CONVENÇÃO DE LUGANO II
SENTENÇAS ESTRANGEIRAS
EXECUÇÃO
DECLARAÇÃO DE EXECUTORIEDADE
Sumário


I - Ao abrigo da Convenção de Lugano II, para que as sentenças estrangeiras possam ser executadas em Portugal e não meramente reconhecidas, há necessidade de que as mesmas sejam previamente declaradas executórias pelo Tribunal de Comarca competente.

Texto Integral


Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Maria Amália Santos
Segunda Adjunta: Paula Ribas

Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

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I. Relatório.

Em 21/02/2024, AA residente em ..., ..., 5ª, ...64, ..., ..., na Suíça, instaurou execução por alimentos no Juízo de Família e Menores de Barcelos, Juiz ..., contra BB, residente na Rua ...., ..., em ..., para a cobrança quantia de € 23.912,11, acrescida de juros de mora vincendos.
Como título executivo apresentou uma sentença datada de 28/06/2022, proferida pelo Tribunal Distrital de ..., do Cantão Suíço de ..., da qual consta a condenação executado, seu progenitor, a pagar-lhe, a título de alimentos, a quantia mensal de 1.000 francos suíços.

Em 16/06/2024, foi proferida a seguinte decisão liminar:
“AA, residente em ..., ..., 5ª, ...64, ..., ..., na Suíça, veio instaurar a presente execução por alimentos contra BB, residente na Rua ...., ..., e ..., promovendo a cobrança coerciva da quantia de € 23.912,11, acrescida de juros de mora vincendos.
Como título executivo apresentou a exequente uma sentença datada de 28 de Junho de 2022, proferida pelo Tribunal Distrital de ..., do Cantão Suíço de ..., mediante a qual o aqui executado ficara obrigado a pagar-lhe, a título de alimentos, a quantia mensal de 1000 francos suíços.
Segundo decorre do artigo 10º, nº 5 do Código de Processo Civil, toda a execução tem necessariamente de fundar-se num título com força executiva, pelo qual se definem os limites e o fim da execução.

Os títulos que a que lei atribui força executiva encontram-se taxativamente elencados no artigo 703º, nº 1 do Código de Processo Civil, normativo que assim dispõe:

“1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.

As sentenças condenatórias proferidas por tribunais nacionais são, claro está, títulos executivos, desde que respeitem os requisitos de exequibilidade previstos no artigo 704º do Código de Processo Civil.
Também as sentenças proferidas por tribunais estrangeiros podem servir de base a execuções instauradas em Portugal.
Exige-se, contudo, que produzam efeitos na ordem jurídica portuguesa, e que aqui lhe seja reconhecida ou conferida executoriedade. Tanto é o que resulta do disposto no artigo 706º, nº 1 do Código Civil: “Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente”.
Assim, por princípio, para que uma sentença proferida por tribunal estrangeiro possa ser título executivo, é necessário que a mesma seja previamente revista em Portugal, através do processo nos artigos 978º e segs. do Código de Processo Civil, para o qual são competentes os Tribunais da Relação.
Casos há em que, por força de instrumentos de direito internacional, como tratados, convenções ou regulamentos comunitários (ressalvados no nº 1 do citado artigo 706º do Código de Processo Civil) não será necessário recorrer àquele processo de revisão, existindo mecanismos específicos, normalmente mais simplificadas, de obter a declaração de executoriedade – o que sucede, p. ex., com as decisões proferidas por tribunais de estados que sejam signatários da Convenção de Haia de 23 de Novembro de 2007, sobre a Cobrança Internacional de Alimentos em benefício dos Filhos e de outros Membros da Família, o que não é o caso da Suíça.
E casos há, também, em que no domínio das relações entre Estados Membros da União Europeia (a Confederação Helvética não o é, como se sabe) se prescindiu daqueles mecanismos de declaração de executoriedade, admitindo-se a exequibilidade automática de sentenças proferidas por autoridades de outros Estados Membros. Isso é hoje admitido ao abrigo Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares.
Portugal e Suíça são estados signatários da Convenção sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões Relativas às Obrigações Alimentares, concluída na Haia em 2 de Outubro de 1973, aprovada para ratificação pelo Decreto nº 338/75 de 2 de Julho. Essa Convenção não prescinde, no entanto, da existência de um processo de reconhecimento e declaração de executoriedade. Processo esse que, tanto quanto resulta do disposto nos artigos 4º e segs. e 13º e segs. do texto da Convenção, não se prevendo outro diverso, será o referido processo especial de revisão regulado nos artigos 978º e segs. do nosso Código de Processo Civil.
Face a quanto se expôs, sendo manifesta a falta de título executivo, ao abrigo do disposto no artigo 726º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil, decido indeferir liminarmente o requerimento executivo.
Custas pela exequente (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Valor da causa: fixa-se em € 23.912,11 (artigos 296º, nº 1, 297º, nº 1 e 306, nº 2 do Código de Processo Civil).
Notifique.
Registe.”
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Inconformada com esta decisão, a exequente interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

 “A Recorrente, foi notificada, por despacho com a referência ...68, datado de 16.06.2024, do indeferimento liminarmente do requerimento executivo por falta de título executivo, ao abrigo do disposto no artigo 726º nº2 a) do Código Processo Civil, uma vez que se trata de uma sentença estrangeira.
As sentenças proferidas por tribunais estrangeiros, podem servir de base a execuções instauradas em Portugal, desde que lhes seja reconhecida ou conferida executoriedade, tal como resulta do artigo 706º nº1 do Código Processo Civil; seja pelo processo de revisão junto dos Tribunais da Relação, seja pelo mecanismo simplificado por força de instrumentos de direito como os tratados, convenções ou regulamentos comunitários, ou pela dispensa dos mecanismos de declaração de executoriedade, cuja exequibilidade passa a ser automática.
A sentença dada à execução, provém, do Tribunal do cantão Suíço de ..., e Portugal e a Suíça são Estados contratantes da Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conhecida como a Convenção de Lugano II.
De acordo com o artigo 33º dessa convenção, o reconhecimento de efeitos e atribuição de força executiva a uma sentença estrangeira proferida num estado contratante da mesma, é automático, sem necessidade de recurso a qualquer processo.
Pelo que, estamos perante um reconhecimento de efeitos e atribuição de força executiva a uma sentença estrangeira, simplificado, sem recurso a qualquer processo especial, o qual, de acordo com o artigo 39 nº1 da Convenção, corre termos na 1ª instância, mais concretamente, no Tribunal de comarca, conforme anexo II da Convenção de Lugano II.
A sentença estrangeira, deve ser admitida como título executivo, e, em consequência, ser revogado o despacho de indeferimento liminar proferido, sendo que a sua não admissão, constitui uma violação ao preceituado nos artigos 33º e 39º da Convenção de Lugano II, cuja arguição aqui se faz para todos os efeitos legais.

TERMOS EM QUE
Deverão Vªs. Exªs. conceder provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogado o despacho com a referência nº ...68 proferido, admitindo-se a sentença estrangeira como titulo executivo.
Pois, só assim se fará a almejada
Justiça.”
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Não foi citado o executado para os termos da execução e do recurso, nos termos do art. 641.º, n.º 7 do Código de Processo Civil – e bem - uma vez que a tramitação inicial da execução não envolve o contraditório prévio, carecendo a norma em causa, por isso de interpretação extensiva para abranger estas situações que justificam igual solução (cfr. para além da jurisprudência citada na decisão de primeira instância, António Abrantes Geraldes - Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª ed., Almedina, págs. 221, nota de rodapé 376).
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O recurso foi admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir
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II. Questões a decidir.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635.º, n.ºs 4 e 5 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cumpre apreciar se a recorrente dispõe de título executivo operante, fundado em sentença estrangeira, sem necessidade recorrer a processo de revisão ou de declaração de executoriedade.
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III. Fundamentação

Os factos a considerar são os que resultam do relatório.
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Delimitada que está a questão a decidir, é o momento de a apreciar.
De acordo com o plasmado no art. 703.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, um dos títulos que pode servir de base à execução é a sentença condenatória.
Em relação à sentença estrangeira, rege o seguinte o art. 706.º, n.º 1 do Código de Processo Civil:
“Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente.”
Da transcrita norma decorre a seguinte regra:
- As sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente.
Porém, tal não será assim se existirem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais que afastem a necessidade do recurso ao processo especial de revisão de sentenças estrangeiras com assento nos arts. 978.º a 985.º do Código de Processo Civil.
Aliás, em perfeita harmonia com o supra transcrito art. 706.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, estabelece o art. 978.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que:
“Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”
Há, assim, que indagar no caso presente sobre a existência de instrumento normativo que permita afastar a necessidade de recurso ao processo especial de revisão de sentenças estrangeiras no caso de execução por alimentos e que desse modo possa constituir título executivo vigorante na nossa ordem jurídica.
Conforme se disse na decisão recorrida, a Suíça não faz parte da União Europeia daí que lhe não sejam obviamente aplicáveis os regulamentos comunitários, designadamente o Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho de 18 de Dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, que prevê no seu art. 17.º (supressão do exequatur) que:
“1. As decisões proferidas num Estado-Membro vinculado pelo Protocolo da Haia de 2007 são reconhecidas noutro Estado-Membro sem necessidade de recurso a qualquer processo e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento.
2. As decisões proferidas num Estado-Membro vinculado pelo Protocolo da Haia de 2007 e que aí tenham força executória podem ser executadas noutro Estado-Membro, sem que seja necessária uma declaração de força executória.”
Porém, apesar de não ser Estado-Membro, a Suíça, tal como Portugal são signatários da Convenção sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões Relativas às Obrigações Alimentares, concluída na Haia em 2 de outubro de 1973, aprovada para ratificação pelo Decreto nº 338/75 de 2 de julho. Contudo, esta Convenção não abdica de um processo de reconhecimento e declaração de executoriedade (que será no caso de Portugal processo especial de revisão regulado nos artigos 978º e seguintes do Código de Processo Civil), pois conforme resulta do seu art. 4.º uma decisão proferida num Estado deve ser reconhecida ou declarada executória noutro Estado contratante se tiver sido proferida por uma autoridade considerada competente segundo os seus arts. 7.º e 8.º. e se não puder já ser sujeita a recurso ordinário no Estado de origem.
Sem embargo, conforme acertadamente refere a exequente/recorrente nas suas alegações de recurso, ao caso é também aplicável a convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, conhecida como a Convenção de Lugano II, assinada em Lugano, em 30/10/2007 e publicada no Jornal Oficial da União Europeia de 21/12/2007, pois que Portugal e a Suíça são também aqui Estados contratantes.
Invoca a recorrente em seu benefício os arts. 33.º e 39.º da Convenção, que no seu entender são as normas violadas pelo Tribunal recorrido.
De acordo com o art. 33.º, n.º 1:
“As decisões proferidas num Estado vinculado pela presente convenção são reconhecidas nos outros Estados vinculados pela presente convenção, sem necessidade de recurso a qualquer processo.”
Trata-se de um mecanismo de reconhecimento automático das decisões proferidas pelos estados contratantes relativamente às matérias abrangidas pela Convenção.
Porém, para que as decisões possam ser executadas e não meramente reconhecidas, há necessidade de que as mesmas sejam declaradas executórias.

É o que ressalta do art. 38.º da Convenção:
“As decisões proferidas num Estado vinculado pela presente convenção e que nesse Estado tenham força executiva, podem ser executadas noutro Estado vinculado pela presente convenção depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.”
O requerimento para a obtenção de declaração executória deve ser apresentado ao Tribunal competente indicado na lista do anexo II da Convenção (art. 39.º n.º 1), sendo no caso de Portugal o Tribunal de Comarca da área onde a parte a executar tenha o seu domicílio ou no lugar em que deverá ser proposta a execução (art. 39.º, n.º 2).
Este requerimento deve ser acompanhado de cópia da decisão a executar e de certidão onde, nomeadamente, conste a identificação das partes, a data da citação ou notificação do ato que determinou o início da instância, no caso de a decisão ter sido proferida à revelia, o texto da decisão a executar e a declaração de que a decisão é executória no estado onde foi proferida a decisão (arts. 40.º n.º 3 e 53.º da Convenção).
O Tribunal requerido deve, num procedimento simplificado, sem contraditório e após a mera verificação sobre se estão cumpridos os trâmites formais supra aludidos (junção da cópia da decisão exequenda e a certidão referida), declarar imediatamente a executoriedade da decisão (art. 41.º da Convenção).
Qualquer das partes pode subsequentemente interpor recurso da decisão que incidir sobre o pedido de declaração de executoriedade, o qual será interposto perante o Tribunal da Relação (art.º 43.º da Convenção e anexo III).
Nos termos expressos do art.º 45.º n.º 1 da Convenção, o Tribunal onde for interposto o aludido recurso “apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34.º e 35.º
 Ora, assim sendo como é, evidente se torna que considerando a Convenção de Lugano II, mister se tornava a instauração de prévio processo tendente à declaração de executoriedade da sentença proferida na Suíça e não como fez a exequente a imediata instauração de execução sem estar munida de título executivo reconhecido em território nacional, nos termos em que o preveem os artigos 38.º e seguintes da Convenção.
 Improcede, pois, a apelação.
As custas ficarão a cargo da apelante (art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil):

I - Ao abrigo da Convenção de Lugano II, para que as sentenças estrangeiras possam ser executadas em Portugal e não meramente reconhecidas, há necessidade de que as mesmas sejam previamente declaradas executórias pelo Tribunal de Comarca competente.
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V. Decisão.

Perante o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão apelada.
Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Guimarães, 14 de novembro de 2024