I- Se os depoimentos dos arguidos convergiram em alguns pontos, tem o Tribunal Coletivo de os indicar. Se divergiram noutros pontos, tem de indicar a razão pela qual atribui credibilidade a uma das versões em detrimento da outra, tem que fundamentar o seu juízo, que indicar as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou.
II- A total falta de exame crítico da prova utilizada para dar como provados os factos não nos permite perceber qual o processo lógico que levou o Tribunal “a quo” a dar como provados uns factos e não provados outros e, consequentemente, apurar da correcção do seu raciocínio.
III- Inexistindo um exame crítico da prova produzida que espelhe o processo de formação da convicção do julgador, concretizando e exteriorizando as razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova foram, ou não, valorados e em que sentido, tal situação configura, sem dúvida, inobservância do disposto no citado art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P, o que acarreta a nulidade da sentença.
IV- A apontada nulidade não impõe, necessariamente, o reenvio para novo julgamento, bastando-se com a sua reformulação nos termos indicados.
(Sumário elaborado pela Relatora)
I – Relatório:
-» …, foi proferido Acórdão, …, que … decidiu (transcrição):
I – Condenar o arguido … pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 145.º, nºs.1, al. a) e 2, 143.º, n.º1, e 132.º, nºs.1 e 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
II - Condenar o arguido … pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
III - Condenar o arguido … na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período e sujeito a regime de prova;
IV - Absolver o arguido AA … da imputada prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, …
V- Condenar o arguido o arguido AA … pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
VI- Condenar o arguido o arguido AA … pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), por referência ao artigo 3.º, nºs.1 e 2, al. g), ambos da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 9 (nove) meses de prisão e na pena acessória de interdição de detenção uso e porte de arma prevista no artº 90º da Lei nº 5/2006 de 23/02, pelo período de um ano.
VII- Condenar o arguido AA … na pena única de 1 (um) ano de prisão, cuja execução se suspende por igual período e sujeito a regime de prova;
VIII- Julgar totalmente procedente, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Centro Hospitalar … em consequência, condenar o demandado BB … no pagamento aquele da quantia de 102,61 € … a titulo de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal.
IX- Julgar parcialmente procedente, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante AA …, em consequência, condenar o demandado BB … no pagamento aquela da quantia de 916.03 € … a titulo de indemnização por danos patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal.
X - Julgar parcialmente procedente, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante AA …, em consequência, condenar o demandado BB … no pagamento aquela da quantia de 10.500€ …a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, acrescido de juros à taxa legal, absolvendo-o do demais peticionado
XI - Julgar parcialmente procedente, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante BB …, e em consequência, condenar o demandado AA … no pagamento aquela da quantia de 500€ … a titulo de indemnização por danos patrimonial acrescido de juros à taxa legal, absolvendo-o do demais peticionado.
XII- …
*
*
-» Inconformado, BB … interpôs recurso, quer na qualidade de arguido, quer na de assistente e demandante civil, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
1. …
2. Perante a prova produzida em julgamento - que se resumiu às declarações dos Arguidos, porquanto nenhuma testemunha revelou ter conhecimento directo dos factos, nada sabia, a nada tendo assistido como expressamente se reconhece no acórdão ! -, conjugada com a demais prova constante dos autos (documental e pericial, que sequer é apreciada pelo Tribunal a quo), em circunstância alguma e sem margem para dúvidas, podia o Colectivo de Juízes ter condenado o aqui Recorrente pela prática dos crimes pelos quais vinha acusado, antes se impondo a sua absolvição!
3. …
4. Do confronto das declarações dos 2 arguidos, resulta claramente que o Tribunal retira conclusões das declarações do Recorrente que não correspondem integralmente à verdade. …
5. …
6. …
7. …
8. Perante a conjugação destes elementos probatórios (declarações de Arguidos, relatórios de exame pericial da PJ e orçamento junto por AA …), mal andou o Tribunal recorrido ao ter dado como provado o facto 9 que, consequentemente, deve ser dado como não provado, absolvendo-se o Arguido do crime de dano.
9. Relativamente aos factos que sustentam a condenação do Recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, …, o Tribunal não dispunha de qualquer elemento probatório para além das declarações destes, pois que, como expressamente se reconhece no acórdão “ninguém viu, ninguém assistiu e da visualização do CD nada se retira”.
10. …
11. …
12. …
13. …
14. …
15. …
16. Perante uma dúvida inultrapassável sobre como ocorreram os factos, a partir do momento em que os dois arguidos pararam as suas viaturas … e se envolveram fisicamente – não tendo prova de quem avançou primeiro, …-, não podia o Tribunal a quo ter concluído pela prova desta factualidade – como fez incorrectamente - e condenar o aqui Recorrente.
17. …
18. …
No plano do Direito,
19. …
20. …
21. Para além da enumeração dos factos provados e não provados, o acórdão condenatório basta-se com uma enunciação/ descrição sumária do que foram as declarações dos dois arguidos em julgamento (cuja resenha sequer corresponde, em parte, ao que foi dito por estes), todos os depoimentos em julgamento, a prova documental e pericial que os autos contêm, sem nunca, contudo, fazer uma exame crítico dessa prova por forma a justificar como formou a sua convicção, ou seja, sem explicitar, num raciocínio lógico de argumentação, porque deu razão deu como provada quase toda a factualidade vertida na acusação e que sustenta a condenação do Arguido.
22. …
23. …
24. O Tribunal a quo sequer menciona ou justifica que a versão trazia a julgamento por um dos arguidos o convenceu mais do que a trazida pelo outro, ou seja, que o seu raciocínio lógico-dedutivo teve por base as declarações de um arguido em detrimento do outro, para assim poder, de alguma forma (o que, só por si também não seria suficiente), dar como assente que foi BB quem primeiro desferiu um golpe em AA e não que este golpe surgiu como resposta à tentativa de AA de o agredir com um ferro maciço com 58 cm.
25. …
26. …
27. …
28. …
29. …
30. Impunha-se, portanto, ao Tribunal a explicitação dos fundamentos da decisão, com exame crítico das provas, quanto à conduta do Arguido e à dinâmica dos factos, ao abrigo do preceito constitucional a que temos vindo a aludir, na medida em que se trata de constituir as bases de facto para se poder concluir que o Recorrente deve ser punido pelos ilícitos que lhe estavam imputados na pronúncia.
31. Da decisão recorrida não consta qualquer prova directa dos factos nem sequer se explicita o raciocínio lógico-dedutivo, a necessária afirmação dos meios de prova que levou a tal convicção do Tribunal, pelo que, a bem da Justiça, tal omissão impedia que o resultado dos presentes autos fosse o que consta do acórdão ora em crise, ou seja, a condenação do Recorrente na pesadíssima penal que lhe foi imposta.
32. …
33. …
34. É INCONSTITUCIONAL a DECISÃO do Tribunal Colectivo de Leiria por não fundamentar suficientemente a sua motivação no que toca aos factos provados constantes da acusação pública, produzindo o juízo condenatório nos termos em que o fez em relação ao aqui Recorrente, por violação manifesta do disposto nos artigos 32.º, n.º1 e 205.º, n.º1 da CRP da Constituição da República Portuguesa.
35. …
36. O acórdão padece de outra nulidade, que reporta à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, porquanto o Tribunal a quo deu factos como provados (e que o Recorrente não impugnou em sede de recurso em matéria de facto) que estão em absoluta contradição com os não provados (e reportamo-nos aos factos provados 8 e 13 e ao facto não provado 7), o que naturalmente tem implicações nos valores indemnizatórios que foram depois atribuídos ao aqui Recorrente,
37. E, ainda, porque existe contradição entre aquilo que o Tribunal a quo entendeu dar como provado e o que consta na fundamentação da decisão e na própria decisão, …
38. …
39. …
40. …
41. …
42. …
43. …
44. …
45. …
46. …
47. …
48. …
49. …
50. Mesmo que o Tribunal a quo se refugiasse no princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no art.º 127.º do CPP, para ter decidido no sentido da condenação, nunca o poderia ter feito do modo como o fez, pois salvo o devido respeito, não foi feita prova suficiente e conclusiva que lhe permitisse, com base em critérios objectivos, apurar com certeza absoluta e sem margem para dúvidas a verdade material dos factos que vinham descritos na acusação.
51. …
52. O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, ao ter, perante a incerteza gerada pelos meios probatórios produzidos perante si, ultrapassado as inconsistências da prova para, ao arrepio do supra citado postulado de direito adjectivo penal, ter contornado a inconsistência inultrapassável da acusação – porque outra conclusão não é passível de ser extraída da prova -, terminando com uma condenação que facilmente se demonstra arbitrária (para além de abusiva e injusta).
53. …
54. O Tribunal a quo decidiu aplicar ao Recorrente uma pena única de 2 anos e 2 meses de prisão, o que se afigura de uma violência, principalmente se tivermos presente a prova abonatória ouvida em julgamento que o descreveu como uma pessoa pacífica, muito justa e perfeitamente integrado na sociedade, a sua idade, o teor do relatório social (facto provado 36.) e o facto de o Arguido não ter antecedentes criminais (facto provado 34.).
55. …
56. …
57. …
58. …
59. …
60. …
61. …
62. …
63. A decisão do Colectivo de Leiria é igualmente INCONSTITUCIONAL por não fundamentar suficientemente a sua motivação no que toca à imposição do regime de prova ao Recorrente, produzindo o juízo condenatório nos termos em que o fez, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º1 e 205.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
64. Quando assim se não entenda, e a manter-se a condenação do Recorrente, sempre sem conceder, deverá este ser absolvido da sujeição a regime de prova, porquanto, perante toda a prova dos autos (relatório social) e até pela própria conclusão do Tribunal de que este se encontra integrado profissional, familiar e socialmente (facto provado 36), nada justifica a sua manutenção, que, além do mais, se afigura ilegal, desajustada, desadequada e profundamente injusta.
Quanto ao pedido de indemnização civil por dano não patrimonial,
65. …
66. …
67. …
68. …
69. …
70. …
71. …
72. …
73. …
74. A atribuição de uma indemnização por dano não patrimonial no valor de 10.500,00€ … é, atento o supra exposto, manifestamente desajustada e desproporcional (diríamos mesmo inédita! ), mas sobretudo profundamente violadora das regras da equidade, pelo que, a manter-se a condenação do Recorrente – sempre sem conceder -, deve o acórdão recorrido ser revogado nesta parte e substituído por outro que fixe uma indemnização ajustada à situação em concreto.
…”
*
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
*
*
-» O Ministério Público apresentou resposta ao recurso …
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*
-» O co-arguido/demandado civil … apresentou resposta ao recurso, …”.
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-» Uma vez remetido a este Tribunal, a Exm.ª Senhora Procuradora-Geral Adjunta deu parecer …”
*
*
Cumprido o disposto no art.º 417º do CPP, o recorrente respondeu, …
*
*
Proferido despacho liminar e, colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
*
*
II- Questões a decidir:
…
Atentas as conclusões apresentadas no recurso, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- saber se foram incorretamente julgados os factos constantes dos pontos 9, 16 a 21, 27, 28, 32 e 38, já que tais factos, que foram dados como provados, deveriam ter sido julgados não provados (conclusões 1 a 18);.
- violação do princípio in dubio pro reo, plasmado no art.º 127 do CPP e no art.º 32º da CRP (conclusões 50 a 53)
- nulidade do acórdão por falta de exame crítico da prova, nos termos do disposto no art.º 380º n.º 1 al. a) do CPP e inconstitucionalidade da decisão do Tribunal a quo por não fundamentar suficientemente a decisão, nos termos dos artigos 32 n.º 1 e 205 da CRP (conclusões 19 a 35);
- nulidade do Acórdão, por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, relativamente aos factos provados em 8 e 13 e não provado em 7, nos termos do disposto no art.º 410 n.º 2 al. b) do CPP (conclusões 36 a 42 e 47 a 49).
- nulidade do Acórdão, por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, relativamente aos factos provados e à decisão de absolvição do arguido AA nos termos do disposto no art.º 410 n.º 2 al. b) do CPP (conclusões 43 a 49)
- medida da pena (conclusões 54 a 56)
- nulidade do acórdão por falta de fundamentação da aplicação do regime de prova, nos termos dos arts 374 n.º 2 e 379 n.º 1 al. a) e inconstitucionalidade desta interpretação do tribunal a quo, nos termos dos arts 32 n.º 1 e 205º n.º 1 da CRP (conclusões 57 a 63)
- da não verificação dos pressupostos de aplicação do regime de prova (concl. 64);
- do quantum indemnizatório (concl. 65 a 74);
*
Tais questões serão apreciadas por ordem lógica.
*
*
III – Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte (transcrição):
II – FUNDAMENTAÇÃO:
“Com interesse para a discussão da causa provaram-se os seguintes factos:
…
Factos Não Provados:
…
Motivação da decisão de facto
…
*
IV- Do mérito do recurso:
4.1. Da nulidade do Acórdão por falta de exame crítico da prova - art. 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal.
O artigo 205º nº 1, da CRP determina que as decisões dos tribunais “…que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Na densificação deste princípio constitucional o legislador ordinário, no âmbito do processo penal, estabeleceu no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal que na fundamentação devem “…ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
E sabemos que, nos termos do artº 374º, nº 2, do CPP, a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
A fundamentação, compõe-se, assim, de três partes distintas:
- a enumeração dos factos provados e não provados;
- a exposição dos motivos que fundamentam a decisão;
- a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Quanto à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito.
Os motivos de facto "…que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiencia ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência" (Marques Ferreira - Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 229/230; cf. Acórdão do TC nº 680/98, proferido no processo nº 456/95 e publicado no DR II série de 05.03.99).
Com a leitura da fundamentação da sentença, deve ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, no sentido de considerar provados e não provados os factos objeto do processo.
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.
A ausência de fundamentação integra a nulidade de sentença prevista no art. 379º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.
Já o exame crítico da prova, a que também alude o art.º 374º n.º 2 do CPP, consiste na «…enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.»
(cfr. Ac do STJ de 30.01.2002, proc. 3063/01, de 3.10.2007, proc. 07P1779; cfr. ainda AC STJ de 19.05.2010, proc. 459/05.0GAFLG.G1.S1, de 17.09.2014, proc. 1015/07.3PULSB.L4.S1; de 14.12.2016, proc. 303/14.7JELSB.E1.S1; de 13.12.2018, proc. 308/10.7JELSB-L3.S1 e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1, in www.dgsi.pt).
Assim, o rigor e a suficiência do exame crítico haverão de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas do mesmo modo bastante, que sejam percetíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
Como ensina o STJ, no Acórdão de 27-05-2009, Processo n.º 1511/05.7 PBFAR.S1, in www.dgsi.pt:
“A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja, a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituem a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada.
Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.”
No mesmo sentido se pronuncia o Ac. RC de 3/6/2015, Processo: 248/09.2JALRA.C1, in www.dgsi.pr.
“Visando a fundamentação evidenciar as razões da bondade da decisão e dar satisfação à exigência da sua total transparência, facultando aos seus destinatário imediatos e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, e viabilizando o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto, não pode esquecer-se que não existem fórmulas sacramentais para a sua explicitação. Ela variará, necessariamente, em função, designadamente, do maior ou menor poder de síntese do julgador e da melhor ou menos boa capacidade de expressão do mesmo, bastando-se a lei processual com uma possibilidade efectiva de compreensão do raciocínio exposto.”
Ou seja, na medida em que a fundamentação da decisão permita apreender o processo racional que a suportou, tornando transparente para os destinatários os motivos subjacentes à decisão, não se verifica violação do disposto no artigo 374.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Contudo, não se exige, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido.
A lei impõe, isso sim, uma enunciação suficiente, ainda que sucinta, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.
Como se refere no AC RL de 08-01-2020, disponível in www.dgsi.pt:
“O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental, mas bastante, que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte e desde que torne percetível e sindicável, em instância de recurso, as razões da convicção do Tribunal do julgamento, quanto aos factos, não se verificará a nulidade emergente da falta de exame crítico das provas (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03 e Ac. do STJ de 3.10.2007, processo 07P1779, Ac. da Relação de Lisboa de 10.07.2018, processo nº 106/15.1PFLRS.L1-5 in http://www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Évora de 07.03.2017, Processo 246/10 Jus Net 1781/2017 Marques Ferreira (in "Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal", Livraria Almedina, 1988, pág. 228) Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º 3, p. 21 e segs.).
Mas não foi isso que foi feito na 1ª instância, pois o tribunal a “quo” limitou-se a enumerar os meios de prova e a indicar as versões dos arguidos, que são antagónicas, para daí e, sem qualquer explicação ou exame crítico dos seus depoimentos, concluir pelos factos que considerava provados e não provados.
Ora, não tendo o Tribunal dúvidas acerca do sucedido, impunha-se que explicasse qual a versão a que atribuiu credibilidade – necessariamente em detrimento da versão do outro arguido - e as razões pelas quais o fez indicando designadamente quais foram os elementos de prova de que se socorreu (como afirma ter feito na motivação) e explicando o seu raciocínio.
Sabemos – por o Tribunal a quo o ter consignado - que aos factos ninguém assistiu e que da visualização do CD nada se retira.
Escreve o Tribunal a quo que se socorreu “da experiência comum”, “do conhecimento que tem do trajeto efetuado pelos arguidos … e do facto dos relatórios clínicos serem compatíveis com as lesões sofridas pelo arguido AA.
Quanto a este último aspeto, não há quaisquer dúvidas de que tais ferimentos ocorreram e que tiveram origem nas navalhadas desferidas …, mas a apontada compatibilidade dos ferimentos com o relatório médico não nos esclarece sobre a sucessão de acontecimentos nem permite concluir, como fez o Tribunal recorrido, que “foi o arguido BB … quem sempre insistiu na perseguição da viatura do arguido AA … e foi também ele quem primeiro desferiu um golpe no abdómen deste com um canivete e depois o atirou fora; não teve assim, o Tribunal dúvidas que os factos se passaram conforme os factos dados como provados, na sequência de um “picanço” de trânsito, e em que se é certo que arguido AA tentou por fim à perseguição tendo-se ido refugiar junto de uma empresa de pessoas suas conhecidas, também não é menos certo que o arguido BB …não desistiu no seu propósito de enfrentar o seu co-arguido até ao limite de lhe desferir um golpe razão pelo qual o arguido AA se muniu do ferro que trazia na viatura” .
Tampouco se percebe de que modo é que as regras de experiência comum e o conhecimento do trajeto seguido pelos arguidos contribuiu para essa conclusão. O que extraiu o Tribunal Coletivo dessas regras e desse conhecimento?
Lida e relida a motivação do Acórdão recorrido, este Tribunal da Relação não consegue, de facto, descortinar a linha de raciocínio do Tribunal Coletivo.
Se os depoimentos dos arguidos convergiram em alguns pontos, tem o Tribunal Coletivo de os indicar. Se divergiram noutros pontos, tem de indicar a razão pela qual atribui credibilidade a uma das versões em detrimento da outra, tem que fundamentar o seu juízo, que indicar as razões pelas quais valorou ou não valorou as provas e a forma como as interpretou.
A total falta de exame crítico da prova utilizada para dar como provados os factos não nos permite perceber qual o processo lógico que levou o Tribunal “a quo” a dar como provados uns factos e não provados outros e, consequentemente, apurar da correcção do seu raciocínio.
Inexistindo um exame crítico da prova produzida que espelhe o processo de formação da convicção do julgador, concretizando e exteriorizando as razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova foram, ou não, valorados e em que sentido, tal situação configura, sem dúvida, inobservância do disposto no citado art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P.
É inquestionável que o ocorre nulidade da decisão, nos termos do disposto no art.º 379 n.º 1 al. a) do CPP, não só nas hipóteses de total omissão de motivação mas também quando a fundamentação da convicção for insuficiente para efetuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, na meta de um processo justo, que assegure todos os direitos de defesa, como vem proclamado pelo art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (cfr. neste sentido, Ac da RP de 13/01/2010, processo 619/05.3TAPVZ.P1, in www.dgsi.pt e Ac do STJ de 17/2/2011, processo 227/07.4JAPRT.P2.S1, in www.dgsi.pt.).
Por outro lado, a ausência de tal exame crítico não permite também verificar se a decisão de facto enferma dos vícios do art.º 410º n.º 2, do erro de julgamento, e da violação do princípio in dubio pro reo invocados pelo Recorrente.
Entendemos, porém, tal como vem sendo decidido pela jurisprudência, que essa nulidade não impõe, necessariamente, o reenvio para novo julgamento, bastando-se com a sua reformulação nos termos indicados (por todos, cfr Acs. da RG de 26-03-2007, Processo: 1835/07-1 e da RE de 13-11-2012 Processo: 2975/11.5GBABF.E1, disponível em www.dgsi.pt)
V- Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízas Desembargadoras da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso e, consequentemente, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 379º, nº 1, al. a) e 374º, n.º 2, do CPP, anular o Acórdão recorrido para que o Tribunal a quo reformule a motivação da matéria de facto, completando-a com a indicação da prova que lhe permitiu dar como provados uns factos e não provados outros, com indicação do exame crítico das provas mostrando-se, em consequência, prejudicado o conhecimento do demais suscitado pelo recorrente.
Sem tributação.
Sara Reis Marques
(Juíza Desembargadora Relatora)
Cristina Pego Branco
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria da Conceição Barata dos Santos Miranda
(Juíza Desembargadora Adjunta)