Verificados os demais pressupostos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, deve ser considerada verificada a oposição de julgados e determinado o prosseguimento do recurso quando, no acórdão recorrido, decidiu-se, acolhendo um conceito objetivo de declaração falsa, que sem o apuramento da verdade histórica, que deve estar definida nos despachos de acusação e/ou de pronúncia, não é possível afirmar a falsidade do testemunho só porque foram produzidos depoimentos contraditórios e no acórdão fundamento decidiu-se, com base no conceito subjetivo de declaração falsa, que para o preenchimento do tipo bastava “a desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra, sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade”.
I.1. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, não se conformando com o acórdão proferido por aquela Relação em 19 de Dezembro de 2023, transitado em julgado a 15 de Janeiro de 2024, acórdão recorrido, do mesmo, veio interpor recurso extraordinário para FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 437.º e seguintes do Código de Processo Penal.
Invoca como Acórdão fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 22 de Janeiro de 2020, no processo 97/16.1T9CNT.C2 publicado em www.dgsi.pt, ambos transitados em julgado.
I.2. O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões:
“1 - No Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 19-1 2-2023 foi proferida decisão absolvendo a ali arguida da prática de um crime de falsidade de testemunho previsto no art. 360° n° 1 do C, Penal, em virtude de não se ter apurado a realidade histórica sobre a qual os depoimentos por aquela prestados incidiram e nessa medida não ser possível concretizar o momento em que uma das declarações prestadas se materializou como falsa, não obstante aqueles se apresentarem como divergentes e contraditórios.
2 - No Acórdão fundamento, estando em causa a apreciação da prática de um crime de falsidade de testemunho previsto no art. 360° n° 1 do C. Penal, foi exarada decisão no sentido que, para preenchimento do elemento objectivo daquele tipo criminal basta a verificação da oposição, contradição e divergência entre os testemunhos prestados dispensando-se a concretização da realidade e verdade histórica inerente ao teor dos depoimentos em conflito e a identificação do momento em que tal declaração, contrária á verdade histórica, acontece.
3 - Os Acórdãos recorrido e fundamento transitaram em julgado não sendo possível apresentar recurso ordinário dos mesmos.
4 - Os referidos Acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação, inexistindo qualquer alteração relativamente ao teor do art. 360° n° 1 do C. Penal, no espaço temporal das mencionadas decisões.
5 - A questão controvertida em apreciação define-se como: Para que se possa considerar a existência de falsidade de testemunho, nos termos exigidos pelo art. 360° n° 1 do C. Penal, basta que exista divergência e contraditoriedade entre depoimentos ou declarações prestadas ou, para além da constatação de tal oposição, é necessário apurar qual a realidade verdadeira e objectiva sobre que versam os mencionados testemunhos e o momento em que a declaração feita contraria esta?
6 - Requer-se, assim que se reconheça a existência de oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 22-1-2020, secção penal, no Processo n.° 97/1 6.1 T9CNT.C2, publicado em www.dqsi.pt/jtrc acessível pela ligação http://www.dqsi.pt/itrc.nsf/c3fb530030ealc61802568d9005cd5bb/bd 0de34ac97a88a3802584f900438f27?OpenDocument .
7 - Propondo-se que a questão controvertida seja decidida de acordo com o decidido no acórdão fundamento.
8 - Determinando-se a revogação do acórdão recorrido, nessa parte, e ordenando-se a sua substituição por outro em conformidade com o que vier a ser decidido.
Nos termos expostos e pelos demais que Vossas Excelências, como sempre, doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e fixar-se jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, mais se revogando a decisão recorrida e a sua substituição por outra, conforme a jurisprudência a fixar.”
I.3. A arguida não respondeu ao recurso.
I.4. Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Sob a epígrafe “Fundamento do recurso”, dispõe o artigo 437.º do Código de Processo Penal, no que tange à interposição de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência:
«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».
Por sua vez o artigo 438º, sob a epígrafe “Interposição e efeito”, dispõe:
“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.”
II.2. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim fomentando os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.
Como se diz no acórdão nº 5/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reiterar, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.1
São requisitos de ordem formal:
i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);
ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito;
iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões;
iv. tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).
São requisitos de ordem material:
i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;
ii. verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;
iii. oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos;
iv. as decisões em oposição sejam expressas;
v. a identidade de situações de facto.
II.3. Da verificação dos pressupostos formais
Legitimidade e interesse em agir: O Ministério Público tem legitimidade e interesse em agir (artigo 437º, nº 5 do Código de Processo Penal)
Tempestividade: Nos termos do artigo 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o recurso para fixação de jurisprudência deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido.
O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 19 de Dezembro de 2023, transitou em julgado 15 de Janeiro de 2024.
O presente recurso entrou em 24 de Janeiro de 2024, portanto dentro dos 30 dias subsequentes ao trânsito em julgado do mesmo.
O Acórdão fundamento, proferido em 22 de Janeiro de 2020, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do proc. nº. 97/1 6.1T9CNT.C2, publicado in www.dgsi.pt, também já se mostrava transitado em julgado.
Assim, o pressuposto da tempestividade mostra-se também preenchido.
Invocação, identificação, cópia do acórdão fundamento (só um) e indicação da sua publicação (artigo 438, nº 2): Para oposição de julgados como acórdão fundamento o Recorrente invocou o acórdão proferido a 22 de Janeiro de 2020, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do proc. nº.° 97/1 6.1T9CNT.C2, transitado em julgado e publicado no sítio da dgsi.
Com o que preenchido está também este pressuposto de invocação de um único acórdão fundamento.
Trânsito em julgado dos dois acórdãos contraditórios de tribunais superiores: está em causa a contraditoriedade de dois acórdãos de duas Relações e os dois transitaram em julgado (artigos 438, nº 1, e 437, nº 4 do Código de Processo Penal).
Justificação da oposição, de facto e de direito (artigo 438, nº 2): O Ministério Público recorrente explicita bem a oposição entre o decidido num e o decidido no outro, bem como a concretização das idênticas situações de facto, alegando em síntese conclusiva: “Para que se possa considerar a existência de falsidade de testemunho, nos termos exigidos pelo art. 360° n° 1 do C. Penal, basta que exista divergência e contraditoriedade entre depoimentos ou declarações prestadas ou, para além da constatação de tal oposição, é necessário apurar qual a realidade verdadeira e objectiva sobre que versam os mencionados testemunhos e o momento em que a declaração feita contraria esta?”
Verificado, pois, se mostra o pressuposto da justificação da oposição.
Não se conhece jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça na questão ora suscitada.
E, assim, estão verificados todos os pressupostos formais de que depende a admissibilidade do recurso ordinário para fixação de jurisprudência.
II.4. Da verificação dos pressupostos substanciais:
Oposição de dois acórdãos de tribunais superiores tirados sob o domínio da mesma legislação (artigo 437, nºs 1 e 2): A oposição tem de ocorrer entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos em processos diferentes, ou um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do Supremo Tribunal de Justiça.
No caso dos autos estamos efectivamente na presença de dois acórdãos de diferentes tribunais superiores, o recorrido prolatado pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o fundamento proferido pela Tribunal da Relação de Coimbra.
Os acórdãos em oposição foram proferidos no âmbito da mesma legislação, (artigo 437, nº 3) isto é, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não sobreveio modificação legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.
No caso, não houve alteração legislativa no que que concerne ao artigo 360º do Código Penal.
Prolação de decisões opostas (artigo 437, nº 1): No caso, as considerações expendidas nos acórdãos invocados como opostos, consagraram soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, ditaram “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos idênticos.
No acórdão recorrido decidiu-se, acolhendo um conceito objetivo de declaração falsa, que sem o apuramento da verdade histórica, que deve estar definida nos despachos de acusação e/ou de pronúncia, não é possível afirmar a falsidade do testemunho só porque foram produzidos depoimentos contraditórios.
No acórdão fundamento decidiu-se, com base no conceito subjetivo de declaração falsa, que para o preenchimento do tipo bastava “a desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra, sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade”.
Decisões opostas de forma expressa e identidade de situações de facto: No caso sub judice a questão (de direito) em causa, foi objeto de decisões expressas e contraditórias que se negam mutuamente, evidenciando claramente a oposição de julgados, partindo de idêntica situação de facto.
No acórdão recorrido, a arguida foi condenada na 1.ª instância pela prática de um crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal, com base na seguinte factualidade:
«3.1.1. No decurso das diligências de investigação que tiveram lugar no inquérito com o NUIPC 364/17.7... que culminou com a prolação do despacho de acusação contra o ali arguido AA e a sociedade J..., Unipessoal, Lda, a aqui arguida BB, como testemunha, no dia 15-01-2018, pelas 15:14 horas, nas instalações do NIC de ..., prestou depoimento perante a instrutora do inquérito, CC, após prestar juramento, tendo dito o seguinte:
“[...] respondeu que trabalhou na empresa indiciada de 2010 a dezembro de 2014. A testemunha declarou que exercia ali as funções de vendedora.
Questionada sobre quem era o responsável pela empresa, a testemunha declarou que apenas ali conheceu como patrão, AA, identificando-o como a pessoa que dava ordens de trabalho e que procedia ao pagamento dos seus salários.
3.1.2. Em virtude desse seu depoimento a aqui arguida foi indicada como testemunha pela acusação.
3.1.3. Porém, no julgamento que se realizou nos autos de Processo Comum Singular com o n.º supra indicado, no dia 02-12-2020, na sala de audiências deste Juízo de Competência Genérica de Mirandela, no qual a aqui arguida prestou depoimento perante o tribunal singular, após ter sido devidamente ajuramentada e advertida de que incorria em responsabilidade criminal se faltasse à verdade sobre o objecto do processo, do que ficou bem ciente, resolveu deturpar a verdade dos factos em julgamento e em defesa do ali arguido, disse o seguinte às perguntas que lhe foram colocadas:
[segue-se a transcrição, aparentemente integral, das respostas da arguida às perguntas que a Sr.ª procuradora da República e o Sr. juiz lhe fizeram durante o julgamento e que, pela sua extensão, aqui damos por integralmente reproduzida por razões de economia expositiva, mas que, em apertada síntese, consistiram em afirmar, de forma muito pouco assertiva, diga-se, que trabalhou para a empresa J..., Unipessoal, Lda até ao início de 2014, quando saiu o patrão era o «Senhor DD» e quem pagava os salários e dava as ordens era o «Senhor AA», que deixou de ver o (ali) arguido AA em 2013 e que a empresa «passou para a mão» do «Senhor DD» em janeiro de 2013].
3.1.4. Ao assim depor falsamente a arguida agiu de modo livre e consciente, bem sabendo a qualidade processual em que depunha, mediante juramento e que estava obrigada a responder com verdade, não se tendo abstido de depor deliberadamente contra a verdade dos factos, que bem conhecia, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”
Na sequência do recurso interposto pela arguida, o Tribunal da Relação de Guimarães absolveu a arguida em razão dos seguintes fundamentos:
«A declaração é falsa quando não corresponde à realidade histórica. Estando a testemunha sujeita ao dever de dizer a verdade [artigos 348.º, 138.º-3 e 91.º, todos do CPP], o depoimento é falso quando não corresponde ao realmente acontecido, a chamada verdade história, quando o seu conteúdo contraria a realidade objectiva [...].No caso dos autos a testemunha, ora arguida, apresentou em dois momentos processuais depoimentos divergentes sobre a mesma realidade.
Como justamente se observou no citado Ac. da Relação do Porto de 5-7-2006, só estando fixada a verdade objectiva é que se pode saber se o depoimento é falso. Por isso que não baste que se prove ter a testemunha, em dois momentos distintos, feito depoimentos contraditórios que mutuamente se excluem [...]. Cumpria, pois, ao acusador alegar e depois ao julgador demonstrar que o depoimento prestado em audiência não tinha correspondência com a realidade, isto é, que contrariamente ao que a arguida declarou em julgamento, o cidadão AA nos anos de 2013 e 2014 geria a sociedade “J..., Unipessoal, Lda”, sendo ele quem tomava todas as decisões relativas à vida aquela sociedade, nomeadamente todas as decisões sobre os pagamentos os seus funcionários. Mas o Ministério Público na acusação, o juiz de instrução na pronúncia e o juiz de julgamento na sentença limitaram-se a reproduzir os depoimentos prestados pela arguida em inquérito e em audiência e a classificar este último como falso sem sequer indicarem os motivos por que sustentavam tal falsidade.
Ora, não basta dizer que um depoimento é falso. É preciso explicar em que factos concretos se contém essa falsidade. É que a falsidade é uma mera conclusão que coincide com um dos elementos do tipo, pelo que a sua prova não prescinde da evidenciação da adequação da mesma à realidade ocorrida, através da enunciação de factos, objectivos e concretos, donde emerge aquela asserção.
Como a jurisprudência tem assinalado em casos similares [...] essa conclusão tem que assentar em factualidade que a justifique, sob pena de se dar por provado aquilo que a prova se destina a provar.
Nada se tendo apurado a este respeito, até porque a acusação e o despacho de pronúncia eram a este respeito totalmente omissos, é bom de ver que se impõe a absolvição da arguida.
Ex abundante mesmo que se perfilhasse a doutrina subjectiva sobre o conceito de falsidade no sentido de que é falso o depoimento que contrasta com aquilo que o declarante sabe por tê-lo visto ou ouvido [...] nem mesmo assim seria possível a condenação da arguida por não se terem concretizados quais os pontos específicos do depoimento daquela onde se verifica a falsidade subjacente à condenação, nem se ter justificado em que se alicerçava essa invocada falsidade.
Por último, perfilhando aquela perspectiva subjectiva alguma jurisprudência tem admitido que comete o crime a testemunha que apresenta em dois momentos processuais depoimentos divergentes sobre a mesma realidade, não se tendo apurado em qual deles faltou à verdade [...]. Mas a arguida não foi acusada, nem foi condenada por ter apresentado em dois momentos processuais depoimentos divergentes sobre a mesma realidade, desconhecendo-se em qual deles faltou à verdade (…).
Mas a arguida não foi acusada, nem foi condenada por ter apresentado em dois momentos processuais depoimentos divergentes sobre a mesma realidade, desconhecendo-se em qual deles faltou à verdade.
A arguida foi, diferentemente, acusada, pronunciada e condenada por falso depoimento prestado em audiência de julgamento, sem se justificar em que se alicerça essa falsidade em julgamento».
Por sua vez no acórdão fundamento, o arguido foi condenado na 1.ª instância pela prática de um crime falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, com base na seguinte factualidade:
«No dia 22 de fevereiro de 2016, pelas 14h30m, nas instalações do Tribunal Judicial de ..., em sede de audiência de julgamento no âmbito do processo comum singular n.º […], no qual se encontrava a ser julgado AJ, o arguido, na qualidade de testemunha de acusação, prestou declarações, depois de previamente ter prestado juramento e ter sido advertido pela Mm.º Juiz que presidiu àquela audiência de julgamento das consequências penais em que incorreria se faltasse à verdade.
No decurso da referida audiência foi perguntado ao arguido pelo Sra. Procuradora-adjunta se também recolhia sucata e vendia ao AJ, tendo respondido que sim. Após, foi questionado se tinha conhecimento de pessoas que fizessem a mesma coisa, que vendessem materiais ao AJ, tendo o arguido respondido que não. Durante a inquirição, referiu ainda o arguido, que o AJ lhe perguntava sempre se o material era roubado e dizia que não queria nada roubado, que já tinha problemas que chegassem.
Questionado pela Meritíssima Juiz se conhecia o R e o B, pelo arguido foi dito que sim e que o R morava com AJ e o B trabalhava para ele. À pergunta se eles angariavam material, o arguido respondeu que não.
Perguntado onde arranjava o material, o arguido respondeu que as pessoas lho davam, ou vendiam, ou recolhia no lixo.
Porém, no dia 20 de novembro de 2013, pelas 14h50m, no decurso da sua inquirição enquanto testemunha efectuada no âmbito do inquérito que deu origem aos supra referidos autos, o arguido declarou, entre o mais, que desde há cerca de 10 anos atrás, AJ efectuava a compra de cobre, inox, alumínio, latão, bronze e demais metais ferrosos a indivíduos sem esclarecer a sua proveniência, a preços inferiores aos praticados à venda lícita dos mesmos. Disse, ainda, que os produtos e bens adquiridos pelo AJ eram provenientes de furtos, nomeadamente artigos como tampas de saneamento, artigos relacionados com cemitérios [crucifixos, cruzes, etc], cabos eléctricos, entre outros. Referiu, também, que o AJ dizia à malta onde ir buscar os artigos e o que trazer, pois ele não ia realizar os furtos. Relativamente à “malta”, esclarece que era o próprio, o R, o ... e outros indivíduos que estavam a passar necessidades e que ele acolhia em casa e dizia para irem trabalhar para ele.
Ora, o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que prestava ali depoimento como testemunha e que não podia faltar à verdade ao tribunal, ademais sob juramento, o que fez ostensivamente, com o propósito de deturpar o apuramento da verdade e a realização da justiça. Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal».
Na sequência do recurso interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação de Coimbra, depois de caracterizar o tipo de falsidade de testemunho, concluiu:
«Aqui chegados, importa clarificar, desde já, que entendemos que a falsidade de depoimento a que se reporta o tipo de crime em análise, corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida (a sua ciência), independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, não se exigindo, pois, que a verdade histórica objectiva tenha de ser apurada [e deva, para tanto, constar da acusação].
Isto conforme a posição defendida por esta Relação, no Acórdão de 24-04-2018, proferido no processo n.º 1341/16.0T9CBR.C1 [relator Brízida Martins], cujos fundamentos em que se apoiou merecem a nossa concordância e adesão, mormente os que resultam do Acórdão da Relação de Évora de 03-11-2015, proferido no processo n.º 49/13.3T3STC.E1 [relator António Latas], e que ali foram citados [...]. Em suma, a falsidade de declaração a que se refere o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal corresponde à desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra, sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade. É irrelevante que não se apure em que momento o agente faltou à verdade, uma vez que o seu comportamento como testemunha no processo deve ser perspectivado na globalidade e não de uma forma fraccionada, em tantos momentos quantos aqueles em que foi chamado a depor [aferidos, cada um deles, com base na realidade histórica].
A falta de fidelidade à verdade, traduzida num desvio da declaração em relação à realidade apreendida pelo próprio declarante e descortinada através de uma visão integrada de toda uma conduta processual, é por si só suficiente para consubstanciar a prática de um ilícito-típico objectivo de falsidade de testemunho. Nesta ordem de ideias, porque em tais casos a prática de um falso depoimento não suscita qualquer dúvida, não há que fazer operar o princípio in dubio pro reo, levando à absolvição do agente, pois tal redundaria na impunidade perante a realização incontroversa de um crime.
O que não significa que, nos casos em que a dúvida sobre qual dos momentos processuais o agente faltou à verdade, assume relevo penal ou processual penal, v.g., para efeitos de prescrição ou da agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, ela não deva ser valorada em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando na decisão o momento que, em concreto, se revela mais favorável para o arguido.
(…)
In casu, o recorrente vem dizer que não há prova de que faltou à verdade, no depoimento que prestou na audiência do julgamento realizada no processo n.º [...], como também não há prova de que não é falso o que prestou durante a fase de inquérito, sendo que do referido processo não resulta qual foi o acontecimento histórico verdadeiro.
Ora, considerando que, conforme acima se expôs, para efeitos da falsidade típica a que se refere o artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal, se estivermos perante depoimentos antagónicos sobre o mesmo acontecimento, um deles exclui necessariamente o outro e leva a concluir que o agente depôs com falsidade, sem que para tal se exija o apuramento da verdade histórica objectiva, é forçoso concluir que a prova em que se apoiou o tribunal a quo se revela claramente suficiente para suportar a decisão tomada, no sentido da demonstrada prática, pelo arguido, de falso testemunho.
3.3.2. Em relação ao momento em que faltou à verdade a que estava legalmente obrigado [artigo 132.º, n.º 1, alínea d), do CPP] - se no inquérito, se no julgamento - entendeu-se na sentença recorrida que o depoimento que o arguido prestou em audiência de julgamento é falso, o que não ignorava, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que prestava ali depoimento como testemunha e que não podia faltar à verdade ao tribunal, ademais sob juramento, o que fez ostensivamente, com o propósito de deturpar o apuramento da verdade e a realização da justiça, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
(…)
III - Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.»
Como se pode verificar da transcrição efectuada dos dois arestos, as soluções opostas a partir de idêntica situação de facto mostram-se expressas, tal como a lei exige.
Em ambos os processos, os arguidos prestaram em julgamento declarações diferentes das que haviam prestado na fase de inquérito.
Ficou igualmente assente que os arguidos faltaram à verdade em julgamento. No acórdão recorrido ficou provado em 3.1.3. que a arguida «resolveu deturpar a verdade dos factos em julgamento» e foi “condenada por falso depoimento prestado em audiência de julgamento” e no acórdão fundamento ficou provado que «o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava».
Em nenhum dos processos se apurou a “verdade histórica objetiva”.
Apesar desta identidade de factos, a solução jurídica é oposta e contraditória em ambos os arestos.
Identidade da questão jurídica: A identidade do enquadramento jurídico é, igualmente, evidente nos dois acórdãos em conflito, nos quais, relativamente à mesma questão de direito, proferiram soluções opostas.
Na verdade, na subsunção dos factos ao tipo de falsidade de testemunho do artigo 360.º do Código Penal, o acórdão recorrido, entendeu que sem o apuramento da verdade histórica, que deve estar definida nos despachos de acusação e/ou de pronúncia, não é possível afirmar a falsidade do testemunho só porque foram produzidos depoimentos contraditórios.
Pelo contrário, o acórdão fundamento, entendeu que para o preenchimento do tipo bastava «a desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, independentemente de a verdade ter sido apurada no processo e qual seja ela, pelo que, perante declarações contraditórias entre si, uma delas exclui necessariamente a outra, sendo inequívoco que o agente declarou com falsidade”.
Recorrido e fundamento assentaram, pois, em soluções de direito opostas, no domínio da mesma legislação, sobre situação de facto idêntica, pelo que este Supremo Tribunal de Justiça terá de decidir em termos de uniformização da jurisprudência.
Nestes termos, concluindo-se pela verificação de todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário de jurisprudência, deve o presente recurso prosseguir, nos termos do artigo 441, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal.
III - DECISÃO
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª Secção, acorda em julgar verificada a oposição de julgados e, em conformidade, ordenar o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Outubro de 2023
Antero Luís (Relator)
Lopes da Mota (1º Adjunto)
Carlos Campos Lobo (2º Adjunto)
_______
1. Veja- se, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2024, proc.298/22.3YUSTR.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt