Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
MANDATO
REVOGAÇÃO
Sumário
Se o mandato é conferido também no interesse do mandatário, só pode ser revogado ocorrendo justa causa.
Texto Integral
Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO:
Vasco .............. e Clementina ................, vieram requerer a presente providência cautelar não especificada contra Jerónimo ..............
Pedem:
Que o requerido se abstenha de praticar quaisquer actos (em especial de venda de bens) abrangidos pela procuração que a seu favor os requerentes outorgaram e posteriormente revogaram.
Alegam, em síntese que:
O requerido se recusa a prestar contas dos negócios que tem celebrado ao abrigo da procuração, sem motivo ou justificação válida, mantendo, assim, os requerentes na ignorância quanto a tais negócios, criando justo receio de dissipação dos bens de que são proprietários, continuando a alienar fracções após a revogação da procuração por parte dos requerentes através de notificação judicial avulsa, continuando após tal facto a não prestar contas.
Foi ouvido o requerido, que apresentou oposição, na qual, em síntese, alegou que:
- o pai do requerente e do requerido, Salvador ............, dedicava-se, como empresário em nome individual, à construção de prédios para venda, com contabilidade organizada.
- Aquando do seu falecimento tinha em curso a construção de, pelo menos, um prédio, bem como tinha para venda algumas fracções de outro prédio já construído.
- E, em consequência, passou a competir à cabeça-de-casal, Deolinda .............., mãe do requerente e do requerido, prosseguir a referida actividade, para concluir e vender os imóveis afectos à mesma.
- De forma a acautelar o cumprimento das obrigações resultantes dessa construção, foi acordado, entre todos, que o requerido assumiria o encargo de levar a bom termo as construções e vendas desses imóveis, dadas a idade, a saúde e as inerentes dificuldades da mãe.
- E para tal constituíram-no procurador, nos termos da procuração acima referida.
- Tendo sido ponderado por todos a necessidade de conferir poderes irrevogáveis de modo a evitar que por iniciativa de qualquer um se colocasse em causa as responsabilidades que viessem a ser assumidas pelo requerido no desenvolvimento da actividade.
- Com efeito, era necessário assumir dívidas e encargos com a obra, sujeitos a prazos de cumprimento, bem como realizar dinheiro com a venda dos imóveis, destinado a pagar aqueles compromissos.
- Sendo o requerido a dar a cara por essas obrigações não podia ficar dependente de qualquer revogação da procuração, o que traria inegáveis prejuízos para a sua imagem e para a herança, pelos incumprimentos que poderia gerar.
- Faz parte da herança os imóveis, e a actividade industrial de construção de prédios para venda, da qual os imóveis são também mercadoria, sujeita a contabilidade própria.
- E a declaração fiscal anual relativa ao seu exercício, apresentada pela cabeça-de-casal, é do conhecimento de todos.
- Ficou ainda acordado entre todos os herdeiros que o saldo dessa actividade reverteria para a herança.
- o requerido sempre manteve informada a mãe, como cabeça-de-casal da herança, de que faz parte a actividade de construção de prédios para venda, na qual se inserem os referidos imóveis.
- E os demais interessados, nomeadamente os requerentes, sempre tiveram acesso a toda a informação sobre essa actividade, junto do requerido, quer junto dos responsáveis pela escrita, pela consulta das declarações fiscais anuais.
- No entanto, não está ainda o requerido, nem a cabeça-de-casal, em condições de prestar contas finais, pois um dos prédios está inacabado, faltando remates finais, e há ainda diversas fracções por vender.
- Há também diversas dívidas e responsabilidades por liquidar.
- a revogação da procuração traria prejuízos graves e irreparáveis não só ao requerido, mas sobretudo a todos os herdeiros, já que significaria a suspensão e paralisação da actividade e, em consequência, o incumprimento das obrigações em curso.
- As Contas relativas à actividade industrial de construção de prédios para venda só podem ser concluídas aquando do pagamento de todas as dívidas emergentes dessa actividade e venda de todos os imóveis afectos à mesma.
- Aliás, a prestação de contas parciais relativas às fracções vendidas, seria impossível, já que os custos do imóvel, para além de não estarem ainda determinados, não são por fracção vendida mas sim pela generalidade dos empreendimentos.
- A única coisa possível de se determinar neste momento é o resultado da actividade anual de construtor de prédios para venda, espelhada nas declarações anuais apresentadas fiscalmente.
- Os requerentes podem saber o valor de venda das fracções, já que nunca lhes foi recusado o acesso aos documentos, nomeadamente junto dos responsáveis pela contabilidade.
- Assim como podem saber os custos já suportados na generalidade, mediante a consulta dos respectivos documentos, que nunca lhes foi recusada.
Foi realizada a audiência final, onde foram inquiridas testemunhas tal como consta da acta de fls. 233, vindo a final a ser proferida decisão julgando improcedente a presente providência cautelar.
Inconformados com tal decisão, os requerentes dela interpuseram recurso, recebido como de agravo, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes
“CONCLUSÕES:
1. Os Recorrentes não se podem conformar com a douta decisão do Tribunal a quo que julgou improcedente a providência cautelar por si interposta e não ordenou que o Recorrida se abstivesse de praticar quaisquer actos (em especial venda de bens) abrangidos pela procuração a que os Recorrentes outorgaram e, posteriormente, revogaram.
2. Resultou provado que o Recorrente, através da carta constante de fls. 12, solicitou ao Recorrido "informações sobre a venda dos imóveis constantes da procuração”, indicando concreta e especificadamente os elementos que pretendia.
3. O Recorrido referiu na carta resposta que "ainda faltavam vender 15 fracções e que tinha ficado combinado entre todos que a mãe prestará contas de todas as vendas e dos respectivos custos de construção logo que as fracções estejam todas vendidas", dizendo apenas, quanto ao pedido do Recorrente que “já se efectuaram vendas de algumas fracções” pelo que não forneceu qualquer das informações concretizadas na carta de fls. 12.
3. A procuração outorgada é a forma de concretizar o exercício do mandato e nos termos do artº 1161 al. d) do CC o mandante é obrigado a prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante lhe exigir e, nos termos da ai. b) do mesmo artigo é obrigado a prestar as informações que o mandante lhe peça, relativas ao estado da gestão.
4. Segundo ensina o Prof. Antunes Varela, o mandante tem de fornecer todas as informações que lhe forem pedidas, além de ter de prestar aquelas cuja necessidade resulta da ai. c) do mesmo artigo e das que lhe são impostas pelo dever geral de diligência a que está sujeito, coisa que o Recorrido não fez.
5. Na mesma carta o Recorrido acrescenta que as contas de uma procuração a si outorgada serão prestadas por outrem, numa clara e inequívoca demonstração da sua vontade de não fornecer os elementos pedidos!
6. Não tem acolhimento a tese de que pelo facto de se ter considerado provado que os Recorrentes têm acesso aos elementos da contabilidade ou documentos, têm acesso a todos os elementos requeridos, quando é certo e sabido que os elementos da contabilidade por si só não são esclarecedores e desta não constam todos os elementos necessários ao solicitado pelo Recorrente.
7. Desta carta, só de pode tirar a ilação de que o Recorrido não pretende prestar informações sob o estado da gestão, tanto mais que durante toda a pendência destes autos, nomeadamente na resposta, não apresentou qualquer dos elementos pedidos.
8. Por tudo isto os Recorrentes tinham e têm justa causa para revogar a procuração outorgada, dado que o Recorrido os mantêm na mais completa ignorância de todos os actos de gestão praticados.
9. Como escreve Baptista Machado in "Pressupostos da resolução por incumprimento” deve entender-se por justa causa qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a urna das partes a continuação da relação.
10. A lei não estabelece nenhuma medida especial quanto à forma de revogação, pelo que o mandato pode ser revogado por qualquer das formas de declaração negocial admitidas, podendo ser efectuada por notificação judicial avulsa, conforme o foi no caso ora em apreço.
11. A procuração é um acto unilateral e a sua revogação também o é, não necessitando de aceitação da contraparte, mas apenas de ser levada ao seu conhecimento visto que estamos perante declarações receptícias, que, como tal, produzem efeitos independentemente da sua aceitação.
12. A lei confere o direito de revogação a qualquer das partes, sendo irrenunciável o direito à sua revogação.
13. Com a revogação da procuração, mesmo que irrevogável, extingue-se o mandato conferido, não podendo a mesma continuar a ser utilizada, visto que estamos perante um direito potestativo da parte, não havendo qualquer possibilidade de se entender que perante uma cláusula de irrevogabilidade e mesmo não existindo justa causa a revogação não se opera.
14. Caso contrário, nunca haveria aplicabilidade da al. b) do artº 1172º do CC, onde está prevista a obrigação de indemnizar nos casos em que tiver sido estipulado a irrevogabilidade do mandato, sendo certo que esta obrigação poderá ser afastada sempre que haja justa causa.
15. Perante um caso em que esteja convencionada a irrevogabilidade do mandato, este é passível de revogação, que esta poderá operar-se por qualquer meio idóneo e quando não se verifique justa causa na sua revogação deverá a parte que revogar indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer.
16. No caso em apreço, mesmo a entender-se que não há justa causa de revogação da procuração, sempre a mesma se operou, tendo, por isso, deixado de existir, havendo, quando muito, o dever de indemnizar.
17. Encontrando-se a procuração dos autos revogada, como se encontra, e visto que o Recorrido não se conforme com tal, nada mais restaria ao tribunal a quo do que decretar a providência requerida como única forma de pôr cobro à situação entretanto criada.
18. Ao não decidir conforme supra exposto, a decisão ora em crise violou as normas previstas nos arts. 265º, 1161º, 1171º e 1172º todos do Código Civil.
TERMOS EM QUE,
deve conceder-se provimento ao presente recurso e revogar-se a douta decisão recorrida, com o que se fará a habitual
JUSTIÇA!”
O recorrido contra-alegou, sustentando a negação de provimento ao agravo.
O Mmº Juiz a quo sustentou a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
2. OS FACTOS PROVADOS:
Dado que a matéria de facto relacionada na decisão recorrida não mereceu impugnação, nem se alveja motivo válido para a alterar, temos como assentes os factos dados como provados na 1ª instância, que são os seguintes:
- No dia 4 de Março de 1999 os Requerentes outorgaram, a favor do Requerido, a procuração de fls. 6 a 11, no .. Cartório Notarial de ............, da qual resulta, além do mais, que lhe conferiram poderes para "vender, pelo preço e condições que entender, os bens imóveis pertencentes a ele mandante... e que fazem parte da herança de SALVADOR .............. e para "receber de quem quer que seja quaisquer quantias que pertençam à mesma herança... "(cfr. doc. De fls. 6 a 11).
- O autor marido interpelou o requerido, por carta de fls. 12 e datada de 08.10.2002 "solicitando informações sobre a venda dos imóveis constantes da procuração, ou seja, cópias das escrituras e contrato de promessa de compra e venda relativos aos imóveis mencionados na procuração; contas correntes das fracções construídas ou em construção, vendidas ou por vender, extractos de contas bancárias onde são movimentados os valores resultantes da execução da referida procuração e se houver a respectiva reconciliação bancária"(cfr. doc. de fls. 12).
- Em resposta a tal interpelação, o Requerido, enviou ao autor marido a carta de fls.13 e datada de 23.10.02, segundo a qual se lê: "Como bem sabe e consta da procuração, as vendas a que a mesma se refere respeitam a Fracções pertencentes à herança de nosso pai Salvador .............., de cuja herança é cabeça de casal nossa mãe Deolinda .............., Fracções essas respeitantes à actividade de construtor de prédios para venda, exercida por nosso pai, de prédio em construção à data da sua morte. Como também sabe, mas relembro, já se efectuaram vendas de algumas dessas fracções, até esta data, mas ainda faltam vender 15 Fracções. Como também bem sabe, ficou combinado entre todos que a mãe prestará contas de todas as vendas e dos respectivos custos de construção, logo que as Fracções estejam todas vendidas. Com os melhores cumprimentos”. (cfr. doc. de fls. 13).
- Os Requerentes ignoram os negócios celebrados pelo requerido, quer no que respeita ao número de imóveis vendidos, valores envolvidos ou quaisquer outros aspectos a esses negócios ligados.
- Os requerentes revogaram a procuração que outorgaram a favor do Requerido, através de notificação judicial avulsa que foi cumprida em 10/12/2002 e publicada no jornal .......... em 17/2/2003 – (cfr. docs. de fls. 14 a 19).
- O Requerido continua sem prestar contas, e mesmo depois de ter sido notificado da revogação da procuração.
- O requerido continua a alienar os bens da herança objecto da procuração, marcando e celebrando escrituras, fornecendo todos os elementos necessários aos registos provisórios dos bens em nome dos adquirentes, enfim, procedendo como se ainda estivesse devidamente mandatado pelos Requerentes, tendo já celebrado as respectivas escrituras. (cfr. doc. de fls. 20 a 23).
- o pai do requerente e do requerido, Salvador .............., dedicava-se, como empresário em nome individual, à construção de prédios para venda, com contabilidade organizada.
- Aquando do seu falecimento tinha em curso a construção de, pelo menos, um prédio, bem como tinha para venda algumas fracções de outro prédio já construído.
- E, em consequência, passou a competir à cabeça-de-casal, Deolinda ............., mãe do requerente e do requerido, prosseguir a referida actividade, para concluir e vender os imóveis afectos à mesma.
- De forma a acautelar o cumprimento das obrigações resultantes dessa construção, foi acordado, entre todos, que o requerido assumiria o encargo de levar a bom termo as construções e vendas desses imóveis, dadas a idade, a saúde e as inerentes dificuldades da mãe.
- E para tal constituíram-no procurador, nos termos da procuração acima referida.
- Tendo sido ponderado por todos a necessidade de conferir poderes irrevogáveis de modo a evitar que por iniciativa de qualquer um se colocasse em causa as responsabilidades que viessem a ser assumidas pelo requerido no desenvolvimento da actividade.
- Com efeito, era necessário assumir dívidas e encargos com a obra, sujeitos a prazos de cumprimento, bem como realizar dinheiro com a venda dos imóveis, destinado a pagar aqueles compromissos.
- Sendo o requerido a dar a cara por essas obrigações não podia ficar dependente de qualquer revogação da procuração, o que traria inegáveis prejuízos para a sua imagem e para a herança, pelos incumprimentos que poderia gerar.
- faz parte da herança os imóveis, e a actividade industrial de construção de prédios para venda, da qual os imóveis são também mercadoria, sujeita a contabilidade própria.
- E a declaração fiscal anual relativa ao seu exercício, apresentada pela cabeça-de-casal, é do conhecimento, pelo menos, da cabeça-de-casal e requerido.
- Ficou ainda acordado entre todos os herdeiros que o saldo dessa actividade reverteria para a herança.
- o requerido sempre manteve informada a mãe, como cabeça-de-casal da herança, de que faz parte a actividade de construção de prédios para venda, na qual se inserem os referidos imóveis.
- E os demais interessados, nomeadamente os requerentes, sempre tiveram acesso a toda a informação sobre essa actividade, junto do requerido, quer junto dos responsáveis pela escrita, pela consulta das declarações fiscais anuais.
- No entanto, não está ainda o requerido, nem a cabeça-de-casal, em condições de prestar contas finais, pois um dos prédios está inacabado, faltando remates finais, e há ainda diversas fracções por vender.
- Há também diversas dívidas e responsabilidades por liquidar.
- a revogação da procuração traria prejuízos graves e irreparáveis não só ao requerido, mas sobretudo a todos os herdeiros, já que significaria a suspensão e paralisação da actividade e, em consequência, o incumprimento das obrigações em curso.
- As Contas relativas à actividade industrial de construção de prédios para venda só podem ser concluídas aquando do pagamento de todas as dividas emergentes dessa actividade e venda de todos os imóveis afectos à mesma.
- Aliás, a prestação de contas parciais relativas às fracções vendidas, seria impossível, já que os custos do imóvel, para além de não estarem ainda determinados, não são por fracção vendida mas sim pela generalidade dos empreendimentos.
- A única coisa possível de se determinar neste momento é o resultado da actividade anual de construtor de prédios para venda, espelhada nas declarações anuais apresentadas fiscalmente.
- Os requerentes podem saber o valor de venda das fracções, já que nunca lhes foi recusado o acesso aos documentos, nomeadamente junto dos responsáveis pela contabilidade.
- Assim como podem saber os custos já suportados na generalidade, mediante a consulta dos respectivos documentos, que nunca lhes foi recusada.
3. OS FACTOS E O DIREITO:
Como é sabido, o objecto do recurso é balizado pelas conclusões das alegações de recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do C.P.Civil.
Assim, temos as seguintes questões a apreciar no presente recurso:
- Saber se face à cláusula de irrevogabilidade constante da procuração, era possível a sua revogação sem a verificação de justa causa;
- Se havia in casu justa causa de revogação do mandato conferido pela procuração outorgada pelos requerentes ao requerido;
- Se face à revogação da procuração, unilateralmente (pelos requerentes), se extingui o mandato, independentemente de haver ou não justa causa para tal revogação e se, como tal, se impunha ao tribunal recorrido o decretamento, sem mais, da providência cautelar requerida, por se verificarem os respectivos pressupostos.
Com a reforma processual operada pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12, as providências cautelares não especificadas, largamente enraizadas na nossa tradição como um meio de protecção de direitos ameaçados, foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», do qual consta a regulamentação dos aspectos comuns a toda a justiça cautelar.
Assim, resulta do artº 381º do CPC que o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado—objectivo da acção declarativa-, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º do CPC; d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Como elementos constitutivos do seu direito, aos requerentes incumbia a alegação e prova dos aludidos requisitos (artº 342º do CC).
Posto isto, vejamos as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso:
- Quanto à primeira questão— se, face à cláusula de irrevogabilidade constante da procuração outorgada pelos requerentes a favor do requerido, era possível àqueles a sua revogação sem a verificação de justa causa de revogação.
Com a outorga da procuração junta a fls. 6 a 11, os requerentes celebraram um negócio jurídico, através do qual conferiram poderes de representação ao requerido, ou seja, para em nome deles concluir um ou mais negócios jurídicos--os ali referidos [Cfr. Vaz Serra, Ver. Leg. Jur., ano 112º-222].
Como é sabido, a procuração pode, ou não, coexistir com um mandato. Porém, no caso presente, tal mandato existiu, ou coexistiu—pois o requerido obrigou-se a “praticar um ou mais actos jurídicos por conta” dos requerentes” (artº 1157º, do C. Civil).
Como resulta do artº 1170º, CC, o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (nº1).
No entanto, reza o nº 2 deste normativo legal que “Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”— o que, aliás, já era entendido por Enneccerus-Nipperdey [Derecho Civil, 184, IV, 2c].
Este normativo está em perfeita sintonia com o estatuído no artº 265º, nºs 2 e 3 do mesmo Código, respeitante à revogação da procuração.
A lei não define o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procuração, sendo de atender, normalmente, à «relação jurídica em que a procuração se baseia» [Ver Vaz Serra, R.L.J., ano 109º, pág. 124 e Ac. STJ de 24.01.90, Bol. 393-588].
Indo ao caso sub judice, parece óbvio que a procuração em causa foi outorgada também no interesse do mandatário e mesmo de terceiros, pois os bens imóveis abrangidos no objecto do mandato—que visava a sua venda—são—como da procuração expressamente se fez constar (fls. 7/8) --“pertencentes a ele mandante, seus indicados irmãos Jerónimo e Manuel ............. e à referida sua mãe, em comum e sem determinação de parte ou direito, e que fazem parte da herança de Salvador ................, pai dele mandante e dos referidos irmãos.............., que faleceu.........., no estado de casado com a referida sua mãe....”.
Aliás, fez-se constar expressamente da procuração (cfr. fls. 11) que: “...a presente procuração é conferida também no interesse do mandatário, pelo que não pode ser revogada sem acordo escrito do interessado, e não caduca com a morte, interdição ou inabilitação dele mandante”.
Parece obvio que pelo exercício dos poderes que foram conferidos ao mandatário, este passou a desempenhar uma actividade que se repercutiu directamente na sua esfera patrimonial—pois é directamente interessado no produto da venda dos aludidos bens imóveis.
Portanto, se é verdade que da lei resulta que a possibilidade de revogação do mandato tem natureza imperativa, não sendo permitida, sequer, convenção em contrário, nem renúncia ao direito de revogação (artº 265º, nº2, CC), não tendo, assim, o revogante que justificar sequer o seu acto-- pois qualquer destes actos interessa apenas para a fixação da indemnização correspondente ao prejuízo que tiver a outra parte (artº 1172º, al. b), CC) [P. de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, 2ª ed., vol. II, pág. 647] --, há na mesma lei uma limitação à revogação por parte do mandante, contida naquele nº 2 do artº 1170º.
Assim sendo, temos como seguro que a procuração em causa só podia ser revogada desde que se verificasse “justa causa” para tal [Cfr., ainda, Ac. Rel. de Coimbra, in Col. Jur., 2001, T. 5, pág. 24]
Assim fica apreciada e respondida a primeira questão.
- Quanto à segunda questão—se in casu se verificava “justa causa” de revogação do mandato conferido pela procuração outorgada pelos requerentes ao requerido.
Bosquejando a lei, logo se constata que a mesma não contém um conceito de “justa causa”, pelo que, como ensinam P. Lima e Antunes Varela [Ob. e cit., pág. 648], poderá ser apreciada livremente pelo tribunal.
Segundo Baptista Machado [Pressupostos da resolução por incumprimento, 1979, pág. 21], será uma justa causa “qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou dificultar a obtenção desse fim....”.
Escreve o mesmo autor que a “justa causa” representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um “incumprimento”): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável, ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual [Pressupostos da resolução por incumprimento, in Obra Dispersa , vol. I, págs. 143-144].
Manuel J. da Costa Gomes [Em Tema de Revogação do Mandato Civil, pág. 220, citando Menezes Cordeiro] diz, por sua vez, que a “justa causa” é um conceito indeterminado e, com tal, “é uma figura vaga polissémica, que não comporta uma informação clara e imediata quanto ao seu conteúdo”.
Não alvejamos que se tenha provado qualquer facto que possa consubstanciar o preenchimento daquele conceito de justa causa.
Pelo contrário, face à factualidade apurada, a boa fé— que está presente tanto na preparação como na formação do contrato (artº 227º do C. Civil), como , também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (artº 762º, do mesmo Código) e é um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando-a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional [Ver Salvatore Romano, em “Enciclopédia del Diritto”, Milão, 1959, - “Buona Fede”, págs. 667 e segs. ; A Boa Fé nos Contratos, de Armando Torres Paulo, pág. 124 e “A Boa Fé no Direito Comercial”, in “temas de Direito Comercial”, conferência no Conselho Distrital do Porto da ordem dos Advogados, págs. 177 e segs. e Baptista Machado, in Obras Dispersas, vol. I] --, antes impunha a manutenção do mandato conferido através da dita procuração, pois não só e não alveja razão séria para a quebra da relação de confiança que lhe esteve na base, como também é do interesse dos próprios mandantes aquela mesma manutenção do mandato, pois seguramente que o seu rompimento lhes traria – tal como ao mandatário e demais interessados na herança aberta por óbito do Salvador ..............— sérios prejuízos.
Sustentam os agravantes, para fundamentar a existência de justa causa de revogação da procuração, que “o Recorrido os mantêm na mais completa ignorância de todos os actos de gestão praticados” (conclusão 8ª das alegações), pois não lhes são fornecidas informações sobre a venda dos imóveis constantes da procuração.
É apodíctico que não é isto que emerge da factualidade dada como provada na 1ª instância.
Efectivamente, dessa factualidade resulta, não só que não foi recusada aos agravantes informação sobre os negócios do agravado no âmbito do mandato que lhe foi conferido, como também não lhes foi recusada a prestação de contas—sendo certo que, como também se provou, as contas finais nem, sequer, são ainda possíveis.
Na verdade, se é certo que se provou que os requerentes da providência cautelar ignoram os negócios celebrados pelo requerido, quer no que respeita ao número de imóveis vendidos, valores envolvidos ou quaisquer outros aspectos a esses negócios ligados, tendo revogado a procuração que outorgaram a favor deste último, bem assim se provou que o requerido continua a alienar os bens da herança objecto da procuração, marcando e celebrando escrituras, fornecendo todos os elementos necessários aos registos provisórios dos bens em nome dos adquirentes, enfim, procedendo como se ainda estivesse devidamente mandatado pelos Requerentes, tendo já celebrado as respectivas escrituras, igualmente se provou, de interesse para a questão em apreço, o seguinte:
- o pai do requerente e do requerido, Salvador ............., dedicava-se, como empresário em nome individual, à construção de prédios para venda, com contabilidade organizada.
- Aquando do seu falecimento tinha em curso a construção de, pelo menos, um prédio, bem como tinha para venda algumas fracções de outro prédio já construído.
- E, em consequência, passou a competir à cabeça-de-casal, Deolinda ............., mãe do requerente e do requerido, prosseguir a referida actividade, para concluir e vender os imóveis afectos à mesma.
- De forma a acautelar o cumprimento das obrigações resultantes dessa construção, foi acordado, entre todos, que o requerido assumiria o encargo de levar a bom termo as construções e vendas desses imóveis, dadas a idade, a saúde e as inerentes dificuldades da mãe.
- E para tal constituíram-no procurador, nos termos da procuração acima referida.
- Tendo sido ponderado por todos a necessidade de conferir poderes irrevogáveis de modo a evitar que por iniciativa de qualquer um se colocasse em causa as responsabilidades que viessem a ser assumidas pelo requerido no desenvolvimento da actividade.
- Sendo o requerido a dar a cara por essas obrigações não podia ficar dependente de qualquer revogação da procuração, o que traria inegáveis prejuízos para a sua imagem e para a herança, pelos incumprimentos que poderia gerar.
- faz parte da herança os imóveis, e a actividade industrial de construção de prédios para venda, da qual os imóveis são também mercadoria, sujeita a contabilidade própria.
- Os interessados na herança do Salvador ..........., nomeadamente os requerentes/agravantes, sempre tiveram acesso a toda a informação sobre essa actividade, junto do requerido, quer junto dos responsáveis pela escrita, pela consulta das declarações fiscais anuais.
- A revogação da procuração traria prejuízos graves e irreparáveis não só ao requerido, mas sobretudo a todos os herdeiros, já que significaria a suspensão e paralisação da actividade e, em consequência, o incumprimento das obrigações em curso.
- As Contas relativas à actividade industrial de construção de prédios para venda só podem ser concluídas aquando do pagamento de todas as dividas emergentes dessa actividade e venda de todos os imóveis afectos à mesma.
- A única coisa possível de se determinar neste momento é o resultado da actividade anual de construtor de prédios para venda, espelhada nas declarações anuais apresentadas fiscalmente.
- Os requerentes podem saber o valor de venda das fracções, já que nunca lhes foi recusado o acesso aos documentos, nomeadamente junto dos responsáveis pela contabilidade. - Assim como podem saber os custos já suportados na generalidade, mediante a consulta dos respectivos documentos, que nunca lhes foi recusada.
Portanto, não lograram os agravantes fazer prova—como lhes competia (artº 342º, nº1, CC)--das razões que invocaram para fundamentar a “justa causa” de revogação da procuração—razões essas que (dizem) se consubstanciam no facto de o agravado os manterem “na mais completa ignorância de todos os actos de gestão praticados”, dada a total recusa de informações sobre a venda dos imóveis constantes da procuração.
O mesmo é dizer que nada há que nos leve a aceitar a não vinculação dos agravantes nos termos da procuração irrevogável que outorgaram. Ao contrário, a boa fé que presidiu à sua elaboração, impõe a vinculação dos agravantes à relação contratual— e desde logo porque, como se provou, “a revogação da procuração traria prejuízos graves e irreparáveis não só ao requerido, mas sobretudo a todos os herdeiros, já que significaria a suspensão e paralisação da actividade e, em consequência, o incumprimento das obrigações em curso”.
Assim sendo, ou seja, inexistindo justa causa para a revogação da procuração, jamais podiam os agravantes revogá-la.
Assim se conhece da 2ª questão suscitada.
- Quanto à terceira questão: se, face à revogação unilateral da procuração (pelos requerentes), se extingui o mandato, mesmo faltando justa causa para tal e, por conseguinte, se se impunha ao tribunal recorrido o decretamento, sem mais, da providência cautelar requerida, por se verificarem os respectivos pressupostos.
Igualmente falece razão aos agravantes, nesta questão.
- Efectivamente, se o mandato se consubstanciou na outorga da procuração, parece manifesto que, não tendo a mesma sido validamente revogada-- e, consequentemente, permanecendo válida e eficaz—igualmente, em princípio, continuaválido e eficaz o mandato. A tentativa dos mandantes/agravantes de extinguir a procuração conferida não logrou êxito, pois foi feita à margem da lei e, como tal, tal tentativa é de todo inoperante, maxime ineficaz em relação ao mandatário.
Neste sentido, pode ver-se, v.g., o Ac. da Rel. de Évora de 17.01.1991 [Bol. M J. nº 403º, pág. 504], cujo sumário é do seguinte teor:
Cremos que se pode judicialmente dar por reconhecida a validade da procuração—a qual se pode dizer que continua em vigor--, porquanto irregularmente foi pretendido extingui-la.
No entanto, parece obvio que o reconhecimento judicial dessa situação não dá vida à procuração, pois esta -- ao contrário do que pretendem os recorrentes--, nunca deixou de vigorar.
Face ao explanado, é desde logo manifesto que a providência cautelar jamais podia ser decretada, por não verificação de todos os requisitos legais para o seu decretamento, supra enunciados.
Efectivamente, como dissemos, não havendo justa causa de revogação da procuração, esta não podia ser revogada. E tendo-o sido, tal acto é ineficaz, maxime em relação ao mandatário.
E assim sendo, logo falta o primeiro requisito para o decretamento da providência cautelar, qual seja, a probabilidade da existência do direito tido por ameaçado—objectivo da acção declarativa-, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor. É que não tendo os agravantes direito à revogação da procuração (que se quis irrevogável), por falta de justa causa, obviamente que lhes não assiste direito de exigirem que o agravado se abstenha de executar o mandato que lhe conferiram por essa mesma (válida e eficaz) procuração.
E falta o segundo requisito: que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito
Efectivamente, o legislador condicionou a tutela antecipada ou conservatória à prova sumária do aludido fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável—o periculum in mora (requisito comum a todas as providências cautelares).
Como se dispõe na lei, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão [Ver o Ac. da Rel. de Évora, de 13.06.91, in BMJ nº 408º-673].
É que, tratando-se de uma tutela cautelar decretada muitas vezes sem a audiência da parte contrária (cfr. artº 385º, nº1, 2ª parte), não se pode aceitar que seja qualquer lesão a justificar a intromissão na esfera jurídica do requerido, causando-lhe, porventura, um prejuízo do qual pode não ser compensado em caso de injustificado recurso à providência cautelar (artº 390º CPC).
“Fundado receio”, é aquele que é apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade [Ver Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. I, pág. 684 e Ac. Rel. de Lisboa, de 26.05.83, in Col. Jur., 1983, tomo III, pág. 132] -- embora também é certo que o critério de aferição da expressão “fundado receio” não deve ser reconduzido à certeza inequívoca sobre a verificação in casu da situação de perigo.
Na apreciação do aludido justo receio” de grave lesão futura e dificilmente reparável, há que apreciar, de forma objectiva, todas as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, tendo em consideração os interesses em jogo por ambas as partes, as condições económicas de ambas, as condutas anteriores e posteriores do requerido e sua projecção nos posteriores comportamentos, etc.
Ora, não só in casu se não verifica uma lesão grave e dificilmente reparável de um direito dos requerentes, como, até, o decretamento da providência cautelar acarretaria lesão grave e dificilmente reparável a eles e a terceiros-- in casu, ao património pertencente à herança aberta por óbito do aludido Salvador ............, de que os requerentes, requerido e demais interessados citados supra são interessados.
E, naturalmente, é patente, igualmente, que se não verificam os requisitos supra referidos sob as alíneas d) e e), quais sejam: que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar—antes, bem pelo contrário, como se viu.
Desta forma se conclui pela não verificação dos pressupostos legais necessários ao decretamento da requerida providência cautelar.
Improcedem, como tal, as conclusões das alegações do agravo, pelo que bem andou a Mmª Juiz ao julgar improcedente a providência cautelar requerida.
4. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos agravantes.
Porto, 8 de Janeiro de 2004
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha