LIQUIDAÇÃO
RATEIO
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO GERAL
Sumário

I- Encerrada a liquidação da massa insolvente, julgadas as contas e paga a conta de custas, no prazo de 10 dias, o administrador da insolvência apresenta no processo proposta de distribuição e de rateio final (art.º 182.º n.º 3 do CIRE).
II- O rateio deverá ter como base a sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos e transitada em julgado, devendo obedecer ao que se ali se decidiu, ditando a mesma a forma como os pagamentos se irão processar.
III- Resultando da aludida sentença, em primeiro lugar, a graduação sobre o produto obtido com a venda dos imóveis apreendidos nos autos, de que o credor/trabalhador goza de privilégio imobiliário especial, o mesmo deverá ser primeiramente pago pelo produto assim apurado.
IV- Ainda que tenham sido apreendidos bens móveis e o aludido credor goze também de privilégio mobiliário geral, tal facto não significa que o mesmo deva ser pago também pelo produto da venda dos bens móveis em detrimento dos imóveis, porquanto o privilégio imobiliário especial prefere na sua prioridade ao mobiliário geral como se infere da sentença proferida.
V- Beneficiando o crédito do trabalhador de ambos os privilégios - imobiliário especial e de mobiliário geral - o seu pagamento deverá realizar-se pela ordem indicada na sentença de verificação e graduação de créditos, ou seja, através do produto apurado com a venda dos imóveis (privilégio imobiliário especial), e só na eventualidade de não ser possível obter a total satisfação desse crédito através dos ditos imóveis (como foi), poderia completar-se esse pagamento através do valor apurado com os bens móveis (privilégio mobiliário geral), nada podendo assim ser apontado ao mapa junto aos autos, elaborado que foi de acordo com a sentença proferida e não objeto de qualquer recurso, para onde remeteu o despacho que indeferiu a reclamação apresentada contra o mapa de rateio.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
No âmbito dos presentes autos de insolvência da sociedade AA, Industriais, S.A., foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, já transitada em julgado (apenso C).
Nessa sentença foram definitivamente reconhecidos e graduados os créditos reclamados da seguinte forma (após retificação de 29/09/2023):
- Relativamente ao produto resultante da venda dos prédios descritos na CRP de Amadora sob o n.º … – fração “A” e “B”:
1º O crédito reclamado pelo trabalhador C (…), que goza do privilégio mobiliário geral e imobiliário especial previsto no art.º 333º, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho, devendo ser graduado antes dos créditos referidos no n.º 1 do art.º 747º do Código Civil (n.º 2, al. a) do art.º 333º do Código do Trabalho);
2º Os créditos garantidos por hipotecas reclamada pela “CEMG” e pela “Lx Investment Partners II, S.A.R.L.” (esta última somente quanto à fração “A”), de acordo com as prioridades de inscrição, e até aos limites garantidos e reconhecidos;
3º Todos os demais créditos comuns, na respetiva proporção caso não obtenham satisfação integral, relativamente a cada um dos prédios;
4º Os créditos subordinados.
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- Relativamente ao produto resultante da venda dos demais bens móveis/ direitos:
1º O crédito reclamado pelo trabalhador C…, que goza do privilégio mobiliário geral e imobiliário especial previsto no art.º 333º, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho, devendo ser graduado antes dos créditos referidos no n.º 1 do art.º 747º do Código Civil (n.º 2, al. a) do art.º 333º do Código do Trabalho);
2º Os créditos não subordinados do requerente da insolvência, até 1/4 do respetivo montante, num máximo equivalente a 500 UC;
3º Todos os demais créditos comuns, na respetiva proporção caso não obtenham satisfação integral;
4º Os créditos subordinados (…).

Já nos presentes autos, em 01/04/2024, antes de apresentação da proposta de rateio, o AI juntou requerimento ao processo, dando conta das dúvidas que lhe suscitavam a sua elaboração, informando também que tinha já sido entregue às credoras BTL (…) e LX (…) os valores de 63.000.00€ e 86.000.00€ respetivamente.

Na sequência do assim informado, em 08/04/2024, o credor C… (trabalhador) apresentou requerimento no processo, alegando que não foi elaborado nos autos o mapa de rateio parcial, desconhecendo-se assim o motivo da entrega dos referidos valores aos aludidos credores. Alegou ainda que, resultando do mapa de contas junto pelo Sr. Administrador de Insolvência que a conta da Massa Insolvente apenas detêm a quantia de € 55.000.00, e sendo tal valor insuficiente para o pagamento do seu crédito, verificado e graduado em 1º lugar, uma vez que o mesmo deve ser pago em primeiro lugar pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, deverão os aludidos credores ser notificados para devolver os montantes entregues à Massa Insolvente.

A credora Lx veio opor-se, alegando que da sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 16/03/2022, com a retificação proferida pelo despacho de 05/04/2022, no apenso C dos autos principais, o seu crédito foi graduado em primeiro lugar, relativamente à fração A, tendo o AI procedido ao pagamento aos credores hipotecários em março/2023, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 174.º do CIRE, pagamento que não carece da elaboração de rateio parcial, sendo que o credor C… apenas em 14/09/2023, é que veio invocar que o seu crédito não havia sido reconhecido. Termina alegando que deverá o AI proceder à elaboração do rateio final, de modo a apurar se efetivamente algum valor deve ser devolvido.

Em resposta, o credor C… alegou que quando verificou que o seu crédito não se encontrava devidamente verificado e graduado, efetuou requerimento para retificação da sentença proferida, o que foi deferido por despacho já transitado em julgado, não restando agora quaisquer dúvidas que o seu crédito foi verificado e graduado em 1º lugar, devendo o seu pagamento ser efetuado com o produto resultante da venda das frações autónomas A e B.

Por despacho proferido em 30/04/2024, foi determinado que o AI elaborasse proposta de rateio a fim de ser apreciada pelos credores, tendo em conta o que ficou decidido na graduação de créditos transitada em julgado, incluindo as retificações posteriormente efetuadas, conjugado com as habilitações de cessionários requeridas e aceites, ali se sublinhando ainda que, de harmonia com o despacho de retificação proferido a 29/09/2023, o primeiro credor graduado é o trabalhador C…, devendo tal pagamento preferencial ser refletido na proposta de rateio a apresentar.

Em 07/05/2024, o AI apresentou nos autos a proposta de rateio final nos termos do art.º 182.º n.º 3 do CIRE.

E, em 21/05/2024, a credora LX, apresentou reclamação contra a mesma.
Para tanto, alegou, em síntese, que o mapa de rateio junto padece de lapso que se impõe ser retificado.
Assim, e desde logo:
(i)  No que concerne à distribuição dos valores referentes aos bens móveis, conforme resulta da sentença de verificação e graduação de créditos, tendo o crédito do trabalhador C… sido graduado em primeiro lugar, o valor apurado deverá ser rateado em 1º lugar ao aludido trabalhador, à luz do art.º 175.º n.º 1 do CIRE, recebendo o assim o mesmo o valor de € 2.382,76, correspondendo a 3,163%, devendo os restantes € 3.525,18 ser distribuídos pelos restantes credores;
(ii) No que concerne à distribuição dos valores referentes aos bens imóveis, conforme resulta da sentença de verificação e graduação de créditos, tendo também o crédito do trabalhador C… sido graduado em primeiro lugar, deverá o mesmo receber o valor de € 42.523,07 e € 30.426,00 (o que, somando com o valor que caberá em sede de rateio dos bens móveis, perfaz o montante devido de € 75.331,83) tendo assim a credora reclamante o direito a receber o valor de € 59.923,87 e a credora BTL o direito a receber o valor de € 42.876,56. Dados os valores recebidos em sede de rateio parcial, para pagamento do valor que cabe ao trabalhador, graduado em primeiro lugar, devem ser devolvidas as quantias de € 26.076,13 pela credora reclamante e a quantia de € 20.123,44 pela credora BTL.

Em resposta, a credora BTL, defendeu que o Rateio apresentado pelo Administrador de Insolvência obedece ao preceituado na sentença de verificação e graduação de créditos (com as correções posteriormente feitas), já transitada em julgado, razão pela qual o rateio deve ser efetuado, primeiro, pelo produto da venda dos imóveis, e depois pelos bens móveis, pelo que irá assim efetuar a devolução solicitada, no montante de € 3035,78.

Também o credor C…, pugnou pelo indeferimento do requerido pela credora LX, devendo manter-se o rateio final apresentado pelo AI, porquanto, alega, o rateio deverá ter em conta o despacho retificativo da sentença de verificação e graduação de créditos, no sentido de que o pagamento ao trabalhador deverá ser efetuado em primeiro lugar com o produto da venda dos imóveis, dado tratar-se de crédito privilegiado e subsequentemente serem satisfeitos os créditos garantidos por hipotecas. Aliás, argumenta, o despacho retificativo da sentença de verificação e graduação de créditos é claro quando em primeiro lugar refere que o crédito do trabalhador deverá ser satisfeito pelo produto da venda dos imóveis e só posteriormente, caso o valor não seja satisfeito, pelo produto da venda dos bens móveis.

Em 19/06/2024 foi lavrado Termo de Apreciação da proposta de Rateio pela Secretaria, ali concluindo que a proposta apresentada pelo AI se encontra devidamente elaborada com os cálculos exatos, achando-se de acordo com a documentação de suporte e com o determinado na sentença de graduação de créditos.

E, por despacho proferido em 21/06/2024, foi indeferido o requerido pela credora reclamante Lx com a seguinte fundamentação «porquanto a graduação efetuada por sentença, transitada em julgado, determinou o pagamento preferencial do crédito salarial sobre a hipoteca. Assim sendo, o rateio elaborado e junto pelo AI em 07.05.2024, e objeto de apreciação pela secretaria, obedece ao decidido na sentença de verificação e graduação de créditos, transitada. Por isso, improcede a reclamação apresentada. Sem custas, dada a simplicidade. Notifique. Proceda-se a pagamentos, nos termos constantes da proposta de rateio apresentada pelo AI.».

Inconformada, veia a credora LX interpor o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões que aqui se resumem:
a) Com o presente recurso pretende-se impugnar a decisão, que não acautela devidamente o crédito e direito da recorrente, por entender que a mesma apresenta um erro na interpretação e aplicação da lei substantiva.
b) Resulta da sentença de verificação e graduação de créditos, proferida em 16/03/2022 e retificada por despacho datado de 29/09/2023, que o crédito do trabalhador C…, no valor total de € 75.331,83, ficou graduado em primeiro lugar, relativamente aos bens móveis e bens imóveis apreendidos a favor dos autos.
Sucede que,
c) Em sede de elaboração do rateio final, o senhor Administrador de Insolvência não obedeceu ao preceituado no n.º 1 do artigo 175.º do CIRE, nem, tão pouco, teve em consideração o valor obtido pelo produto da venda dos bens móveis, cujo montante alcançado ignorou;
d) Descontente com o rateio apresentado, a aqui Recorrente apresentou a competente reclamação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 182.º do CIRE, requerendo, entre outras questões, a inclusão do produto da venda dos bens móveis (€ 5.912,94) – já deduzidas as despesas) para efeitos de elaboração do rateio a favor do credor trabalhador, o que foi indeferido pelo despacho agora recorrido;
e) Despacho que padece de nulidades, sendo entendimento da Recorrente que deverá ser aplicado o n.º 1 do artigo 175.º do CIRE, e assim, em primeiro lugar ser esgotado o produto obtido pela venda dos bens móveis, e o remanescente, ser pago pelo produto da venda dos bens imóveis considerando a existência de garantias reais, uma vez que a graduação do Tribunal a quo não foi taxativa e delimitativa.
f) Considerando os valores pela venda dos bens móveis e imóveis e deduzidas as despesas imputadas, os valores apresentados pelo senhor Administrador de Insolvência nos autos, padecem de lapso manifesto, não correspondendo ao que realmente é devido, o que o tribunal recorrido não apreciou, limitando-se a indeferir a sua pretensão, motivo pelo qual o aludido despacho é nulo por falta de fundamentação, e por omissão de pronuncia relativamente às questões colocadas pela Recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Pelo que, nestes termos e nos mais de direito, que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado PROCEDENTE, devendo ser revogada a douta decisão que se recorre, ordenando a elaboração de novo rateio final, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 182.º do CIRE, tendo por base o seguinte:
▪ A aplicação do disposto no artigo 175.º do CIRE relativamente aos bens móveis;
Caso assim não se entenda, e por mera cautela de patrocínio,
▪ A inclusão dos valores obtidos pela venda dos bens móveis para efeitos de pagamento ao Credor Trabalhador, conforme sentença de verificação e graduação de créditos;
▪ A correta percentagem que cabe a cada Credor Hipotecário relativamente aos valores a devolver a favor da massa insolvente, de acordo com o ponto 34.

Em contra-alegações defende o apelado C…. que o Tribunal a quo decidiu corretamente, ao julgar improcedente a reclamação à proposta do rateio final elaborada pelo AI e apresentada pela Apelante, por a mesma ter sido feita de acordo com o determinado pela sentença de verificação e graduação de créditos.

O recurso foi admitido, tendo o Sr. Juiz a quo tomado posição, no despacho de admissão, sobre as nulidades invocadas em recurso, que julgou inexistir, ali consignado «Não se vislumbra ter ocorrido nulidade decorrente de omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, na medida em que no despacho é expressamente mencionado que o rateio foi efetuado de acordo com a sentença proferidas no apenso respetivo, que determinou o pagamento preferencial do crédito salarial sobre a hipoteca, e que a mesma se mostra transitada (inferindo-se, naturalmente, que esse trânsito esgota o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da verificação e graduação dos créditos, como decorre do art.º 613.º, n.º 1, do CPC).».

Os autos subiram então a este Tribunal da Relação, e, colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, como decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão essencial que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste apenas em aferir:
(i) Da putativa nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação e omissão de pronuncia, nos termos e para os efeitos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC;
(ii) Do erro de que padece o despacho recorrido, por não ter levado em consideração o disposto no art.º 175.º do CIRE relativamente aos bens móveis e da inclusão dos valores obtidos pela venda dos mesmos para efeitos de pagamento ao Credor Trabalhador, avalizando a correta percentagem que cabe a cada credor hipotecário relativamente aos valores a devolver a favor da massa insolvente.

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III-/ Fundamentação de facto:
Para a decisão do presente recurso será considerada a factualidade que consta já do relatório que antecede.

Ter-se-á também em conta, como decorre dos autos, que:

1- Do mapa de rateio elaborado pelo Sr. AI junto aos autos em 07/05/2024, resulta que:

A/ Os bens imóveis apreendidos nos autos foram vendidos pelos seguintes valores:
• Venda Imóvel A - € 116.000,00;
• Venda Imóvel B - € 83.000,00.
B/ Os bens móveis foram vendidos por € 6.500,00.

C/ Descontadas as despesas ali explanadas resulta que se encontra disponível para ratear:
• Imóvel A - € 102.446,94;
• Imóvel B - € 73.302,55;
• Bens Móveis (viaturas) - € 5.912,94.

D/ Feito o rateio definitivo:
· iniciado pelo produto da venda dos bens imóveis, no que a esse produto concerne, o rateio é especial, recebendo o credor reclamante C… integralmente o valor reclamado, de €75.331,82, tendo a credora BTL que devolver €3 035,78, pois que apenas recebe €59.964,22 e a credora agora recorrente €43 094,57, pois apenas recebe €42.905,43;
· no que concerne ao produto da venda dos bens móveis, é feita graduação especial com pagamento ao credor hipotecário requerente da insolvência e depois a graduação geral para os restantes credores reclamantes.
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IV-/ Do mérito do recurso:
Apreciemos então as questões suscitadas no recurso intentado, que visam, no essencial, e a final, que seja ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se a elaboração de novo rateio final, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 182.º do CIRE.

(i) Da putativa nulidade do despacho recorrido:
Em resumo, principia a recorrente por se insurgir contra a decisão recorrida por entender que a mesma está ferida de nulidade.

Vejamos então.
Como sabemos, as nulidades taxativamente enumeradas no art.º 615.º do CPC prendem-se com a violação de regras de estrutura das decisões proferidas pelo julgador (sejam elas sentenças, sejam elas despachos, por aplicação do art.º 613.º do CPC), reportando-se assim a vícios formais da decisões proferidas, que não contendem com o seu mérito, não se confundindo com um qualquer erro de julgamento.
No caso dos autos, a recorrente alega a nulidade da decisão por falta de fundamentação, e por omissão de pronuncia relativamente às questões que colocadas, nos termos e para os efeitos do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Nos termos do normativo invocado, a sentença é nula quando o juiz «…. b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…) d) … deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

A primeira nulidade apontada está relacionada com previsto no n.º 3 do art.º 607.º do CPC e bem assim com o consagrado no art.º 154.º, n.º 1 do mesmo código, resultando, todavia, de forma uniforme da nossa jurisprudência que apenas a absoluta falta de fundamentação é que é susceptível de integrar tal nulidade; já assim não ocorrendo se a aludida fundamentação, quer de facto quer de direito, se revelar insuficiente ou errada.
No caso em apreço, ainda que muito parca a fundamentação aposta no despacho recorrido, na verdade não podemos propriamente afirmar que a mesma não existe de todo. Com efeito, o despacho remete para o decidido na sentença de verificação e graduação de créditos, assim salvaguardando o patamar mínimo exigido por lei para não culminar de nulo o aludido despacho. A remissão feita para a sentença proferida permite compreender a apreciação feita pelo juiz aquando da prolação do despacho recorrido, ainda que por remissão para outros elementos dos autos, no caso, a sentença anteriormente proferida.
Donde, independentemente do acerto do decidido, carece de fundamento a alegação de o despacho recorrido não estar fundamentado, pelo que improcede a invocada nulidade.

Já a segunda nulidade apontada está relacionada com o consagrado no art.º 608.º n.º 2, do CPC, que obriga a que o juiz resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuando aquelas que fiquem prejudicadas pela solução dada a outras, bem como as que imponham um conhecimento oficioso.
Para que exista uma nulidade na sentença, por omissão de pronúncia, a mesma terá assim que decorrer do facto de existir uma questão que devia ter sido conhecida e não foi.
Neste contexto, Ferreira de Almeida (na obra “Em Direito Processual Civil”, Vol. II, Almedina, 2015, pg. 371) ensina que «Integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento total ou parcial do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.».
Conforme resulta manifestamente do despacho recorrido foi ali entendido que o rateio foi efetuado de acordo com a sentença proferida no apenso respetivo, que determinou o pagamento preferencial do crédito salarial sobre a hipoteca, pelo que, também aqui, independentemente da bondade do decidido, carece de fundamento a alegação de verificação de nulidade.

Improcede, pois, e sem mais, nesta parte a pretensão da apelante.

(ii) Do invocado erro de julgamento:
De seguida, alega a recorrente que o despacho recorrido não teve em atenção, nem fez a devida interpretação, do consagrado no art.º 175.º do CIRE, o que fez com que não levasse em linha de conta no rateio final o valor apurado com a venda dos bens móveis, valor que assim ignorou no que concerne ao pagamento do crédito do trabalhador.
O cerne da questão em apreço resulta assim, em suma, em aferir se o crédito do trabalhador (apelado) que goza de privilégio imobiliário especial sobre determinados imóveis e, simultaneamente, de privilégio mobiliário geral – tendo sido graduado, em primeiro lugar, de acordo com a preferência conferida por tais privilégios – deve ser pago à custa, em primeiro lugar, do valor apurado com a venda dos bens imóveis e só depois (se necessário) à custa dos bens móveis ou se deve ser pago, em primeiro lugar, pelo produto da venda daqueles bens móveis e só depois pelo produto da venda dos imóveis.

Vejamos então.

Estipula o convocado art.º 175.º do CIRE que «1- O pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba, e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados. 2- É aplicável o disposto na segunda parte do n.º 1 e no n.º 2 do artigo anterior, com as devidas adaptações».
Como é consabido, na insolvência, os créditos devem ser satisfeitos seguindo a ordem da graduação estabelecida na sentença de verificação e graduação de créditos.
Deverá então ter-se em atenção que o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado (art.º 173.º do CIRE) e que, apenas não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos, sendo causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção (art.º 604.º do CC). O pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba, e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados (art.º 175.º n.º 1 do CIRE).
Assim, liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas, é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba; quanto àqueles que não fiquem integralmente pagos e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, são os saldos respetivos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, caso não se verifique coincidência entre eles (art.º 174.º n.º 1 do CIRE).

Da conjugação dos aludidos preceitos legais resulta que não obsta à satisfação dos créditos privilegiados e garantidos o facto de o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa não ser suficiente para satisfazer todos os créditos graduados. Se, segundo a graduação, aqueles puderem ser integralmente pagos assim o terão que ser, pois que aquela insuficiência não determina que seja feito qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, não dando assim lugar a qualquer rateio.
Do que dali resulta, pois, é que o legislador entendeu dar prioridade aos créditos garantidos e aos créditos privilegiados, e, como tal, determinados bens (sobre os quais incidem as garantias reais ou privilégios creditórios) devem ser afetos ao pagamento dos créditos garantidos ou privilegiados, só podendo ser afetados ao pagamento dos créditos comuns depois de satisfeitos os créditos que usufruem daquelas garantias ou privilégios.
Donde, e sem mais, o rateio apenas terá que existir no que concerne ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respetiva satisfação integral; aí sim, o pagamento deverá fazer-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade.
Essencial é que os pagamentos aos credores e o rateio a fazer-se se opere de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos. É esta que dita a forma como os pagamentos se irão processar.

No caso dos autos, atenta a classificação do crédito do apelado, como privilegiado, sobre os bens imóveis pertencentes à insolvente, que correspondiam às instalações da sociedade onde o trabalhador exercia as suas funções laborais, no despacho corretivo da sentença de verificação e graduação de créditos (proferido em 29/09/2023), foi determinado que o seu crédito fosse pago, em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens imóveis da insolvente e, também em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens móveis. Tal despacho não foi objeto de recurso por parte de qualquer credor, tendo transitado em julgado.
O crédito do apelado beneficia assim de privilégio creditório imobiliário, sendo de natureza especial, e, como tal, foi graduado em primeiro lugar sobre os imóveis apreendidos, e por essa ordem deve ser pago.
Ainda que tenham sido também apreendidos bens móveis e o crédito em causa goze igualmente de privilégio mobiliário geral, tal não obriga a que o aludido crédito seja pago em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens móveis, quando o valor apurado com a venda dos imóveis, primeiramente graduado, consome a integralidade do valor do crédito, pois que o privilégio imobiliário especial prefere na sua prioridade ao mobiliário geral, como se infere da sentença proferida e do despacho recorrido.
A proposta apresentada pelo AI está assim correta, por via da sua conformidade ao que consta da sentença de verificação e de graduação de créditos.
Resultando da aludida sentença que o pagamento ao credor/trabalhador deverá começar pelo produto da venda dos bens imóveis, assim obedeceu o mapa de rateio final apresentado nos autos, observando escrupulosamente o determinado em sede de sentença de verificação e graduação de créditos já transitada em julgado. De resto, como se consignou no acórdão do STJ de 15/02/2018, proferido no proc. 3157/12.4TBPRD-I.P1.S3 e relatado por Ana Paula Boularot, que aqui seguimos, disponível na dgsi, onde se pode ler que «O rateio a efetuar deverá de ter como base a sentença de verificação e graduação de créditos anteriormente produzida, pelo que, tratando-se de uma mera operação matemática da secretaria judicial, a mesma terá de obedecer ao que se ali se decidiu (…)».
Assim, o determinado na sentença é cumprido pelo mapa que dá primeiro pagamento ao apelado pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, dado o privilégio imobiliário especial de que o mesmo goza. Veja-se também sobre esta problemática e neste sentido a decisão do TRC de 05/06/2018, proferida no proc. 393/11.4TBSRT-U.C1, relatada por Arlindo Oliveira, disponível na dgsi, e que igualmente aqui seguimos, assim sumariado «Os créditos laborais, reconhecidos e graduados, devem ser pagos, em primeiro lugar, pelo produto resultante da venda dos bens imóveis, dado o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da insolvente e só depois, se insuficiente, pelo produto resultante da venda dos bens móveis, dado o privilégio mobiliário geral de que, também, beneficiam», assim se fundamentando «Resulta, pois, do cotejo entre os artigos 333.º do Código do Trabalho e 175.º, n.º 1, do CIRE, que os créditos dos trabalhadores deverão ser pagos em primeiro lugar pelo produto da venda dos bens imóveis sobre que incide tal privilégio e sobre os quais inexiste qualquer outra garantia prevalecente. Assim, face ao exposto, entendemos, que o pagamento dos créditos dos trabalhadores se deve fazer, em primeiro lugar, à custa do produto da venda dos bens imóveis sobre que incide o privilégio imobiliário especial de que gozam. De igual modo e como defendido na decisão proferida neste Tribunal da Relação, de 06/07/2016, Processo n.º 3144/11.0TBCLD-B.C1, disponível no respetivo sítio do itij, (referida nas alegações de recurso), ainda que os trabalhadores gozem de ambos os privilégios (imobiliário especial e mobiliário geral), o respetivo pagamento deverá iniciar-se pelos bens imóveis e só verificada a insuficiência destes, se completará através do produto da venda dos bens móveis».
Donde, e em suma, concluímos que inexiste qualquer erro no despacho recorrido, que se limitou a remeter para a sentença proferida, que não foi objeto de qualquer recurso; dela resultando que, beneficiando o apelado de privilégio imobiliário especial e de privilégio mobiliário geral, o seu pagamento deverá realizar-se preferencialmente pela ordem ali indicada, ou seja, através do privilégio sobre os imóveis, e, como tal, só na eventualidade de não ser possível obter total satisfação desse crédito através dos imóveis (como foi), poderia completar-se esse pagamento através do privilégio mobiliário geral, de que foi também graduado em primeiro lugar. Tanto mais que, no caso dos autos, o pagamento do crédito do trabalhador, ao ser imputado ao produto da venda dos imóveis em relação ao quais foi graduado, não implica que os credores hipotecários graduados em segundo lugar relativamente a esses bens nada recebem pelo produto da venda, tendo de concorrer com os credores comuns. Do mapa resulta que, na verdade, o facto de o apelado ser pago em primeiro lugar pelo valor dos imóveis, não inviabilizou completamente a satisfação dos créditos garantidos, apenas diminuiu o valor que estes receberam em rateio parcial e que terão de devolver. O mapa teve por base a sentença proferida, como se impõe, e o despacho contra o qual se insurge a recorrente limitou-se para aquela remeter.

Impõe-se, assim, a confirmação do despacho recorrido.

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V-/ Decisão:
Perante o exposto, julga-se totalmente improcedente a apelação confirmando-se consequentemente o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 12/11/2024
Paula Cardoso
Nuno Teixeira
Elisabete Assunção