VALOR DA CAUSA
UTILIDADE ECONÓMICA IMEDIATA DO PEDIDO
DIREITO DE PROPRIEDADE
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
Sumário


1) A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, atendendo-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal;
2) O valor processual da causa que tiver por objeto fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, corresponde ao valor desta;
3) Numa primeira leitura, os nºs 1 e 3 (do artigo 310º) parecem referir-se a situações distintas: o nº 1 parece respeitar à fixação do valor da causa na decisão que aprecia o incidente de verificação do valor e o nº 3 parece reportar-se à situação em que o valor da causa é fixado “oficiosamente”, isto é, é fixado, nos termos do artigo 306º, nº 1, sem ter sido deduzido aquele incidente. A ressalva que é feita no nº 1 ao nº 3 mostra, no entanto, que não é assim. Apesar de o artigo só tratar de efeitos decorrentes da decisão proferida no incidente de verificação do valor, ele também é aplicável à decisão do tribunal que, mesmo sem qualquer discussão entre as partes, fixa o valor da causa.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

A) AA veio intentar ação declarativa com processo comum contra BB e mulher CC e DD e mulher EE, onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente e provada e, em consequência, os réus condenados a:

a) Reconhecerem que a autora é filha de FF e GG, já falecidos;
b) Reconhecerem que FF e GG adquiriram o prédio identificado neste articulado e da forma referida, ficando desde a data da respetiva aquisição (10 de maio de 1966 e 28 de março de 1968, respetivamente) na posse, uso e fruição desse prédio, posse em que se mantiveram até ao seu falecimento, que ocorreu respetivamente em ../../1984 e ../../2007;
c) Reconhecerem que a autora recebeu, por herança de seus pais, e aquando da abertura da sucessão de cada um deles, por aquisição derivada translativa, a parte subsistente do prédio-mãe, referido no artigo anterior, que tinha uma área de cerca de 5932 m2, do qual seus pais haviam alienado a terceiros apenas três parcelas de terreno (uma por venda, outra por doação e uma outra dada à Freguesia para alargamento do caminho público que dividiu aquele prédio);
d) Reconhecerem que pela escritura de 02-07-1996, a autora vendeu ao primeiro réu marido a ..., melhor identificada no artigo 27º desta petição, compreendendo apenas a área de 3.000 m2, ficando a autora proprietária da parte restante do prédio que herdou de seus pais;
e) Reconhecerem que a autora jamais transmitiu aos primeiros réus a propriedade do prédio a que se refere a escritura entre eles celebrada no dia 5 de maio de 2023 e acima referida, que o terreno nesta referida jamais pertenceu aos primeiros réus e é o mesmo a que se referia a escritura de justificação e doação que celebraram em 17-01-2008, terreno esse que, por sentença transitada em julgado, os réus foram condenados a reconhecer que não era nem é propriedade de qualquer deles;
f) Reconhecerem que as declarações prestadas pelos primeiros réus e pelo segundo réu marido na escritura de 05-05-2023 são falsas, pelo menos porque o prédio que através dela se declara ser vendido ao segundo réu nunca pertenceu aos primeiros, pelo que estes não podiam vender o que lhes não pertencia;
g) Reconhecerem que essa escritura de 05-05-2023 e o negócio que ela documenta são nulos, não podendo produzir quaisquer efeitos, nem, de qualquer modo, serem eficazes em relação à autora;
h) Entregarem, em consequência, de imediato à autora a parte subsistente do prédio que lhe pertence e que corresponde ao prédio identificado na referida escritura por eles outorgada em 05-05-2023 e à restante área de terreno contíguo a esse na parte excedente à alienada pelos pais da autora e por ela própria;
i) Jamais perturbarem a propriedade e posse da autora sobre o terreno que lhe pertence;
j) Verem cancelados todos e quaisquer registos que com base na escritura de 05-05-2023, e nas falsas declarações nela prestada tenham porventura logrado, e, bem assim, quaisquer inscrições patrimoniais correspondentes aos mesmos atos que tenham eventualmente logrado fazer na Secção de Finanças ...;
k) Serem condenados como litigantes de má-fé em multa e indemnização exemplares, cujo quantitativo se deixa ao prudente arbítrio do julgador;
l) Pagarem as custas do processo.

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Pelos réus BB, CC, DD e EE foi apresentada contestação onde concluem entendendo que deve:
a) Fixar-se o valor da ação em €15.000,00;
b) Determinar-se a remessa dos autos para o Juízo Local Cível de ..., por ser o competente para a tramitação e apreciação da presente ação; e
c) Julgar-se verificada a exceção dilatória de caso julgado prevista no art.º 577º, alínea i) do CPC, devendo, em consequência, absolverem-se os réus da instância.
Quanto assim não se entenda,
d) Julgar-se verificado o caso julgado, na sua vertente positiva (ou material), e em consequência, absolverem-se os réus dos pedidos;
E sempre,
e) Julgar-se a ação totalmente improcedente por não provada;
f) Julgar-se improcedente o pedido de condenação dos réus como litigantes de má-fé;
g) Condenar-se a autora como litigante de má-fé, em multa exemplar a fixar segundo o prudente arbítrio do Tribunal e em indemnização a favor do A. (?) pelo montante das taxas de justiça, encargos e honorários de mandatário que não sejam abrangidos pelas custas de parte, a liquidar em execução de sentença;
h) Condenar-se a autora nas custas do processo.
*
Notificada para o efeito do incidente do valor da causa, veio a autora pronunciar-se nos seguintes termos:
Os réus sustentam que é exagerado o valor atribuído à ação (€50.001,00) pois esse valor não deve ser superior a €15.000,00, que é o preço do invocado negócio entre eles celebrado e que, segundo eles, é o único objeto da ação.
De facto, não é assim, já que o objeto da presente ação é muito mais amplo do que a anterior e à anterior já foi pacificamente atribuído o valor de €30.000,01, em processo a que os réus pretendem atribuir a eficácia de caso julgado impeditivo da tramitação do presente.
Para o comprovar basta comparar os pedidos formulados numa e noutra dessas ações.
Na ação anterior tramitada entre as partes, a autora formulou os seguintes pedidos:
a) De reconhecimento do seu direito de propriedade e da condenação dos réus a reconhecê-lo;
b) Da condenação dos réus a absterem-se da prática de atos que atentem contra o direito da autora e removerem materiais depositados indevidamente no prédio daquela;
c) Da condenação dos réus a pagarem uma indemnização pela ocupação indevida do prédio da autora e uma sanção pecuniária compulsória.
Na presente ação, muito mais do que isso e diferentemente a autora pede a condenação dos réus a:
a) Reconhecerem que a autora herdou o prédio em questão de seus pais, ficando na sua posse até ao seu falecimento, prédio esse que tinha uma área de cerca de 5932 m2;
b) Reconhecerem que eles réus apenas são donos de 3000 m2 de terreno, porque nunca lhes foi transmitida a propriedade do terreno restante.
Acresce ainda que já depois do termo dessa anterior ação, os réus celebraram uma escritura pública, em 5 de fevereiro de 2023, cuja nulidade também se pede, e é claro que o valor correspondente não pode deixar de acrescer ao valor das questões anteriormente debatidas.
Por isso, para além dos pedidos já identificados, na presente ação a autora pede também a condenação dos réus a:
c) Reconhecerem que as declarações prestadas pelos primeiros réus e pelo segundo réu marido na escritura de 5/02/2023 são falsas, sendo os negócios que ela documenta nulos, com a consequência de serem condenados a entregar à autora o terreno reivindicado, a jamais perturbarem a propriedade desta e a verem cancelados os registos que porventura tenham logrado com base nessas falsidades.
Afigura-se assim mais que justificado o valor atribuído pela autora à ação.
*
Foi proferido o despacho de 04/06/2024 (ref. ...49), onde consta:
“Na presente ação comum, vieram os réus deduzir incidente de valor, relativamente ao indicado pelo autor de €50.000,01 (cinquenta mil Euros e um cêntimo), alegando que deveria ser fixado em €15.000,00 (quinze mil euros) atendendo que esse é o valor do negócio que se pretende anular.
Em resposta, os autores reafirmaram que o valor indicado deve manter-se atendendo aos pedidos formulados, atendendo que em anteriores ações foi fixado o valor de €30.000,01€ e nesta acrescem novos pedidos.
Nos termos do artigo 306º do Código de Processo Civil, sem prejuízo da indicação das partes, incumbe ao juiz fixar o valor da causa. Este valor determina-se, em face dos elementos do processo, segundo as regras previstas nos artigos 296º e seguintes do Código de Processo Civil.
Não obstante a indicação de outros pedidos – como o reconhecimento dos pais da autora e do trato sucessivo – estes são meras premissas para o pedido principal. Na verdade, o que está aqui em causa é a venda do prédio, cuja escritura e registos se pretende anular e que tinha o preço fixado em €15.000,00.
Assim, estando em causa a validade da referida venda e estando o preço determinado, ao abrigo do disposto no artigo 301º, nº 1 do Código de Processo Civil, será esse o valor da presente ação.
Face à alteração do valor da causa, e sendo certo que nos termos do artigo 117º, nº 1 alínea a) a contrario e artigo 130º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, que compete aos Juízos Locais Cíveis, a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor inferior a €50.000,00, haverá que remeter o processo ao tribunal competente – artigo 310º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Em termos territoriais, o competente será o foro da situação do bem – cfr. artigo 70º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, julgo procedente o incidente de valor da ação, que se fixa em €15.000,00 (quinze mil euros) e determino a remessa dos autos aos Juízos Locais Cíveis de ....
Custas do incidente pelos autores – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Após trânsito, remetam-se os autos.
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B) Inconformada com esta decisão, veio a autora AA interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Nas suas alegações a apelante AA formula as seguintes conclusões:
1) Resultando da petição inicial que são feitos três pedidos autónomos ao Tribunal, designadamente, reconhecimento da propriedade da autora, reconhecimento da propriedade dos réus, reconhecimento de nulidade de venda e cancelamento de registos, nunca o valor da ação poderá ater apenas a um destes pedidos;
2) Afigura-se justificado e adequado o valor atribuído à ação pela recorrente na petição inicial: €50.0000,01, correspondendo à soma dos diversos pedidos autónomos vindos de identificar;
3) Não pode valorar-se e, em consequência, tributar-se da mesma forma uma ação onde se faça um único pedido de declaração de nulidade, e um outro processo, onde se pede ao tribunal que reconheça tal nulidade, reconheça o direito de propriedade do autor e ainda o direito de propriedade dos réus;
4) A conjugação do regime plasmado nos arts. 104º, nº 2 e 310º, nº 3 do Código de Processo Civil implica que a declaração de que os Juízos Centrais de Guimarães são incompetentes em razão do valor jamais poderia ter como consequência a remessa dos autos para o Tribunal Judicial de ...;
5) A ser confirmada a alteração do valor para €15.000,00, sempre o processo terá de continuar a correr termos nos Juízos Centrais de Guimarães;
6) Foram violados os arts. 104º, 296º e 310º do Código de Processo Civil.
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Pelos réus e apelados BB, CC, DD e EE foi apresentada resposta, onde concluem que:

1. Não obstante a multiplicidade de pedidos formulados na petição inicial, os mesmos, só por si, não têm qualquer significado ou expressão jurídica, não correspondendo sequer a uma “pretensão jurídica” propriamente dita;
2. No caso dos autos existe uma situação de cumulação aparente de pedidos.
3. A pretensão material da autora é o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio que identifica nos artigos 28º e 29º da petição inicial, que alega corresponder à parcela de terreno para construção que os 1ºs réus venderam aos 2ºs réus através da escritura pública de compra e venda de 05/05/2023 e, por decorrência da declaração deste seu alegado direito, a anulação deste negócio por constituir venda de coisa alheia;
4. Concretamente, nos presentes autos a autora, arrogando-se proprietária do prédio que melhor descreve nos artigos 28º e 29º da petição inicial, por aquisição derivada no inventário nº 159/15.... (cfr. artigo 30º da petição inicial) e por usucapião (cfr. artigos 33º a 35º da petição inicial), extrai a conclusão jurídica de que a escritura pública de 5 de maio de 2023, é nula, por incidir sobre a totalidade da área daquele prédio que alegadamente lhe pertence a ela e não aos réus (cfr. artigos 51º a 59º da petição inicial);
5. Donde, o pedido e efeito jurídico pretendido pela autora é a declaração do seu alegado direito de propriedade sobre a realidade predial em discussão nos autos, sendo a anulação da escritura pública de 5 de maio de 2023 um mero corolário ou consequência jurídica necessária da procedência daquele pedido.
6. O valor da realidade predial em discussão nos autos dimana da própria escritura pública cuja anulação se peticiona: €15.000,00.
7. É esse, por conseguinte, o valor que deverá ser fixado à ação.
8. O nº 3 do art.º 310º do CPC só é aplicável quando o valor da ação seja oficiosamente fixado em montante inferior ao indicado pelo autor.
9. Porém, no caso dos autos, não se tratou de uma fixação oficiosa, mas de uma sentença proferida no âmbito do incidente de determinação do valor da ação suscitado pelos réus em sede de contestação.
10. Quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente (art.º 310º, nº 1 do CPC).
Terminam entendendo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela autora e confirmada a douta sentença recorrida.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) As questões a decidir neste recurso são as de saber:
I. Qual o valor do processo;
II. Qual o tribunal competente.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes, o qual é fixado no despacho saneador (artigo 306º nº 1 e 2 NCPC).
Conforme resulta do disposto no artigo 296º do NCPC a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido (nº 1), atendendo-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal (nº 2).
Como refere Salvador da Costa in Os Incidentes de Instância, 2013, a páginas 19, “a utilidade económica do pedido, ou seja, o benefício visado com a ação ou com a reconvenção, afere-se, segundo a expressão legal, à luz do pedido, que se não limita a enunciar o objeto imediato da demanda, na medida em que também enuncia o efeito jurídico que com ela se pretende obter.
A lei abstrai do facto de o pedido ser ou não de condenação no pagamento de determinada quantia, na entrega de coisa ou na realização de um facto, bastando o pedido de apreciação do direito a uma tal condenação, ou de ser formulado na ação executiva.
No caso de não bastar, para o efeito, a análise do pedido, deve ter-se em conta o que resulta do confronto dele com a respetiva causa de pedir.
Para se determinar o valor da causa e se os pedidos são ou não distintos, deve atender-se à estrutura destes, aos interesses que os litigantes se propõem fazer valer e aos efeitos jurídicos que visam conseguir.
A expressão causa, utilizada em sentido processual amplo, significa a demanda ou litígio, abrangente da ação, da reconvenção, dos incidentes  e dos procedimentos, incluindo os cautelares.”

No que se refere aos critérios gerais para a fixação do valor da causa, estabelece o artigo 297º NCPC que:

1. Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
2. Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.
3. No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar.
 Conforme se referiu, a autora formulou os seguintes pedidos de condenação dos réus a:
a) Reconhecerem que a autora é filha de FF e GG, já falecidos;
b) Reconhecerem que FF e GG adquiriram o prédio identificado neste articulado e da forma referida, ficando desde a data da respetiva aquisição (10 de maio de 1966 e 28 de março de 1968, respetivamente) na posse, uso e fruição desse prédio, posse em que se mantiveram até ao seu falecimento, que ocorreu respetivamente em ../../1984 e ../../2007;
c) Reconhecerem que a autora recebeu, por herança de seus pais, e aquando da abertura da sucessão de cada um deles, por aquisição derivada translativa, a parte subsistente do prédio-mãe, referido no artigo anterior, que tinha uma área de cerca de 5932 m2, do qual seus pais haviam alienado a terceiros apenas três parcelas de terreno (uma por venda, outra por doação e uma outra dada à Freguesia para alargamento do caminho público que dividiu aquele prédio);
d) Reconhecerem que pela escritura de 02-07-1996, a autora vendeu ao primeiro réu marido a ..., melhor identificada no artigo 27º desta petição, compreendendo apenas a área de 3.000 m2, ficando a autora proprietária da parte restante do prédio que herdou de seus pais;
e) Reconhecerem que a autora jamais transmitiu aos primeiros réus a propriedade do prédio a que se refere a escritura entre eles celebrada no dia 5 de maio de 2023 e acima referida, que o terreno nesta referida jamais pertenceu aos primeiros réus e é o mesmo a que se referia a escritura de justificação e doação que celebraram em 17-01-2008, terreno esse que, por sentença transitada em julgado, os réus foram condenados a reconhecer que não era nem é propriedade de qualquer deles;
f) Reconhecerem que as declarações prestadas pelos primeiros réus e pelo segundo réu marido na escritura de 05-05-2023 são falsas, pelo menos porque o prédio que através dela se declara ser vendido ao segundo réu nunca pertenceu aos primeiros, pelo que estes não podiam vender o que lhes não pertencia;
g) Reconhecerem que essa escritura de 05-05-2023 e o negócio que ela documenta são nulos, não podendo produzir quaisquer efeitos, nem, de qualquer modo, serem eficazes em relação à autora;
h) Entregarem, em consequência, de imediato à autora a parte subsistente do prédio que lhe pertence e que corresponde ao prédio identificado na referida escritura por eles outorgada em 05-05-2023 e à restante área de terreno contíguo a esse na parte excedente à alienada pelos pais da autora e por ela própria;
i) Jamais perturbarem a propriedade e posse da autora sobre o terreno que lhe pertence;
j) Verem cancelados todos e quaisquer registos que com base na escritura de 05-05-2023, e nas falsas declarações nela prestada tenham porventura logrado, e, bem assim, quaisquer inscrições patrimoniais correspondentes aos mesmos atos que tenham eventualmente logrado fazer na Secção de Finanças ...;
k) Serem condenados como litigantes de má-fé em multa e indemnização exemplares, cujo quantitativo se deixa ao prudente arbítrio do julgador;
l) Pagarem as custas do processo.
A autora e apelante nas suas alegações refere que, na sua perspetiva, foram formulados três pedidos, com valor autónomo, a saber:
  1) Reconhecimento de que a autora herdou o prédio em questão de seus pais, ficando na sua posse até ao seu falecimento, prédio esse que tinha uma área de cerca de 5.932 m2;
2) Reconhecimento de que os réus apenas são donos de 3.000 m2 de terreno, porque nunca lhes foi transmitida a propriedade do terreno restante;
3) Reconhecimento de que as declarações prestadas pelos primeiros réus e pelo segundo réu marido na escritura de 5/02/2023 (cremos que a data padece de lapso e deverá ser 05/05/2023 – cfr. fls. 137 vº e segs) são falsas, sendo os negócios que ela documenta nulos, com a consequência de serem condenados a entregar à autora o terreno reivindicado, a jamais perturbarem a propriedade desta e a verem cancelados os registos que porventura tenham logrado com base nessas falsidades.
Mais alega que se justifica o valor atribuído pela recorrente na petição inicial, correspondente ao valor somado de cada um destes pedidos autónomos, que refere ser:
- pedido vertido em 1): €20.000,01;
- pedido vertido em 2): €15.000,00;
- pedido vertido em 3): €15.000,00.
A partir daqui, refere a apelante que não se pode valorar da mesma forma uma ação onde se faça um único pedido de declaração de nulidade e um outro processo onde se pede ao tribunal que reconheça tal nulidade, reconheça o direito de propriedade do autor e ainda o direito de propriedade dos réus.
Refira-se que os valores acima referenciados não foram indicados pela apelante quando, no exercício do contraditório, se pronunciou sobre o valor da causa, após ter sido suscitado o incidente pelos réus, na 1ª Instância.
Ora, quanto ao ponto 1), conforme se refere na decisão recorrida o prédio que a apelante pretende que seja reconhecido que recebeu, invocando aquisição derivada translativa, na escritura tem o preço fixado de €15.000,00 (cfr. fls. 137 vº e seguintes).
No que se refere ao ponto 2) decorre da escritura de compra e venda que o negócio ascendeu ao valor de 2.000.000$00 (cfr. fls. 83 e segs), que, fazendo a conversão para euros, corresponde ao valor de €9.975,96.
No que se refere ao ponto 3), o valor a considerar terá de ser o declarado pela venda, que ascende a €15.000,00, conforme resulta da escritura constante de fls. 137 vº e segs.
Trata-se inequivocamente de fazer valer o direito de propriedade e, por isso, ter-se-á de atender ao valor dos imóveis.
Quanto ao valor a ter em conta, diz o Dr. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2013, a páginas 42, referindo-se ao artigo 302º NCPC que “o nº 1 deste artigo prevê o valor processual da causa que tiver por objeto fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, e estatui que ele corresponde ao valor deste…
Deve considerar-se o valor real da coisa em causa, ainda que não seja pedida a sua entrega, a determinar por referência ao concernente rendimento ou, se o não produzir, com base, por exemplo, na respetiva matéria, utilidade e estado de conservação…”
Tratando-se de apurar o valor real, certamente que o valor de referência terá de ser o valor pelo qual se realizaram as escrituras de compra e venda.
Assim sendo o valor da ação terá de resultar da soma dos valores parciais indicados, ascendendo ao montante de €39.975,96.
*
Importa agora, em função do valor obtido, determinar qual o tribunal competente.
A ação foi instaurada no Tribunal da comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ....
Estabelece o artigo 117º nº 1 LOSJ, que compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00.
Por outro lado, de acordo com o nº 3 do mesmo artigo e diploma, são remetidos aos juízos centrais cíveis os processos pendentes em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.
Acresce que compete aos juízos locais cíveis preparar e julgar os processos relativos a causas que não sejam atribuídos a outros juízos ou tribunais de competência territorial alargada (artigo 130º nº 1 LOSJ).
Quanto momento da fixação do valor, estabelece o artigo 306º nº 2 NCPC, que tal deve ocorrer, em regra, no despacho saneador.
Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa no Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 2ª Edição, a páginas 377, “… em determinadas situações, a fixação judicial de um valor diverso do inicialmente indicado pelo autor pode ter implicações processuais relevantes. Nomeadamente, pode determinar alterações na tramitação processual (artigo 597º), a modificação da competência do tribunal  (artigo 310º nº 1) …
( … )
Por isso, nesses casos e noutros similares, é da maior conveniência que a intervenção do juiz para fixar o valor da causa ocorra antes mesmo do despacho saneador, ficando reservadas para tal despacho as intervenções em que não se vislumbre o risco de a decisão a proferir contender com aqueles fatores.”      
No caso em apreço, temos que o valor inicial atribuído foi de €50.001,00, resultando que do valor agora fixado, passa a ser no montante de €39.975,96.
O artigo 310º NCPC estabelece que:
“1. Quando se apure, pela decisão definitiva do incidente de verificação do valor da causa, que o tribunal é incompetente, são os autos oficiosamente remetidos ao tribunal competente, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2. Se da fixação definitiva do valor resultar ser outra a forma de processo correspondente à ação, mantendo-se a competência do tribunal, é mandada seguir a forma apropriada, sem se anular o processado anterior e corrigindo-se, se for caso disso, a distribuição efetuada.
3. O tribunal mantém a sua competência quando seja oficiosamente fixado à causa um valor inferior ao indicado pelo autor.”
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, “o regime previsto no artigo 310º nº 1, aplicável aos casos em que seja deduzido o incidente de verificação do valor, funciona tanto nos casos em que o valor indicado pelo autor é inferior ao que vem a ser decretado pelo juiz, como nos casos em que é superior. Em ambos a decisão do incidente pode redundar na remessa do processo para o tribunal que for competente, isto é, do juízo local cível (ou do juízo de competência genérica) para o juízo central cível ou vice-versa, conforme a ação exceda ou não o valor de €50.000,00.
No entanto, se a ação tiver sido instaurada num juízo central cível, por ser este o competente face ao valor indicado pelo autor, ou seja, por esse valor ser superior a €50.000,00, a redução oficiosa do valor já não determina a remessa para o juízo local cível (ou para o juízo de competência genérica). Note-se que esta limitação contida no nº 3 já não terá limitação na hipótese inversa, isto é, quando o juiz, oficiosamente, fixar à causa um valor que exceda €50.000,00, caso em que funcionará o regime do artigo 310º nº 1.”
Também refere Miguel Teixeira de Sousa, no seu Código de Processo Civil online no Blog do IPPC, a páginas 218-219 que “…Numa primeira leitura, os nºs 1 e 3 parecem referir-se a situações distintas: o nº 1 parece respeitar à fixação do valor da causa na decisão que aprecia o incidente de verificação do valor e o nº 3 parece reportar-se à situação em que o valor da causa é fixado “oficiosamente”, isto é, é fixado, nos termos do art. 306º, nº 1, sem ter sido deduzido aquele incidente. A ressalva que é feita no nº 1 ao nº 3 mostra, no entanto, que não é assim. Apesar de o artigo só tratar de efeitos decorrentes da decisão proferida no incidente de verificação do valor, ele também é aplicável à decisão do tribunal que, mesmo sem qualquer discussão entre as partes, fixa o valor da causa (art. 306º, nº 1).
A decisão proferida no incidente de verificação do valor da causa pode atribuir um valor mais elevado ou menos elevado à ação. Isto pode produzir consequências quanto à competência em função do valor da causa (art. 66º; art. 41º, 117º, nº 1, al. a) a c), e 130º, nº 1, LOSJ).
Se o valor atribuído for inferior ao indicado pelo autor, o tribunal no qual a ação foi proposta (desde que, naturalmente, seja competente em função do valor indicado por essa parte) continua sempre a ter competência para essa ação (nº 3). P. ex.: se a ação (de processo comum) tiver sido instaurada num juízo central cível por o autor lhe ter atribuído um valor de €60.000,00 e se o juiz fixar para a causa um valor de €40.000,00, aquele juízo continua a ser competente para a apreciar.
Se o valor fixado na decisão do incidente de verificação do valor for superior ao indicado pelo autor e se o tribunal se tornar incompetente em função do valor, os autos devem ser remetidos para o tribunal que for competente em razão do novo valor (nº 1). P. ex.: o autor atribuiu à ação (de processo comum) o valor de €35.000,00 e instaurou-a num juízo local cível (art. 130.o, nº 1, LOSJ); o juiz fixou o valor da causa em €55.000,00; o processo deve ser remetido para o juízo central cível (art. 117º, nº 1, al. a), e 3, LOSJ). A solução restringe o âmbito de aplicação da incompetência relativa em função do valor à situação de aumento do valor da causa, mas mantém, no âmbito aplicável, a consequência definida no art. 105º, nº 3.”
Assim sendo, aderindo a esta posição, resulta que, não obstante a diminuição do valor da ação para o montante de €39.975,96, se terá de manter a competência do Juízo Central Cível de Guimarães (artigo 310º nº 3 NCPC).
Nestes termos a decisão recorrida terá de ser revogada e a apelação terá de ser julgada procedente, fixando-se o valor da causa no montante de €39.975,96, mantendo-se a competência do Juízo Central Cível de Guimarães para a tramitação da causa.
Face ao vencimento de causa da apelante e autora, as custas recaem sobre os apelados e réus, em razão do seu decaimento (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida e julgar a apelação procedente, fixando-se o valor da causa no montante de €39.975,96, mantendo-se a competência do Juízo Central Cível de Guimarães para os termos da causa.
Custas pelos apelados.
Notifique.
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Guimarães, 07/11/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Luísa Duarte
2º Adjunto: Desembargador José Cravo