INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
PLURALIDADE SUBJECTIVA SUBSIDIÁRIA
Sumário

I - Decorre do disposto no artigo 316º, do Código de Processo Civil, que a intervenção principal provocada é admissível nas seguintes situações:
a) No caso de ocorrer uma situação de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo – previsão do nº1, do artigo 316º, do Código de Processo Civil conjugado com os artigos 33º e 34º do citado diploma – caso em que qualquer das partes primitivas pode requerer o chamamento de terceiro para que se associe a si ou à parte contrária, a fim de assegurar a legitimidade das partes, visando o incidente, nesta situação, sanar a ilegitimidade ativa ou passiva.
b) Na hipótese de ocorrer uma situação de litisconsórcio voluntário passivo, podendo neste caso o Autor requerer o chamamento de um terceiro que é titular passivo da mesma relação jurídica que está na base da demanda do primitivo réu e que, por isso mesmo, poderia ter sido desde logo demandado juntamente com aquele, em regime de litisconsórcio voluntário – previsão do nº 2, 1ª parte, do artigo 316º, do Código de Processo Civil conjugado com o artigo 32º do citado diploma.
c) No caso de o Autor pretender dirigir o pedido contra um terceiro nos termos do artigo 39º do Código de Processo Civil – previsão do nº 2, 2ª parte, do artigo 316º, do Código de Processo Civil, que tem como epígrafe “pluralidade subjetiva subsidiária” – ou seja, quando o Autor, deparando-se com uma dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida, pretende deduzir contra um terceiro, a título subsidiário, o mesmo pedido ou deduzir um pedido subsidiário contra réu diverso do que é demandado a título principal.
d) Quando, havendo outros sujeitos passivos da relação material controvertida objeto dos autos, o réu, invocando interesse atendível na intervenção, pretenda fazer intervir, em regime de litisconsórcio voluntário e a si associados, os demais sujeitos –previsão da alínea a), do nº 3, do artigo 316º, do Código de Processo Civil.
e) No caso de o autor primitivo não ser o único titular da pretensão deduzida em juízo e o réu queira fazer intervir nos autos os demais contitulares do direito invocado pelo autor, que deverão associar-se a este – previsão da alínea b), do nº 3, do artigo 316º, do Código de Processo Civil.
II - A admissibilidade de o autor fazer intervir um terceiro recorrendo à figura da pluralidade subjetiva subsidiária depende da verificação de uma situação de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida, nos termos em que se mostra configurada pelo autor.
III - Decorre dos princípios do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes que os casos subsumíveis ao conceito de “dúvida fundamentada” serão aqueles em que se conclua pela existência de uma dúvida objetiva, que impeça a definição dos sujeitos da relação material controvertida, e não aqueles casos em que se verifica uma dúvida meramente subjetiva ou que apenas ocorre porque o autor não cumpriu o dever de diligência investigatória que deve preceder a instauração de qualquer ação judicial.

Texto Integral

Processo nº 20483/22.7T8PRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3

Recorrentes: AA e BB

Recorrida: A..., Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A., Sucursal em Portugal

Relatora: Teresa Pinto da Silva

1º Adjunto: Carlos Gil

2ª Adjunta: Teresa Fonseca

Acordam na 5ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA e BB propuseram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra A..., Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A., Sucursal em Portugal, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhes uma indemnização no valor global de €312.492,21 (trezentos e doze mil quatrocentos e noventa e dois euros e vinte e um cêntimos), acrescida de juros legais desde a citação e até integral pagamento, pelos danos que sofreram em consequência de acidente de viação, no qual foram intervenientes dois veículos ligeiros de passageiros, com as matrículas ..-..-PR e ..-OM-.., sendo o primeiro veículo conduzido pelo Autor e no qual também seguia a Autora e o veículo OM conduzido por CC. Imputam a ocorrência do sinistro a culpa exclusiva do condutor do veículo OM e alegam que, à data, esse veículo era propriedade da empresa B..., Lda, encontrando-se a responsabilidade emergente da circulação do mesmo transferida para a Ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., válido até 18.02.2023.

Em 17.01.2023, a Ré contestou, excecionando a sua “ilegitimidade processual passiva”, impugnando a factualidade alegada pelos Autores relativa à existência de contrato de seguro de responsabilidade civil emergente da circulação do veículo OM e alegando que a apólice nº ..., mencionada pelos Autores, diz respeito a um seguro garagista e não a um veículo identificado, sendo segurada a empresa C..., Unipessoal, Lda, e o condutor habitual CC. Estando em causa um seguro garagista, o qual só pode ser acionado se, na altura do acidente, o condutor habitual estiver no exercício das suas funções profissionais e não a utilizá-lo a título particular ou pessoal, e nada tendo os Autores alegado a esse respeito, não está demonstrado que a Ré responda ao abrigo da identificada apólice. Mais alega uma versão distinta do sinistro, imputando a ocorrência do mesmo a culpa exclusiva do Autor, para além de impugnar parte dos danos reclamados pelos Autores e defender ser excessiva a indemnização por eles peticionada pela perda do veículo PR.

Em 22.03.2023, o Instituto da Segurança Social, I.P. apresentou articulado no qual deduziu contra a A..., S.A., pedido de reembolso da quantia de €3.526,86, valor que alega ter pago ao Autor a título de subsídio de doença, em consequência do acidente descrito nos autos.

Em 03.04.2023, a Ré “A...” apresentou contestação ao pedido do Instituto da Segurança Social, I.P., na qual deu como reproduzida a dinâmica do acidente alegada em sede de contestação ao pedido dos Autores e impugnou os factos nele aduzidos, concluindo pela improcedência do mesmo.

Por despacho de 14.06.2023, foi ordenada a notificação da Ré para indicar qual a cláusula das condições reguladoras da apólice de onde resulta que consagra o que alega no artigo 12º da contestação, ou seja, que o seguro garagista só pode ser acionado desde que, no momento do acidente, o condutor habitual estivesse no exercício das suas funções profissionais e não a utilizá-lo a título particular ou pessoal. Mais foi no mesmo despacho determinado que, após a resposta da Ré ao esclarecimento solicitado, se procedesse à notificação dos Autores para se pronunciarem sobre as exceções por ela invocadas na sua contestação.

Em 27.06.2023, a Ré veio esclarecer que as cláusulas reguladoras da apólice previstas no que alegou no artigo 12º da contestação são as que constam das Condições Gerais da Apólice – Exclusões da garantia obrigatória e a que consta das Condições Especiais da Apólice, Cláusula D - Seguro de Garagista.

Em 06.07.2023, os Autores vieram, em articulado, responder à matéria de exceção alegada pela Ré na contestação, pugnando pela improcedência da exceção da ilegitimidade por ela suscitada, alegando, para tanto, que nos termos do nº3, do artigo 6º, do D.L. nº 292/2007, de 21 de agosto, o garagista é obrigado a segurar a responsabilidade civil emergente de veículos automóveis quando os utilizem, por virtude das suas funções e no âmbito da sua atividade profissional, pretendendo a lei que a apólice de garagista cubra a responsabilidade da segurada qualquer que seja o veículo e qualquer que seja o condutor. À data do acidente, o condutor habitual, nos termos das condições particulares juntas sob o documento 1 com a contestação, é que detinha a direção efetiva do veículo, quem tinha o poder real, de facto, sobre o veículo causador do acidente rodoviário em que se viram envolvidos os Autores, pelo que sempre as cláusulas do contrato de seguro em causa terão de ser interpretadas no sentido de se considerarem cobertos por aquela apólice os danos e prejuízos decorrentes do acidente de viação, peticionados pelos Autores.

No mesmo articulado, invocando o disposto no artigo 316º, nº2, do Código de Processo Civil, os Autores requereram a intervenção principal provocada, do lado passivo, de CC, B..., Unipessoal, Lda e Fundo de Garantia Automóvel. Alegaram, para tanto, que tendo a Ré invocado na sua contestação que se está perante um contrato de seguro garagista, o que não lhe permite ressarcir os Autores dos danos sofridos em consequência do acidente de viação descrito nos autos, e caso ela venha a ser declarada parte ilegítima, o condutor do veículo OM, CC, passa a ser um interessado direto a ponto de poder vir a ser condenado na presente ação, sendo-lhe o acidente imputável quer a título de culpa presumida, como condutor do veículo interveniente, quer a título de culpa efetiva.

Por outro lado, o chamamento do B..., Unipessoal, Lda, resulta do facto de no auto de participação de acidente de viação da GNR constar como proprietária do veículo OM.

Por fim, caso se entenda que o OM não tinha seguro válido e eficaz, sempre é de ser chamado o Fundo de Garantia Automóvel.

Não foi deduzida oposição ao incidente de intervenção principal provocada suscitado.

Em 25.09.2023, na sequência de despacho de convite ao aperfeiçoamento do pedido formulado, vieram os Autores discriminar quais os montantes indemnizatórios que pretendem que a Ré seja condenada a pagar a cada um deles.

Em 18.10.2023, na sequência de despacho, foi junta aos autos informação sobre o registo automóvel relativo ao veículo de matrícula ..-OM-...

Por despacho de 13.12.2023, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a dispensa de realização da audiência prévia, com a cominação de que, se nada dissessem, o seu silêncio seria entendido como nada tendo a opor, silêncio que as partes mantiveram.

No cumprimento de despacho, foram juntos aos autos os registos de propriedade que vigoram e vigoraram relativamente ao veículo de matrícula ..-OM-...

Por despacho de 04.04.2024, foram as partes notificadas para, querendo, alegarem o que tivessem por conveniente, face ao entendimento do Tribunal de que já estaria em condições de conhecer do mérito da causa quanto à Ré, tendo as partes permanecido em silêncio.

A 07.05.2024, foi proferido despacho a indeferir o incidente de intervenção principal provocada de CC, B..., Unipessoal, Lda e Fundo de Garantia Automóvel, seguido de saneador-sentença no qual se decidiu pela absolvição da Ré dos pedidos formulados.


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Inconformados com tal decisão, vieram os Autores interpor recurso, apresentando o seguinte acervo conclusivo:

I. Os apelantes têm interesse atendível no chamamento “B..., Lda.”, CC e Fundo de Garantia Automóvel, mediante o incidente de intervenção principal provocada.

II. Pelo que se conclui pela verificação de todos os pressupostos de que depende a admissão do incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores, nos termos previstos no artigo 316.º do CPC.

III. Porquanto, dos articulados resulta cabalmente que os apelantes carrearam, como alegaram, todos os elementos, de forma fundamentada, que permite chamar o condutor do veículo ..-OM-.., CC.

IV. Como ainda permite chamar a sociedade proprietária do veículo ..-OM-.., “B..., Lda.” a intervir nos autos.

V. Tendo o douto tribunal a quo constado, aliás, como veio a sentenciar, que a apólice ... não contemplava qualquer tipo de responsabilidade civil decorrente de circulação automóvel da viatura com a matrícula ..-OM-.. interveniente no sinistro, ressaltam todas as razões para que a sociedade “B..., Lda.” seja chamada a intervir nos autos.

VI. Por outro lado, deriva ainda da decisão a quo que a viatura com a matrícula ..-OM-.. interveniente no sinistro não tinha seguro sempre deveria ter sido deferido o chamamento do Fundo de Garantia Automóvel, uma vez que se apresenta como garante do pagamento da indemnização, reclamada pelos apelantes na sua petição inicial.

VII. Permitindo assim que, estando a intervenção da empresa “B..., Lda.”, CC e Fundo de Garantia Automóvel delimitada aos factos alegados pelos Autores na sua petição inicial e nos requerimentos subsequentes que diretamente lhe respeitam, os chamados pudessem vir a tomar uma posição sobre os mesmos.

VIII. Ademais, mesmo que não se entendesse, como se entendeu, na decisão recorrida não estarem alegados factos se o veículo era, ou não conduzido por CC no exercício de funções profissionais que exercesse para “B..., Lda” ou para “C... Unipessoal, Lda”, o que somente admite por mera cautela de patrocínio se invoca, sempre haveria de ser chamado CC, enquanto condutor, e a sociedade “B..., Lda”, enquanto proprietária da mesma.

IX. Ou seja, a relação material controvertida está perfeitamente definida e vê-se, como e por que forma, os chamados possam ser qualificados como interessados, ou qual o direito que a mesma tem de intervir na causa.

X. Constata-se, assim, estar em causa uma só relação material controvertida estabelecida entre os Autores e os chamados motivo pelo qual se impõe a sua intervenção nos presentes autos.

XI. Subjaz à sagacidade que razão não havia para que o incidente de intervenção principal provocada fosse indeferido da forma severa como o foi.

XII. Ao decidir como decidiu, a meritíssima Juiz a quo violou ou não aplicou corretamente os invocados, artigos 39º e 316º ambos do Código do Processo Civil.

XIII. Por todo o exposto, a decisão de indeferimento do Incidente de Intervenção principal provocada suscitado pelos apelantes falece à luz da lei, carecendo de ser substituído por decisão que sufrague o deferimento do Incidente de intervenção principal provocada suscitado, devendo se chamada a sociedade “B..., Lda.”, CC e Fundo de Garantia Automóvel prosseguir os seus termos até final.

Termos em que concluem pela procedência do recurso.

A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.

Mercê do exposto, da análise das conclusões apresentadas pelos Recorrentes nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão:

- Se deve ou não ser admitido o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores.

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II – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, não se procedendo à reprodução dos mesmos, por tal se revelar desnecessário.
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Fundamentação de direito
- Se deve ou não ser admitido o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores
O legislador consagrou, no artigo 260º, do Código de Processo Civil, o princípio da estabilidade da instância, nos termos do qual, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, admitindo-se, excecionalmente, em termos restritos e nos limites da lei, modificações subjetivas e/ou objetivas, após o ato de citação.
Os incidentes de intervenção de terceiros, através dos quais se modifica subjetivamente a instância, traduzem uma exceção à estabilidade desta, e, como tal, só devem ser admitidos dentro dos limites legalmente fixados.
Face a esse carácter excecional da admissibilidade de modificação dos elementos objetivos e subjetivos da instância após a citação do réu, deve o autor, antes de instaurar a ação, nas palavras de António Santos Abrantes Geraldes e outros[1]desenhar a estratégia que prossegue, identificar os sujeitos da relação processual e tomar uma posição clara quer sobre a solução que pretende para o litígio, quer sobre os fundamentos que a sustentam, se necessário usando dos mecanismos processuais que admitem a cumulação de pedidos e de causas de pedir ou até a formulação de causas de pedir e/ou de pedidos em relação de subsidiariedade, tendo em conta os fortes obstáculos que são colocados à alteração dos elementos que integram a instância”.
À presente apelação interessa a intervenção principal provocada, prevista nos artigos 316º a 320º do Código de Processo Civil, a qual se caracteriza pela intervenção de um terceiro numa causa que se encontre pendente, para aí fazer valer um direito próprio paralelo ao do autor ou do réu[2], partindo a iniciativa da dedução do incidente das partes primitivas da ação pendente, no caso, dos Autores.
Decorre do disposto no artigo 316º, do Código de Processo Civil, que a intervenção principal provocada é admissível nas seguintes situações:
1) No caso de ocorrer uma situação de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo – previsão do nº1, do artigo 316º, do Código de Processo Civil conjugado com os artigos 33º e 34º do citado diploma – caso em que qualquer das partes primitivas pode requerer o chamamento de terceiro para que se associe a si ou à parte contrária, a fim de assegurar a legitimidade das partes, visando o incidente, nesta situação, sanar a ilegitimidade ativa ou passiva.
2) Na hipótese de ocorrer uma situação de litisconsórcio voluntário passivo, podendo neste caso o Autor requerer o chamamento de um terceiro que é titular passivo da mesma relação jurídica que está na base da demanda do primitivo réu e que, por isso mesmo, poderia ter sido desde logo demandado juntamente com aquele, em regime de litisconsórcio voluntário – previsão do nº 2, 1ª parte, do artigo 316º, do Código de Processo Civil conjugado com o artigo 32º do citado diploma.
3) No caso de o Autor pretender dirigir o pedido contra um terceiro nos termos do artigo 39º do Código de Processo Civil – previsão do nº 2, 2ª parte, do artigo 316º, do Código de Processo Civil – ou seja, quando o Autor, deparando-se com uma dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida, pretende deduzir contra um terceiro, a título subsidiário, o mesmo pedido ou deduzir um pedido subsidiário contra réu diverso do que é demandado a título principal.
4) Quando, havendo outros sujeitos passivos da relação material controvertida objeto dos autos, o réu, invocando interesse atendível na intervenção, pretenda fazer intervir, em regime de litisconsórcio voluntário e a si associados, os demais sujeitos –previsão da alínea a), do nº 3, do artigo 316º, do Código de Processo Civil.
5) No caso de o autor primitivo não ser o único titular da pretensão deduzida em juízo e o réu queira fazer intervir nos autos os demais contitulares do direito invocado pelo autor, que deverão associar-se a este – previsão da alínea b), do nº 3, do artigo 316º, do Código de Processo Civil.
No caso concreto, os Autores deduziram incidente de intervenção principal provocada, do lado passivo, da sociedade “B..., Lda”, de CC e do Fundo de Garantia Automóvel.
Vale isto por dizer que estamos perante uma intervenção principal provocada passiva promovida pelos Autores que, para ser admissível, terá de ser subsumível, pelo menos, a uma das previsões do artigo 316º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
De afastar desde logo, nessa parte se acompanhando a decisão apelada, que na situação dos autos de verifique entre a Ré e qualquer um dos terceiros uma situação de litisconsórcio necessário.
Considerando a relação material controvertida tal qual ela vem delineada pelos Autores (responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação provocado por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula ..-OM-.., CC, veículo esse que era propriedade da empresa B..., Lda e que tinha a responsabilidade emergente da circulação desse veículo, à data do acidente, transferida para a Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., válido até 18.02.2023) conclui-se que nem a lei, (nem o negócio), nem a natureza jurídica da relação litigada exige a intervenção de todos. Não se verifica situação de litisconsórcio necessário legal (nº 1 do art. 33º do CC) porque a lei não exige, em situações como a dos autos, que o lesado demande todos os lesantes (seja a responsabilidade conjunta ou solidária). Ademais, resulta do disposto no nº1, do artigo 4º, do Decreto-lei nº 291/2007, de 21.08 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), que a obrigação de outorgar um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel recai sobre todos aqueles que possam ser civilmente responsáveis pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, obrigação essa cujo cumprimento condiciona a possibilidade de circulação, esclarecendo o artigo 6º desse diploma, em concreto, quais os sujeitos sobre os quais impende essa obrigação de segurar. E, nos termos do artigo 64º, nº1, do citado Decreto-lei, as ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente: a) só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório; b) contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior. Verifica-se que, por via desta norma, o legislador identifica concretamente quem deve figurar na ação de responsabilidade civil decorrente de acidente de viação enquanto sujeito processual civil, determinando que, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório para o seguro obrigatório, a ação deve ser proposta unicamente contra a empresa seguradora.
No caso concreto, os Autores demandaram a companhia seguradora A..., S.A, alegando que esta, à data do acidente, garantia a responsabilidade emergente da circulação do veículo de matrícula ..-OM-.., pelo que, nos termos do disposto na alínea a), do artigo 64º, do Decreto-lei nº 291/2007, de 21.08, atento o valor do pedido e a causa de pedir constantes da petição inicial, haverá que concluir que a ação deveria ter sido proposta, como foi, unicamente contra a seguradora, não ocorrendo uma situação de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo que pudesse fundamentar o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores. De notar que também não se verifica uma situação de litisconsórcio necessário natural (nº 2 do art. 33º do Código de Processo Civil), porque a decisão a proferir produzirá o seu efeito útil normal (a situação jurídica ficará definitivamente regulada entre as partes, Autores e Ré, todos ficando vinculados ao julgado). A definição da responsabilidade (ou da falta dela) da aqui demandada ficará definitivamente estabelecida perante os demandantes.
Por outro lado, também não estamos, no caso concreto, numa situação de litisconsórcio voluntário passivo, ou seja, entre os terceiros cuja intervenção foi requerida pelos Autores e a Ré não existe uma situação de litisconsórcio voluntário. Considerando a relação material controvertida tal qual ela vem delineada pelos Autores na petição inicial conclui-se, face ao regime legal que resulta da supra citada alínea a), do artigo 64º, do Decreto-lei nº 291/2007, de 21.08, que nenhum dos terceiros cuja intervenção foi requerida é titular passivo da mesma relação jurídica que está na base da demanda da Ré e, por isso mesmo, não poderiam os Autores ter desde logo demandado algum deles juntamente com aquela, em regime de litisconsórcio voluntário.
Importa, finalmente, averiguar se o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelos Autores é admissível ao abrigo da previsão do nº 2, 2ª parte, do artigo 316º, do Código de Processo Civil. Neste caso, como decorre das considerações já explanadas, o incidente somente será admissível no caso de se concluir que os Autores pretendem dirigir o pedido contra os terceiros nos termos do artigo 39º do Código de Processo Civil. Nesta norma, sob a epígrafe “pluralidade subjetiva subsidiária” prevê-se a possibilidade de o autor, deparando-se com uma dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida, requerer o chamamento de um terceiro para contra ele deduzir, a título subsidiário, o mesmo pedido ou deduzir um pedido subsidiário contra réu diverso do que é demandado a título principal.
A admissibilidade de o autor recorrer a este mecanismo depende, contudo, como decorre claramente da letra do dispositivo em análise, da verificação de uma situação de “dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida”. Só perante a ocorrência dessa dúvida fundamentada é que o autor poderá demandar, a título principal, um determinado réu e, precavendo-se quanto à eventualidade de este ser considerado parte ilegitima, vir a demandar subsidiariamente outro réu, deduzindo contra ele o mesmo pedido ou um pedido subsidiário.
Quanto ao que deve entender-se por “dúvida fundamentada”, importará desde logo assinalar que, atento o princípio do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, cabe ao autor, previamente à instauração de qualquer ação, desenvolver as diligências necessárias à identificação correta dos titulares da relação material controvertida, recaindo sobre ele o ónus de recolher os elementos que lhe permitem delimitar, a par dos factos relevantes, os sujeitos que são titulares do (s) interesse (s) em conflito. Por isso, os casos subsumíveis ao conceito de “dúvida fundamentada” serão aqueles em que se conclua pela existência de uma dúvida objetiva, que impeça a definição dos sujeitos da relação material controvertida, e não aqueles casos em que se verifica uma dúvida meramente subjetiva ou que apenas ocorre porque o autor não cumpriu o dever de diligência investigatória que deve preceder a instauração de qualquer ação judicial[3]. Para se aferir se tal dúvida existe e é fundada cabe ao autor alegar as razões/factos que o levam a não ter a certeza sobre o titular da relação material controvertida que configura, assim justificando a necessidade de se socorrer do mecanismo da intervenção principal provocada.
No caso, os Recorrentes pretendem a intervenção principal provocada da sociedade “B..., Lda”, de CC e do Fundo de Garantia Automóvel. Analisado o requerimento através do qual os Recorrentes deduziram esse incidente, resulta clarividente que o fizeram por mera cautela, na sequência da contestação apresentada pela Ré, para se precaverem contra a possibilidade de o Tribunal a quo vir a julgar procedente a exceção dilatória da ilegitimidade passiva da Ré. No entanto, não alegam qualquer facto consubstanciador de dúvida sobre o titular passivo da relação jurídica material controvertida por eles configurada na petição inicial.
Aliás, resulta dos artigos 1º a 11º do articulado de resposta apresentado pelos Autores em 06.07.2023 que eles não demonstram quaisquer dúvidas quanto ao sujeito da relação controvertida, reiterando o que já haviam defendido na petição inicial, ou seja, de que a única responsável é a Ré.
Outrossim, para fundamentarem o incidente de intervenção principal provocada, limitaram-se os Autores a alegar que:
1.º Invoca a Ré, na sua douta contestação, que se está perante um contrato de Seguro de Garagista, o que, assim, não lhe permite ressarcir os AA as diversas lesões e diversos danos em resultado do acidente de viação melhor descrito nos autos.
2.º Pelo que, tendo a ação sido proposta, apenas, contra a Ré, e se vier a declarar parte ilegítima, nos termos do referido contrato de seguro, coberto pela apólice ....
3.º Como melhor resulta dos autos, e a própria Ré o atesta na sua Contestação, o condutor do veículo OM era o aqui chamado CC, que passa a ser um interessado direto e, na qualidade de, supre a eventual ilegitimidade passiva a ponto de poder vir a ser condenado na presente ação.
4.º O acidente é imputável a este R., quer a título de culpa presumida, como condutor do veículo interveniente, quer mesmo a título de culpa efetiva.
5.º Por outro lado, o chamamento da B..., Unipessoal, Lda, resultado facto de no auto de participação de acidente de viação da GNR constar como proprietária do veículo OM.
6.º Por fim, caso se atenda a que o OM não tinha seguro válido e eficaz, sempre é de ser chamado o Fundo de Garantia Automóvel (doravante FGA).
7.º A intervenção do FGA é estritamente necessária para acautelar os direitos dos aqui AA.
Analisados estes fundamentos, conclui-se, como bem se salienta na decisão recorrida, que os Autores “Não alegam estarem na dúvida sobre se o veículo era, ou não, conduzido por CC no exercício de funções profissionais que exercesse para B..., Lda ou para C... Unipessoal, Lda.
Nem colocam em causa a existência do invocado seguro e a sua aplicabilidade ao caso dos autos, sustentando que o mesmo, não obstante tratar-se de seguro de garagista, ainda assim responde pelo ressarcimento dos danos decorrentes do acidente.
A sua dúvida não é quanto à factualidade, nem quanto aos sujeitos intervenientes na situação sub iudice.
Apenas pretendem salvaguardar a hipótese de o tribunal não concordar com a solução de direito que defendem para a causa.
Nenhuma dúvida objectiva trouxeram, assim, aos autos sobre a situação de facto, que permitisse o recurso ao disposto no art. 39º, do CPC”.
Aliás, analisadas as alegações de recurso, é legítimo concluir que os Autores, face ao saneador-sentença proferido, vêm agora, incompreensivelmente, sustentar que de todos os elementos por eles carreados para os autos e pela própria Ré resulta que a responsabilidade civil decorrente dos danos provocados pela circulação do veículo ..-OM-.. não era abrangida pelo seguro garagista, mais alegando que “resulta claro que a viatura ..-OM-.. não tinha seguro pelo que deveria o tribunal a quo equacionar-se, conforme pedido pelos Autores, a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel”, esquecendo tudo o que até então por eles foi alegado nos autos quanto à existência, validade e cobertura daquele seguro garagista.
Parece, agora, que os Autores estão convencidos da bondade da decisão proferida no saneador-sentença, afastando a sua tese inicial quanto à responsabilidade da Ré.
No entanto, como evidencia Salvador da Costa[4] “os incidentes de intervenção de terceiros foram estruturados na base dos vários tipos de interesse na intervenção e das várias ligações entre esse interesse, que deve ser invocado como fundamento da legitimidade do interveniente, e da relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas, estando para tal afastada a possibilidade do recurso ao incidente por parte do autor a fim de possibilitar a substituição do réu, contra quem, por erro, ou opção, dirigiu a ação”.
Conclui-se, pelo exposto, que não servindo a requerida intervenção para sanar qualquer ilegitimidade da Ré, nem manifestando os Autores uma dúvida fundamentada na propositura da ação ou após a contestação quanto aos sujeitos da relação material controvertida, não é admissível a intervenção principal deduzida.
Daí que improceda o recurso na sua totalidade, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Tendo os Recorrentes decaído na apelação, são eles os responsáveis pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC – sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
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Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil)
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
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Porto, 11 de novembro de 2024
Os Juízes Desembargadores
Teresa Pinto da Silva
Carlos Gil
Teresa Fonseca
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[1] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Coimbra, Almedina, janeiro 2024, p. 228.
[2] Neste sentido Ana Prata, “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2012, pág. 810.
[3] Neste sentido, cfr. António Santos Abrantes Geraldes e outros, obra já citada, p. 76.
[4] In Os Incidentes da Instância, 3ª edição, Coimbra, Almedina, 2002, p.78-79.