos, tem justificação objectiva da vontade manifestada da Ré e da sua sócia maioritária em reforçar a sua própria robustez financeira e acautelar perdas futuras. Especialmente no cenário socioeconómico de incerteza vivido recente e actualmente, dominado por uma já fortemente sentida crise económica mundial, com crises de procura e de fornecimento, e de inúmeros factores de incerteza de diversa ordem.16. c) - Em que a Ré pretende privilegiar uma estratégia de longo prazo, com o reforço da solidez da sociedade Ré, que expectavelmente terá o benefício de proteger e valorizar as participações sociais detidas pelos sócios, incluindo a aqui Autora).
- alterar a redação do facto 16.l), de modo a reproduzir aquela que é a justificação para a não distribuição do montante da verba registada nas contas sob “Resultados Transitados” que se encontra espelhada na ata da assembleia de geral de 24.08.2022, associada à liquidez ou situação de caixa, sendo essa mesma justificação a única que foi reafirmada em audiência de julgamento como justificada, passando a ter a seguinte redação (após renumeração): “A decisão da sócia maioritária de não proceder à distribuição da percentagem de 80% da verba registada nas contas sob Resultados Transitados, pretendida pela autora no montante de 15.300.000,00 EUR, foi fundamentada no facto de resultar da análise da documentação financeira e contabilística da Sociedade que não existem fundos disponíveis para que a distribuição pudesse ter lugar”

Pretende ainda, a apelante que seja considerado não provado o ponto 16.m) – “Decorrendo prejuízos para a Ré, caso fosse deliberada (ou determinada) a distribuição desse montante”
Contudo, como resulta dos elementos probatórios já mencionados, tendo em conta o valor reduzido que a ré tinha em caixa à data da deliberação e considerando, como foi dito pelas já identificadas testemunhas, que o valor em cash pool, ainda que resgatado, não permitiria assegurar o pagamento da percentagem de 80% dos resultados transitados (a todos os acionistas), correspondente a cerca de 15 milhões de euros, implicando o recurso a financiamento bancário, com custos para a ré, há efetiva prova de que a deliberação de distribuição desse montante acarretaria prejuízos, ainda que impondo o esclarecimento da razão de ser desses prejuízos.
A argumentação da apelante no sentido de ser impossível ou contraditório afirmar que aquela distribuição pudesse causar prejuízos (conclusões GG a JJ), não tem por base a prova produzida, mas antes um conjunto de ilações que a apelante extrai a partir da atuação desenvolvida na gestão da ré ao longo dos múltiplos anos em que foi deliberada a não distribuição de dividendos, que redundou na acumulação do valor na rubrica de resultados transitados. Contudo, a base para a presunção parte da premissa, que temos por falível, de que, por se tratar de lucro acumulado, a sua distribuição não pode causar prejuízo. Para tal asserção ser verdadeira, seria necessário que aquele valor estivesse disponível em caixa, traduzindo liquidez da ré, olvidando que a não distribuição de lucros ao longo dos vários exercícios teve por base deliberações válidas (jamais questionadas pela autora), não se confundindo, por outro lado, o benefício (ou ausência dele) que a ré eventualmente obtém com as suas opções de alocação dos valores acumulados, com o prejuízo que, na concreta data em que a questão foi colocada a deliberação dos acionistas, seria produzido na situação financeira da ré, do mesmo modo que não se poderá confundir a disponibilização de valores na ordem de 1 milhão, 5 milhões ou até 6 milhões de euros, com o pagamento aos acionistas de um valor que ascenderia a cerca de 15 milhões de euros.

Assim, alterando a redação do facto, o atual ponto 16.m) dos factos provados passará a ter a seguinte redação: Caso fosse deliberada ou determinada a distribuição do montante de 80% da verba inscrita sob a rubrica de resultados transitados, a ré teria que recorrer a financiamento, com os custos e encargos que lhe estão associados.

Pretende a apelante que seja considerado não provado o facto identificado na alínea 18.h) – “Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reserva legais
Suporta tal pretensão na circunstância de, entre 2007 e 2019, a autora não ter participado de tais deliberações, ou votado favoravelmente nas AGs que tiveram lugar nesse período temporal, pelo que, caso não se entenda que o facto deva ser tido como não provado, deverá ser reformulada a sua redação, esclarecendo-se que a autora não esteve presente, nem votou favoravelmente, nem deliberou aprovar a destinação desses lucros para a celebração de mútuos ou financiamentos em benefício da acionista maioritária.
Importa, contudo, nesta parte, reconhecer razão à apelada. O facto em questão é o espelho das atas que correspondem aos documentos n.ºs 30, 32 a 38, 40 e 41, 43 a 45 e 48 , anexos à petição inicial, sendo o único propósito do facto o de afirmar, tal como é inequívoco, o destino sucessivamente dado aos lucros de exercício ao longo dos anos, com base em deliberação unânime dos sócios “presentes”, sendo esse o teor do facto origem – artigo 43º da contestação – que, sem qualquer outra menção, terá que se considerar provado.

Pretende ainda a recorrente – conclusão NN – que seja dado como não provado que:
a. A Autora conhecesse ou tivesse, direta ou indiretamente, manifestado a sua concordância com os contratos de mútuo e de Intra-Group Cash Pool Agreement.
b. A Ré tenha recebido alguma remuneração a título de juros pela execução do contrato de mútuo e pelo Intra-Group Cash Pool Agreement
c. As condições de remuneração previstas nos contratos de mútuo e no Intra-Group Cash Pool Agreement fossem competitivas e alinhadas com as condições de mercado aplicáveis a contratos daquela natureza
Tal pretensão é infundada, quer – em relação ao ponto a. - por efeito do já exposto quanto à manutenção do facto provado sob o ponto 13.a., quer – em relação aos pontos b. e c. - por se tratar de matéria que, ainda que tivesse sido objeto de prova (que não foi, dada a sua não inclusão entre os temas da prova), não se revestiria (na sua vertente positiva ou negativa) de utilidade para solução jurídica da causa, sendo as opções de gestão, bem como a eventual existência de vícios que afetem a validade dos contratos, matéria externa ao objeto da causa.

B.2. Factos a aditar à matéria de facto provada
Pretende a apelante – conclusão OO – que sejam aditados ao elenco de factos provados um conjunto de factos que tem por relevantes para a decisão da causa.
Contudo, o próprio fundamento de relevância invocado pela apelante afasta a sua utilidade. Se a relevância é suportada na circunstância de a recorrida ter mutuado ao Grupo “C” uma quantia superior a 6 milhões de euros de forma gratuita, a temática é novamente desviada do objeto do litígio, para se centrar nas opções de gestão que, por decisão de acionista maioritária, foram tomadas pela ré.
Não só os factos indicados na conclusão OO são externos ao objeto da causa e à incidência do julgamento que aqui se questiona, sendo inúteis (o que torna injustificada a apreciação do recurso nessa parte), como se trata de matéria que nunca poderia ser dada como provada, por ausência de suporte bastante para o efeito (como ocorre com o ponto IV).
Decai, assim, a conclusão OO.
*
Será, sem necessidade de particular fundamentação, eliminado do elenco de factos não provados o seu n.º3 (não provado: “Que foi exercido em abuso o voto da “C” e que se verificou violação dos deveres de lealdade, ofensa do direito ao lucro e/ou conflito de interesses”), por corresponder a indiscutível matéria de direito, que decide a causa.
*
Conclui-se pela parcial procedência do recurso nesta parte.
*
III.2. Por efeito do julgamento em 1ª instância (eliminadas as duplicações), bem como por efeito do decidido em II.1.B., é a seguinte a matéria de facto provada e não provada a considerar, devidamente renumerada e reorganizada:
1) A Autora é acionista da Ré e votou favoravelmente à proposta de distribuição de 80% dos lucros retidos na Ré constantes da rúbrica “resultados transitados” relativos ao exercício de 2021 da Ré, lavrada sob a ata n.º 49 que veio a ser rejeitada pela deliberação impugnada- Assembleia Extraordinária da Ré de 24-8-2022.
2) A Autora é uma sociedade comercial anónima constituída em 18/05/1998 sob a égide da “I”.
3) A Autora foi criada pela “I” com o objetivo de dotar o Hospital da “I”, sito na Rua (…), em Lisboa (doravante, abreviadamente, H…), de uma gestão empresarial concentrada em áreas clínicas específicas e, inclusivamente, em complemento do Sistema de Saúde Nacional
4) Nessa qualidade, a Autora explora e administra o H…, nos termos do contrato de cessão de exploração outorgado por escritura de 3/8/1998.
5) A Ré, por seu turno, é uma sociedade anónima constituída em 1988, com objeto social primário na prestação de tratamentos de diálise, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Predial e Comercial da Amadora.
6) A “C”, por sua vez, integra e é controlada pelo Grupo “C”: um grupo de sociedades fundado na Suécia em 1991 e centrado na prestação de tratamentos para doenças renais, com destaque para a hemodiálise, que ocupa atualmente um lugar cimeiro a nível internacional no seu ramo de atividade, estando presente em 24 países e aí operando em 441 clínicas. O Grupo “C” estabeleceu-se em Portugal nos anos 80 – então sob a denominação comercial de “K” – tendo vindo a destacar-se na prestação de tratamentos de hemodiálise e a expandir a sua atividade através da aquisição da propriedade ou dos direitos de exploração de diversas clínicas por todo o país.
7) Em 21/6/1995, a Ré celebrou com a Autora um contrato de concessão de exploração, nos termos do qual esta última cedia à primeira os direitos de exploração do Centro de Hemodiálise do H..., o qual foi renovado em 15/6/2002, e novamente em 27/12/2012, pelo período de 10 anos, findo o qual contrato caducará.
8) Desde a constituição era, nesse período, sócia da Ré, num primeiro momento, a “I”, e, depois, por substituição desta, já a Autora, com presença no Conselho de Administração da Ré.
9) A Autora é sócia da ré desde a sua constituição, com participação, entre 2007 e 2020, no Conselho de Administração, tendo possibilidade de conhecer e interferir nas opções de gestão da Ré (inclui redação da al. J) dos factos assentes, evitando duplicação).
10) A “C” não detinha, até 2000, qualquer participação na Ré.
11) As deliberações de sócios da Ré tomadas em anos e exercícios em anteriores ao da deliberação impugnada em matéria de distribuição de resultados/lucros, nunca foram impugnadas pela Autora e pela “C”.
12) A distribuição dos lucros provenientes da atividade da Ré, desde a constituição da Ré em 1988 e até 2005, nunca fora deliberada, ou sequer levada à ordem de trabalhos das sucessivas AGs, conforme resulta das atas n.º 1, datada de 20/4/1988, a n.º 21, datada de 3/4/2004.
13) Entre 1988 e 2005, não foi proposta ou pelos sócios deliberada qualquer distribuição dos lucros dos respetivos exercícios.
14) Nos anos em que houve deliberação sobre os mesmos, foram, por decisão unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados à conta de Resultados Transitados.
15) Em 2006, foi unanimemente deliberada pelos sócios a distribuição de dividendos no montante de € 515.805,00 (quinhentos e quinze mil oitocentos e cinco euros), i.e., com o voto da sócia maioritária, “C” (sem o que não teria sido aprovada a deliberação).
16) Entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes, sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reservas legais.
17) Em 2021, foi unanimemente deliberada pelos sócios presentes – também aqui com o voto da sócia maioritária, “C” − a distribuição de dividendos no montante de € 1.264.790,22 (um milhão duzentos e sessenta e quatro mil setecentos e noventa euros e vinte e dois cêntimos) proposta pela Autora.
18) Pode ler-se na Ata nº 46 dessa Assembleia (cfr. Documento nº 62 junto à Petição Inicial): “[…] tomou a palavra a representante da accionista “C”, Lda., tendo referido que, apesar de a Sociedade ter efectuado recentemente investimentos significativos, nomeadamente com a mudança de instalações da clínica da (…), e apesar ainda da incerteza quanto à actividade futura da Sociedade, em virtude do contexto de pandemia em que nos encontramos, tendo em conta (i) a situação financeira e a patrimonial da Sociedade e (ii) o facto de não se perspectivarem investimentos significativos num futuro próximo, considera aceitável a proposta de aplicação de resultados apresentada na presente Assembleia pela accionista “A, S.A.”.
19) No ano subsequente (em 2022, sobre o exercício de 2021), foi, por proposta da Administração da Ré, unanimemente (ou seja, com o voto da sócia maioritária, “C”) deliberada em 31-3-2022 pelos sócios a distribuição de dividendos no montante de 80% dos lucros.
20) Nessa ocasião foi unanimemente deliberada pelos sócios presentes a distribuição de dividendos no montante de € 1.413.752,04 (um milhão quatrocentos e treze mil setecentos e cinquenta e dois euros e quatro cêntimos – documento 65 anexo à petição inicial e ata n.º 145, correspondente ao documento n.º 1 anexo à contestação.
21) No ano de 2021, ocasião em que solicitou informação acrescida face ao teor do relatório de gestão, a autora soube da existência e do conteúdo dos contratos de financiamento celebrados pela R.
22) Em 3-9-2021 e 8-8-2022 a pedido da A., esta deslocou-se, na presença de colaboradores da Ré, para esclarecimentos e solicitações.
23) A Autora, a partir de 2021, encetou vários pedidos de informação e disponibilização de elementos à Ré, a que a Ré – apesar da sua extensão e detalhe – deu contínua e integral resposta.
24) A Ré deu resposta a todos os pedidos que lhe foram dirigidos pela Autora, quer de prestação de informações, quer de disponibilização de elementos, com acesso aos mesmos nas instalações da Autora,
25) Em 20-4-2022 realizou-se Assembleia Geral da Ré com objeto que consta dos doc. 66 e 69 juntos à petição inicial.
26) A A não votou desfavoravelmente qualquer das duas deliberações espelhadas nos documentos referidos em 25.
27) Todas as deliberações tomadas em assembleias gerais da ré foram do conhecimento da autora, que tinha acesso a informação relativa aos atos praticados no exercício da gestão da ré.
28) Entre a Ré e a “C”, na qualidade de mutuantes e mutuária, foram celebrados três Contratos de Mútuo, respetivamente, datados de 2 de julho de 2019, 23 de dezembro de 2019 e 5 de abril de 2020, nos montantes, respetivamente, de € 10.000.000,00 (dez milhões de euros), € 2.750.000,00 (dois milhões setecentos e cinquenta mil euros) e € 1.100.000,00 (um milhão e cem mil euros).
29) Que são, por sua vez, renovações de outros três Contratos de Mútuo, respetivamente datados de 1 de junho de 2015, 22 de dezembro de 2015 e de 4 de abril de 2016, em que o capital não chegou a ser reembolsado pela “C”.
30) Quanto a todos, foi acordado um prazo de maturidade e reembolso do capital de quatro anos e uma taxa de juro remuneratório de 3%.
31) A par destes, está também vigor um outro financiamento oneroso com a sociedade “L, S.A.”, celebrado em 21 de novembro de 2021, no montante de € 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil euros), com iguais condições (designadamente, com uma taxa de juro remuneratória fixa de 3%).
32) Encontra-se ainda em vigor o Intra-Group Cash Pool Agreement, celebrado a 22 de abril de 2020, entre diversas sociedades do Grupo “C”, com efeitos desde 1 de Abril de 2019 (quanto à maioria das sociedades contratantes) e de 24 de Maio de 2019 (apenas quanto à “C” Poland), destinado à gestão da tesouraria das diversas sociedades do Grupo “C”, em que assume o papel de titular da conta principal (“Master Account Holder”) a “C” Treasury AB.
33) De acordo com o estabelecido nas cláusulas 10 e 11 do “Acordo de Cash Pool Integrado” com data de 22.04.2020 (9 e 10 do acordo de 07.02.2022), celebrado entre “C” Treasury AB, como Titular da Conta Principal e filiais do grupo, entre as quais a ré, os juros sobre os valores a receber e a pagar decorrentes do Cash Pool são calculados em condições normais de mercado e em conformidade com a política do grupo em matéria de preços de transferência em vigor, representando os juros o justo valor de mercado e calculados em condições de plena concorrência, vencendo, no acordo de 2020, todos os adiantamentos, emprestados ou recebidos, juros à taxa Euribor a 1 mês (com mínimo de zero no acordo de 2022) acrescida da margem estabelecida no Anexo 1, que prevê que a margem aplicável aos adiantamentos será de 3,00 pontos percentuais se o titular da conta principal for o mutuante e 0,35 pontos percentuais se o titular da conta principal for o mutuário, sendo esta margem revista trimestralmente e ajustada nos termos fixados no referido anexo (anexo 3 no acordo de 2022).
34) Os contratos de financiamento celebrados entre a ré a sua sócia “C”, em declarado empréstimo em apoio à tesouraria desta última, em 01.07.2015, 22.07.2015, 04.04.2016, 02.07.2019, 23.12.2019, 05.04.2020 e 21.11.2021, preveem, no seu artigo 2º, o acordo das partes em remunerar o mútuo com vencimento de juros à taxa de 3% ao ano, calculados e pagos semestralmente, ficando sujeitos, segundo o art.º 3º, a um prazo máximo de 4 anos, nos demais constantes dos documentos 1 a 7 anexos ao requerimento de 21.04.2023, cujo restante teor se tem por reproduzido.
35) A taxa Euribor de referência para cálculo de juros dos acordos mencionados em 33), entre 2020 e início de 2022, tem sido dominada por um cenário de valores negativos.
36) A decisão da sócia maioritária de não proceder à distribuição da percentagem de 80% da verba registada nas contas sob Resultados Transitados, pretendida pela autora no montante de 15.300.000,00 EUR, foi fundamentada no facto de resultar da análise da documentação financeira e contabilística da Sociedade que não existiam fundos disponíveis para que a distribuição pudesse ter lugar.
37) Caso fosse deliberada ou determinada a distribuição do montante de 80% da verba inscrita sob a rubrica de resultados transitados, a ré teria que recorrer a financiamento, com os custos e encargos que lhe estão associados.

FACTOS NÃO PROVADOS
a. A proposta de acordo apresentada pela A contava com a disponibilidade da tesouraria da Ré para proceder à distribuição do valor atinente a Resultados Transitados
b. A existência, conteúdo e contrapartes negociais dos títulos que serviram de base a movimentação de capitais da Ré a favor de sociedades do Grupo “C”, ocorreu com justificação para os mesmos no contexto da boa administração da Ré.
c. A opção pela não distribuição de dividendos pelos sócios, agora, como em transatos anos, tem justificação objetiva da vontade manifestada da Ré e da sua sócia maioritária em reforçar a sua própria robustez financeira e acautelar perdas futuras. Especialmente no cenário socioeconómico de incerteza vivido recente e atualmente, dominado por uma já fortemente sentida crise económica mundial, com crises de procura e de fornecimento, e de inúmeros fatores de incerteza de diversa ordem.
d. Em que a Ré pretende privilegiar uma estratégia de longo prazo, com o reforço da solidez da sociedade Ré, que expectavelmente terá o benefício de proteger e valorizar as participações sociais detidas pelos sócios, incluindo a aqui Autora.

2. fundamentação de direito.
Em suporte da pretendida revogação da decisão recorrida, alega a apelante ter imputado à deliberação da Assembleia Geral (AG) da ré de 24.08.2024 um conjunto de vícios que mereceram tratamento jurídico incorreto, pretendendo reverter a decisão.
Importa analisar cada um dos erros de direito apontados à decisão do tribunal a quo.

A. Nulidade da deliberação por conflito de interesses – art.º 384º, n.º 6, al. d) do CSC.
Entende a apelante que a acionista maioritária, ao votar uma matéria na qual se visa colocar em crise um seu interesse próprio e exclusivo, que se traduz em reter os lucros transitados na sua esfera jurídica, ou seja, manter os cerca de 20 milhões de euros retidos em financiamentos concedidos pela ré à própria acionista que exerce o direito de voto, exerce direito de voto em conflito de interesses, o que não lhe era permitido, afetando a validade da deliberação.
Dispõe o preceito legal invocado que um accionista não pode votar, nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando a lei expressamente o proíba e ainda quando a deliberação incida sobre: d) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o accionista, estranha ao contrato de sociedade.

Recordemos, por ser relevante, que a proposta de deliberação, que correspondia ao ponto único da ordem de trabalhos da AG de 24.08.2024 – doc. 69 anexo à petição inicial, parcialmente reproduzido no ponto 1 dos factos provados -, tinha o seguinte teor: “Distribuição aos acionistas de valor igual a pelo menos 80% (oitenta por cento) da verba de € 19.131.492,01, evidenciada na conta de Resultados Transitados das contas de exercício de 2021”.
Esta proposta de deliberação obteve o voto favorável da autora, que detém 14,90% do capital da ré, e o voto desfavorável da acionista maioritária “C”, com detém 82,24% desse capital (distribuição de capital da empresa ré referido na p. 49 do relatório de contas de 2021, correspondente ao documento 3 anexo à contestação).
A decisão recorrida concluiu não vislumbrar conflito de interesses em face do respeito pela integridade financeira da ré e rentabilidade máxima da atividade e capitais, exponenciação e possibilidade de investimento (com perspetivas de curto, médio e longo prazo), daí decorrendo valorização das participações sociais da ré, da “C”, e da Autora.
Tal como já se citou na decisão recorrida, em anotação ao artigo 384º do CSC, Coutinho de Abreu [Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume VI, (Artigos 373º a 480º), p. 130] refere que, em relação a um concreto assunto sujeito a deliberação, “um sócio está em conflito de interesses com a sociedade quando no caso haja divergência de princípio entre o interesse (objetivamente avaliado) do sócio e o interesse (objetivamente avaliado também) da sociedade – interesse comum a todos os sócios enquanto tais -, convindo, portanto, ao sócio uma deliberação orientada em determinado sentido e à sociedade uma deliberação orientada em sentido diferente”, explicando que “a lei visa, assim, neutralizar o perigo de adoção de deliberações contrárias ao interesse social por determinação ou influência do voto do sócio portador de interesse particular divergente”.
Ao referir-se o sentido divergente dos interesses do sócio votante e da sociedade (entendida como o conjunto formado pelo votante e todos os demais sócios, sendo estes, presumivelmente, os que estarão movidos pelo interesse comum) não pretende a lei reportar-se a outra incidência que não a da concreta proposta a deliberar.
O que importa compreender não é se o sócio em questão desenvolve dentro da sociedade um conjunto de interesses que poderão, ainda que teoricamente, conflituar com os interesses dos demais sócios ou da própria sociedade, mas sim se daquela concreta proposta de deliberação, em que o sócio expressa o seu voto, resulta benefício/prejuízo para interesses que este pretende tutelar e proteger, sobrevalorizando-os aos interesses da sociedade, sendo o risco de tal poder suceder que dá causa à negação de direito ao voto estipulada na norma.
Reportando ao caso concreto, pretendendo-se com a deliberação proposta alcançar a distribuição “aos acionistas” de valor igual a pelo menos 80% de 19.131.492,01 EUR, ou seja, um valor próximo da 15.300.000,00 €, a ser aprovada tal deliberação, a acionista maioritária passaria a titular o direito a um valor superior a 12.500.000,00 €, cabendo à autora o valor aproximado de 2.142.000,00 €.
Ou seja, de forma direta, nenhum prejuízo adviria para a acionista maioritária que, pelo contrário, passaria a deter uma avultada quantia na sua disponibilidade direta.
O que pretende a apelante defender é que esse interesse conflituante existe de forma indireta, já que o valor de Resultados Transitados, acumulado por efeito de um prolongado período temporal em que não ocorreu distribuição de dividendos, se encontra alocado, pela via de contratos de financiamento ou de instrumentos de cash pool, ao grupo de empresas a que pertence a acionista maioritária.
Ainda que não se coloquem dúvidas que a circunstância de não ter ocorrido distribuição de lucros em exercícios anteriores não seria impeditiva da opção de, num momento subsequente, se operar a distribuição dos lucros até então acumulados, essa decisão contende com fatores específicos, como seja o concreto valor disponibilizado em caixa no momento em que a pretendida distribuição é submetida a deliberação.
Se os valores de lucros sucessivamente incluídos na conta de “Resultados Transitados” foram sendo canalizados para operações de financiamento ou outras, dando causa à inexistência, em caixa, do valor cuja distribuição é pretendida - à data da deliberação, o valor em caixa aproximava-se dos 100.000,00 €, como se encontra espelhado no Relatório de Contas (doc. 3 anexo à contestação, p. 14/60) -, sabendo os sócios, de antemão, que a concretização da distribuição proposta implicaria obtenção de financiamento externo (facto 28), com prejuízo para a ré, não se antevê de que modo o exercício do direito de voto pela acionista maioritária poderia entrar em conflito com o interesse social.
Não obstante os instrumentos de cash pool autorizarem resgate imediato dos valores que, por efeito da sua celebração, são disponibilizados e retirados da caixa da ré, o valor global canalizado por esta via para o Grupo de que faz parte a acionista maioritária, como resulta da p. 50 do relatório de contas, não permitiria obter uma quantia sequer próxima dos 15 milhões necessários à distribuição pelos acionistas, proposta pela autora.
Haveria eventual conflito de interesses se a proposta de deliberação contendesse diretamente com a estabilidade dos contratos celebrados ou com os seus efeitos, matéria que não foi, no caso concreto, submetida à apreciação dos acionistas. Neste aspeto, dando razão à apelada, importará ter em conta que a deliberação impugnada não versa sobre qualquer dos instrumentos contratuais em que a apelante faz assentar o interesse conflituante da acionista maioritária.
Em suporte da verificação da invalidade da deliberação porque suportada em voto de acionista impedido de votar, alega a apelante que “não se pode aceitar que um acionista, maioritário, possa, nas circunstâncias dos presentes autos, impor um circuito fechado pelo qual mantém eternamente refugiados para si os lucros transitados, deixando-os fora da disponibilidade da sociedade”. Contudo, a factualidade provada não permite isentar a apelante de responsabilidades quando ao “circuito” em que foram sendo “refugiados” os lucros que, ao longo dos anos, se deliberou não serem distribuídos pelos acionistas.
Como resulta do facto 16., entre 2007 e 2019, foram, por deliberação unânime dos sócios presentes sucessivamente levados os lucros do exercício à conta de Resultados Transitados ou constituição de reservas legais.
Ainda que não careçamos de ocultar que a autora não esteve presente, por opção, nas AGs em que tais deliberações foram tomadas, a realidade é que, quer pela via da opção de não assegurar a sua presença nas Assembleias Gerais, quer pela via da ausência de impugnação de tais deliberações, quer ainda, por último, pela opção de nenhuma informação ou esclarecimento solicitar (até 2021) face do teor dos relatórios de gestão que, em cada ano, evidenciavam o destino dado aos lucros, permitiu a autora que a acionista maioritária deliberasse, com o poder deliberativo que lhe é conferido pela percentagem de capital que detém na ré, o destino a dar aos lucros de cada exercício que, posteriormente, em opções de gestão a que ao longo dos tempos a autora permaneceu indiferente, canalizou para os fins contratuais descritos nos factos provados.
A atuação da acionista maioritária de, usando a expressão da apelante, “refugiar” os lucros que deveria distribuir pelos acionistas num circuito fechado que apenas beneficia a própria e o Grupo em que se encontra inserida, não se confunde com qualquer interesse objetivo que aquela possa ter na deliberação concreta sob impugnação, já que com a mesma se pretende, num único momento, obter um resultado que, na dimensão em que é proposto, seria prejudicial para os interesse da sociedade ré. Em suma, não é indiferente para a situação financeira da sociedade a reação a uma decisão anual de não distribuição de dividendos, quando comparada com uma pretensão de, num único momento, se reagir a todos os anos acumulados em observação passiva, tendo em conta a dimensão do valor cuja distribuição se discutia.
Concluímos, pelas razões expostas, que não se verificava qualquer impedimento ao exercício do direito de voto por parte da acionista maioritária, inexistindo, em consequência, vício que, por esse motivo, inquine a (ausência de) deliberação.
*
B. Vício de anulabilidade da deliberação por violação do artigo 58º, n.º 1, al. b) do CSC – voto abusivo.
Dispõe o citado artigo que são anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.
A apelante alicerça a sua pretensão em torno da decisão de não distribuição periódica de lucros pelos acionistas. Refere que está em causa uma quantia de lucros transitados muito avultada (quase 20 milhões de euros), relativamente aos quais as assembleias gerais dos respetivos exercícios se cingiram a aprovar a sua não distribuição no final dos exercícios, sem nunca essas assembleias terem aprovado que os lucros ficassem destinados ao financiamento exclusivo do acionista maioritário, tendo a quase totalidade dos resultados transitados sido canalizada, não para investimentos na sociedade ré, mais para financiamentos ao acionista maioritário, que deles tem beneficiado exclusivamente, sem que esteja demonstrada qualquer contrapartida para a sociedade ré justa e adequada à luz das regras de boa gestão e administração, sendo a apelante titular do direito aos lucros que a acionista maioritária conserva na sua esfera.

A questão do direito aos lucros ou à distribuição periódica de lucros tem sido sobejamente tratada na doutrina e na jurisprudência, como resulta, designadamente, das citações de que as partes se socorrem nas suas alegações.
Sobre esse assunto, em longínquos tempos e ainda com plena atualidade, referia Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Vol. II, Sociedades Comerciais, Universidade de Coimbra, 1968, págs. 240 a 246) que o conceito de sociedade lucrativa não postula a divisão periódica dos benefícios, não sendo este elemento essencial do contrato, antes podendo as partes excluí-lo expressamente, ainda que, quando não seja excluída essa divisão, a mesma deva “considerar-se tacitamente estipulada, por ser essa a intenção presumível dos contraentes”. Após discorrer sobre a intangibilidade da posição de um sócio perante os demais dentro da sociedade, enquanto pressuposto da proporção em que os vários sócios serão admitidos a quinhoar no dividendo, refere que “o que em regra leva os sócios a formar uma sociedade é a expectativa do dividendo, mais do que a do lucro final, Contudo, não é de presumir que eles tenham contratado na ideia de cobrar sempre, haja o que houver, a quota parte dos benefícios anuais da sociedade indicada no pacto, mas só enquanto o interesse social, definido pelo órgão competente, não aconselhar ou impuser diferente medida. Digamos que a distribuição periódica dos lucros pode ter sido para os sócios uma das bases fundamentais do seu negócio (se bem que não seja um dos essentialia negotii); mas não é de calcular que o tenha sido também a distribuição de uma parte determinada, de uma quota fixa, desses benefícios. Enquanto a este ponto, enquanto à parte dos lucros anuais da empresa destinada para dividendos, o mais judicioso é pensar que os sócios entenderam deixar o assunto ao critério da assembleia geral”. E, acrescenta, “o interesse social – que é sempre a obtenção do maior lucro possível – pode reclamar imperiosamente uma política de redução drástica dos dividendos. O justificado receio de competição de outra empresas, as adensadas perspectivas de crise económica, a conveniência de aproveitar a fundo uma conjuntura favorável – tudo são eventualidades que podem exigir ou aconselhar instantemente uma administração sensata e previsora a fortalecer o activo social pela retenção dos lucros anuais (…) pode (…) a sociedade carecer, para enfrentar os encargos resultantes dessas medidas, do melhor das quantias que o estatuto obriga a distribuir pelos sócios. Em tais circunstâncias, manter inalterada a percentagem dos lucros destinada a dividendo seria um acto de péssima administração, fonte, porventura, de consequências fatais para o futuro da sociedade”. Conclui que nada há nada de tirânico nesta prevalência da vontade da maioria, enquanto está em causa a definição do interesse social, sendo que, quando porventura se demonstre que os sócios maioritários procedem com o propósito malévolo de causar prejuízo aos outros, forçando-os a cederem-lhes as suas acções (ou quotas) por baixo preço, os sócios lesados terão ainda a defesa do princípio do abuso de direito”.
Em suma, retomando a fundamentação já exposta supra, a deliberação da maioria no sentido de não distribuir dividendos pelos acionistas é perfeitamente legítima, devendo, contudo, ser fundamentada e efetuada em nome do interesse social.
Poderemos, sem esforço, verificar (pela leitura das atas anexas à petição inicial) que, ao longo do prolongado período que decorreu entre 2007 e 2020, a deliberação de não distribuição de dividendos se pautou pela lacónica decisão de levar a totalidade do resultado de cada período à conta de “Resultados Transitados”, sem qualquer justificação ou declaração de intenção quanto ao destino a dar aos valores em causa ou ao concreto interesse social que presidiu a cada deliberação no apontado sentido.
Contudo, a autora integrava, como ocorreu desde o início, a sociedade ré, com presença no seu conselho de administração ao longo de todo o período em questão, sem que, em momento algum, tivesse reagido à atuação que ora qualifica como abusiva.
A existir uma atuação contrária ou de algum modo dissonante daquele que seria o interesse social da ré, designadamente quanto ao destino dado aos valores sucessivamente levados à conta de Resultados Transitados, que conduziu à acumulação nessa conta do valor aproximado de 20 milhões de euros que se discutia na deliberação sob impugnação, tal atuação ocorreu com a passiva aceitação da autora, que tinha então, do mesmo modo que em 2021, a capacidade para reagir à “atuação abusiva” da acionista maioritária, de sindicar o destino dado aos valores retidos ou de evidenciar a sua discordância quanto ao obstáculo erigido anualmente ao “direito ao lucro” que ora pretende exercer e que logrou concretizar em relação aos exercícios de 2020 e 2021, intervindo ativamente nas AGs e passando a evidenciar interesse nas opções de gestão da sociedade e nas decisões de afetação dos lucros.
O art.º 64º, n.º1 do Código das Sociedades Comerciais, preceito legal que estabelece os deveres fundamentais dos gerentes ou administradores da sociedade, estatui que aqueles devem observar: a) deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
Por seu turno, o art.º 72º, n.º 1 do CSC preceitua que os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.
Em suma, há uma presunção de culpa na produção de danos causados à sociedade associada ao comportamento ativo de quem administra, mas também ao comportamento omissivo do administrador, quando esta omissão traduza preterição dos deveres legais, mencionados no referido art.º 64º, n.º 1.
Em anotação ao art.º 64º, Coutinho de Abreu [in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I (Artigos 1º a 84º), p. 733 e ss.] refere que «(…)[A]s principais manifestações (ou subdeveres) do dever de cuidado consistem no (i) dever de controlar, ou vigiar, a organização e a condução da actividades da sociedade, as suas políticas, práticas, etc.; no (ii) dever de informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das informações que são adquiridas e que podem ser causa de danos, seja por via dos normais sistemas de vigilância, seja por vias ocasionais (produzindo informação ou solicitando-a por sua iniciativa)», acrescentando que estes dois subdeveres se podem muitas vezes conjugar e absorver num específico “subdever (global e uno) de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade e o desempenho dos gestores (não só administradores), em geral sobre a actuação dos restantes administradores, trabalhadores e colaboradores em funções de gestão”, sendo o padrão a considerar o de “diligência de um gestor criterioso e ordenado”.
A autora/apelante assume na lide uma postura que aparenta sugerir que os seus interesses e responsabilidades enquanto acionista apenas nascem com a administração que passa a assumir funções em 2021, sendo todo percurso da sociedade autora como acionista da ré até essa ocasião algo que lhe é alheio ou que corresponde a uma atuação/omissão imputável a uma distinta pessoa coletiva.
Porém, a atuação omissiva da autora ao longo dos anos decorridos entre 2007 e 2020 não é despida de consequências a extrair nesta sede.
Não contraria um pressuposto lógico, nem admite uma presunção de abuso, a decisão de não distribuir 80% de um elevado valor de Resultados Transitados, coincidente com a soma de quantitativos anuais de dividendos não distribuídos pelos acionistas, quando aquele valor não corresponde a resultados do exercício anterior, ou a quantias acumuladas em caixa sem qualquer destinação, mas sim a um montante que, por efeito de decisões de gestão que, sem oposição, foram sendo tomadas ao longo dos anos anteriores, se encontra afeto a contratos celebrados, com prazos e estipulações de remuneração.
O que importa nesta sede aferir, não é a vantagem que os contratos celebrados possam trazer à acionista maioritária ou o concreto prejuízo que poderá ter advindo para o interesse social por decorrência da alocação dos resultados a contratações celebradas no interesse da acionista maioritária, porquanto essa matéria, repetimos, não é objeto da ação (que não incide sobre a responsabilidade civil dos administradores por efeito da prática de atos prejudiciais aos interesses da empresa ou sobre a validade dos contratos).
Neste contexto, apenas importa aferir se a concreta proposta de deliberação espelha um interesse da sociedade e dos seus acionistas que foi, de forma abusiva, negado pela acionista maioritária. Ora, face aos valores em caixa de que a sociedade ré dispunha à data em que a proposta de deliberação foi submetida a votação, bem como aos valores que, designadamente por efeito do resgate dos acordos de cash pool, a sociedade poderia transformar em liquidez para, de imediato, distribuir pelos acionistas, resultando provado que a aprovação da deliberação implicaria a necessidade de obtenção de financiamento por parte da ré, com todas as consequências financeiras daí decorrentes, teremos que concluir que não existe suporte que justifique a qualificação como abusiva da votação desfavorável que acarretou a não aprovação da deliberação.
Em suma, em causa não está a decisão de não distribuição de lucros ou dividendos, mas a não distribuição de uma quantia que, por decorrência de uma sequência de deliberações estabilizadas no tempo e não questionadas pela autora, se encontra na conta de “Resultados Transitados” e para cujo pagamento aos acionistas a sociedade ré não tinha disponibilidade financeira imediata, ainda que tal ocorra por efeito da canalização desses valores para contratos que possam eventualmente ser considerados como más opções de gestão ou de investimento, questões que são externas à apreciação do concreto objeto da ação.
Cremos, aliás, que a autora/apelante estaria ciente da diferença entre a aprovação ou não da deliberação e os vícios que entende apontar às opções de gestão da sociedade, quando, como resulta do instrumento notarial outorgado a seu pedido – documento 66 anexo à petição inicial -, emitiu uma declaração de censura à administração, incidente sobre os contratos que a administração tinha vindo a celebrar, aludindo à prática de atos geradores de responsabilidade para com a ré e os sócios desta, à eventual falta de cumprimento das regras de forma dos contratos celebrados ou à sua celebração sem apoio na justificação do interesse social e em violação do artigo 6º, n.º 1 do CSC, ou à validade/nulidade desses contratos, bem como fazendo referências à existência de fundamento de destituição dos administradores ou de indícios da prática de ilícitos criminais, questões que não se confundem com a que aqui se discute e em que, nesta fase, pretende sustentar a invalidade da deliberação.
O art.º 58º, n.º 1, al. b) do CSC, ao aludir ao “propósito” de um dos sócios de conseguir, através do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios, não exemplifica de forma concretizadora qualquer atuação que autorize uma presunção de abuso, pelo que, sendo as deliberações, em si mesmas, lícitas, tornar-se-ia necessária a prova de factos concretos a partir dos quais ao tribunal, inferindo o propósito da acionista maioritária invocado pela apelante, seria permitido bloquear o exercício do seu direito de voto pela qualificação do mesmo como abusivo.
Em concreto, não está sob apreciação o interesse da sociedade no destino dado, ao longo dos vários exercícios, a um elevado valor de dividendos que se deliberou não serem distribuídos pelos acionistas, mas sim o interesse da sociedade em ver concretizada a distribuição pelos acionistas de 80% do valor incluído na conta de Resultados Transitados no concreto período em que é apreciada a proposta de deliberação, sendo que a aprovação desta deliberação, como vimos, acarretaria prejuízo para sociedade ré, impedindo, consequentemente, a qualificação do voto da acionista maioritária como abusivo. Não há um benefício concreto desejado pela acionista na expressão de um voto que, a ser favorável, lhe traria uma elevada contrapartida financeira, antes situando a apelante o alegado benefício num conjunto de elementos externos à matéria sob deliberação, não se verificando, quer o pressuposto objetivo, quer o pressuposto subjetivo invocados, inexistindo, em consequência, o vício apontado à deliberação.
A falta de prova da intenção que a apelante afirma ter presidido à atuação da acionista maioritária, negando a verificação do pressuposto subjetivo definido na lei, não autoriza que, pela mera constatação de um resultado objetivo de impossibilidade de a autora obter a parte dos dividendos acumulados a que tem direito, se possa ter por preenchida a previsão do art.º 58º, n.º 1, al. b) do CSC.

C. Vício da nulidade da deliberação por violação do artigo 334.º do código civil – abuso de direito
No contexto desta específica questão, invoca a apelante um vício de nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia, que será tratado em conjunto com o próprio vício apontado à deliberação.
Entende a apelante que a decisão recorrida tratou a questão do voto abusivo e do abuso de direito como se correspondesse a uma só questão, apreciando a primeira e omitindo o juízo sobre a segunda,
Analisada a decisão recorrida, verifica-se que, ainda que sem desenvolvimento particular, a Mm.ª Juiz a quo identificou as várias questões, referindo “(…) Invocando a Autora, a título subsidiário, o abuso de direito, sancionável com nulidade, nos termos do preceituado nos arts. 334 e 294 do Código Civil vejamos (…)”, após o que aborda a atuação da autora que entende concretizar a ausência de violação de limites legais ou contratuais pela atuação da sócia maioritária. Ainda que haja uma abordagem mesclada das várias questões, a mesma foi identificada, não correspondendo a singeleza da fundamentação a uma omissão de pronúncia, geradora de nulidade.

Importará, avançando, verificar se os pressupostos do abuso de direito se encontram verificados.
Dispõe o art.º 334º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Contudo, pelas razões já expostas supra, dificilmente poderemos considerar preenchida esta previsão, que constitui uma reconhecida válvula de escape do sistema jurídico, destinado a evitar que situações de legalidade formal, admitidas pela ordem jurídica, deem causa a uma ofensa inaceitável de interesses substantivos.
O exemplo usado pela apelante nos pontos 52 e 53 da sua fundamentação como evidência do abuso de direito que entende viciar a deliberação sob discussão constitui, na nossa perspetiva, manifestação daquele que, conforme referimos supra, será o vício de raciocínio que inquina a tese da apelante.
No apontado exemplo, retirado da obra “Do Abuso de Direito” (Almedina, Coimbra: 1999, pp. 149 e ss), do reconhecido Professor Coutinho de Abreu, as deliberações tidas como abusivas correspondem a casos em que as deliberações, não favorecendo a maioria, causam dano intencional à minoria dos sócios, como o sejam os casos em que numa sociedade, após deliberação de alteração de estatutos, os sócios que compõem a maioria decidem não distribuir qualquer parcela dos consideráveis lucros da sociedade, sem que exista fundamento objetivo para tanto face à situação da sociedade, mantendo os sócios decisores o direito a receber os seus ordenados como gerentes, sem que o sócio minoritário, não gerente, receba qualquer lucro com a sociedade, concluindo o ilustre professor que “aquelas deliberações eram abusivas e, como tal, impugnáveis por C. Apenas este sócio minoritário perdia – não lucrava nada e sofria, pelo menos, o desgaste inflacionista dos lucros de reserva; os sócios maioritários, embora não obtivessem das referidas deliberações vantagens especiais – algo de que estivesse excluído C –, iam-se servindo da sociedade compensando a não partilha dos lucros líquidos pelos vencimentos que recebiam enquanto gerentes (vencimentos indexados pela taxa anual de inflação); e, afinal, por aquelas deliberações não era claramente prosseguível o interesse social (…)”.
Transpondo para o caso concreto, o exemplo em questão evidencia que o dano ou abuso advogado pela apelante adviria da decisão injustificada de privar os acionistas da distribuição anual de dividendos sem qualquer justificação fundada no interesse social, mantendo a acionista maioritária todos os benefícios da acumulação dessas quantias, que usaria em proveito próprio, destinando-as e canalizando-as para a celebração de contratos ou instrumentos negociais que apenas beneficiam a própria, não se traduzindo em qualquer benefício para a sociedade e, consequentemente, para os demais acionistas, prejudicados pela privação das quantias em questão, que não só não seriam valorizadas por rentáveis opções de investimento, como sofreriam desvalorização decorrente da sua imobilização ou má aplicação.
Contudo, correndo o risco de repetição, não se discute a simples e corrente deliberação de não distribuição de dividendos aos acionistas, antes recaindo a deliberação cuja aprovação foi negada pela acionista maioritária na distribuição de um valor acumulado ao longo de anos, com a aceitação tácita da autora, fundado em deliberações não impugnadas de transferir os resultados anuais para a conta de Resultados Transitados. O que se discute não é a natureza abusiva das deliberações (já estabilizadas) de não distribuição de dividendos nos vários exercícios cujas contas foram aprovadas entre 2007 e 2020, nem o destino dado a esses valores ao longo desses anos em prejuízo da sociedade ou dos acionistas, mas a possibilidade de esse valor acumulado ser distribuído, numa percentagem de 80%, numa ocasião em que a sociedade não dispõe daquele quantitativo para assegurar o pagamento pretendido pela acionista minoritária.
O que está em causa é um valor de 15 milhões de euros a distribuir, não só pela autora e pelos demais acionistas minoritários, como, em elevada percentagem, pela acionista maioritária, não sendo da votação desta concreta deliberação que advém o invocado prejuízo para a sociedade ou para os sócios, mas sim, como no exemplo citado, das deliberações anteriores ou do destino dado a esses valores, matéria que é externa à questão que se aprecia, no contexto da qual a atuação da acionista maioritária não pode ser qualificada como contrária aos interesses da sociedade.
As deliberações que, no exemplo citado, não prosseguiam o interesse social correspondem, na atividade da ré, àquelas que foram sendo tomadas entre 2007 e 2020, sendo a decisão de, em cada período, não distribuir dividendos, sem qualquer causa justificativa para tanto, aquela que poderia considerar-se abusiva, caso a autora, fazendo uso da diligência que redundou na efetiva distribuição de dividendos em 2021 e 2022, houvesse atuado em defesa dos seus interesses enquanto acionista e do interesse da sociedade que nesta fase invoca.
Não é a não aprovação da deliberação em discussão que atinge o direito aos lucros da apelante (que, aliás, permanece intocado, mantendo-se na sua esfera jurídica como um direito legítimo o de vir a obter a sua percentagem dos lucros acumulados), sendo a manutenção dos lucros transitados “na esfera do acionista maioritário” decorrência dos contratos celebrados ao longo dos períodos anteriores, que não seriam (direta ou indiretamente) postos em causa pela deliberação.
A verificação de uma figura tão excecional como o abuso de direito implicaria que, após análise da situação em litígio, o tribunal estivesse em condições de concluir que, ao lograr inviabilizar a pretendida distribuição da quantia de 15.300.000,00 € pelos acionistas, a apelada atuou de forma que se traduz em clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, excedendo manifestamente os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do nosso comum sentimento de justiça a manutenção da validade formal da sua atuação.
De tudo o que ficou exposto, face aos específicos contornos em que se desenvolve a ação e no particular contexto financeiro e de liquidez da sociedade à data em que foi proposta a deliberação pela autora, cremos que o exercício do direito de voto pela acionista maioritária não ofende o interesse social, nem o sentimento de justiça, antes coincidindo com aquele.
Não se antevê, em consequência, a existência de abuso de direito.
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Da improcedência das conclusões recursivas apreciadas resulta prejudicada a apreciação da conclusão LLL., dependendo a eventual declaração de deliberação positiva de uma prévia anulação da votação que conduziu à sua não aprovação, pretensão em que decaiu a apelante, ficando igualmente prejudicada a pretensão da apelada de apreciação do abuso de direito da apelante, questão dependente do provimento do recurso.
Impõe-se, em conclusão, não obstante o parcial provimento do recurso dirigido ao julgamento da matéria de facto, concluir que este não afeta a decisão de direito, com consequente manutenção da decisão recorrida.
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Não obstante o parcial reconhecimento da apelação na vertente recursiva direcionada para a impugnação da matéria de facto, a ausência de reconhecimento da razão de direito, impondo a improcedência do recurso, responsabiliza a apelante pelas custas do recurso, que suportará integralmente.

V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
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Custas a cargo da apelante (art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
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Lisboa, 12-11-2024
Ana Rute Costa Pereira
Elisabete Assunção
Susana Santos Silva