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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ÂMBITO DA OBRIGAÇÃO DE FIANÇA
DIREITO DE REGRESSO
Sumário
I - A nulidade da sentença prevista no art.º 615º, n.º 1, al. c), do NCPC pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la e ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. II - Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento. III - Os recursos, nas suas variadas vertentes, destinam-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido, estando a impugnação funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido em sentido a si favorável – e por isso que tal propósito só ocorre quando ao fundamento do recurso se reconheçam efeitos práticos, com possibilidade de se repercutir na decisão, levando à sua modificação/alteração. IV - Os nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC, na redacção introduzida pela Lei nº 13/2019, de 12.02, não visam factos e efeitos totalmente passados, aditando condições antes não previstas para a exigibilidade da prestação do fiador. V - Tais normativos estabelecem novas condições para a exigibilidade de tal prestação, mas, tão só, para as relações jurídicas que nasçam na sua vigência e para as que subsistiam à data da sua entrada em vigor, mas, nas quais, ainda não se tivesse constituído a situação de mora do locatário. VI - A vontade de prestar fiança deve ser declarada de forma expressa, devendo ser identificados nessa declaração, como elementos essenciais, a dívida garantida, o devedor, o credor e o tempo de vinculação. VII - O fiador enquanto garante da dívida do arrendatário que outorga no contrato de arrendamento nessa qualidade, assume no contrato a posição de devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor senhorio, nos termos do art.º 627º nº 1 do CC, sendo à luz do que for expressamente estabelecido no contrato de arrendamento que se pode delimitar o âmbito da dívida que por ele é assumida e que tem apenas como limite a dívida principal que não pode exceder. VIII - O fiador que cumpriu goza, relativamente aos demais fiadores, de um simples direito de regresso segundo as normas da solidariedade e apenas pode peticionar a parte que a cada um competiria, isto é, na medida da quota parte de responsabilidade de cada um dos demais fiadores, as quais se presumem iguais entre si.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório
AA (entretanto falecido), BB e CC, na qualidade de cabeça-de-casal e de herdeiros, respectivamente, da herança aberta por óbito de DD,
intentaram a presente acção declarativa comum de condenação contra: EE e FF,
peticionando a condenação das rés, solidariamente, na qualidade de fiadoras da arrendatária EMP01..., Lda, no pagamento, perante os autores, da quantia de € 19.457,75 €, assim discriminada: € 8.000,00, a título das rendas, vencidas e não pagas, de julho de 2017 a fevereiro de 2018; €11.000,00, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, e € 457,75, a título de juros de mora vencidos, à taxa legal civil, desde a data de vencimento da obrigação de pagamento de cada uma das rendas em atraso até à data da propositura da acção, acrescida do valor de juros de mora, à taxa legal civil, que continuarão a vencer-se sobre o valor de rendas em atraso, desde aquela data até efectivo e integral pagamento, bem como o valor de juros, à taxa legal civil, que eventualmente se vençam sobre o valor indemnizatório peticionado, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegaram, para o efeito, serem proprietários de imóvel que identificam, o qual foi objecto de um contrato de arrendamento celebrado com a sociedade EMP01... Lda para fins comerciais, tendo-se constituído as rés como fiadoras; mais alegam a falta de pagamento de rendas, que levou os autores a declarar resolvido o contrato através de notificação judicial avulsa, tendo o contrato cessado a 28.01.2018; e que entretanto a arrendatária foi declarada insolvente, tendo o locado apenas sido entregue pelo administrador da insolvência em 31.072018; e concluem serem devidas a quantia de € 8.000,00, a título de rendas vencidas até à resolução, o valor de € 1.000,00 relativo ao período legal para a desocupação, ao abrigo do disposto no art.º 1041º, nº 1, do CC e o valor de € 10.000,00, nos termos do nº 2, do mesmo preceito legal.
A ré EE, apresentou contestação impugnando a factualidade elencada na petição inicial, referindo ter assumido a qualidade de fiadora no contrato em causa por ser casada com um dos sócios gerentes da arrendatária. Mais invocou não ter sido notificada da mora da arrendatária, nem da resolução do contrato, não lhe sendo exigível o pagamento de qualquer quantia relacionado com tal incumprimento. Concluiu a contestação apresentada pugnando pela improcedência da acção.
A ré FF apresentou igualmente contestação, tendo invocado a nulidade da fiança, dizendo não existir no contrato de arrendamento em causa uma declaração expressa da vontade da aludida ré de prestar fiança, resultando do contrato que a mesma apenas interveio na qualidade de cônjuge. Mas alegou que, sendo considerada a fiança válida, apenas se teria obrigado ao pagamento das quantias que fossem devidas na vigência do contrato e apenas relativamente às quantias devidas a título de rendas e que, a fiança, nos termos em que foi constituída, não abrange a indemnização peticionada pelos autores, no montante de € 11.000,00, nos termos do disposto nos art.º 1045º, nºs 1 e 2 do CC.
Concluiu, pedindo, para além da improcedência da acção, que fosse julgada procedente a excepção peremptória da nulidade da fiança por vício de forma, nos termos conjugados dos art.ºs 217º, 232º e 628º do CC e, em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 576º nº3 do CPC, se absolvesse a ré de todos os pedidos.
Subsidiariamente, no caso de improcedência, que fosse julgada verificada a excepção peremptória da extinção da fiança por resolução do contrato de arrendamento, nos termos conjugados dos art.ºs 627º e 631º do CC, e em consequência, ao abrigo do disposto no art.º 576º, nº 3 do NCPC, fosse a ré absolvida do pedido de pagamento de € 11.000, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado e do pedido de pagamento de € 457,75 euros a título de juros de mora vencidos e vincendos.
Deduziu ainda incidente de intervenção principal provocada da sociedade insolvente EMP01... Lda; de GG e de HH, a título de condevedores solidários e ao abrigo do disposto no art.º 317º, do NCPC.
Todavia, terminou apenas pedindo, para o caso de procedência da acção, a condenação de GG e HH a restituir-lhe as quantias que venha a ter que suportar, na proporção das suas quotas-partes.
Foi proferido despacho a admitir a intervenção principal provocada passiva da Massa Insolvente de “EMP01..., Lda”, representada pelo Administrador de Insolvência e de GG e HH.
Citados os intervenientes, apenas a interveniente HH apresentou contestação, articulado no qual, para além de impugnar a autoria da assinatura que consta do contrato de arrendamento, alegou que não foi notificada do incumprimento da arrendatária, fazendo seus, no mais, os articulados apresentados pelas rés. Terminou pugnando pela improcedência da acção.
Foi realizada tentativa de conciliação, sem sucesso.
Notificados para o efeito, os autores exerceram o contraditório quanto às excepções invocadas, pugnando pela sua improcedência.
Após requerimento apresentado pela ré FF nesse sentido, foi notificado o Administrador de Insolvência da interveniente insolvente para indicar os montantes pagos aos autores e a que título eventualmente o foram.
Em resposta, o Administrador de Insolvência esclareceu que os pagamentos efetuados pela Massa Insolvente se destinaram a dar cumprimento ao decidido na sentença proferida no processo nº 4337/17.... (do Juízo de Comércio de Viana do Castelo), de onde consta a seguinte decisão: “Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção totalmente procedente, termos em que decide condenar a Ré no pagamento aos Autores da quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, acrescida do valor de juros de mora, à taxa legal civil, que se vençam desde a data de citação até efectivo e integral pagamento.”
O Administrador de Insolvência informou ainda que os autores intentaram execução que correu por apenso aos identificados autos de insolvência, no âmbito do qual foi efectuado um pagamento em 06.03.2020, no valor de € 10.591,93 (dez mil quinhentos e noventa e um euros e noventa e três cêntimos).
Notificados os autores requereram, por requerimento datado de 26.08.2023 a extinção parcial da instância e o prosseguimento dos autos para apreciação da responsabilidade das rés pelo pagamento das rendas vencidas e não pagas e pela quantia de € 1.000,00 a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado.
Na sequência, foi proferida a seguinte decisão:
“Face ao pagamento do montante de € 10.000,00 relativo ao pedido de indemnização pelo atraso na restituição do locado no âmbito do processo assinalado pelo Administrador de Insolvência, logo perdeu razão de ser a presente lide quanto ao montante assinalado. Assim, julgo extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao valor do mencionado pedido - artigo 277º, alínea e), do CPC. Custas a fixar a final.”.
De seguida foi proferido despacho saneador, a considerar válida e regular a instância, tendo sido relegada a decisão quanto às excepções invocadas para final.
Entretanto foi julgada habilitada a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de AA, representada por CC e BB, para prosseguir nos autos ocupando a posição processual daquele na lide.
Realizada a audiência final foi proferida sentença, constando do respectivo dispositivo o seguinte:
“IV. Decisão
Nestes termos e em face de tudo quanto se expôs julgam-se improcedente os pedidos apresentados pelos Autores e em consequência absolvem-se as Rés na presente acção.
*
Registe e Notifique. (cfr. artigos 153º, 220º, nº1, 247º e 253º do CPC)
Custas pelos Autores (cfr. artigo 527.º, nº 1 e 2, do CPC)”.
Inconformada com tal sentença, dela apelaram os autores, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«I. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de Direito da decisão proferida nos presentes autos que julgou improcedentes os pedidos apresentados pelos Autores e, em consequência, absolveu as Rés do pedido.
II. Da simples leitura dos factos dados como provados poderemos logo concluir que a Mma. Juiz ao avaliar a prova produzida em julgamento, extraiu da mesma conclusão contrária àquela que se impunha, nomeadamente ao ter determinado a improcedência da ação apresentada pelos Autores, lavrando numa insanável contradição entre os factos dados como provados, a fundamentação e a decisão.
III. Os Recorrentes, em face daquele que foi o resultado do relatório pericial, peticionaram a litigância de má-fé da Recorrida HH nos termos do artigo 542.º, n.º 2, al. a) e d), do Código de Processo Civil.
IV. Através do seu comportamento, a Chamada procurou inverter o ónus da prova, invocando que a assinatura aposta no Contrato de Arrendamento não era a sua, quando bem sabia que era.
V. Certo é que a sentença a quo não se pronunciou sobre a litigância de má-fé, pelo que foi omissa a sentença quanto ao requerimento apresentado pela Ré.
VI. O que consubstancia uma nulidade suscetível de integrar a nulidade da sentença, ínsita no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, porquanto o Tribunal a quo deixou de resolver questões que foram sido submetidas à sua apreciação pelos Autores.
VII. No mais, deu o Tribunal como provados os factos constantes dos pontos 1 a 24 da «Fundamentação de Facto».
VIII. Nestes termos, resultou inequívoco para a Mma. Juiz que as Rés se responsabilizaram solidariamente, perante os Autores, como fiadoras e principais pagadoras na vigência do contrato, e que colocaram pelo seu punho a sua assinatura no contrato.
IX. Ainda assim, motiva o Tribunal a quo, no que respeita à Recorrida EE, que aquela aquando da assinatura do contrato, não teve a perceção que seria fiadora, tendo mencionado que assinou o contrato em casa quando o marido lho apresentou, sem ler.
X. O que, entendeu o Tribunal a quo, sucede «diversas vezes de acordo com as regras da experiência, em muitas famílias, nomeadamente ligadas à atividade comercial na zona norte do país».
XI. Por sua vez, respeitando-se à Recorrida FF, foi a mesma de confessar ter assinado o contrato de arrendamento, mas, tal como a Recorrida EE, não o leu, nem se apercebeu do seu alcance.
XII. Pelo que, dos factos tidos como provado não se depreende a fundamentação adotada, os quais são perfeitamente contrários, importando ainda destacar a natureza discriminatória daquela.
XIII. Além de que a «experiência comum» não pode ser invocada de forma a validar preconceitos ou generalizações que demonstrem falta de discernimento ou atenção na análise dos factos.
XIV. Sendo certo que resultou também como provado o teor e existência da cláusula sexta do contrato, a qual se reporta à fiança,
XV. torna-se ainda mais incerta e obscura a sentença recorrida quando refere que do ponto de vista textual, «não confere a certeza absoluta da vontade expressa e inequívoca de prestar fiança pelas Rés»
XVI. Afigurando-se, a decisão proferida, ininteligível, não se vislumbrando verdadeiramente qual o sentido e fundamentação da mesma, padecendo de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
XVII. Ainda quanto a esta parte, há claramente erro de julgamento, porquanto não resulta dos factos provados nem dos não provados que as Recorridas não tiveram a real perceção que assumiriam a posição de fiadoras no Contrato de Arrendamento,
XVIII. existindo uma contradição insanável na fundamentação entre factos dados como assentes e a própria fundamentação da convicção do Tribunal.
XIX. Há, também, erro de julgamento, porquanto, não foi produzida prova suficiente, que levasse a que o Tribunal a quo a considerar que a vontade real e vontade expressa das Recorridas, não seja coincidente.
XX. Da sentença recorrida resulta, ainda, exposta uma confusão na aplicação do artigo 1041.º do Código Civil.
XXI. Como fundamento da sua razão, refere o Tribunal a quo que não ficou demonstrado que as Rés tivessem conhecimento do incumprimento relativo ao contrato de arrendamento por não existir qualquer documento demonstrador de que as mesmas tenham sido notificadas, por qualquer meio, do incumprimento em causa.
XXII. Para o efeito a Mma. Juiz a quo invoca o disposto nos números 4 e 5 daquele preceito legal.
XXIII. In casu, a exigibilidade do cumprimento das obrigações a cargo do fiador do arrendatário não dependia de qualquer notificação do senhorio ao fiador.
XXIV. E tal é assim porque, à data dos factos constitutivos da pretensão dos Autores, fundada na mora do locatário e no não cumprimento da obrigação a cargo do fiador, é aplicável a lei em vigor à data em que tais factos ocorreram.
XXV. Foi sob a égide da lei antiga que se consolidaram os factos constitutivos do direito dos Recorrentes.
XXVI. Os n.ºs 5 e 6 do artigo 1041.º do Código Civil, na redação oferecida pela Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro, não visam factos e efeitos totalmente passados, aditando condições antes não previstas para a exigibilidade da prestação do fiador.
XXVII. Tais normativos estabelecem novas condições para a exigibilidade de tal prestação, mas, tão só, para as relações jurídicas que nasçam na sua vigência e para as que subsistiam à data da sua entrada em vigor, mas, nas quais, ainda não se tivesse constituído a situação de mora do locatário.
XXVIII. No que se reporta ao caso que aqui nos conduz os Autores, ora Recorrentes, peticionavam um montante a título de rendas vencidas e não pagas, de julho de 2017 a fevereiro de 2018.
XXIX. É também certo e sabido que a resolução do contrato foi comunicada à arrendatária, através de notificação judicial avulsa, no dia 22 de janeiro de 2018.
XXX. O que, sem margem para dúvidas, significa que os factos constitutivos da pretensão dos Autores ocorreram entre julho de 2017 e fevereiro de 2018.
XXXI. Motivo pelo qual sempre seria de se aplicar a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, cuja redação era: «1. Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento.
2. Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo.
3. Enquanto não forem cumpridas as obrigações a que o n.º 1 se refere, o locador tem o direito de recusar o recebimento das rendas ou alugueres seguintes, os quais são considerados em dívida para todos os efeitos.
XXXII. Entendimento que tem sido pacífico no seio da doutrina e jurisprudência, vendo-se para o efeito os Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 Maio 2020, no âmbito do processo 2804/18.9T8CSC.L1-2, ou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de outubro de 2013, no âmbito do processo 1267/10.1TBCBR.C1.S1
XXXIII. A exigibilidade do cumprimento das obrigações a cargo dos fiadores do arrendatário não dependia de qualquer notificação do senhorio aos fiadores, estando plenamente constituída tal situação jurídica à data de entrada em vigor da referida Lei n.º 13/2019.
XXXIV. Se assim não fosse haveria lugar a uma situação de violação do princípio de segurança e proteção da confiança ínsito no artigo 2.º, da Constituição da Republica Portuguesa
XXXV. A lei nova não pode frustrar de forma intolerável ou arbitrária as expectativas dos cidadãos que haviam sido criadas por uma anterior tutela conferida pelo direito, sob pena de ser considerada inconstitucional
XXXVI. O Tribunal a quo fez ainda uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 413.º, 466.º e 607.º do Código de Processo Civil.
XXXVII. Na verdade, e ao invés de tomar em consideração todas as provas produzidas, apenas foram consideradas a prova por declarações de parte das Apeladas produzida em sede de audiência de julgamento, no que concerne ao desconhecimento da fiança invocadas pelos Apelantes.
XXXVIII. Ou, pelo menos, apenas relevou aquelas, considerando-as bastantes para a sua fundamentação.
XXXIX. No que concerne ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que é o julgador que detém a liberdade de formar a sua convicção dos factos, é-lhe exigido uma apreciação crítica e integrada, de forma objetiva e motivada, conforme estabelecido na legislação processual aplicável.
Além de que,
XL. A convicção formada pelo Tribunal a quo deve ser explicada de forma clara e detalhada na sentença, sendo esta fundamentada em provas válidas, avaliadas de forma racional, lógica e objetiva, em conformidade com as regras da experiência comum, cfr. artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
XLI. Salvo melhor entendimento, não foi o que fez a Mma. Juiz a quo, quer quanto à prova produzida na Audiência de julgamento, quer a prova testemunhal, quer a prova documental.
XLII. Nessa estrita medida, e nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, é necessário que o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.
XLIII. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correção da sua decisão.
XLIV. Não se vislumbra percetível, ou sequer se alcança, em que medida a justificativa discriminatória utilizada que «de acordo com as regras da experiência, em muitas famílias, nomeadamente ligadas à atividade comercial na zona norte do país» oferece base sólida de fundamento à sentença ora recorrida.
XLV. O qual, tampouco não tem um ínfimo de assento naquela que é a realidade concreta, prosseguindo-se uma fundamentação baseada em estereótipos prejudiciais
XLVI. Não o tendo feito, não poderia o Tribunal a quo ter valorado a prova por declarações de parte como o fez.
XLVII. Acresce que as declarações de parte não são suficientes para, só por si, estabelecer um juízo de aceitabilidade final.
XLVIII. Conclusão a que chega também o Tribunal da Relação de Évora de 07 de dezembro de 2023.
XLIX. Sucede que as Apeladas tão pouco foram coerentes ou minimamente credíveis considerando não apenas a idade, articulação do discurso, postura, formação e cultura das Apelantes, mas também, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum, afirmando assinar um contrato sem ler e sem se certificar das suas principais cláusulas.
L. Colocando-se as Apeladas numa situação de fragilidade e amnésia aparente, diga-se, com alguma perplexidade, conseguiram convencer o Tribunal a aderir à sua tese, ainda que a mesma não fosse merecedora do mínimo acolhimento de acordo com as regras da experiência comum.
LI. Desta forma, tendo decidido mal o Tribunal a quo, aplicando incorretamente o disposto no artigo 413.º, 466.º e 607.º do Código de Processo Civil.
LII. Em virtude da violação daqueles preceitos legais, em caso algum poderia o Tribunal a quo ter concluído pela não verificação dos requisitos constantes do artigo 628.º, do Código Civil.
LIII. Concludentemente, o Tribunal a quo faz ainda uma incorreta aplicação do artigo 628.º, do Código Civil,
LIV. tendo a Mma. Juiz aderido aos depoimentos das Rés, sem mais, dos quais extraiu conclusões que, salvo melhor entendimento, não as poderia ter retirado.
LV. Reportando-se o artigo 628.º do Código Civil aos requisitos da fiança, tal preceito confirma, em conformidade com os factos provados, a pretensão dos Recorrentes.
LVI. Não se desvendando outra conclusão que não seja a da existência de uma fiança válida.
LVII. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., que não estamos perante uma declaração válida de prestação de fiança – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 413.º, 466.º e 607.º do Código de Processo Civil e 628.º do Código Civil, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que, atento os factos provados, não merecia qualquer acolhimento a posição das Rés.
LVIII. Em todo o caso, sempre se estaria perante uma violação dos artigos 341.º e 362.º do Código Civil.
LIX. A prova tem como finalidade formar a convicção do juiz a respeito dos factos que interessam à solução do litígio.
LX. Sendo a prova documental uma prova real destinado a conferir ao Juiz a representação de um facto, e tendo os Recorrentes junto o referido contrato de arrendamento,
LXI. afigura-se do veredito proclamado na sentença recorrida que o Tribunal a quo não valorou como deveria o referido documento.
LXII. A indevida valoração feita na Sentença do documento junto pelos Autores, o dito contrato de arrendamento, como válido princípio de prova escrita, teve como consequência a validação das declarações de parte, de natureza não confessória, na qual assentou exclusivamente a decisão de que existe uma vontade real não coincidente com a vontade expressa, de uma declaração confessória constante de documento com força probatória plena, em clara violação de normas de direito material probatório, os sempre invocados artigos 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1 do Código Civil.
LXIII. Pelo exposto, ao decidir como decidiu – i. e., valorando indevidamente o documento juntos pelos Autores – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1 do Código Civil e artigo 662.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, preceitos que deveriam ter sido interpretados no sentido de que o contrato deveria ter sido devidamente valorado por forma a não se ter como consequência a validação das declarações de parte em seu detrimento.».
Terminaram pedindo que a sentença do tribunal a quo seja revogada, substituindo-se por outra que condene as rés, solidariamente, no pagamento da quantia de € 9.457,75.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por despacho de 21.05.2024, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre o pedido de condenação da interveniente II como litigante de má-fé, tendo-o julgado improcedente.
Notificadas, as partes nada mais vieram dizer ou requerer, tendo sido admitido o recurso.
Após terem sido remetidos os autos ao Tribunal da Relação foi ordenado o cumprimento do disposto no art.º 665º, nº 3, do NCPC, quanto às questões cujo conhecimento ficou prejudicado em resultado da improcedência da acção e invocadas pela ré FF, a título subsidiário, como sejam a da extinção da fiança e a do direito de regresso.
Na sequência, vieram apenas os autores responder, pugnando pela improcedência da excepção de extinção da fiança.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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Face ao teor das conclusões do recurso, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a de saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC [conclusões do recurso III a VI];
- a de saber se a sentença é nula por ininteligível, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC [conclusões de recurso VII a XVI];
- a de saber se o tribunal recorrido avaliou incorrectamente a prova e violou normas de direito material probatório ao considerar que as recorridas não tiveram a real percepção que assumiriam a posição de fiadoras no contrato de arrendamento [conclusões de recurso XXXVI a LIV e LVIII a LXIII];
- a de saber se é (in)aplicável ao caso o disposto nos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, na redacção conferida pela Lei nº 13/2019 de 12.02, [conclusões de recurso XX a XXXV]; e
- a de saber se o tribunal incorreu em errónea subsunção dos factos ao direito, devendo-se concluir pela existência de uma fiança validamente constituída, à luz do disposto no art.º 628º, do CC [conclusões de recurso LV a LVI].
E, nessa conformidade, e por força do disposto no art.º 665º, nº 2, do NCPC, importa ainda apreciar as seguintes questões:
- a de saber se a fiança nos termos em que foi constituída não abrange a indemnização peticionada pelos autores, nos termos do disposto no art.º 1045º, nº 1, do CC; e
- a de saber se a ré FF tem direito de regresso sobre os intervenientes GG e HH, no caso de realizar a totalidade da prestação.
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III. Fundamentação
3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
“1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, situado em ..., Lote ...6 no ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o número ... (...), inscrito na matriz predial urbana sob o nº de artigo ...38.
2. O prédio acima identificado destina-se a fins de escritório e armazém.
3. Por contrato de arrendamento celebrado em ../../2009, os Autores, na qualidade de senhorios, deram de arrendamento, para fins de escritório e armazém, o prédio mencionado supra à EMP01..., Lda., pessoa coletiva nº ...25, com sede no Parque Empresarial ..., nº ..., ... ....
4. O contrato teve início em 1 de novembro de 2009, tendo sido nessa data transferidos para a EMP01..., Lda. os poderes de gozo e fruição do imóvel.
5. Tendo como contraprestação a renda mensal a pagar no valor de 1 500,00 € (mil e quinhentos euros) num período de 36 meses, a ser paga mensalmente até ao dia 7 (sete) de cada mês, operando-se o pagamento por cheque ou transferência bancária com o NIB ...05.
6. Após os 36 meses da data do contrato, ou seja, a partir de 1 de novembro de 2012, a renda mensal a pagar seria no valor de €1.000,00 (mil euros).
7. O contrato de arrendamento comercial, de que aqui se trata, tinha a duração de um ano, sendo automaticamente renovável por iguais e sucessivos períodos.
8. As Rés, terceiras outorgantes do contrato de arrendamento, responsabilizaram-se, solidariamente, perante os Autores, como fiadoras e principais pagadoras dos pagamentos devidos a títulos de rendas, na vigência daquele contrato e sucessivas renovações.
9. Em dezembro de 2017, encontravam-se em dívida os meses de junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2017, o que perfazia um montante global em dívida, relativo a rendas em atraso, de €7 000,00 (sete mil euros), ao qual acresceriam juros de mora até efetivo e integral pagamento.
10. Por intermédio de notificação judicial avulsa efetuada no pretérito dia 22 de janeiro de 2018, os Autores comunicaram à arrendatária a resolução do contrato de arrendamento descrito supra e reclamaram o pagamento das rendas vencidas e vincendas até efetivo despejo, acrescidas dos juros de mora à taxa legal em vigor.
11. No dia 6 de fevereiro de 2018, sem que a arrendatária houvesse desocupado o locado ou pago as rendas vencidas, a EMP01..., Lda. foi declarada insolvente, no âmbito do processo nº 4337/17...., que corre termos no Juízo Local Cível de Viana do Castelo - Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo.
12. A arrendatária, ora insolvente, desocupou o locado no dia 31 de julho de 2018.
13. No âmbito do contrato de arrendamento descrito supra, celebrado por documento particular, os Réus afiançaram os pagamentos das rendas devidas por força do contrato.
14. Tanto a obrigação principal, como a prestação de fiança foram declaradas por escrito.
15. No âmbito do processo de insolvência da arrendatária, os Autores reclamaram um crédito no valor de €10.719,44, correspondente ao valor das rendas que, à data, se encontravam em dívida, acrescido dos respetivos juros de mora.
16. No apenso E, de Reclamação de Créditos, do referido processo de insolvência, o Exmo. Sr. Administrador de Insolvência reconheceu aos Autores um crédito no valor de €10.575,33, graduado na categoria de crédito comum.
17. Da relação de créditos reconhecidos no âmbito do processo de insolvência da EMP01..., Lda., resulta um montante global de créditos reconhecidos no valor de, aproximadamente, €1.980.000,00, sendo que, desses, cerca de €370.000,00 foram graduados na categoria de crédito privilegiado e €320.000,00, aproximadamente, na categoria de crédito garantido.
18. A partir de 22 de janeiro de 2018, encontravam-se vencidas e não pagas as rendas relativas aos meses de julho de 2017 a fevereiro de 2018, perfazendo um valor total de rendas em dívida – à data da resolução, de €8.000,00 (oito mil euros).
19. No prazo legal concedido para desocupação do locado – que se iniciou a 22 de janeiro de 2018 e findou a 22 de fevereiro de 2018 – venceu-se a obrigação de pagamento da renda de março de 2018, no valor de 1 000,00 € (mil euros) firmado contratualmente entre as partes.
20. EE, FF, HH e GG colocaram pelo seu punho a sua assinatura no contrato de arrendamento supra identificado no artigo 3º, na qualidade de fiadores.
21. Do contrato de supra identificado no artigo 3º conta na sexta clausula o seguinte: “Os segundos e terceiros outorgantes responsabilizam-se solidariamente perante os primeiros outorgantes como fiadores e principais pagadores pelos pagamentos que foram devidos a titulo de rendas, na vigência do presente contrato e suas renovações”.
22. No relatório pericial realizado à letra de JJ conclui-se como “muito provável” que a assinatura do contrato referido no artigo 3º seja da própria.
23. A EMP01..., Lda, não possui bens imóveis.
24. Foram apreendidos bens móveis à EMP01..., Lda no valor de €16.440,00.
25. EE, FF, HH e GG não tiveram conhecimento do incumprimento relativo ao contrato de arrendamento.”.
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3.2. Fundamentação de Direito
3.2.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Como decorre do descrito supra, os recorrentes começam por invocar a nulidade da sentença recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC, a qual ocorre, como é consabido, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, em violação do dever prescrito no nº 2 do referido art.º 608º do NCPC [normativo do qual resulta expressamente que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras].
Os recorrentes fundamentam tal vício da sentença recorrida - e com inteira razão - na circunstância do tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre o pedido de condenação de litigância de má-fé formulado pelos autores relativamente à interveniente HH.
Porém, e conforme resulta do que acima deixamos transcrito no relatório deste acórdão, o tribunal a quo apreciou tal nulidade e supriu tal omissão, após a interposição do presente recurso, nos termos previstos no art.º 617º, nº 2, do NCPC, nada mais tendo sido requerido pelas partes e mais concretamente pelos aqui recorrentes a tal propósito.
Nesta conformidade, resultando suprida a nulidade apontada à sentença recorrida, nada mais há a decidir quanto a tal matéria.
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3.2.2. Da nulidade da sentença por ininteligibilidade
Invocaram ainda os recorrentes que a sentença padece da nulidade prevista no art.º 615º, nº, al. c), do NCPC, porquanto, apesar do tribunal recorrido ter dado como provado o teor e a existência da cláusula sexta do contrato de arrendamento, a qual se reporta à fiança – e da qual consta que as rés se responsabilizaram solidariamente, perante os autores, como fiadoras e principais pagadoras na vigência do contrato -, e ainda que colocaram pelo seu punho a sua assinatura no contrato, na motivação da matéria de facto e na fundamentação de direito, o tribunal a quo refere que as rés/recorridas assinaram o contrato sem o ler, não tendo percepção do seu conteúdo e que o contrato, do ponto de vista textual, «não confere a certeza absoluta da vontade expressa e inequívoca de prestar fiança pelas Rés».
Antes de mais e no que concerne a este vício em concreto, o tribunal a quo nada disse, não o tendo apreciado, nem aquando da prolação do despacho em que apreciou a questão da litigância de má-fé, nem no despacho em que se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, nº 1 e 617º, nº 1 do NCPC.
A omissão de despacho do tribunal a quo sobre a nulidade arguida não determina, porém, necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito (vide nº 5, do referido art.º 617º, do NCPC), cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cfr., neste sentido Abrantes Geraldes,inRecursos no Processo Civil, 6ª edição, p. 214.
No caso, tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, afigura-se-nos que não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
Fechado este parêntesis, vejamos, então, se assiste razão aos recorrentes neste assim delimitado segmento recursório.
Preceitua o art.º 615º, nº 1, al. c) do NCPC, que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”.
Com efeito, a sentença é nula quando, e desde logo, ocorre contradição entre os fundamentos e a decisão (1º segmento do preceito), pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos. A nulidade em questão ocorre, pois, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
Ainda com particular interesse para o enquadramento legal do vício da sentença que ora nos ocupa, importa trazer aqui à colação os ensinamentos do esclarecido e esclarecedor ac. do STJ de 03.03.2021 (prolatado no processo nº 3157/17.8T8VFX.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt), no qual se pode ler o seguinte:
“III. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente. IV. Verifica-se tal nulidade quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão e não contradição entre os factos provados e a decisão, ou contradições da matéria de facto, que a existirem, configuram eventualmente erro de julgamento.”.
No mesmo sentido encontramos ainda os acs. do STJ de 18.01.2019, processo nº 25106/15.8T8LSB.L1.S1, de 31.01.2017, processo nº 820/07.5TBMCN.P1.S1 e 11.01.2018, processo nº 779/14.2TBEVR-A.E1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt.
Por outro lado, tal nulidade poderá ainda ocorrer quando a decisão se mostre ininteligível por ser ambígua ou obscura (2º segmento do normativo), sendo que o vício da ambiguidade ou obscuridade pressupõe inteligibilidade de uma decisão ou resposta, ou seja, que não pode, com segurança, determinar-se o sentido exacto dessa decisão ou resposta, quer porque não se mostra claramente expresso, quer porque contém em si mais do que um sentido.
Isto posto e voltando ao caso presente, afigura-se-nos que os recorrentes pretendem colocar em evidência não propriamente a ininteligibilidade da decisão recorrida, mas antes a presença de contradições entre a decisão da matéria de facto e a respectiva motivação, bem como entre os factos provados e a fundamentação de direito, confundindo as diversas realidades jurídicas que podem ser equacionadas.
De todo o modo, sempre se dirá que a existir eventual contradição na motivação do julgador relativamente à decisão da matéria de facto, estaremos perante um vício dessa decisão de facto, por contradição, que só afectará esta última decisão, mas nunca perante uma nulidade da sentença. E a existir eventual contradição na motivação do julgador relativamente à fundamentação de direito e seu reflexo na subsequente tomada de decisão, estaremos igualmente aqui perante um erro de julgamento, que só afectará a decisão final, e não perante uma nulidade da sentença.
Por conseguinte, e conforme se expôs, as “contradições” apontadas pelos recorrentes não integram a invocada nulidade, podendo consubstanciar eventuais erros de julgamento - a apreciar infra.
E tanto assim é que os próprios recorrentes, apesar de começarem por arguir que a sentença é nula, acabam por dizer que, nesta parte, o tribunal recorrido incorreu claramente em erro de julgamento (cfr. conclusões de recurso XVII a XIX).
Improcede, pois, nesta parte o recurso interposto pelos autores. 3.2.3. Da aplicação incorrecta do disposto nos art.ºs 413º, 466º e 607º do NCPC e/ou violação de normas de direito material
Invocam os recorrentes que o tribunal recorrido aplicou incorrectamente o disposto nos art.ºs 413º, 466º e 607º do NCPC e/ou violou normas de direito material ao considerar que as recorridas não tiveram a real percepção que assumiriam a posição de fiadoras no contrato de arrendamento, aparentando assim colocar em crise a decisão da matéria de facto, como anunciam logo na conclusão 1ª do recurso.
Vejamos, porém.
O art.º 662º, nº 1, do NCPC, preceitua que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por sua vez, o art.º 640º, nº 1, do mesmo compêndio legal, dispõe que o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do nº 2, do mesmo artigo.
As normas destes art.ºs 640º e 662º concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos e de manifestações inconsequentes de inconformismo sobre a matéria facto.
Assim se compreendem os ónus impostos ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, previstos no nº 1, do art.º 640º, do NCPC, cujas exigências devem ser interpretadas à luz do aludido papel.
Mas assim se compreende, também, a possibilidade de actuação oficiosa da Relação em matéria de reapreciação da matéria de facto, prevista no art.º 662º, nº 1, do NCPC, mediante a devida aplicação de regras vinculativas de direito material probatória que tenham sido desrespeitadas pela decisão recorrida, situações em que o poder de cognição da segunda instância não está dependente do cumprimento, pelo impugnando, do triplo ónus previsto no art.º 640º do NCPC (ao contrário do que sucede nas situações em que a alteração da matéria de facto está dependente da reapreciação de meios de prova sujeitos à livre apreciação do tribunal), podendo nem sequer depender da própria impugnação da decisão da matéria de facto, desde que a actuação da Relação se contenha “no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente nos limites objectivo e subjectivo do recurso” (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 795 e 796 e ac. da RP de 23.04.2024, processo nº 2082/22.5T8OVR-A.P1, acessível in www.dgsi.pt).
Tal sucederá “quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais. O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358.º do CC e arts. 484.º, n.º 1, e 463.° do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574.º, n.º 2, do CPC), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts. 351.º e 393.º do CC), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.° 1, do CC).” (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 333).
Feito este enquadramento, constata-se que, no caso em apreço, os recorrentes não vieram impugnar a matéria de facto propriamente dita, tendo-se insurgindo apenas contra a “motivação” exarada pelo tribunal recorrido ao considerar que as recorridas não tiveram a real percepção que assumiram a posição de fiadoras no contrato de arrendamento, sem que tal factualidade constasse dos factos provados, nem dos não provados.
Na verdade, o tribunal recorrido, talvez por não ter autonomizado (a nosso ver de forma errada) a motivação da decisão de facto da fundamentação de direito, tomou em consideração na decisão factualidade que não consta do elenco dos factos provados e que nem sequer foi alegada pelas partes.
Veja-se que em lado algum dos articulados é dito que as fiadoras subscreveram o contrato sem o ler, não tendo podido perceber, por isso, que estavam a assumir a qualidade de fiadoras.
Alias, a ré EE referiu ter assumido a qualidade de fiadora no contrato em causa por ser casada com um dos sócios gerentes da sociedade arrendatária e a ré FF, por sua vez, defendeu não existir no contrato de arrendamento em causa uma declaração expressa da vontade da aludida ré de prestar fiança, resultando do contrato que a mesma apenas interveio na qualidade de cônjuge, o que segundo a mesma torna a fiança prestada nula por vício de forma, nos termos conjugados dos art.ºs 217º, 232º e 628º, do CC.
Mas ainda que assim seja, o reparo feito apenas à motivação da matéria de facto não justifica tratamento autónomo fora da impugnação da matéria de facto.
A fundamentação da decisão sobre a matéria de facto constitui a forma através da qual o juiz explica os motivos porque se pronunciou num certo sentido e não noutro, deu como provado certo facto e como não provado um outro, pelo que a incoerência do raciocínio seguido ou a falta de suporte das considerações que se achem espelhadas na fundamentação a que alude primeira parte do nº 4 do art.º 607º do NCPC apenas constitui argumento para atacar a própria decisão proferida sobre a matéria de facto.
Ou seja, não convencendo o juiz, através de uma explicação em si mesma contraditória ou desapoiada, da bondade da decisão proferida quanto a certo(s) facto(s) que julgou provado(s) ou não provado(s), passará, em princípio, a parte descontente com essa decisão a dispor de bons motivos para a questionar, impugnando, para tanto, a própria decisão quanto à matéria de facto.
Também a deficiência, obscuridade ou contradição nas respostas dadas justificará, em primeira linha, a alteração dessa mesma decisão sobre a matéria de facto.
No caso em apreciação, porém e já como salientamos, os apelantes não pretendem questionar os concretos factos dados como provados, nem qualquer alteração à decisão da matéria de facto.
A sua discordância reconduz-se afinal à discordância em relação à qualificação jurídica que acabaram por merecer os factos provados, o que configura não uma discordância em relação à fixação da matéria de facto provada, mas sim perante o enquadramento jurídico da causa.
E, assim sendo, a questão de saber se o tribunal recorrido apreciou incorrectamente a prova produzida e/ou violou normas de direito material probatório sem que tal errada apreciação tenha tido reflexo na fixação dos factos provados, apresenta-se, ponderando a finalidade do recurso, enquanto meio de impugnação judicial destinado a modificar/alterar a decisão recorrida em sentido favorável ao recorrente, como meramente académica, sem influência ou repercussão no sentido da decisão da matéria de facto.
Os recursos, nas suas variadas vertentes, destinam-se a possibilitar à parte vencida obter decisão diversa (total ou parcialmente) da proferida pelo tribunal recorrido, estando a impugnação funcionalmente ordenada a permitir que a parte recorrente possa obter a alteração da decisão proferida pelo tribunal recorrido em sentido a si favorável – e por isso que tal propósito só ocorre quando ao fundamento do recurso se reconheçam efeitos práticos, com possibilidade de se repercutir na decisão, levando à sua modificação/alteração. Cfr., neste sentido o ac. da RP de 10.07.2024, processo nº 1653/23.7T8AMT.P1, consultável in www.dgsi.pt.
Na situação que nos ocupa, a factualidade a considerar é apenas aquela que resulta do elenco dos factos provados, tanto mais que a mesma não foi objecto de qualquer impugnação, pelo que a apreciação da questão da incorrecta avaliação da prova e da violação de normas de direito probatório material é destituída de qualquer efeito prático.
Decorre do exposto, dever este Tribunal da Relação abster-se de apreciar tal questão, por inútil (art.º 130º, do NCPC). 3.2.4. Da (in)aplicabilidade ao caso do disposto nos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, na redacção conferida pela Lei nº 13/2019 de 12.02.
Na presente acção, tal conforme resulta do supra descrito, foi peticionado pelos autores – para o que ora interessa - a condenação solidária das rés, na qualidade de fiadoras, no pagamento de rendas vencidas e não pagas, bem como no pagamento do valor de € 1.000,00, pela ocupação do imóvel locado para além da data de cessação do contrato.
Na sentença recorrida decidiu-se que não tendo ficado demonstrado que as rés tivessem sido notificadas, por qualquer meio, do incumprimento relativo ao contrato de arrendamento, não podiam as mesmas ser responsabilizadas pelas quantias em dívida, valendo-se para o efeito das normas ínsitas nos nºs 5 e 6 do art.º 1041º, do CC, na redacção conferida pela Lei nº 13/2019 de 12.02.
Defendem, porém, os recorrentes não ser aplicável ao caso o disposto nas referidas normas uma vez que a factualidade em questão nos presentes autos ocorreu em data anterior à entrada em vigor da referida Lei nº 13/2019 de 12.02.
Analisando.
Conforme decorre do seu art.º 1º, a Lei nº 13/2019, de 12.02, veio estabelecer “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”.
Esta lei, publicada em 12.02.2019, entrou em vigor no dia seguinte, conforme se estabelece no respectivo art.º 16º e veio introduzir importantes alterações relativamente ao arrendamento urbano.
Neste contexto, o art.º 2º da Lei nº 13/2019 introduziu no art.º 1041º, do CC os mencionados nºs 5 e 6, os quais dispõem em concreto sobre a fiança no contrato de arrendamento, nos seguintes termos:
“5 - Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.
6 - O senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efectuar a notificação prevista no número anterior.”
E preceituam os nºs 1 e 2 deste art.º 1041º que se insere na subsecção referente à obrigação de pagamento de renda ou aluguer:
“1 – Constituindo-se o locatário em mora, o locador tem direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 20% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta do pagamento.
2 - Cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo.”.
Da leitura conjugada dos normativos vindos de citar, infere-se que a sanção prevista pelo legislador para a não notificação do fiador por parte do senhorio em caso de incumprimento do inquilino (que não faz cessar a mora nos termos do nº 2 deste artigo, ou seja, que não pague a renda no prazo de 8 dias após o começo da mora) é a da impossibilidade de exigir o cumprimento da obrigação em falta junto do fiador.
A notificação que o senhorio deve fazer ao fiador implica, portanto, a observância do prazo de 90 dias após o decurso dos 8 dias de mora mencionados neste nº 2, para que ao mesmo possa exigir o cumprimento da obrigação do seu inquilino desde o início da mora.
“O estabelecimento do prazo ora em análise, acrescenta um outro nível de proteção ao fiador, garantindo, quando respeitado o prazo exigido à sua notificação da mora e quantias em dívida, que à data desta nunca estarão vencidas rendas de período superior a 4 meses [o mês da renda em mora, e – no máximo - as 3 subsequentes rendas que se vencem no período máximo de 90 dias]. Evitando a que só muito tardiamente e quando o valor da dívida é já muito elevado da mesma tome conhecimento. Quando em momento anterior poderia ter providenciado pelo pagamento dos valores em falta. A notificação por parte do senhorio ao fiador é condição para o poder demandar ao cumprimento da dívida afiançada.” (cfr. ac. da RP de 8.05.2023, processo nº 1242/22.3T8PRT.P1, acessível in www.dgsi.pt).
Neste mesmo sentido, veja-se o ac. desta RG de 24.11.2022, processo nº 629/21T8CHV.G1, in www.dgsi.pt, no qual se pode ainda ler, “estes dois números foram aditados ao artigo 1041º pela Lei nº 13/2019, de 12/2, que estabeleceu medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade. Portanto, nos termos do artigo 1041º, nºs. 5 e 6, do CCiv, na redação dada pela Lei nº 13/2019, de 12 de fevereiro, em vigor desde 13.02.2019, caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito depois de efetuar a mencionada notificação. Tais normativos estabelecem novas condições para a exigibilidade de tal prestação ao fiador (...).”.
Ou ainda o ac. da RL de 21.05.2020, processo nº 2804/18.9T8CSC.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.: “Os números 5 e 6 do artigo 1041.º do Código Civil vieram, assim, conferir uma tutela específica ao fiador do arrendatário que, na medida da sua especificidade, afastam a aplicação das regras gerais da fiança. Assim, de acordo com o citado preceito, a mora não purgada do arrendatário, enquanto elemento constitutivo da responsabilização do fiador, constitui assim uma condição da ação, ou seja, elemento necessário para a procedência da pretensão deduzida, sendo que a exigibilidade do cumprimento das obrigações a cargo do fiador do arrendatário depende da notificação do senhorio ao fiador a que alude o artigo 1041.º, n.º 5, do Código Civil.”.
A dúvida que se ora levanta [e respeita ao objecto deste recurso] é se no caso os autores, na qualidade de senhorios, estavam obrigados a notificar os fiadores da mora e das quantias em dívida nos 90 dias seguintes, uma vez que à data da resolução do contrato de arrendamento ora em questão - e que ocorreu em 22.01.2018 - não existiam ainda os nºs 5 e 6 do art.º 1041º do CC, introduzidos pela Lei 13/2019 de 12.02.
Desde já se adianta que não.
Como é sabido, o princípio geral consignado no art.º 12º, nº 1 do CC é o de que a lei só dispõe para o futuro, quando lhe não seja atribuída eficácia retroactiva pelo legislador, presumindo-se salvaguardados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei nova se destina a regular, mesmo perante os casos em que o legislador atribui eficácia retroativa à lei nova.
Na verdade e como se salienta o ac. do STJ de 30.11.2021 (processo nº 2399/14.2TBVFX.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt): “A necessária notificação prévia ao fiador quanto ao montante das quantias em dívida, prevista hoje no disposto no n.º 5 do art.º 1041.º C.Civil (introduzido na redacção do art.º 2.º da Lei n.º 13/2019, em vigor a partir de 13/2/2019) não assume natureza de norma interpretativa, nos termos do art.º 13.º n.º 1 C.Civil, posto que o anterior regime geral da fiança, aplicado ao arrendamento, não suscitava anteriormente qualquer controvérsia, fosse doutrinal, fosse jurisprudencial, pelo que a ponderação da norma é de afastar ao caso dos autos, ocorrido na vigência da norma proveniente da reforma de 1977 do Código Civil.”.
No mesmo sentido encontramos ainda o ac. da RP de 24.11.22, processo nº 15200/20.9T8PRT e os acs. da RL de 13.10.2022, processo nº 4433/17.5T8LSB.L1 e de 21.05.2020, processo nº 2804/18.9T8CSC.L1 (todos acessíveis in www.dgsi.pt), podendo ler-se no sumário deste último o seguinte:
“VII) Aos factos constitutivos da pretensão da autora, fundada na mora do locatário e no não cumprimento da obrigação a cargo do fiador, é aplicável a lei em vigor à data em que tais factos ocorrem, ou seja, no caso, inteiramente sob a égide da lei antiga, aí se consolidando. VIII) Os n.ºs 5 e 6 do artigo 1041.º do CC, na redação da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, não visam factos e efeitos totalmente passados, aditando condições antes não previstas para a exigibilidade da prestação do fiador. Tais normativos estabelecem novas condições para a exigibilidade de tal prestação, mas, tão só, para as relações jurídicas que nasçam na sua vigência e para as que subsistiam à data da sua entrada em vigor, mas, nas quais, ainda não se tivesse constituído a situação de mora do locatário. Nas demais, como a dos presentes autos, é aplicável a lei antiga.”.
No caso, tendo a situação de mora da sociedade arrendatária, bem como a resolução do contrato ocorrido em data anterior a 13.02.2019 (data da entrada em vigor da Lei nº 13/2019, de 12.02), temos de concluir que as recorridas nunca deixariam de ser responsáveis, como fiadoras, pelo pagamento dos valores não satisfeitos, dado que, a exigibilidade dos mesmos não dependia da prévia comunicação do senhorio de tal falta.
Procede, pois, nesta parte o presente recurso. 3.2.5. Da errónea subsunção dos factos ao direito quanto à verificação dos requisitos constantes do art.º 628º, do CC.
Impugnam ainda os recorrentes a sentença recorrida por ter decidido pela nulidade da fiança, defendendo que, atentos os factos provados, o tribunal deveria ter concluído estarem preenchidos os requisitos da fiança, previstos no art.º 628º do CC e estarmos perante uma fiança válida.
Como explicita Antunes Varela “A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor.” (in, Das Obrigações em Geral, II, 4ª edição, p. 465).
Embora o Código Civil não o refira expressamente é, hoje, entendimento praticamente pacífico que a fiança assume natureza contratual, ou seja, nasce de um acordo entre credor e fiador, sem necessidade do conhecimento ou vontade do devedor.
Mas já se exige no art.º 628, nº 1, do CC que essa declaração que exprime a vontade de prestar fiança deve ser expressa, exigência que se explica pela gravidade que de tal vínculo pode resultar para o património do fiador.
E, ainda que não se exija a utilização da própria expressão fiança, deve a declaração do fiador nesse sentido ser inequívoca e não deixar quaisquer dúvidas que foi essa a sua vontade real.
Com efeito, dispõe o art.º 628º do CC com a epígrafe “Requisitos”:
“1. A vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal.
2. A fiança pode ser prestada sem conhecimento do devedor ou contra a vontade dele, e à sua prestação não obsta o facto de a obrigação ser futura ou condicional.”
Segundo refere Januário Gomes (in, Assunção Fidejussória de Dívida, p. 468) “Aplicando o critério do art.º 217/1 à declaração do fiador, dir-se-á que a mesma tem de ser exteriorizada através de um meio direto, por palavras, por escrito ou qualquer outro meio frontal e imediato de expressão de vontade, não satisfazendo o requisito legal a declaração de prestar fiança cujo sentido se depreende a latere de factos concludentes”.
“(…) Visa-se evitar que uma pessoa fique vinculada por uma fiança que poderá não ter querido prestar, atenta a gravidade e o perigo desta garantia. A lei pretende que o efeito da fiança - ser fiador - só incida sobre aquele que, querendo-o, o revelou diretamente, não permitindo que essa qualidade seja imputada a quem teve em vista directamente um efeito diverso, ainda que objectivamente, esteja associado a esse efeito, a latere, a possível vontade de afiançar” (obra citada, p. 470).
Referindo-se aos elementos ou dados que devem constar da declaração e sem os quais a mesma não pode valer como declaração de fiança, o autor que vimos referindo considera que, em princípio “a declaração do fiador deve identificar a dívida garantida, o devedor, o credor e o tempo de vinculação” (obra citada, p. 515).
Mais, analisando especificadamente os elementos essenciais da declaração de prestar fiança, diz ainda o mesmo autor que:
“A primeira natural indicação que deve constar da declaração de fiança é a da dívida garantida. O fiador tem de saber o que é que garante. Outra indicação é a da duração da garantia. O garante deve, na realidade, saber durante quanto tempo é que fica vinculado a aguardar a fase do exercício da garantia. Justifica-se ainda que a declaração de fiança mencione ou que contenha elementos de apoio suficientemente relevantes para permitir a identificação do devedor no momento da assunção fidejussória de dívida. Outras indicações necessárias são a identificação da pessoa do devedor e da pessoa do credor. Igualmente necessária, se revela a indicação das chamadas cláusulas que onerem a posição do fiador. Essa indicação revela-se mesmo essencial para a captação, pelo fiador, do risco assumido, não surtindo qualquer efeito as indicações que não resultem da declaração de assunção de fiança ou, naturalmente, duma convenção modificativa posterior. Entre as cláusulas que oberam a posição do devedor e aumentam o seu risco, conta-se a da convenção da solidariedade ou renúncia ao beneficio da excussão, bem como quaisquer cláusulas que integrem renúncias a qualquer dos benefícios que a lei reconhece ao fiador ou que piorem a sua situação enquanto devedor” (obra citada, p. 516 a 518 e 520).
No caso em apreciação, ressuma da factualidade apurada e da análise do documento que suporta o contrato de arrendamento em questão que as rés, ora recorridas, subscreveram o contrato de arrendamento, encontrando-se identificadas como terceiras outorgantes e declararam a qualidade de fiadoras, ali constando expressamente na sua cláusula sexta: “os segundos e terceiros outorgantes do contrato de arrendamento, responsabilizam-se, solidariamente, perante os primeiros outorgantes, como fiadores e principais pagadores dos pagamentos devidos a títulos de rendas, na vigência daquele contrato e sucessivas renovações.” (o sublinhado é nosso).
Note-se ainda que, ao contrário do que concluiu o tribunal recorrido, do texto do contrato não resulta qualquer dúvida acerca da qualidade em que as referidas rés intervieram no propalado contrato. Na verdade, no cabeçalho do contrato as mesmas não se encontram identificadas apenas como cônjuges dos sócios gerentes da sociedade arrendatária. Ou seja, não consta “A., casado com B.”, constando antes o nome de cada um dos cônjuges maridos (e elementos de identificação), seguido da expressão “e esposa”, o nome desta e os respectivos elementos identificativos.
Igualmente não nos suscitam dúvidas que a cláusula relativa à fiança identifica claramente a dívida garantida (rendas), o devedor (a arrendatária), o credor (o senhorio) e o tempo de vinculação (vigência do contrato e sucessivas renovações).
Por outro lado, e como bem defendem os recorrentes, julga-se ser evidente que o elenco dos factos provados não nos permite concluir pela falta de vontade das rés em prestar fiança, incorrendo o tribunal de 1ª instância neste particular em manifesto erro de julgamento (pois, como já vimos, fundou a decisão quanto à suposta nulidade da fiança em ocorrências que não estão devidamente contidas na decisão de facto).
Tudo isto para concluir que, na situação que nos ocupa, a vontade de prestar fiança foi expressamente declarada, não se vislumbrando existir qualquer óbice ao reconhecimento da validade da fiança prestada pelas rés, à luz do preceituado no art.º 628º, do CC.
Procede, pois, nesta parte o recurso dos autores, sem prejuízo da apreciação que faremos de seguida a propósito do âmbito da fiança. 3.2.6. Da extinção da fiança com a resolução do contrato de arrendamento
Atento o acima decidido, urge, pois, conhecer ainda da excepção invocada pela ré FF, a título subsidiário, ao abrigo do disposto no art.º 665º, nº 2, do NCPC.
Com efeito, alegou a referida apelada, na respectiva contestação, que, para o caso de ser considerada a fiança válida, apenas se teria obrigado ao pagamento das quantias que fossem devidas na vigência do contrato e apenas relativamente às quantias devidas a título de rendas e que, a fiança, nos termos em que foi constituída, não abrange a indemnização peticionada pelos autores, no montante de € 11.000,00, nos termos do disposto nos art.º 1045º, nºs 1 e 2 do CC.
No entretanto, a instância foi declarada extinta quanto ao montante de € 10.000,00 relativo ao pedido formulado ao abrigo do disposto no art.º 1045º, nº 2, do CC, pelo que apenas nos resta apurar se as rés/recorridas podem ou não ser responsabilizadas pelo valor peticionado ao abrigo do nº 1, da mesma norma legal.
Apreciando.
Prestada a fiança, o credor passa a beneficiar da garantia especial do património do fiador e da garantia comum de todas as obrigações do devedor, constituída pelo património deste, em pé de igualdade com todos os credores (art.º 601º, do CC).
A obrigação do fiador é acessória da obrigação do devedor principal – nº 2, do art.º 627º, do CC. Constituída a fiança fica a existir, juntamente com a obrigação do devedor, a obrigação acessória do fiador, cobrindo a primeira e tutelando o seu cumprimento (cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 467). O fiador constitui-se no dever de cumprir a obrigação do devedor, quando este não o faça, sob pena de ser executado o seu património.
A relação de acessoriedade com a obrigação principal manifesta-se em vários aspectos do regime da fiança: requisitos da forma de declaração (art.º 628º, nº 1), âmbito da obrigação (art.º 631º, nº 1), validade da obrigação (art.º 632º), meios de defesa oponíveis ao credor (art.º 637º), extinção da obrigação (art.º 651º), natureza civil ou comercial (art.º 101º, do CCom.) – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. I, anotação ao art.º 627º.
Além de acessória, a obrigação do fiador é em regra subsidiária, goza do benefício de excussão, que consiste no direito de recusar o cumprimento enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor (art.º 638º, nº 1, do CC), salvo em certas hipóteses, uma das quais a de haver renunciado ao benefício da excussão e, em especial, ter assumido a obrigação de principal pagador, conforme previsto no art.º 640º, do CC.
Como negócio jurídico que é, o conteúdo da fiança pode ser livremente estipulado pelas partes, desde que se situe no âmbito dos limites legais e desde que corresponda a um interesse do credor digno de proteção legal, como é exigência do art.º 398º do CC.
Por outro lado, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, conforme determina o art.º 634º do CC.
E, quanto ao seu âmbito, a fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas (art.º 631º, nº 1, do CC), sendo que a responsabilidade do fiador abrange tudo aquilo a que o devedor principal está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (art.º 798º do CC) ou a pena convencional que, porventura, se haja estabelecido (art.º 810º do CC).
Em anotação ao referido art.º 634º, do CC, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (in, obra citada, p. 467): “O fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cfr. art.º 810.º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cfr. art.º 798.º) salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631.º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.”.
No mesmo sentido, podemos ver, na doutrina, Menezes Leitão, in “Garantia das Obrigações”, edição de 2016, p. 109 e, na jurisprudência, o ac. da RP de 8.05.2023, já supra citado, acessível in www.dgsi.pt.
Por outro lado, a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança (cfr. art.º 651º do CC).
Por conseguinte, o fiador enquanto garante da dívida do arrendatário que outorga no contrato de arrendamento nessa qualidade, assume no contrato a posição de devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor senhorio, nos termos do art.º 627º nº 1 do CC, sendo à luz do que for expressamente estabelecido no contrato de arrendamento que se pode delimitar o âmbito da dívida que por ele é assumida e que tem apenas como limite a dívida principal que não pode exceder, podendo no entanto ser contraída por quantidade menor ou em condições menos onerosas do que aquela, conforme previsto no art.º 631º, nº 1 do CC [vide, neste sentido, ac. da RL de 13.10.2022, acima citado e ac. do STJ de 15.09.2022, processo nº 8520/20.4T8PRT-B.P2.S1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt].
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração deve a mesma ser resolvida interpretativamente pela solução mais favorável para o fiador (in dubio pro fideiussore) e, designadamente, o que dê menor âmbito à fiança (cfr. ac. do STJ de 15.09.2022, ora referenciado, bem como toda a doutrina ali citada).
No caso em apreciação, as rés, ora recorridas, subscreveram o contrato de arrendamento, declarando a qualidade de fiadoras, ali constando expressamente que se responsabilizaram, solidariamente, perante os Autores, como fiadoras e principais pagadoras dos pagamentos devidos a títulos de rendas, na vigência daquele contrato e sucessivas renovações.
Deste modo, e porque as rés fiadoras renunciaram ao benefício da excussão prévia, nos termos previstos no art.º 640º, al. a) do CC, e se assumiram como principais pagadoras ficou afastada a característica da subsidiariedade que regra geral acompanha a fiança e permite ao fiador obstar à execução do seu património enquanto não forem excutidos os bens do devedor ou o bem sobre que recaia garantia real, caso exista (cfr. art.ºs 638º e 639º do CC).
Consequentemente e por via do afastamento do benefício da excussão prévia, não restam dúvidas que respondem as fiadoras perante o credor em termos solidários com o devedor, sendo a responsabilidade deste a medida da responsabilidade daquele.
Deste modo, e desde logo, temos a obrigação pelo pagamento da renda [cfr. art.º 1038º, al. a), do CC], a qual, de resto, consiste na primeira e fundamental obrigação do locatário, conforme decorre do art.º 1038º, al. a), do CC.
Por outro lado, extinto o contrato, nomeadamente por resolução do contrato de arrendamento, como ocorreu no caso, sabemos que recai sobre a arrendatária a obrigação de restituir a coisa locada, em conformidade com o disposto nos art.ºs 1038º, al. i), 1043º, nº 1, e 1081º, nº 1, do CC.
Não sendo cumprida esta obrigação de restituição, prevê o art.º 1045, nºs 1 e 2, do CC a indemnização devida pela ocupação do locado após a extinção do contrato.
Assim, a questão que aqui verdadeiramente se discute é a de saber se, para além das rendas em dívida, a obrigação de pagamento da indemnização prevista no art.º 1045º nº 1 do CC, que incide sobre o arrendatário, é também responsabilidade das rés, em razão da fiança que prestaram perante o senhorio quando da celebração do contrato de arrendamento.
Ora, analisada a aludida cláusula 6ª do contrato de arrendamento em apreciação, tendo em consideração o preceituado no art.º 236º, do CC e o princípio da interpretação mais favorável ao fiador, facilmente concluímos que a mesma não abrangeu quaisquer obrigações constituídas na esfera jurídica da sociedade arrendatária, após a cessação do contrato. Diferente seria se tivesse sido estipulado que a fiança abrangia as obrigações emergentes do contrato “até à restituição do locado”, como é frequente ver-se em contratos idênticos.
Por outro lado, a indemnização prevista no nº1 do citado art.º 1045º, do CC, trata-se de uma indemnização específica pela não restituição do locado: posto que o proprietário não possa usar ou dispor do bem, a indemnização vai fixada na renda praticada no contrato, considerando-se ser esse o valor de uso do prédio. A situação assim contemplada vem a ser apenas uma indemnização a título de enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia (cfr. o ac. do STJ de 15.09.2022 que vimos seguindo de perto).
Nestes termos, afigura-se-nos ser de toda a evidência que a fiança prestada pelas rés não abrange a indemnização devida pela arrendatária, a título de atraso na restituição do locado, designadamente a indemnização a que se reporta o nº 1 do art.º 1045º, do CC, só podendo as fiadoras ser responsabilizadas pelo valor das rendas em dívida, no montante de € 8.000,00. 3.2.7. Do direito de regresso
Resta averiguar do direito de regresso invocado pela ré/recorrida FF.
Esta ré, deduziu no âmbito da contestação, incidente de intervenção principal provocada da sociedade insolvente EMP01... Lda; de GG e de HH, a título de condevedores solidários e ao abrigo do disposto no art.º 317º, do NCPC.
Porém, apenas pediu, para o caso de procedência da acção, a condenação de GG e HH, na qualidade de co-fiadores, a restituir-lhe as quantias que venha a ter que suportar, na proporção das suas quotas-partes.
Ou seja, não dirigiu qualquer pedido contra a sociedade insolvente. Assim e não obstante tenha sido admitida (inutilmente) a intervenção desta sociedade insolvente, atento o princípio do dispositivo (art.º 609º, nº 1, do NCPC), só importa conhecer do pedido dirigido contra os co-fiadores.
Isto posto, começa-se por dizer que existindo vários fiadores quanto à mesma dívida, responde cada um deles pela satisfação integral do crédito, excepto se foi convencionado o benefício da divisão, sendo aplicáveis as regras das obrigações solidárias, cfr. art.º 649º, nº 1 do CC.
Já relativamente aos direitos do fiador que pague a dívida, em relação aos co-fiadores, aplicam-se as regras relativas às obrigações solidárias.
Prescreve o art.º 650º, nº 1 do CC, nos termos do qual “Havendo vários fiadores, e respondendo cada um deles pela totalidade da prestação, o que tiver cumprido fica sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor e, de harmonia com as regras das obrigações solidárias, contra os outros fiadores”.
Tem sido entendido que o fiador que cumpriu goza, relativamente aos demais fiadores, de um simples direito de regresso segundo as normas da solidariedade.
Diz-se, a propósito, no ac. desta RG de 02.06.2016 (processo nº 18/13.TBVLP-E.G1, disponível in www.dgsi.pt): “como refere Almeida Costa, «A redação do art.º 650º não se apresenta muito feliz. Dados os seus termos, poderia pensar-se que o fiador que cumpriu fica sub-rogado nos direitos do credor tanto contra o devedor como contra os outros fiadores. Mas não oferece dúvidas que, em relação a estes últimos, se trata de um simples direito de regresso segundo as normas da solidariedade.». Que, quanto aos co-fiadores é de um direito de regresso que se trata, di-lo expressamente o art.º 524º do CC. O direito de regresso trata-se dum direito de crédito novo pois só surge na titularidade da pessoa (que pagou para além do que lhe competia) depois de extinto o crédito anterior, ou seja, é a extinção da anterior relação creditória que faz nascer o direito. Para além disso, tratando-se de um direito novo, não é acompanhado pelas garantias e acessórios da dívida extinta. Assim, nas relações entre os vários fiadores, «(…) dá-se a circunstância curiosa, mas perfeitamente lógica, de o fiador que cumpra integralmente a obrigação adquirir um duplo direito: por um lado, como fiador solvens que é, fica sub-rogado nos direitos do credor sobre o devedor; por outro lado, como co-obrigado solidário que também é, goza do direito de regresso contra os outros fiadores, de acordo com as regras das obrigações solidárias. É evidente que não pode exercer os dois direitos conjuntamente»”.
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, dúvidas não existem que, caso seja satisfeito pela ré FF o direito dos autores no âmbito da fiança, nasce naquela ré o direito de regresso sobre os demais fiadores, entre eles os intervenientes GG e HH, que subscreveram igualmente o contrato de arrendamento, na qualidade de arrendatários (cfr. pontos 20 a 22 do elenco dos factos provados).
Resta salientar que, sendo satisfeito o direito do credor para lá da parte que lhe competia, o fiador titular do direito de regresso contra os restantes fiadores, apenas pode peticionar a parte que a cada um competiria, isto é, na medida da quota parte de responsabilidade de cada um dos demais fiadores, as quais se presumem iguais entre si, cfr. art.º 516º do CC.
Por conseguinte, impõe-se reconhecer o direito de regresso da ré FF sobre os aludidos co-fiadores, nos termos peticionados.
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Ante todo o exposto, procede parcialmente o presente recurso, impondo-se revogar parcialmente a sentença recorrida e condenar as rés no pagamento aos autores de € 8.000,00 (oito mil euros) correspondente ao valor das rendas em dívida.
Porque se tratam de obrigações pecuniárias com prazo certo, têm ainda os autores direito aos juros de mora vencidos sobre cada um dos montantes mensais em dívida, calculados desde a data de vencimento de cada renda em dívida, à taxa de 4% (art.ºs 559º, 804º, nº 1 e 2, 799º, nº 1, 805º, nº 2, a) e 806º do CC e Portaria 291/2003, de 8/04) e até integral pagamento.
Por outro lado, importa igualmente reconhecer e a condenar os intervenientes GG e HH na satisfação do direito de regresso que possa vir a assistir à ré FF, se tiver de realizar a totalidade da prestação.
As custas do presente recurso e da acção são da responsabilidade dos autores, rés e intervenientes, na proporção do respectivo decaimento e vencimento (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, em consequência, revogar parcialmente a decisão recorrida, decidindo:
a - condenar solidariamente as rés EE e FF, na qualidade de fiadoras, a pagar aos autores a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros) correspondente às rendas de Julho de 2017 a Fevereiro de 2018, acrescida de juros de mora vencidos sobre cada um dos montantes mensais em dívida, calculados desde a data de vencimento de cada renda, à taxa de 4% e até integral pagamento;
b - condenar GG e HH a restituir à ré FF as quantias que esta venha a ter que suportar, por força da condenação no ponto anterior, e na proporção das suas quotas-partes.
Custas do recurso e da acção pelos autores, rés e intervenientes, na proporção do respectivo decaimento e vencimento.
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Guimarães, 7.11.2024 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Joaquim Boavida
2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Eva Almeida