PRONÚNCIA OBRIGATÓRIA SOBRE O PERDÃO DE PENA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SUPRIMENTO DA NULIDADE
ÂMBITO DO CÚMULO JURÍDICO
PENA DE PRISÃO COM EXECUÇÃO SUSPENSA
PENAS SOFRIDAS PELO ARGUIDO
FUNDAMENTAÇÃO DA RELAÇÃO DE CONCURSO ENTRE AS CONDENAÇÕES CONSIDERADAS
Sumário

I - Em caso de condenação em pena de prisão e reunidos que estejam os pressupostos referidos no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o tribunal tem que se pronunciar sobre a aplicação, ou não, do perdão previsto na lei, sob pena de nulidade por omissão de pronúncia.
II - Compete ao tribunal de 1ª instância ponderar e decidir sobre a aplicação do perdão, não podendo o tribunal de recurso suprir a nulidade derivada da omissão de pronúncia.
III - O cúmulo jurídico de penas visa, além do mais, estabilizar a situação processual do arguido, devendo, por isso, contemplar todas as condenações que estejam em situação de concurso, ainda que impliquem a formação de mais que um grupo de cúmulo jurídico de penas, devendo especificar-se as que, reclamando cumprimento autónomo e sucessivo, são de excluir do(s) cúmulo(s) realizado(s).
IV - É nulo, por omissão de pronúncia, o acórdão que integrou no cúmulo jurídico penas de prisão com execução suspensa sem apurar se as mesmas foram extintas ou revogadas, quando os respectivos prazo de suspensão já decorreu.
V - Padece de nulidade, por omissão de pronúncia, a decisão cumulatória que não curou de apurar todas as penas sofridas pelo arguido.
VI - Padece de falta de fundamentação o acórdão que procede ao cúmulo jurídico sem explicar por que razão as penas consideradas estão em relação de concurso.

Texto Integral

*

…, realizou-se audiência nos termos previstos no artigo 472º do Código de Processo Penal, com intervenção de tribunal coletivo, tendo sido proferido acórdão que culminou com o seguinte dispositivo [transcrição[1]]:

«Nestes termos e pelo exposto e ao abrigo do preceituado nos arts. 77º e 78º do Cód. Penal, acordam os juízes deste Tribunal Colectivo em proceder ao cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido  nos processos supra identificados em A) a E) e condená-lo na pena única de   6 anos de prisão  e 160 dia de multa à taxa diária de 6 euros e na sanção  acessória de proibição de conduzir  prevista no art. 69º, nº 1, do Cód. Penas,  na pena única de dois anos, devendo entregar a carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença (Cfr. art.º 69 n.º 3 do Código Penal) com a advertência de, não o fazendo, incorrer na prática de crime de desobediência.

(…)»

            2. - Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido, …, interpor recurso, apresentando a respetiva motivação, no termo da qual formulou as seguintes conclusões e petitório [transcrição]:

e) Ou seja, aquando estes crimes foram cometidos isoladamente ou em concurso estão abrangidos pelo perdão.

f) O Tribunal “ad quo” é omisso quanto à aplicação da chamada lei da amnistia.

g) Parece-nos que, o tribunal “Ad quo” comete um tremendo erro de interpretação.

h) O que decorre da lei da amnistia é que num caso de cúmulo jurídico ainda não transitado em julgado, em prima facie devem ser “eliminados” os crimes perdoados e só depois se fará o cômputo do referido cúmulo.

i) Assim e sem mais delongas parece-nos que ao limite máximo da pena há que subtrair 48 meses de prisão.

j) O Recorrente discorda da posição processual do Tribunal a quo.

 k) Acresce que, a pena de prisão determinada pela Sentença Recorrida é manifestamente exagerada relativamente ao Arguido.

l) É nosso entendimento que tal pena é manifestamente excessiva e desproporcional face aos factos apurados e que deverá ser reduzida.

            3. - O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu …

4. - Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, tendo sido concedida vista nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer …

5. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.


*


            II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. -[2]].

[3].

            Assim, tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir residem em saber se ocorre:

            - Erro na aplicação da Lei n.º 28-A/2023, de 02 de agosto; e

            - Erro na determinação da medida da pena única.

            Contudo, suscita-se, oficiosamente, questão que se prende com a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, que embora não seja invocada pelo recorrente, engloba, além do mais, a primeira questão por este abordada, e por insuficiência de fundamentação.

 

            2. - O acórdão alvo de recurso tem o teor que se transcreve de seguida [com exceção do dispositivo, supra transcrito]:


*

Acórdão de cúmulo jurídico


Arguido:

   AA, natural de ..., filho de BB e de CC, nascido em ../../1987, titular do cartão de cidadão n.º ...06, solteiro, vendedor ambulante, residente na Rua ..., ... ....


*

Mantem-se os pressupostos de validade e regularidade da instancia, presentes aquando o da prolação do despacho que designou dia para julgamento.

Não  existem nulidades, excepções ou qualquer questão  prévia que cumpra apreciar.


*

 Foi  realizada a audiência para realização de cúmulo jurídico, com observância do formalismo legal.


*

Fundamentação de  facto

A)

Nossos autos: Autos de Processo Comum Colectivo n.o 46/17....  foi o arguido AA,   condenado por acórdão   datado de 26/1/2023 e  confirmado pelo  TRC. transitado em 14/06/2023, pela prática    de:

- um crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137.º, n.os 1 do Código Penal, na pena de vinte meses de prisão;   -

 - 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave, por negligência, p. e p. pelos artigos 148.º, n.os 1 e 3 e 144.º, al.s b/c/d ambos do Código Penal, na pena de catorze meses de prisão: 

- Dois crimes de omissão de auxílio pp pelo art.º 200/1/2 do C.Penal, na pena única de um ano de prisão pela prática de cada um dos crimes.

Em cúmulo,  na pena única de três anos e dois meses de prisão.  

 Mais foi condenado  na proibição de conduzir veículos motorizados na penas de um ano cada.

Em cúmulo jurídico,  na pena única de dois anos, devendo entregar a carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença( Cfr. art.º 69 n.º 3 do Código Penal) com a advertência de, não o fazendo, incorrer na prática de crime de desobediência.

Factos:

C) O arguido tem antecedentes criminai a saber:

a)

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2011/01/12

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2011/02/09

CRIMES  

CRIME: 1 CRIMES(S) DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL

NORMA LEGAL INCRIMINADORA: P.P. PELO ART.º 3º Nº.S, 1 E 2 DO DEC. LEI 2/98, DE 3 DE JANEIRO

DECISÃO/PENA: 100 DIAS DE MULTA, À TAXA DIÁRIA DE 5,00, QUE PERFAZ O TOTAL DE 500,00 EUROS

DATA DE EXTINÇÃO: 2013/02/12

b)

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2017/03/13

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2017/04/27

DECISÃO/PENA: MULTA

MOTIVO DA PENA:

DATA DE EXTINÇÃO: 2017/03/28

C)

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2017/10/03

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2017/11/02

CRIMES

CRIME: 2 CRIMES(S) DE FURTO QUALIFICADO

DATA DA PRÁTICA: 2016/12/18

EXTRATO DA DECISÃO

DECISÃO/PENA: PRISÃO SUSPENSA COM REGIME DE PROVA

MOTIVO DA PENA:

DATA DE EXTINÇÃO: 2021/01/26

D)

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2020/10/30

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2021/07/14

CRIMES

CRIME: 1 CRIMES(S) DE FURTO SIMPLES

DATA DA PRÁTICA: 2019/01/14

DATA DA PRÁTICA: 2019/01/14

EXTRATO DA DECISÃO

DECISÃO/PENA: PRISÃO SUSPENSA COM REGIME DE PROVA

MOTIVO DA PENA:

DURAÇÃO PENA: 2 ANO(S) 10 MÊS(ES) 0 DIA(S)

DESCRIÇÃO: 2 ANOS, 10 MESES E 0 DIAS DE PRISÃO, SUSPENSA POR 2 ANOS, 10 MESES E 0 DIAS

TIPO DE DECISÃO: DESPACHO DATA DA DECISÃO: 2021/03/05

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2021/05/06

CRIMES  

EXTRATO DA DECISÃO

DECISÃO/PENA: PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA

MOTIVO DA PENA:

DURAÇÃO PENA: 0 ANO(S) 2 MÊS(ES) 0 DIA(S)

D)

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2019/01/25

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2019/02/25

DECISÃO/PENA: PRISÃO SUBSTITUÍDA POR PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE

MOTIVO DA PENA:

DURAÇÃO PENA: 0 ANO(S) 2 MÊS(ES) 0 DIA(S)  

DATA DE EXTINÇÃO:

 

***

CRIME: 1 CRIMES(S) DE RECEPTAÇÃO

DECISÃO/PENA: PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA

MOTIVO DA PENA: REVOGAÇÃO DA PENA OU MEDIDA DE SEGURANÇA

DURAÇÃO PENA: 0 ANO(S) 0 MÊS(ES) 25 DIA(S)

DESCRIÇÃO: PELO PRAZO DE 0 ANOS, 0 MESES E 25 DIAS  

INFORMAÇÃO ADICIONAL: DEDUZIDAS AS HORAS DE TRABALHO PRESTADAS A FAVOR DA COMUNIDADE

***

*

TIPO DE DECISÃO: SENTENÇA DATA DA DECISÃO: 2020/07/07

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2020/09/18

DATA EMISSÃO BOLETIM: 2020/09/22

CRIMES

CRIME: 1 CRIMES(S) DE FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO

DECISÃO/PENA: MULTA

MOTIVO DA PENA:

***

*

TIPO DE DECISÃO: ACÓRDÃO DATA DA DECISÃO: 2021/01/21

DATA TRÂNSITO JULGADO: 2021/02/22

CRIMES

CRIME: 2 CRIMES(S) DE FURTO QUALIFICADO

DECISÃO/PENA: PRISÃO SUSPENSA COM REGIME DE PROVA

MOTIVO DA PENA:

DURAÇÃO PENA: 2 ANO(S) 2 MÊS(ES) 0 DIA(S)

DESCRIÇÃO: 2 ANOS, 2 MESES E 0 DIAS DE PRISÃO, SUSPENSA POR 2 ANOS, 2 MESES E 0 DIAS

***

*

CRIME: 1 CRIMES(S) DE FURTO QUALIFICADO  

DATA DA PRÁTICA: 2019/11/05

CRIME: 1 CRIMES(S) DE FURTO SIMPLES

DATA DA PRÁTICA: 2019/11/05

DECISÃO/PENA: PRISÃO EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA

MOTIVO DA PENA:

DURAÇÃO PENA: 2 ANO(S) 8 MÊS(ES) 0 DIA(S)

DESCRIÇÃO: PELO PRAZO DE 2 ANOS, 8 MESES E 0 DIAS

INFORMAÇÃO ADICIONAL: EM CÚMULO JURIDICO DAS PENAS PARCELARES NA PENA DE 2 ANOS E 8 MESES DE PRISÃO EXECUTADA EM REGIME DE

PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO, SUBORDINADA AO CUMPRIMENTO DA SEGUINTE REGRA DE CONDUTA: SUJEIÇÃO DO ARGUIDO AO

TRATAMENTO QUE LHE FOR PRESCRITO, DE ACORDO COM PLANO DE REINSERÇÃO SOCIAL A ELABORAR PELA DGRSP, NOS TERMOS  DOS ARTIGO 43.º, N.º 4, AL. A) E C), DO CÓDIGO PENAL.


*


De direito

Dispõem os nºs 1 a 3 do artº 77º do CP:

Acrescentam os nºs 1 e 2 do artº 78º do mesmo diploma legal:


*         

Analisadas as condenações que o arguido tem averbadas, verificam-se os pressupostos do concurso entre as penas  supra referidas.

Considerando que as penas aplicadas estão em cúmulo com as destes autos há que  desfazer  o cúmulo jutício e refazê-lo com as penas aplicadas nos autos referidos em A) ( estes autos)

  Poderão ser cumuladas a penas efectivas com penas suspensas na sua  execução?

A questão  foi dirimida o acórdão do STJ supra referido,  em que  á questão de saber se “O facto de algumas dessas penas serem suspensas na sua execução não impede que as mesmas integrem o cúmulo, respondeu  no sentido afirmativo, escrevendo  que:


Face a tal entendimento nada impede   ao cúmulo  jurídico de todas as penas, com exceção das já extintas pelo cumprimento,

*

 Na determinação da pena conjunta, há que levar em conta, sobretudo,   critério específico enunciado no art. 77.º, n.º 1 do Código Penal, isto é, a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, de modo a apurar se “numa avaliação da personalidade – unitária – do agente, (...) ela é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma “carreira”) criminosa”, ou se, pelo contrário, a conduta criminosa, formando o leque do concurso de crimes, é devida a uma «  pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente», só no primeiro caso sendo de agravar especialmente a pena por efeito do concurso.   FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 291.

 A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigos 77.º, n.º 2, e 78.º, n.º 1).

 

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, in fine).

Tudo ponderado entende-se por adequado a pena única de  seis anos de  prisão  e 160 dias de multa à taxa diária de 6 euros.


*

O arguido foi ainda condenado na proibição de conduzir veículos motorizados na penas de um ano cada.

Em cúmulo jurídico,  foi condenado na pena única de dois anos, penas que se mantém,  devendo entregar a carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença( Cfr. art.º 69 n.º 3 do Código Penal) com a advertência de, não o fazendo, incorrer na prática de crime de desobediência».

            3. - Apreciação do recurso.

            Mediante o presente recurso, o arguido, ora recorrente, insurge-se contra o acórdão que procedeu ao cúmulo jurídico de penas que lhe foram irrogadas, em virtude de, na sua perspetiva, aquele conter erro na aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, e erro na determinação da medida da pena única.

            Quanto à primeira questão, alega o recorrente, em síntese:

            - No processo comum coletivo …, por acórdão transitado em julgado a 14 de Junho de 2023, por factos praticados em 14.09.2017, foi condenado a vinte meses de prisão pela prática de um crime de homicídio negligente, … e na pena de um ano de prisão pela prática de cada um de dois crimes de omissão de auxílio …., e no processo comum singular …, por sentença datada de 25/01/2019, transitada em 25/02/2019, por factos de 01-10-2016, foi condenado na pena de 2 (dois) meses de prisão, pela prática de um crime de recetação, …

            - Tais crimes, considerados isoladamente ou em concurso, estão abrangidos pelo perdão, o tribunal a quo é omisso quanto à aplicação da citada lei da amnistia, cometendo um erro de interpretação, pois daquela decorre que, em caso de cúmulo jurídico ainda não transitado em julgado, devem ser “eliminados” os crimes perdoados e só depois se fará o cômputo do referido cúmulo, pelo que ao limite máximo da pena há que subtrair 48 meses de prisão.

          Vejamos.

          A Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, veio estabelecer perdão de penas e amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, relativamente a sanções penais referentes a ilícitos praticados até às 00h00 do dia 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. artigos 1.º e 2.º, n.º 1, do referido diploma legal).

            Em caso de condenação em pena de prisão, reunidos aqueles pressupostos, poderá haver lugar – salvaguardadas as exceções que se imponham, designadamente as contempladas no artigo 7.º – ao perdão de penas previsto no artigo 3.º da citada Lei, nomeadamente 1 ano de prisão nas penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos, sendo que, nos termos do n.º 4, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

          No caso vertente, o acórdão recorrido é completamente omisso quanto ao perdão decorrente da Lei n.º 38-A/2023, que se encontrava em vigor desde 01.09.2023 (cfr. artigo 15.º), sendo certo que sobre o tribunal a quo recaía incumbência de se pronunciar quanto à sua (in)aplicabilidade no caso concreto – atentando aos crimes e penas em causa, à data da prática dos factos, à idade do arguido, ora recorrente, à temporalidade daqueles e ao estatuído a esse respeito no citado diploma legal –, tanto mais que, por despacho datado de 17.11.2023, proferido nos presentes autos, foi declarado perdoado um ano da prisão em que o ora recorrente aqui foi condenado, nada se referindo a esse respeito no acórdão, nem na factualidade relevante, nem na fundamentação jurídica.

            Não se trata, pois, de erro de interpretação e de aplicação da lei, mas, antes, de total omissão de pronúncia a respeito de questão sobre a qual o tribunal a quo tinha, imperativamente, que se pronunciar.

            Ora, o artigo 379º do Código de Processo Penal dita os casos em que a sentença é nula e disciplina o respetivo regime, diferenciado do regime geral das nulidades processuais, previsto no artigo 120º e seguintes do mesmo diploma, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso.

            A esse respeito, refere o Juiz Conselheiro Oliveira Mendes[4]: “[q]uanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso, a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser…conhecidas em recurso».

            (…) “Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias, quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior”.   

            Com relevo para o caso que nos ocupa, resulta do artigo 379º, n.º 1, al. c), que é nula a sentença [q]uando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” [negrito nosso].

            Em anotação ao preceito transcrito refere o Juiz Conselheiro José Mouraz Lopes[5] o seguinte:

            “Todas as questões suscitadas pelos sujeitos processuais nas peças processuais (acusação, contestação/contestações) têm que ser objeto de pronúncia pelo Tribunal na sentença. Igualmente, todas as questões que sejam do conhecimento oficioso do Tribunal (…).

            São inúmeras as situações/questões que podem evidenciar-se, passíveis de conformarem omissões de pronúncia. Como exemplo (Mota Ribeiro, 2020 p. 62) podem identificar-se o não conhecimento (…) de aplicação de perdão ou amnistia (…)”.

            Com efeito, a aplicabilidade de lei de clemência, com direta repercussão na determinação da pena que o condenado há de cumprir, constitui, obviamente, pelos seus reflexos, questão que sobremaneira interessa apreciar.

            A esse propósito, refere a Ema Vasconcelos[6]: “O perdão pode (e deve) ser aplicado, desde logo, na decisão. Com efeito, trata-se de lei que entrou em vigor antes de ser proferida a decisão final e, por tal motivo, fazendo parte do quadro legal vigente, teve necessariamente de ser ponderada por todos os intervenientes processuais, não constituindo a sua aplicação qualquer decisão surpresa. Aliás, afigura-se que a não apreciação do perdão poderá consubstanciar omissão de pronúncia, a determinar a nulidade a que alude o artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal”.

            Estamos, pois, perante clara situação de nulidade por omissão de pronúncia.

            Estatui o n.º 2 do artigo 379º do Código de Processo Penal que “[a]s nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.

            Contudo, não é possível a este tribunal ad quem suprir a sinalizada nulidade por omissão de pronúncia, pois, em face do disposto no artigo 14º da Lei n.º 38-A/2023, compete ao tribunal 1.ª instância ponderar e decidir sobre a aplicação do perdão, cabendo, naturalmente, aos tribunais superiores a reapreciação da questão em sede de recurso, sob pena de violação do duplo grau de jurisdição garantido pelo artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

            Mas existem outros motivos de nulidade do acórdão cumulatório por omissão de pronúncia, que não foram abordados pelo recorrente, mas que também são de conhecimento oficioso.

          Assim, constata-se que, no que concerne às penas de prisão suspensas na sua execução, o acórdão recorrido não contém a indicação sobre se as mesmas foram extintas ou revogadas, sendo certo que em todos os casos há muito decorreu o respetivo prazo de suspensão.

          Ora, como se afirmou acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.11.2018[7], com referência a jurisprudência anterior, «[a] questão da consideração da pena de prisão suspensa na sua execução nas operações de cúmulo tem sido objecto de vasta elaboração jurisprudencial, sendo uniforme o entendimento de que, estando os crimes numa relação de concurso e estando a decorrer o período de suspensão, deverá a pena de prisão substituída concorrer para a determinação da pena única, nos termos do n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. Porém, se, à data da elaboração do cúmulo jurídico, se mostrar decorrido o tempo de suspensão, o qual se conta a partir do trânsito em julgado da decisão que aplica tal pena de substituição (artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal), não deverá a pena ser considerada sem previamente ser esclarecido se foi proferida decisão de extinção da pena (artigo 57.º do Código Penal) – que impedirá a sua inclusão no cúmulo –, de revogação da suspensão (artigo 56º do Código Penal) ou de prorrogação do período de suspensão (artigo 55.º, al. d), do Código Penal), o que deverá ser averiguado sob pena de nulidade da sentença (artigo 379.º, n.° 1, al. c), do CPP) – cfr., por todos, o recente acórdão de 15.11.2017, no Proc. 336/11.5GALSD.S1 (rel. Cons. Raul Borges), com exaustiva indicação de jurisprudência, e os acórdãos de 28.9.2017, no Proc. 302/10.8TAPBL.51 (rel. Cons. Helena Moniz), de 9.7.2014, no Proc. 39/08.8GBPTG.S1 (rel. Cons. Pires da Graça) e de 17.10.2012, no Proc. 182/03.0TAMCN.P2.51 (rel. Cons. Santos Cabral), todos em www.dgsi.pt.dgsi.pt».

          No mesmo sentido, veja-se o sumário do acórdão de 24.03.2021[8]: «Tendo decorrido o tempo de suspensão, o tribunal, ao realizar o cúmulo jurídico, deve esclarecer e levar à matéria de facto provada, se foi revogada a suspensão ou se a pena foi julgada extinta. (...) No caso, encontrando-se esgotado o prazo de suspensão da execução das penas em que o arguido foi condenado nos processos identificados, cumpria averiguar o resultado das referidas penas suspensas. Não o fazendo o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre essas concretas questões, o que consubstancia a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP».

          Aliás, no acórdão recorrido perfilha-se entendimento segundo o qual o artigo 57º do Código Penal afasta o cúmulo jurídico de penas das penas de prisão suspensas na sua execução que à data da realização do cúmulo já tenham sido julgado extintas, mas nada refere, a esse respeito, quanto às penas de prisão suspensas que estão em causa nos autos, sendo certo que, em todos os casos, como se disse, há muito decorreu o respetivo prazo de suspensão.

          Cumpre, ainda, assinalar que, pese embora na ata da 1ª sessão da audiência, tenha sido determinado que fosse solicitada a certidão, além das demais ali identificadas, da sentença proferida no processo n.º 665/16...., que foi junta aos autos e consta a fls. 771, referente a decisão transitada em julgado em 02.11.2017, por factos perpetrados em 18.12.2016 e 19.12.2016, de que resultou a condenação em pena única de sete meses de prisão, suspensa na sua execução mediante regime de prova, também nada se refere a este respeito no acórdão recorrido.

          Além disso, resulta da decisão de cúmulo jurídico de penas efetuada no processo 637/19.... que o arguido foi condenado, ainda, no âmbito do processo n.º 266/22...., por decisão proferida em 09.11.2022, transitada em julgado 09.12.2022, pela prática de um crime de desobediência qualificada, na pena de três meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, com regime de prova, mas também quanto a esta condenação nada se refere.

          Aliás, como decorre de forma linear do acórdão recorrido, neste limitou-se o tribunal a quo a “desfazer” o cúmulo jurídico de penas efetuado no processo n.º 637/19.... e a refazê-lo, englobando as penas aplicadas nestes autos, sem previamente averiguar se haveria outras condenações a ponderar, ainda que eventualmente implicassem efetuar outro(s) grupo(s) de cúmulo jurídico.

          Não deixa de ser impressivo que, na sequência da remessa da certidão das decisões proferidas em 1.ª instância e neste Tribunal da Relação no âmbito do sobredito processo n.º 637/19...., se tivesse designado de imediato data para realização da audiência a que alude o artigo 472º do Código de Processo Penal [cfr. despacho de 05.03.2024] sem se requisitar certificado de registo criminal atualizado do arguido.

            O cúmulo jurídico de penas visa, além do mais, estabilizar a situação processual do arguido, devendo, por isso, contemplar todas as condenações que estejam em situação de concurso, ainda que impliquem a formação de mais que um grupo de cúmulo jurídico de penas, e indicar quais as que são de excluir, reclamando cumprimento autónomo e sucessivo.

            A ausência de prévia indagação e indicação de outras penas sofridas pelo arguido e do estado das penas de prisão suspensas também constitui omissão de pronúncia que afeta a decisão cumulatória da nulidade cominada no predito artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.

            Nulidade que, mais uma vez, não pode ser suprida por este tribunal ad quem, por falta de informação sobre as referidas penas [e, eventualmente, outras] e o respetivo estado, impondo-se determinar que o seja pelo tribunal recorrido.

            Em face do que fica, obviamente, prejudicado o conhecimento da questão suscitada pelo recorrente que se refere à determinação da pena única e à respetiva fundamentação. Efetivamente, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.05.2022, «[n]ão se mostrando estabilizada a moldura penal do cúmulo que constitui o objeto do recurso, (...), não se pode conhecer da adequação e proporcionalidade da pena única aplicada aos crimes em concurso, que o recorrente considera excessiva».

            De todo o modo, cumpre alertar-se o tribunal a quo para os lapsos de escrita apontados pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer … e outros dispersos por todo o acórdão, que comprometem a fidedignidade dos factos … e a inteligibilidade da decisão.

            Igualmente se alerta para a insuficiência da fundamentação – de tal forma grave que equivale à sua ausência, suscetível de configurar nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal – , desde logo no que respeita às razões concretas pelas quais o tribunal a quo entende que as penas dos processos que refere estão em situação de concurso.

          Com efeito, após a enunciação, em abstrato, dos critérios que devem presidir à definição do concurso de penas, o tribunal a quo, de forma lapidar, afirma:

          «Analisadas as condenações que o arguido tem averbadas, verificam-se os pressupostos do concurso entre as penas  supra referidas.

             …

             Considerando que as penas aplicadas estão em cúmulo com as destes autos há que  desfazer  o cúmulo jutício e refazê-lo com as penas aplicadas nos autos referidos em A) ( estes autos)».

            Como se vê, o tribunal a quo não explicita minimamente, em termos concretos, como se impunha, por que razão tais penas estão em relação de concurso, além de que faz referência às condenações que o arguido tem averbadas que, como sinalizámos anteriormente, vão além das que são mencionadas no acórdão recorrido.

            Outrossim, o tribunal a quo limita-se a enunciar o critério legal de determinação da moldura do cúmulo jurídico de penas nos seguintes termos:

          «A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigos 77.º, n.º 2, e 78.º, n.º 1)».

          Porém, não refere o tribunal a quo qual a moldura concreta que teve em consideração para determinar a medida concreta da pena única.

            Ante o exposto, caberá ao tribunal recorrido, após recolha dos elementos pertinentes, proferir novo acórdão, em que repare as nulidades e as deficiências supra apontadas.

           


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            III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em declarar nulo o acórdão recorrido, determinando a elaboração de novo acórdão, com os mesmos subscritores, que repare as nulidades por omissão de pronúncia e insuficiência de fundamentação e as deficiências supra apontadas.

Não há lugar a tributação em custas.


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(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Coimbra, 06 de novembro de 2024

 Isabel Gaio Ferreira de Castro

[Relatora]

Maria José Santos Matos

 [1.ª Adjunta]

Cândida Martinho

[2.ª Adjunta]


[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e 336; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] In “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, Almedina, pág. 1183
[5] In “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, Almedina, setembro de 2022, páginas 800 e 801.
[6] In “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar on line, Janeiro de 2024, página 6.
[7] Acessível em http://www.dgsi.pt
[8] Proferido no processo n.º 536/16.1GAFAF.S1, relatado pelo Conselheiro Nuno Gonçalves