I - Embora a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permita o controlo e a fiscalização, por parte do tribunal de recurso, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas, não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório.
II - Perante duas versões dos factos os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum.
III - As presunções naturais são o produto das regras de experiência, pois que o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.
IV - No caso em que os arguidos não prestaram declarações e em que, acerca da autoria dos factos, o tribunal dispõe apenas do indício consubstanciado na circunstância de eles terem sido encontrados na posse dos objectos furtados, embora sendo possível, ou até provável, que os arguidos tenham sido os autores dos furtos em causa, não pode, por outro lado, afastar-se a hipótese de o não serem e de os objectos apreendidos terem entrado na sua posse por outra via.
V - Se o arguido, depois de praticar actos de execução dos furtos, por exemplo retirando os alarmes dos artigos, for surpreendido antes de abandonar a loja, pode suscitar-se, com pertinência, a discussão sobre se os crimes foram consumados ou meramente tentados, mas tal não acontece se a intercepção do arguido na posse dos objectos furtados decorreu no exterior da loja, mesmo que dentro do centro comercial, daqui resultando que houve um espaço de tempo, ainda que mínimo, que decorreu depois da subtracção até à sua intercepção e durante o qual exerceu um efectivo domínio de facto sobre os bens.
- ambos os arguidos, em co-autoria e em concurso real, de quatro crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 204.º, n.º 2, al. e), do CP;
- o arguido AA …, em autoria material singular, ainda de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo art. 204.º, n.º 2, al. e), do CP.
2. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão no qual foi decidido, para além do mais (transcrição):
«a) Julgar a acusação deduzida no Apenso B improcedente e não provada …
b) Julgar a acusação do processo principal procedente e provada e, consequentemente, condenam o arguido AA … pela prática, em concurso efectivo de:
b.1) em co-autoria material, de quatro crimes de furto qualificado p. e p. nos artºs. 203º nº 1 e 204º nº 2 al. e) do Cod. Penal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão por cada um dos 4 crimes;
b.2) em autoria material, um crime de furto qualificado p. e p. nos artºs. 203º nº 1 e 204º nº 2 al. e) do Cod. Penal na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;
b.3) Operando o respectivo cúmulo jurídico, condenam o arguido … na PENA ÚNICA de 6 anos de prisão.
c) Julgar as acusações do processo principal e do apenso A procedentes e provadas e, consequentemente, condenam o arguido BB … pela prática, em concurso efectivo de:
c.1) em co-autoria material, de quatro crimes de furto qualificado p. e p. nos artºs. 203º nº 1 e 204º nº 2 al. e) do Cod. Penal na pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um dos 4 crimes;
c.2) em autoria material, de dois crimes de furto simples, p. e p. no artº. 203º nº 1 do Cod. Penal, na pena de 9 meses de prisão por cada um dos crimes;
c.3) Operando o respectivo cúmulo jurídico, condenam o arguido … na PENA ÚNICA de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova. (…)»
3. Inconformados com esta decisão, interpuseram recurso os arguidos, concluindo as respectivas motivações nos termos que a seguir se transcrevem:
O arguido AA …
…
4. O Recorrente não foi identificado no local, hora e dia dos factos, nomeadamente pelas testemunhas/ofendidos;
5. Não foi recolhida prova ou indício da autoria pelo Recorrente.
6. A posse dos objectos não é indício seguro e razoável para a condenação, inexistindo qualquer outra circunstância capaz de oferecer segurança para a condenação;
…
O arguido BB …
…
3. A prova testemunhal demonstrou-se incapaz de situar o arguido em qualquer dos locais visados pelos assaltos, nem foram recolhidos quaisquer indícios nos locais dos crimes que aí coloquem o Recorrente.
…
7. A prova é, pois, insuficiente e impõe a absolvição do recorrente, por força do principio in dúbio pro reu, corolário do princípio da presunção de inocência, impondo-se a sua absolvição
…
8. Nos autos principais, atenta a recuperação dos bens e o facto do arguido ser primário deverá ser fixado pelo mínimo da moldura penal a pena aplicável a cada facto e manter a suspensão a mesma na sua execução
9. Quanto ao apenso A atento os factos configurarem a forma de tentativa e o facto da mesma ser não punível, deverá ser absolvido da pratica do crime de furto simples na forma tentada
…
4. Admitidos os recursos, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta a ambos os recursos, …
6. Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não foi oferecida resposta.
7. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
1. Delimitação do objecto do recurso
…
In casu, de acordo com as respectivas conclusões, ambos os recorrentes questionam a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando que determinados factos foram incorrectamente julgados e que devia ter sido proferida decisão absolutória relativamente aos crimes pelos quais vêm condenados, ao menos por força do princípio in dubio pro reo.
Para o caso de assim não se entender, o recorrente BB …
- discorda da medida das penas parcelares que lhe foram aplicadas nos autos principais, pugnando pela sua fixação no mínimo legal, mantendo-se a suspensão da execução da pena única.
- considera que os factos apreciados no Apenso A configuram um crime de furto simples na forma tentada, não punível, pelo que deverá ser dele absolvido.
Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta do acórdão recorrido.
«a) Factos provados
…
b) Factos não provados
…
Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação ampla, se tiver sido suscitada e, depois dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
Por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
…
No que se refere à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre, antes de mais, referir:
Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a que se convencionou chamar “revista alargada”), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
…
No caso, os recorrentes indicam – fazendo-o o BB … na motivação e nas subsequentes conclusões e o AA … apenas na motivação[1]) – os pontos de facto da decisão recorrida que consideram incorrectamente julgados … e referem como elementos que, em seu entender, impunham decisão diversa da recorrida, … aludindo a excertos desses depoimentos, cuja localização nos suportes digitais da gravação da audiência de julgamento concretizam, bem como aos elementos de prova documental invocados na fundamentação da convicção, considerando que a sua globalidade é insuficiente para demonstrar a sua autoria dos crimes.
Irá, assim, este Tribunal conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Mas, como com clareza se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-03-2014[2], «O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:
- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou
- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.
A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.
Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.
A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.»
O caso dos autos será, na perspectiva dos recorrentes, o primeiro dos elencados, ou seja, o de o Tribunal recorrido ter atribuído aos depoimentos das referidas testemunhas e a determinados elementos documentais um conteúdo que não têm (porque aquelas não disseram, e estes não atestam, o que deles foi retirado), estando em causa um verdadeiro erro de julgamento que exige a sua audição e análise por parte deste Tribunal (e não um erro notório, que teria de resultar do próprio texto da decisão, ou deste conjugado com as regras da experiência comum).
Impõem-se, ainda, algumas considerações no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova.
«A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros»[3].
«Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:
- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;
- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;
- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;
- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.
A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..
A imediação vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[4]
Por outro lado, é um dado assente que a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo e a fiscalização, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, a oralidade e a imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório[5].
Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[6].
Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.
No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[7], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[8], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[9]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».
De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[10]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.
Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.
Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»
À luz destas considerações analisemos, então, a ponderação conjugada e exame crítico das provas de que resultou a fixação da «verdade histórica» vertida no texto da decisão recorrida, com vista a apurar se, como os recorrentes sustentam, ocorreu erro de julgamento[11], ou seja, se foram dados como provados factos dos quais não foi feita prova bastante.
Porque o erro de julgamento se reporta à matéria de facto, o mesmo analisa-se em momento anterior à produção do texto, a fim de verificar se existem ou não os dados objectivos que se apontam na motivação ou se foram violados os princípios para a aquisição desses mesmos dados.
…
Tendo-se procedido à audição (integral, e não apenas das passagens referidas) dos depoimentos prestado pelas testemunhas …, confrontando-os com o acórdão recorrido e a demais prova junta aos autos, quanto aos factos e sua motivação, a fim de analisar as razões de discordância dos recorrentes, constata-se que lhes assiste, em parte, razão.
Vejamos porquê.
Como se vê pela transcrição acima efectuada, na fundamentação da sua convicção o Tribunal recorrido começa por consignar ter o arguido AA … exercido o seu direito ao silêncio e ter o arguido BB … sido julgado na sua ausência, ao abrigo do disposto no art. 333.º do CPP.
Passa, de seguida, a aludir à prova testemunhal tida por especialmente relevante para o apuramento da verdade material, constituída pelos ofendidos, seus familiares, vizinhos e amigos, os quais «relataram as circunstâncias em que os bens haviam sido deixados em datas anteriores, os bens que faltavam e as condições e danos apresentados nas instalações após a prática dos factos, a natureza, características e valor dos bens subtraídos e dos prejuízos sofridos, se tinham ou não seguro válido e eficaz contra furtos, a parcial recuperação dos bens subtraídos, ou total ausência de recuperação e reparação dos prejuízos».
…
Afirma terem também assumido particular relevância «os depoimentos das demais testemunhas de acusação, … (agentes da PSP, que realizaram intercepções aos arguidos e apreendeu objectos), … (militar da GNR que tomou conta de ocorrências em …, e se deslocou ao local)» e que todas «as supra referidas testemunhas inquiridas tinham conhecimento directo e pessoal acerca dos factos sobre os quais depuseram, e efectuaram relatos claros, verosímeis e coerentes, que mereceram credibilidade» por parte do Tribunal.
Prossegue com uma listagem (e dizemos “listagem”, porque nenhuma explicitação é feita do seu conteúdo) dos elementos de prova documental relativos a cada um dos diversos NUIPC em apreciação, aludindo ainda aos CRC dos arguidos e aos respectivos relatórios sociais.
E remata afirmando ser legítimo «de acordo com as regras da experiência, concluir terem sido os arguidos os agentes / co-agentes de cada um dos factos cuja prática resultou provada, nos termos em que o foram, mesmo naqueles casos em que, não obstante os não tenham confessado os factos, mas aos quais foram apreendidos, num curto período temporal relativamente à prática do ilícito, de bens identificados e reconhecidos pelo ofendido como sendo de sua pertença, e tendo sido subtraídos ilícita e ilegitimamente contra a sua vontade e sem sua autorização, nas circunstâncias relatadas, de acordo com um mesmo “modus operandi”.»
Nenhuma dúvida se suscitando relativamente à credibilidade das testemunhas inquiridas, cujos relatos o Tribunal recorrido teve por «claros, verosímeis e coerentes», resulta (também) da sua audição, conjugada com a análise da prova documental disponível nos autos, o seguinte:
- quanto aos ilícitos a que se reportam os NUIPC …, os inquiridos, ofendidos ou seus familiares, amigos e vizinhos … não conheciam nenhum dos arguidos e nada sabiam quanto à autoria dos factos, nenhum deles os tendo presenciado;
- a testemunha …, militar da GNR, para além de se ter deslocado à localidade …, aí tendo tomado nota da ocorrência de dois furtos no interior de residências, limitou-se a diligenciar no inquérito pela obtenção de mandados de detenção e de busca para as residências dos suspeitos;
- as testemunhas …, agentes da PSP, relataram, em síntese, e de utilidade para os autos, duas situações: uma, em que interpelaram os arguidos no dia 15 de Junho de 2021, pelas 10h00, quando estes se encontravam na …, «à volta» de uma viatura que tinha a mala aberta, sendo visível no interior desta e também na parte de trás do habitáculo do veículo uma grande quantidade de objectos; que os arguidos ao aperceberem-se da presença da viatura policial, fecharam a mala e, porque «adoptaram uma atitude suspeita», foram abordados, tendo o arguido BB … assumido ser o veículo pertença de seu pai e autorizado a busca, sendo conduzidos à esquadra policial e apreendidos os objectos, vindo posteriormente a apurar-se estarem estes referenciados em denúncias de furtos a residências; outra, ocorrida em 25 de Junho de 2021, na qual interceptaram o arguido AA … quando caminhava na …, na posse de dois telemóveis e uns relógios …, objectos que lhe foram apreendidos e que foram posteriormente identificados como constando de denúncia por furto;
…
Na ausência de prova directa de terem sido ambos os arguidos os co-autores dos ilícitos em causa nos NUIPCs …, e o arguido AA o autor singular do investigado no NUIPC …, o Tribunal chegou a essa conclusão por via de um procedimento lógico de prova indirecta, ou seja, de uma presunção, que afirma encontrar-se escorada nas regras da experiência comum.
Ou seja, socorreu-se de prova indiciária, sendo que, in casu, o único indício que aponta para os arguidos é a apreensão de bens na sua posse, inexistindo qualquer outro elemento de prova, testemunhal ou pericial (v.g., exame de vestígios lofoscópicos) que ateste a presença de algum dos arguidos dentro das residências alvo de furto ou sequer os situe nas suas proximidades, nas circunstâncias temporais indicadas como sendo aquelas em que os ilícitos tiveram lugar.
Não se ignora que as provas válidas não são apenas as que resultam do conhecimento directo.
Muitas vezes o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência para daí retirar um outro facto, “desconhecido”[12].
Ou seja, dentro do quadro probatório global a apreciar existem, para além da prova directa, «os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência; o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. «Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência». (cfr., v. g., Vaz Serra, "Direito Probatório Material", BMJ, nº 112 pág. 190).
Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser «graves, precisas e concordantes». «São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar» (cfr. Carlos Maluf, "As Presunções na Teoria da Prova", in "Revista da Faculdade de Direito", Universidade de São Paulo, volume LXXIX, pág. 207).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerum que accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.
A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cfr. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros.
A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência experimental típica determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.»[13]
Também os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos também em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, quer os indícios da própria inocência, ou seja, os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido e o crime, quer os “contra-indícios”, ou seja, os indícios de teor negativo que, a partir de máximas da experiência, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo.
Como se sublinha no acórdão da Relação do Porto de 28-01-2009[14], «(…) o valor probatório dos indícios também é extremamente variável. Um indício revela, com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa – facto indiciante –, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova será necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos uma. A prova só se obterá, assim, excluindo hipóteses eventuais divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante[6][15].»
A questão que nos presentes autos se coloca é a de saber se do facto de os arguidos terem sido encontrados na posse de objectos provenientes dos furtos se pode inferir, com suficiente segurança, pelas regras da lógica e da experiência comum, terem sido eles os autores desses ilícitos.
Sobre a questão de saber se a mera detenção dos objectos furtados pelo arguido pode, por si só, constituir prova positiva da autoria do furto, já se pronunciaram com proficiência inúmeras decisões jurisprudenciais.
Assim, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-04-2021, proferido no Proc. n.º 36/19.8PEFAR.E1[16]:
«Vem sendo entendimento reiteradamente afirmado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, relativamente à detenção de objetos furtados por parte do arguido, em situações em que este, no uso do direito ao silêncio que lhe assiste, opta por não prestar declarações, em julgamento, que aquela circunstância, desacompanhada de qualquer outro indício – em especial quando existe alguma dilação temporal entre a data da subtração dos objetos e a data da apreensão dos mesmos –, não permite levar a concluir, com a segurança necessária e para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido foi o autor do crime de furto e que foi por essa via que obteve os objetos apreendidos em seu poder. Ou seja, essa apreensão não permite afastar a possibilidade de ocorrência de uma outra causa que não a autoria do furto, para os bens furtados tenham chegado à posse do arguido, podendo tê-lo sido, por exemplo, por via de recetação, dolosa ou negligente[4][17].
Este entendimento vem sendo acolhido em situações em que o arguido se remete ao silêncio, não prestando declarações, não podendo ser prejudicado pelo facto de, exercendo um direito que a lei lhe confere, não apresentando qualquer explicação para que os bens furtados estivessem em seu poder, levar a extrair qualquer consequência, para determinar a respetiva culpabilidade.
Já em situações em que o arguido, estando na posse dos objetos furtados, opta por prestar declarações acerca das circunstâncias como ficou em poder de tais objetos, constituindo essas declarações um meio de prova e estando sujeitas a livre apreciação do tribunal, por força do disposto no artigo 127º do CPP, com as consequências daí decorrentes, em termos de poderem ou não, em conjugação com a demais prova produzida e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, ser acolhidas/valoradas pelo julgador ou não o ser, por não merecerem credibilidade.
Como se decidiu no Acórdão da RE de 22/11/2011[5][18]:
«I - A detenção dos objectos furtados pelo arguido não permite inferir, sem mais, a forma como esses objectos foram parar à sua posse.
II - As declarações de arguido, constituindo o seu meio de defesa por excelência, não deixam de ser, também, um meio de prova; e ao prestá-las, optando livremente por abandonar uma estratégia de defesa de nada dizer, as suas declarações passam a integrar o conjunto das provas livremente valoráveis, de acordo com os princípios da livre apreciação e da aquisição processual das provas.
III - As declarações do arguido, embora não confessórias, podem constituir, em conjunto com os restantes indícios, prova positiva da autoria do furto; a valoração positiva da negação do arguido que apresenta versão inverídica, não viola os princípios do in dubio pro reo, da presunção de inocência e do nemo tenetur.»[19]
No caso vertente, os arguidos não prestaram declarações e, como vimos, acerca da autoria dos factos o Tribunal dispõe apenas do indício consubstanciado na detenção, por parte daqueles, de objectos que veio a apurar-se terem sido subtraídos de determinadas residências.
É esse o único facto seguro conhecido, pressuposto da presunção formulada pelo Tribunal.
Dizem as regras da experiência que, perante aquela circunstância objectiva, é possível ou até provável que os ora recorrentes (ou um deles) tenha(m) sido autor(es) dos furtos qualificados em causa ou de algum deles.
Mas não pode, por outro lado, razoavelmente afastar-se a hipótese de o não serem e de os objectos apreendidos terem entrado na sua posse por outra via, sendo certo que não é aos arguidos que cabe provar que os detinham por outro motivo que não a autoria dos furtos, mas sim à acusação provar o contrário.
Não poderá deixar de notar-se que as apreensões dos objectos na posse dos arguidos não ocorreram em momento(s) próximo(s) dos furtos, o que, a ter acontecido, permitiria uma «leitura probatória que a própria lei, a outro propósito, reconhece (veja-se a construção legal do quase-flagrante delito e suas consequências – art. 256º, nº2 do CPP)», como se observa no mencionado acórdão da Relação de Évora de 22-11-2011 (Proc. n.º 135/09.4GEPTM.E1), mas sim com um intervalo de dias.
À luz do entendimento acima exposto, que também sufragamos, teremos assim de concluir que as concretas circunstâncias do caso, designadamente o tempo que decorreu entre o cometimento dos ilícitos e a apreensão dos objectos na posse dos arguidos, não permitem que essa detenção seja considerada em si mesma um indício necessário de que os detentores são os autores dos crimes de furto qualificado, podendo, perante tal intervalo de tempo, configurar-se várias hipóteses possíveis para essa detenção (designadamente a de deterem as coisas por as terem recebido, a qualquer título, dos autores dos furtos).
Aqui chegados, importará não olvidar que para a condenação se exige um juízo de certeza (para além de toda a dúvida razoável), e não de mera probabilidade, e de que na sua ausência o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP), e o seu corolário processual, o princípio in dubio pro reo, impõem que se decida sempre a matéria de facto em sentido favorável ao arguido.
«O princípio da presunção de inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova. Com efeito, enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação. Por isso que o princípio da presunção de inocência seja identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que um non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido»[20].
Acerca do princípio in dubio pro reo, diz Maia Gonçalves[21]: «este princípio estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu. É um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário».
E o Prof. Figueiredo Dias refere que «um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido»[22].
Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, a mesma só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção[23].
In casu, na ausência de qualquer motivo adequado a que possa, fundadamente, conceder-se plausibilidade a uma das possibilidades em detrimento de outras, não poderá, com base numa análise racional e crítica dos diversos elementos de prova, afastar-se a dúvida razoável e, sem incorrer na violação do princípio in dubio pro reo, concluir-se pela imputação aos arguidos da co-autoria dos crimes de furto qualificado em causa nos NUIPC n.ºs 166/21...., 169/21...., 170/21...., 175/21...., e ao arguido AA a autoria singular do crime de furto qualificado em causa no NUIPC n.º 173/21.....
Em suma, porque a prova produzida não permite, com a segurança necessária a uma condenação criminal e sem violação do princípio in dubio pro reo, fundamentar os pontos a.1) a a.4), a.7) a a.10), a.13) a a.16), a.19) a a.23), a.26) a a.29), a.32) e a.33) da factualidade provada nos exactos termos em que deles constam, impõe-se a sua alteração no sentido de deles se excluir a referência aos ora recorrentes (art. 431.º, al. b), do CPP).
Procede assim, nesta parte, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
O mesmo não poderá dizer-se no que respeita aos crimes de furto simples a que se reporta o NUIPC n.º 262/20.... (Apenso A), ou seja, aos pontos n.ºs a.35) a a.41) da matéria de facto provada.
Nesta matéria, da audição integral e análise conjugada dos diversos elementos de prova, conclui este Tribunal, sem qualquer reserva – como concluiu o Tribunal a quo – pela prova cabal da factualidade que foi dada como assente, não oferecendo a análise dos elementos documentais e das declarações e depoimentos gravados razões para divergir da convicção formada pelo Tribunal recorrido.
Pese embora as críticas que o recorrente BB … alinha, com base na sua própria interpretação da prova, aludindo a excertos dos depoimentos mas “esquecendo” outros, ficaram claramente demonstrados os factos que pretende pôr em causa, em face de uma apreciação conjugada e crítica dos diversos elementos de prova, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas.
Na verdade, também aqui não tendo merecido reserva a credibilidade dos depoimentos das testemunhas inquiridas, foi cristalino o de …, à data a exercer funções de segurança privado no supermercado … na sua narração do sucedido.
…
Assim, nenhuma dúvida se coloca, também, quanto às datas em que os factos ocorreram, nada impondo (ou sequer permitindo) a alteração aos pontos n.ºs a.35) a a.41) da matéria de facto provada, propugnada pelo recorrente BB.
Em suma, nesta parte, da audição integral das declarações e depoimentos gravados – que são por demais eloquentes e que ainda melhor se alcançam na sua audição (pois que a transcrição não conseguiria espelhar com exactidão), e da sua análise conjugada com a demais prova junta aos autos, e pese embora a ausência de imediação, não temos dúvidas em concluir que a “leitura” dos elementos de prova efectuada pelo Tribunal recorrido não se mostra incongruente ou violadora das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, não colhendo as objecções que o recorrente lhe dirige para infirmar o sentido em que aponta a análise global e crítica da prova.
O Tribunal justificou a sua opção, alicerçando a sua convicção numa interpretação plausível das provas produzidas e segundo uma lógica que faz sentido, e que aqui este Tribunal subscreve sem qualquer hesitação, pois que nada nesses elementos de prova se vislumbra que imponha decisão diversa da que foi tomada relativamente à factualidade que foi dada como provada ou sequer a dúvida razoável susceptível de desencadear a aplicação do princípio in dubio pro reo.
Tendo o Tribunal a quo ponderado cuidadosamente todos os elementos de prova disponíveis, de forma conjugada e crítica, no exercício do poder/dever que a lei lhe confere – de livre apreciação da prova, vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório, decidindo – bem, a nosso ver – que a prova produzida era cabal no sentido da verificação dos factos que deu como provados, e evidenciado o percurso lógico utilizado para chegar às conclusões que alcançou, não merece tal apreciação qualquer censura nem tem cabimento pretender o recorrente substituir pela sua própria valoração das provas a efectuada pelo julgador, a quem incumbe, de acordo com o estabelecido no art. 127.º do CPP.
Não se detecta, pois, qualquer outro erro de julgamento, não havendo motivo para alterar a matéria de facto fixada nos pontos acima referenciados, com excepção da modificação já determinada, pelo que, quanto ao mais, improcede a impugnação da decisão proferida sobre essa matéria.
Doutro passo, não se vislumbra a existência de nulidade insanável ou de qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pois que – atendo-nos apenas ao seu texto – a decisão se mostra lógica, coerente, harmónica, destituída de lacunas ou antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para suportar um juízo seguro de direito.
Mostra-se, assim, definitivamente sedimentada a matéria de facto nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido, com as alterações acima introduzidas.
… BB …
Subsiste, contudo, a condenação deste recorrente pelos factos em causa no Apenso A, ou seja, no NUIPC n.º 262/20.....
Afirma o recorrente, singelamente, que tal factualidade apenas poderá configurar uma tentativa de furto simples, a qual não é punível, atendendo ao preceituado no art. 23.º, n.º 1, do CP.
Terá olvidado o teor do n.º 2 do art. 203.º do CP, que expressamente consagra a punibilidade da tentativa do crime de furto simples.
Contudo, no caso vertente não é de tentativa que se trata, mas sim de consumação dos (dois) crimes de furto.
Sobre esta questão, sem querermos deter-nos em alongadas considerações teóricas (que a simplicidade do caso não justifica), apenas transcreveremos excertos de dois Acórdãos do STJ, o primeiro de 16-10-2008 e o segundo de 15-02-2007[24], que nos parecem particularmente ilustrativos do que de há muito vem sendo o entendimento seguido por esse Alto Tribunal e consolidado na jurisprudência, que sufragamos.
No primeiro lê-se:
«Segundo o Prof. Faria Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, II, pág. 43), “a subtracção traduz-se em uma conduta que faz com que a coisa saia do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor. Implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa” Dito de outro modo, “a subtracção – segundo o mesmo comentador – caracteriza-se, assim e sobretudo, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha.”
A doutrina, sobretudo a italiana, tem considerado que a subtracção ocorre quando se verifica um de quatro momentos típicos: - a contrectatio, isto é, o momento em que a agente do novo poder de facto toca a coisa móvel alheia objecto da vontade de apropriação; a amotio, que exige que o agente do novo poder remova a coisa do lugar em que se encontrava; a ablatio, que corresponde à exigência de que o agente transfira a coisa para fora do domínio do pretérito fruídos; ou a illatio, considerando-se necessário que, depois da apropriação, a coisa seja conservada em lugar seguro, deixando de ser disputada.
Uma breve análise permite afastar como excessivas duas das concretizações da subtracção – a concrectatio e a illatio. A primeira porque levaria a um injustificado aumento da punibilidade dos crimes de furto; a segunda por, tecnicamente, transformar a maior parte dos furtos em tentativa de furto. (Paulo Saragoça da Matta «Subtracção de coisa móvel alheia – Os efeitos do admirável mundo novo num crime clássico», Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, pág. 650).
Quanto aos dois outros momentos, cabe referir que, na maior parte das vezes, se apresenta em simultaneidade: a remoção da coisa do lugar em que se encontra é concomitante com a transferência da mesma para fora da esfera do domínio do anterior fruidor.
De todo o modo, para que exista subtracção e ocorra a consumação do crime é imprescindível que o agente da infracção tenha adquirido um pleno e autónomo domínio sobre a coisa, conforme refere Mantovani, citado por Faria e Costa (Comentário cit.). Exige-se, para tanto, que as utilidades da coisa entrem no domínio de facto do agente da infracção com tendencial estabilidade, isto é, por um mínimo de tempo, e que se verifique, por outro lado, a saída da coisa para fora da esfera de domínio de quem tinha a sua anterior fruição, o que pode por vezes exigir a prática de uma série de actos, num verdadeiro processo de concretização.»
E no segundo refere-se:
«Bastará a posse instantânea para a consumação do crime? É essa a posição tradicional da jurisprudência portuguesa. Contra ela se insurgiu Eduardo Correia, que considerava necessário, para considerar verificado o elemento “subtracção”, a posse pacífica da coisa apropriada, o que será certamente uma exigência excessiva. Mas recentemente Faria Costa apresentou um critério menos exigente: o de um efectivo domínio sobre a coisa durante um espaço de tempo mínimo, de acordo com as circunstâncias do caso (Comentário Conimbricense do Código Penal, II, p. 50). Doutra forma, como explica este autor, estaria vedado o recurso à legítima defesa (própria ou alheia) contra o agente do crime quando este entra em fuga na posse dos objectos apropriados, o que seria absurdo. E também estaria prejudicada a relevância da desistência da tentativa e o arrependimento activo (ob. cit., pp. 50-52). Uma interpretação do elemento “subtracção” que elimine a aplicabilidade prática desses institutos do direito penal é evidentemente de afastar, por incoerente com o sistema.
Por sua vez, Paulo Saragoça da Matta, em estudo também recente, veio propor um critério idêntico, defendendo que o furto se consuma quando a coisa entra no domínio de facto do agente com “tendencial estabilidade”, por ter sido transferida para fora da esfera do domínio do seu possuidor (“Subtracção de coisa móvel alheia – Os efeitos do Admirável Mundo Novo num crime ‘clássico’”, in Liber Discipulorum para J. Figueiredo Dias, p. 1026).
Parece, assim, adequado optar por um conceito de subtracção que exija uma apropriação relativamente estável, como tal podendo considerar-se aquela que consegue ultrapassar os riscos imediatos de reacção por parte do próprio ofendido, das autoridades ou de outras pessoas agindo em defesa do ofendido.»
Tendo presentes estas considerações jurídicas, também seguidas em variadas decisões dos Tribunais da Relação[25], e analisada a factualidade assente, não temos dúvidas em concluir que os dois crimes de furto perpetrados pelo ora recorrente atingiram a fase da consumação, uma vez que, em ambos os casos, depois de ter retirado os artigos dos expositores da loja onde se encontravam, abandonou esse estabelecimento comercial na posse dos mesmos sem ter procedido ao seu pagamento, assim fazendo com que a respectiva proprietária ficasse sem o domínio de facto sobre os bens que lhe pertenciam e lançando sobre eles «um novo poder de facto».
Se o arguido, depois de praticar actos de execução dos furtos (v.g., retirar os alarmes dos artigos), tivesse sido surpreendido antes de abandonar o local da subtracção, ou seja, dentro da loja, poderia colocar-se, com pertinência, a questão de os crimes serem meramente tentados.
Evidentemente que a questão nem sequer se coloca quanto ao furto levado a cabo no dia 29 de Junho, em que o arguido levou consigo e fez seus os objectos subtraídos, sem ser interceptado.
E no dia 30 de Junho, tendo sido interceptado já no exterior da loja (mesmo que o fosse dentro de um centro comercial), na posse dos objectos que daquela subtraíra, houve um espaço de tempo, ainda que mínimo, que decorreu depois da subtracção até à sua intercepção, durante o qual exerceu um efectivo domínio de facto sobre os bens.
Ambos os ilícitos cometidos foram, assim, crimes de furto, na forma consumada, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP, tal como decidiu o Tribunal recorrido, improcedendo a pretensão do recorrente de ver alterada a respectiva qualificação jurídico-penal.
Alude apenas aos limites de um mês a três anos de prisão como sendo os estabelecidos para o crime de furto simples (único que agora importa), o que desde logo permite concluir que não discorda da escolha da pena privativa da liberdade, em detrimento de uma pena meramente pecuniária, que a lei admite em alternativa.
Vejamos, pois.
O art. 70.º do CP refere que «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Esta regra, que se reporta às penas alternativas, vale para as penas substitutivas da pena de prisão, ao abrigo do art. 45.º, n.º 1, do CP: «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. (…)».
Por outro lado, dispõe o art. 40.º do CP que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1), e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).
É, pois, de acordo com as proposições fundamentais de política criminal sobre a função e os fins das penas condensadas nesta norma, que estabelece um modelo de prevenção, que haverá que interpretar e aplicar os critérios de determinação da medida da pena.
Como se escreve no Ac. do STJ de 16-01-2008 (Proc. n.º 4565/07 - 3.ª)[26], «O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».
Assim, dentro dessa linha de orientação, o Tribunal terá de atender, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CP, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
«Na escolha da pena, considera Figueiredo Dias, a prevalência não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, na perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão.
Essa prevalência opera a dois níveis diferentes:
- em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas, coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração;
- em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v.g., multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
Por seu turno, a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.»[27]
…
Verifica-se, assim, que, relativamente à determinação da medida concreta das penas parcelares a aplicar, foram devidamente tomadas em consideração as exigências de prevenção geral e sopesadas as de prevenção especial.
Nestas, foi ponderado o grau de ilicitude dos factos (relevando-se, como faz o Tribunal recorrido, o valor dos bens subtraídos – nem todos recuperados – e as circunstâncias concretas em que o foram), e a intensidade do dolo (directo) com que actuou, tudo redundando num mediano grau de culpa.
Em sentido favorável ao recorrente, foi tida em conta a ausência de antecedentes criminais, sem deixar de se valorar as suas condições socioeconómicas, espelhadas nos factos provados, reveladoras de integração social e familiar, nada mais avultando a seu favor, posto que não evidenciou qualquer espírito crítico ou capacidade de autocensura.
Em conclusão, embora a fundamentação da fixação da medida concreta das penas não seja exuberante, não foi omitida a valoração de qualquer circunstância que, nos termos do art. 71.º do CP, depusesse a favor do recorrente, não se vislumbrando, nem tendo sido alegada, alguma que devesse ter sido considerada.
E, ponderados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, constata-se que as penas parcelares impostas, situadas abaixo do primeiro terço da respectiva moldura penal abstracta, foram fixadas de forma proporcional e adequada, mostrando-se ajustadas à culpa concreta do agente, não carecendo de qualquer intervenção correctiva por parte deste Tribunal[28].
Na verdade, devendo as penas ser graduadas num plano que promova a consciencialização, por parte do arguido, da necessidade de conformar a sua conduta posterior com a vigência das normas, e se revista do necessário efeito dissuasor de idênticos comportamentos, não se vislumbra fundamento para as situar em medida mais próxima do respectivo ponto mínimo, sob pena de serem postas em causa as finalidades visadas pelo legislador com a sua consagração, sendo que não foi violado qualquer comando legal ou princípio constitucional.
Relativamente à pena única, face ao disposto no art. 77.º do CP, o Tribunal recorrido procedeu à devida ponderação da globalidade dos factos e da personalidade do arguido, em moldes que, embora sintéticos, se aceitam, uma vez que a pena conjunta é aplicada não em acórdão resultante de conhecimento superveniente do concurso de crimes mas tão-só em face de penas parcelares fixadas no próprio processo e no mesmo julgamento, nas quais foram já sopesados os factos e a personalidade do agente[29].
E na sua determinação o Tribunal recorrido somou à pena parcelar mais grave uma fracção da restante pena que se contém nos limites legalmente definidos, seguindo os critérios orientadores decorrentes da jurisprudência do STJ nesta matéria, pelo que nada há a censurar.
Contudo, atenta a absolvição acima operada relativamente aos crimes de furto qualificado, haverá que a reponderar.
Os limites abstractos da pena única a aplicar ao recorrente BB … oscilam agora entre 9 (nove) meses de prisão, correspondente a uma das penas parcelares, e 18 (dezoito) meses de prisão, correspondente à soma das duas penas parcelares em concurso.
Levando, também nós, em conta aqueles critérios orientadores, considera-se adequado fixar a pena única em 13 (treze) meses de prisão, pois que se mostra adequada às exigências de prevenção e à culpa do recorrente ….
Determinada a pena única, o Tribunal ponderou ainda, como se lhe impunha, a questão da suspensão da sua execução, e optou pela aplicação de tal pena de substituição, por considerar ser possível formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do recorrente, subordinando tal suspensão a regime de prova, matéria que não vem questionada e que se mantém, por considerarmos que permanece ajustada às necessidades de prevenção especial, fixando-se agora o período da suspensão em medida igual à da pena única.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal da Relação de Coimbra em, concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido AA … e parcial provimento ao interposto pelo arguido BB …
a) alterar a matéria de facto provada nos termos acima referidos a fls. 47;
b) revogar o acórdão condenatório na parte em que condenou ambos os arguidos, em co-autoria material, pela prática de quatro crimes de furto qualificado, e o arguido AA … pela prática, em autoria singular, de um crime de furto qualificado, … deles absolvendo os recorrentes;
c) no mais, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido BB …, confirmando o decidido relativamente à sua condenação pela prática de dois crimes de furto simples, p. e p. pelo art. 203.º, n.º 1, do CP, fixando-se agora a pena única em 13 (treze) meses de prisão, que ficará suspensa, por igual período, com sujeição a regime de prova.
Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).
Notifique.
[1] O que, em nosso entender, não invalida que se tenha por devidamente cumprido o ónus de impugnação especificada, em consonância com o entendimento expresso no acórdão do STJ de 17-02-2005, proferido no Proc. n.º 4716/04, in www.dgsi.pt, segundo o qual «A redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.». Cf. no mesmo sentido o acórdão do STJ de 16-06-2005, Proc. n.º 1577/05, ibidem.
[2] Proferido no Proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[4] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[7] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[8] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[9] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[10] In www.dgsi.pt.
[11] «O erro de julgamento existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP», lê-se no Acórdão do STJ de 12-03-2009, Proc. n.º 3781/08 - 3.ª, ibidem.
[12] Cf. Eduardo Correia, Revista de Direito e Estudos Sociais, XIV, pág. 24, e Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Editora Danúbio, Lisboa, 1986, pág. 314.
[13] Cf. Acórdão de STJ de 07-01-2004, proferido no Proc. n.º 3213/03 - 3.ª, in www.dgsi.pt.
[14] Proferido no Proc. n.º 0846986, in www.dgsi.pt.
[15] [6] Ibidem (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Lições, Lisboa, 1955, p. 290).
[16] Ibidem.
[17] [4] Neste sentido cfr., entre outros, Ac. da RG de 19/01/2009, proc. 2025/08-2, Ac. da R.P. de 11/02/2012, proc. 136/06.4GAMCD.P1 e de 01/07/2015, proc. 425/11.6GFPNF.P2, Ac. da RE de 24/01/2017, proc. 209/13.7GFSTB.E1 e Ac. da RC de 20/09/2017, proc. 174/08.2GASPS.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[18] [5] Proferido no processo n.º 135/09.4GEPTM.E1, acessível in www.dgsi.
[19] Cf. ainda, no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 08-11-2018, proferido no Proc. n.º 202/14.2GAPCR.G2.S1 - 5, in www.dgsi.pt.
[20] Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., pág. 105.
[21] Em anotação ao art. 126.º do Código de Processo Penal, 9.ª ed., pág. 320.
[22] In Direito Processual Penal, 1.º Vol., pág. 213.
[23] Cf. entre muitos outros, os Acs. do STJ de 08-07-2004, Proc. n.º 1121/04 - 5.ª, de 30-03-2005, Proc. n.º 552/05 - 3.ª, de 22-10-2008, Proc. n.º 215/08 - 3.ª, de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª, e de 07-04-2010, Proc. n.º 2792/05.1TDLSB.L1.S1 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[24] Proferidos, respectivamente, nos Procs. n.ºs 221/08 - 5.ª, e 4802/06 - 3.ª, ambos in www.dgsi.pt.
[25] De entre as quais se destacam os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2009, proferido no Proc. n.º 451/08.2PVLSB.L1, com uma detalhada análise da doutrina e da jurisprudência, nacionais e estrangeiras, e de 13-04-2016, Proc. n.º 2903/11.8TACSC.L1-3, e os do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-06-2012, Proc. n.º 1135/11.0PBCBR.C1 e da Relação do Porto de 11-03-2009, Proc. n.º 691/06.9GAVNG, todos in www.dgsi.pt.
[26] In www.dgsi.pt.
[27] Cf. Ac. do STJ de 29-04-2009, Proc. n.º 939/07.2PYLSB.S1 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[28] Importará, nesta matéria, não esquecer as limitações que se colocam à controlabilidade do quantum exacto de pena, em sede de recurso, que já no acórdão de 25-11-2004 (Proc. n.º 3991/04 - 5.ª, in www.stj.pt Jurisprudência/Sumários de acórdãos) o Senhor Conselheiro Carmona da Mota assinalava: «Colocada a questão da «controlabilidade em via de recurso do procedimento de determinação da pena», na certeza de que o tribunal de recurso (seja a Relação, seja o Supremo), quando se trate de «recurso [de revista] limitado às questões de direito» («no caso do tribunal supremo ou mesmo das relações, quando se tenha verificado renúncia ao recurso em matéria de facto»), «conhecerá de todas as questões de que possa conhecer, de acordo com os poderes processuais de que dispõe» e se conclua pela não desproporcionalidade da quantificação operada no tribunal de instância e pela sua não desconformidade com as regras de experiência, restará, pois, a pronúncia (do tribunal de recurso) sobre a justiça do «quantum exacto da pena», aspecto este, porém, em que o recurso se mostra algo «inadequado para o seu controlo». Não porque essa controlabilidade deva imputar-se a outro tribunal (intermédio) de recurso, mas, exactamente, por - em recursos limitados às questões de direito - ser incontrolável – dentro dos estreitíssimos limites da margem de liberdade do julgador ante os parâmetros definidos no topo pela culpa, na base pelas exigências de prevenção geral e, no espaço intermédio, pelas exigências de prevenção especial e de ressocialização do criminoso – a justiça dessa «exacta quantificação». E isso porque, depois de controladas [e julgadas correctas] as operações de determinação da pena, não restará ao tribunal ad quem (a Relação ou o Supremo), num recurso limitado às correspondentes questões de direito, senão verificar se a quantificação operada nas instâncias, respeitando as respectivas «as regras de experiência», se não mostra «de todo desproporcionada». Aliás, «o Código assume claramente os recursos como remédios jurídicos» e não como «meio de refinamento jurisprudencial», pois que «o julgamento em que é legítimo apostar como instrumento preferencial de uma correcta administração da justiça é o de primeira instância»». Antes, ainda, v.g., o acórdão do STJ de 29-01-2004, proferido no Proc. n.º 1874/03 - 3.ª, in www.dgsi.pt, reafirmando entendimento reiterado desse Tribunal e, após, o acórdão do STJ de 27-05-2009, proferido no Proc. n.º 484/09 - 3.ª, ibidem, com indicação de vasta jurisprudência no mesmo sentido.
[29] Cf., a propósito, o Ac. do STJ de 31-01-2008, Proc. n.º 121/08 - 5.ª, in www.dgsi.pt.